Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 122/2018-T
Data da decisão: 2019-01-28  IVA  
Valor do pedido: € 40.329,26
Tema: IVA – artigo 2.º, alínea j) – “reverse charge.”
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Decisão Arbitral

 

I – RELATÓRIO

 

  1. A..., sociedade de direito alemão, contribuinte nº..., com morada em ..., ..., Alemanha, doravante designada por “Requerente”, apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, a alínea a), 5º, nº1, 6º e 10º, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (RJAT) e da Portaria n.º 112 – A/2011, de 22 de março, para impugnação e declaração de ilegalidade das liquidações de IVA nºs..., ..., ..., ..., ..., ... e ..., referentes aos anos de 2014, 2015 e 2016, bem assim como do ato de indeferimento da Reclamação Graciosa produzido no âmbito do processo nº ...2017..., todos juntos aos autos como documentos nºs 1 a 8 que aqui se dão por integralmente reproduzidos.

 

  1. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral, foi apresentado pela Requerente em 19-03-2018, foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e notificado à AT em 23-03-2018, nos termos e para os efeitos legalmente previstos. A Requerente optou por não indicar árbitro pelo que, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou, em 26-06-2018, a aqui signatária como árbitro do tribunal arbitral a constituir, que comunicou a sua aceitação dentro do prazo aplicável. O tribunal arbitral singular ficou constituído em 30-05-2018.

 

  1. Em 01-06-2018 foi proferido despacho arbitral para a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) apresentar resposta no prazo legal, nos termos e para os efeitos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 17.º do RJAT.  A Requerida veio juntar aos autos a sua resposta e o respetivo Processo Administrativo (PA), em 04-07-2018, cujo teor se dão por integralmente reproduzidos.

 

  1. Face à posição das partes evidenciadas nos articulados, considerando que as questões suscitadas se restringem a matéria de direito, a inexistência de exceções ou questões prévias a dirimir, não indicação de prova testemunhal a produzir e que a reunião prevista no artigo 18º do RJAT se revelaria inútil, o Tribunal arbitral proferiu, em 18-09-2018 despacho arbitral convidando as partes a se pronunciarem sobre a possibilidade de dispensa de realização da reunião. Por ausência de resposta das partes, foi proferido em 23-10-2018, despacho arbitral que dispensou a realização da reunião prevista no artigo 18º do RJAT, por desnecessária, foi fixado prazo de 10 dias, igual e sucessivo, para as partes apresentarem alegações e indicada a data para prolação da decisão arbitral até 29-11-2018. A Requerente apresentou as suas alegações em 2-11-2018 e a Requerida não apresentou alegações.

 

Assim, em 29-11-2018, foi proferido despacho arbitral fundamentado, no qual considerando que o prazo de seis meses fixado para a prolação da decisão arbitral corre seguido, incluindo o período de férias judiciais e que o prazo fixado para alegações das partes decorreu até 23-11-2018, não se afigura possível proferir decisão arbitral até 29-11-2018, pelo que nos termos previstos no nº 2 do artigo 21º do RJAT, o tribunal determinou a prorrogação do prazo de decisão por dois meses, fixando como data limite para prolação da decisão arbitral o dia 29-01-2019.

 

 

B) DO PEDIDO FORMULADO e da posição da Requerente:

 

  1. Em síntese, o Requerente, fundamenta o seu pedido arbitral em erro sobre os pressupostos de facto por aplicação do disposto na alínea j) do nº 1 do artigo 2º do Código do IVA (CIVA); violação do artigo 2015º do CPPT e do artigo 62º da CRP (duplicação de coleta); violação do princípio da justiça e violação do princípio da neutralidade do IVA subjacente à Diretiva 2006/112/CE. A este propósito e na sequência da alegada violação do princípio da neutralidade do imposto, suscita a questão do reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE).

 

Assim, em síntese, do ponto de vista da Requerente foi pago imposto em excesso, no valor de 40.329,26, por não ter sido aceite o IVA deduzido com fundamento de se tratar de IVA liquidado por um fornecedor de serviços de construção civil, reclamando a anulação das liquidações impugnadas, bem assim como da decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa.

Idêntica posição veio defender nas alegações apresentadas.

 

C – DA RESPOSTA DA REQUERIDA

 

  1. Na sua resposta a AT pugna pela legalidade de todos os atos praticados e veio, sumariamente, alegar que a Requerente devia ter autoliquidado o IVA nas operações em causa (construção civil) por força do regime previsto na alínea j) do nº1 do artigo 2º do CIVA. Argumenta que, para os devidos efeitos legais, a Requerente,  durante o período de realização das obras de construção civil, tem de ser considerada sujeito passivo de imposto por força dos efeitos retroativos da sua declaração de início de atividade, que expressamente se reportam a 1-1-2013, período anterior ao da realização das obras de construção civil, pelo que não pode tirar partido de um atraso no cumprimento das suas obrigações declarativas. Ao que acrescenta que a Requerente não pode, simultaneamente, invocar o direito ao reembolso do IVA constante em faturas emitidas antes da entrega da declaração de atividade (e pretender que este seja considerado dedutível) e, ao mesmo tempo, não querer ser considerada sujeito passivo de IVA no mesmo período, para que não lhe seja atribuída a obrigação de autoliquidar o imposto. A aquisição de serviços de construção civil, nos termos da alínea j) do nº1 do artigo 2º do CIVA estava e está sujeita ao regime de inversão da obrigação de liquidação do imposto, designado por “reverse charge”, sendo que a Requerente incumpriu tal regime.

Alega ainda que o atraso no cumprimento das suas obrigações declarativas é matéria da exclusiva responsabilidade da Requerente, sendo certo que não pode aproveitar de tal incumprimento e pretender apenas invocar o direito de dedução de imposto, quando incumpriu com a sua obrigação de autoliquidação do imposto. Na própria expressão da Requerida, a Requerente “não pode colher o melhor de dois mundos”. Sufraga, assim, as conclusões do Relatório de Inspeção Tributária (RIT) e a legalidade de todos os atos praticados.

 

II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS

 

  1. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas (cfr. artigos 4.º e 10.º n.º2 do RJAT e art.º 1.º da Portaria n.º 112/2011, de 22 de março).
  2. O processo não padece de vícios que o invalidem.

 

Cumpre decidir.

 

 

III – Decisão da Matéria de facto

 

  1. Factos Provados

 

8. Como matéria de facto relevante, dá o presente Tribunal por assente os seguintes factos:

  1. A Requerente é uma sociedade de direito alemão que tem objeto social a aquisição de imóveis para arrendamento, mediação, compra e venda de imóveis sitos exclusivamente em Portugal, e prestação de serviços de alojamento local;
  2. Em 08/01/2013 a Requerente adquiriu um imóvel sito em ..., na Freguesia de ..., Concelho de ..., descrito na Conservatória de Registo Predial (CRP) de ... sob o nº..., inscrito na respetiva matriz predial urbana sob os artigos ... ... da referida freguesia, com o propósito de o explorar através da prestação de serviços de alojamento local.
  3. Para a construção e adaptação do edifício adquirido, a Requerente contratou a sociedade de construção civil B..., Lda.
  4. Esta empreitada gerou um custo para a Requerente de €199.829,92, acrescido de IVA liquidado pelo prestador de serviços.
  5. No momento da prestação de serviços, a Requerente não era sujeito passivo de IVA, porquanto apenas se inscreveu como sujeito passivo de IVA em 19-11-2015, com efeitos retroativos a 01/01/2013.
  6. No seguimento do pedido de reembolso de IVA n.º ... referente ao período 1612T, no montante de €61.000,00, a AT considerou que existiam situações passíveis de correção em sede de IVA, designadamente por falta de liquidação de IVA por aplicação da regra da inversão e deduções indevidas de IVA (nos períodos 201406T, 201409T, 201412T, 201503T, 201506T, 201609T).
  7. Foram emitidas as ordens de serviço n.º OI2017..., OI2017... e OI 2017..., para os anos de 2014, 2015 e 2016, respetivamente.
  8. No seguimento, foi elaborado o Projeto de Relatório propondo o indeferimento parcial do pedido de reembolso no valor de €7.254,84.
  9. A notificação do Projeto do RIT foi efetuada através do ofício n.º..., de 20-04-2017 para, querendo, exercer no prazo de 15 dias o exercício do direito de audição, nos termos do artigo 60.º da LGT e 60.º do RCPITA.
  10.  A Requerente exerceu o direito de audição, mas os Serviços de Inspeção Tributária mantiveram as correções propostas no projeto de Relatório de Inspeção.
  11. O RIT foi notificado ao Requerente através do ofício n.º ... de 22-05-2017.
  12. No seguimento das correções foram emitidas as liquidações sobre as quais o Requerente apresentou Reclamação Graciosa e sobre o qual recaiu projeto de indeferimento.
  13. Após o exercício do direito de participação e por despacho de 22-05-2017 da Sr.ª Diretora de Finanças foi a reclamação graciosa indeferida.
  14. O Requerente apresentou Reclamação Graciosa contra as liquidações referidas, a qual veio a ser indeferida.
  15. Em 30-05-2018, o Requerente apresentou pedido arbitral para impugnação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, e de todas as liquidações subjacentes.

 

  1. FACTOS NÃO PROVADOS

 

9. Não existem outros factos relevantes para a decisão que devam considerar-se como não provados.

 

  1. FUNDAMENTAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS

 

10. O Tribunal não tem que se pronunciar sobre todos os detalhes da matéria de facto que foi alegada pelas partes, cabendo-lhe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).  Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções para o objeto do litígio no direito aplicável (artigo 596.º, n. 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7 do CPPT, à prova documental junta aos autos pelo Requerente e a que consta do próprio processo administrativo, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

IV – Decisão da Matéria de Direito

 

11. O presente pedido de pronúncia arbitral tem por objeto o ato de indeferimento da reclamação graciosa, intentada sob o n.º ... 2017..., o qual sustentou as liquidações de IVA dos anos de 2014, 2015 e 2016, melhor identificados no pedido de pronúncia arbitral.

Para o efeito a Requerente alega, sucintamente, que aceita as correções efetuadas pelos Serviços de Inspeção, relativas à não aceitação de IVA deduzido com o fundamento de os documentos de suporte não conterem elementos de identificação suficientes, pelo que procederá ao respetivo pagamento. Não se conforma, pelo que impugna, as correções relativas à não aceitação de IVA deduzido com o fundamento de se tratar de imposto liquidado por um fornecedor de serviços de construção civil – situação que levou à emissão de notas de liquidação no valor total €42.666,66. Entende que as liquidações em apreço enfermam dos seguintes vícios:

  1. Erro sobre os pressupostos de facto por aplicação do disposto na alínea j) do n.º 1 do artigo 2.º do CIVA;
  2. Violação do artigo 205.º do CPPT e 62.º da CRP – duplicação de coleta;
  3. Violação do princípio da Justiça e Violação do princípio da neutralidade do IVA subjacente à Diretiva 2006/112/CE.

 

Assim, cumpra analisar cada uma das situações invocadas pela Requerente.

 

 

  1. Quanto ao erro sobre os pressupostos e consequente vício de

violação de lei

 

12. Alega a Requerente que, no momento da prestação de serviços, não era sujeito passivo de IVA, não estando, por isso, reunidos os pressupostos para aplicação do regime de inversão do sujeito passivo. Apenas se inscreveu como sujeito passivo de IVA, em 19-11-2015, com efeitos retroativos a 01/01/2013. Assim, por um lado, entende que não reunia um dos pressupostos legais para a aplicação do regime de inversão, mas logo a seguir admite que a sua inscrição como sujeito passivo de IVA produziu efeitos retroativos a 1 de janeiro de 2013. Admite que o formalismo seguido não foi o mais correto, mas entende que daí não ocorreu qualquer perda de receita para o Estado e, por último, alega que a emissão de liquidações corretivas implicará uma duplicação de coleta.

 

13. As liquidações impugnadas têm a sua fundamentação no Relatório da Inspeção Tributária (RIT) do qual se extrai o seguinte:

(…)“da análise efetuada aos documentos de suporte do IVA deduzido, inscritos no Campo 20, verifica-se que os mesmos respeitam a obras efetuadas no imóvel de que o sujeito passivo é proprietário, pelo que estando em causa a prestação de serviços de construção civil há que aplicar o disposto na alínea j) do n.º1 do art. 2º do CIVA, sendo o IVA devido pelo adquirente dos serviços. Neste caso, apenas confere o direito à dedução, o imposto que for liquidado por força da obrigação de liquidação e pagamento por parte do adquirente, por aplicação da regra da inversão, nos termos do n.º 8 do artigo 19º do CIVA, com a redação dada pela Lei n.º 66-B/2012 de 31/12.Assim, daqui decorre que, ainda que o prestador liquide indevidamente IVA nestas operações, esse imposto não é dedutível.”

 

Face ao que vem exposto, em síntese, a argumentação da Requerente a favor da tese da ilegalidade do ato, assenta na ideia de não ter sido possível autoliquidar o imposto que incidiu sobre os serviços, uma vez que, à data em que os mesmos foram prestados não era sujeito passivo de IVA, embora pretenda o seu reembolso. Esta é, pois, a questão a decidir pelo Tribunal, ou seja, saber se a Requerente estava ou não obrigada a autoliquidar o imposto e se pode fazer valer o seu direito de dedução, que exerceu pela via do pedido de reembolso do IVA que suportou, processado indevidamente pelo prestador de serviços.

 

 

14. Dispõe o Artigo 2.º do CIVA, o seguinte:

 

Incidência subjectiva

1 - São sujeitos passivos do imposto:

a) As pessoas singulares ou colectivas que, de um modo independente e com carácter de habitualidade, exerçam actividades de produção, comércio ou prestação de serviços, incluindo as actividades extractivas, agrícolas e as das profissões livres, e, bem assim, as que, do mesmo modo independente, pratiquem uma só operação tributável, desde que essa operação seja conexa com o exercício das referidas actividades, onde quer que este ocorra, ou quando, independentemente dessa conexão, tal operação preencha os pressupostos de incidência real do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) ou do imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC);

(…)

j) As pessoas singulares ou coletivas referidas na alínea a) que disponham de sede, estabelecimento estável ou domicílio em território nacional e que pratiquem operações que confiram o direito à dedução total ou parcial do imposto, quando sejam adquirentes de serviços de construção civil, incluindo a remodelação, reparação, manutenção, conservação e demolição de bens imóveis, em regime de empreitada ou subempreitada.”

 

*

Deste normativo legal resulta que, para que o sujeito passivo possa exercer o direito à dedução, nos termos da alínea c), do n.º 1, do artigo 19º do CIVA, teria que autoliquidar o IVA subjacente aos serviços abrangidos pela regra da inversão que, no caso dos autos, respeitam às faturas emitidas pelo fornecedor B... Lda.

Do teor da alínea j), do n.º 1, do artigo 2.º do Código do IVA (CIVA), aditada pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 21/2007, de 29 de janeiro, resulta que são sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou coletivas que, de um modo independente e com carácter de habitualidade, exerçam atividades de produção, comércio ou prestação de serviços, incluindo as atividades extrativas, agrícolas e as das profissões livres, que disponham de sede, estabelecimento estável ou domicílio em território nacional e que pratiquem operações que confiram o direito à dedução total ou parcial do imposto, quando sejam adquirentes de serviços de construção civil, incluindo a remodelação, reparação, manutenção, conservação e demolição de bens imóveis, em regime de empreitada ou subempreitada.

Para que haja inversão do sujeito passivo, é necessário que, cumulativamente, se verifiquem os seguintes pressupostos:

a) se esteja na presença de aquisição de serviços de construção civil;

b) o adquirente seja sujeito passivo do IVA em Portugal;

c) e que pratique, no território nacional, operações que confiram, total ou parcialmente, o direito à dedução do IVA.

 

No caso dos presentes autos é pacificamente reconhecido pelas partes que se verificam o primeiro e o terceiro pressupostos. A divergência persiste apenas quanto ao segundo pressuposto, ou seja, o de saber se o adquirente deve ou não ser considerado sujeito passivo de IVA em Portugal, ao tempo da prestação de serviços em Portugal.

 

15. O Preâmbulo do Decreto-Lei n° 21/2007, de 29 de janeiro, que introduziu esta regra no CIVA, ajuda a esclarecer o alcance desta norma, ao referir que: “Assim, por via da inversão do sujeito passivo, passa a caber aos adquirentes ou destinatários daqueles serviços, quando se configurem como sujeitos passivos com direito à dedução total ou parcial do imposto proceder à liquidação do IVA devido, o qual poderá ser também objecto de dedução nos termos gerais. Com esta medida, visam acautelar-se algumas situações que redundam em prejuízo do erário público, actualmente decorrentes do nascimento do direito à dedução do IVA suportado, sem que esse imposto chegue a ser entregue nos cofres do Estado.”

Trata-se de um regime instituído com o fim de prevenir a fraude e garantir a eficácia no recebimento do imposto. Como bem refere, a propósito, Clotilde Celorico Palma: «A forma de evasão fiscal mais comum consiste na facturação da entrega de bens por um operador, sujeito passivo de IVA, que desaparece de seguida sem entregar o imposto ao fisco, deixando o adquirente (também sujeito passivo de IVA) com uma factura válida para efeitos de dedução do imposto. Dessa forma, as administrações fiscais não recebem o IVA cobrado na venda dos produtos, mas têm de reconhecer ao operador seguinte na cadeia de comercialização o direito à dedução do imposto suportado a montante. Em certos casos, esta prática evoluiu para uma fraude designada por missing trader intra-community fraud, que consiste numa fraude intracomunitária com recurso a operadores fictícios e que constitui um ataque organizado ao sistema do IVA baseado na liquidação abusiva do imposto pelos operadores quando a transmissão de bens a um sujeito passivo noutro Estado membro está isenta do pagamento desse imposto. Além disso, é frequente este tipo de fraude envolver a transmissão em cadeia dos mesmos bens, que podem circular diversas vezes entre os Estados membros (a chamada «fraude carrossel»), ficando a administração fiscal várias vezes prejudicada no pagamento do IVA sobre o mesmo produto. Este tipo de fraude está a alargar-se igualmente à prestação de serviços. Através do mecanismo do reverse charge ou de autoliquidação o IVA deixa de ser liquidado pelo operador ao adquirente que é sujeito passivo de IVA, passando este a assumir essa obrigação. Na prática, os adquirentes (na medida em que sejam sujeitos passivos normais com pleno direito à dedução) passam simultaneamente a declarar e a deduzir o IVA, sem pagamento efectivo às administrações fiscais. Desta forma, a possibilidade teórica de fraude é eliminada». [1] (sublinhado nosso)

 

No mesmo sentido, refere Manuela Moreira[2], a propósito da fraude carrossel ao IVA, que: “Numa operação corrente de IVA, quem liquida o IVA é o vendedor e o adquirente suporta o imposto por repercussão. No entanto, existem exceções à regra86 quando se verifica a inversão da mecânica de aplicação do imposto. Isto é, o IVA não é liquidado por quem transmite o bem ou presta o serviço mas pelo adquirente, o designado reverse charge ou inversão do sujeito passivo. Assim, a inversão do sujeito passivo surgiu como forma de combater a fraude carrossel ao IVA. Em Portugal o reverse charge surge como medida de combate à fraude nos sectores das sucatas e materiais recicláveis, imobiliário, ouro para investimento e direitos de emissão, reduções certificadas de emissões ou unidades de redução de emissões de gases com efeito de estufa, aos quais se refere o Decreto-Lei n.º 233/2004, de 14 de Dezembro. No entanto, o reverse charge representa “um entorse evidente ao sistema e justifica-se por razões sempre excecionais: em certos casos, por razões de praticabilidade, porque se mostra impossível exigir o imposto do vendedor; noutros por razões de combate à fraude, porque é mais seguro exigir o imposto do adquirente que do vendedor. (…) Como tal, introduzir a inversão do sujeito passivo em todos os sectores resultaria num aumento exponencial do controlo por parte das entidades competentes nos retalhistas, e ainda no aparecimento de outros tipos de fraude (no retalhista). “

Afiguram-se assim, bem explícitas as razões subjacentes ao regime de “reverse charge” ou inversão do imposto, bem assim como o entendimento maioritário da Doutrina e Jurisprudência quanto ao sentido e alcance do regime em presença.

 

16. Importa acrescentar que o mesmo entendimento é sufragado pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores. A este propósito pronunciou-se o Tribunal Central Administrativo Norte, entre outros, no Acórdão de 26-02-2015, do qual se extrai o seguinte:

“O prestador de serviços é, regra geral, o sujeito passivo de IVA, mas nas situações denominadas de reversão da dívida tributária ou inversão do sujeito passivo (reverse charge), o adquirente dos serviços ou dos bens torna-se o sujeito passivo do imposto pela respetiva aquisição, devendo proceder, em conformidade, à liquidação do imposto.

Segundo as regras de incidência subjetiva previstas no artigo 2º do CIVA são sujeitos passivos, as pessoas singulares ou coletivas que, de modo independente e com caráter de habitualidade, exerçam as atividades aí elencadas.

Existem, todavia, situações em que “o adquirente dos serviços e dos bens se torna sujeito passivo do imposto pela respetiva aquisição. São as denominadas situações de “reverse charge”, reversão da dívida tributária ou inversão da sujeição ou do sujeito passivo, ou seja, nestes casos, a dívida reverte do prestador de serviços para o adquirente. Sendo o adquirente o sujeito do imposto, deverá proceder em conformidade, à liquidação do imposto, sendo-lhe atribuído o direito à dedução do IVA pago pela aquisição dos serviços, nos termos do disposto no artigo 19º, nº 1, alíneas c) e d) do CIVA. Nessa situação, o adquirente é o sujeito passivo do imposto e, portanto, é ele que procede à liquidação do IVA tendo direito à dedução do IVA por essas aquisições. O adquirente, sujeito passivo do IVA, deve proceder à liquidação do imposto que se mostre devido naquelas operações, sempre que o fornecedor seja, também, sujeito passivo do imposto.” (sublinhado nosso)[3]

 

Este entendimento jurisprudencial encontra-se, ainda, sufragado pelo Supremo Tribunal Administrativo, como bem resulta da decisão vertida no Acórdão de 27-02-2013, onde se firmou o seguinte entendimento: “por aplicação das regras gerais, o prestador de serviços é o sujeito passivo do IVA, mas nas denominadas situações de reversão da dívida tributária ou inversão da sujeição ou do sujeito passivo (reverse charge) o adquirente dos serviços ou dos bens torna-se o sujeito passivo do imposto pela respetiva aquisição, devendo proceder, em conformidade, à liquidação do imposto, sendo-lhe atribuído o direito à dedução do IVA pago pela aquisição dos serviços.” [4]

 

Por último, também a jurisprudência arbitral segue este entendimento, como resulta, por exemplo na decisão arbitral proferida no processo nº 361/2015-T, de 07-01-2016, no qual se decidiu que: “O artigo 2º, nº 1, alínea j) do CIVA estabelece que “são sujeitos passivos do imposto (…) as pessoas singulares ou coletivas referidas na alínea a) que disponham de sede, estabelecimento estável ou domicílio em território nacional e que pratiquem operações que confiram o direito à dedução total ou parcial do imposto, quando sejam adquirentes de serviços de construção civil, incluindo a remodelação, reparação, manutenção, conservação e demolição de bens imóveis, em regime de empreitada ou subempreitada”.

 

17. Posto Isto, estabelece o n.º 8, do artigo 19.º, do CIVA, que «nos casos em que a obrigação de liquidação e pagamento do imposto compete ao adquirente dos bens e serviços, apenas confere direito a dedução o imposto que for liquidado por força dessa obrigação.».

No caso dos presentes autos, ao tempo da prestação de serviços, por facto imputável á Requerente, esta não havia ainda apresentado a sua declaração de início de atividade. Incumprimento que é de sua exclusiva responsabilidade.

Certo é que, também por sua declaração de vontade, ao regularizar esta situação em 19/11/2015, declarou o seu início de atividade com efeitos retroativos a 01-01-2013. Face a estes factos não resta dúvida que, para todos os efeitos legais, incluindo o de aferir sobre a natureza do regime jurídico aplicável à dedução do referido imposto, temos de considerar a Requerente como sujeito passivo de imposto desde então, ou seja, desde 01-01-2013.

Logo, não resta dúvida sobre a aplicação, in casu, do regime de inversão do imposto. É neste enquadramento que tem de ser aferido o eventual direito de dedução e reembolso de imposto reclamado pela Requerente.

 

18. Ora, não temos dúvida que, face aos normativos supra indicados, e como bem alega a AT na sua resposta, ainda que o transmitente dos bens ou prestador de serviços liquide indevidamente IVA nessas operações, esse imposto não é dedutível, por força do regime de inversão de imposto.

A Requerente não pode solicitar o reembolso de IVA (o que pressupõe que se considera sujeito passivo de imposto desde o momento da realização das prestações de serviços de construção civil em causa), reclamar que seja considerado IVA dedutível o imposto constante em faturas emitidas antes da entrega da declaração de atividade e, ao mesmo tempo, não querer ser considerada sujeito passivo de IVA no mesmo período, para que não lhe seja atribuída a obrigação de autoliquidar o imposto na aquisição de serviços de construção civil, nos termos da alínea j) do n.º 1 do artigo 2.º do CIVA. Tal posição contém em si uma contradição insanável.

 

19. Resulta da matéria assente que a Requerente só em 2015 cumpriu com a sua obrigação declarativa, com efeitos retroativos a 1-01-2013 (data anterior à prestação de serviços em causa nos autos). O atraso no cumprimento desta obrigação é de sua exclusiva responsabilidade.  Pelo que, durante o período de realização das obras de construção civil, a Requerente tem de ser considerada como sujeito passivo de imposto.

Estamos perante uma situação semelhante à decidida no processo arbitral nº 361/2015-T, onde se decidiu, com aplicação no caso dos presentes autos, o seguinte: «As Partes estão de acordo quanto à aplicação deste regime às facturas dos serviços de construção civil prestados por E…, pelo que tem de se concluir que foi nelas indevidamente incluída liquidação de IVA. Tendo liquidado indevidamente IVA nas facturas em causa, o fornecedor dos serviços é sujeito passivo do imposto mencionado [artigo 2.º, n.º 1, alínea c), do CIVA], pelo que estava obrigado a entregá-lo ao Estado.”

 

20. No caso concreto dos presentes autos, e face ao que vem exposto, é de concluir que a Requerente cumpre os três pressupostos para aplicação do regime de inversão do imposto. Da matéria de facto assente nos presentes autos resulta que embora a Requerente apenas tenha entregue a declaração de início de atividade em 19-11-2015 a mesma retroagiu à data de 1-01-2013, conforme declaração da própria. Logo, é a partir dessa data que adquiriu a qualidade de sujeito passivo e, por ser assim, o entendimento é que desde então se considera abrangida pelas regras aplicáveis aos sujeitos passivos de IVA.

 Pelo que, não lhe assiste razão quanto ao invocado vício de erro sobre os pressupostos de facto, e de direito, subjacentes às liquidações postas em crise. Improcede, portanto, a alegada ilegalidade por violação de lei, como vem alegada pela Requerente.

 

 

  1. Quanto à alegada duplicação da coleta e violação do artigo 205º do CPPT, artigo 62º da CRP e do princípio da justiça

 

21. Também quanto à alegada violação do disposto nos artigos 205º do CPPT e 62º da CRP, por duplicação de coleta, não se afigura procedente a tese da Requerente, como se demonstrará.

Desde logo, porque quem estava obrigada à autoliquidação do imposto era, pelas razões supra expostas, a Requerente. Cabia à Requerente provar que o valor de IVA arrecadado, alegadamente, pelo prestador de serviços, foi devidamente entregue nos cofres do Estado, o que não sucedeu. Não resulta provado nos autos que o tivesse feito, e, apesar de a Requerente alegar o contrário e que nenhum prejuízo resultou para o Estado, a verdade é que nenhuma prova apresentou que nos permita concluir pelo cumprimento da entrega do IVA devido. Resulta do que vem alegado pela AT e consta do PA que durante a instrução do processo inspetivo a testemunha inquirida afirmou estar convencida que o valor do imposto tenha sido entregue. Mas é evidente que tal afirmação é mera suposição, pois resulta claro não ter conhecimento efetivo se tal sucedeu ou não. De resto, nunca ficaria demonstrado que na ótica da arrecadação tributária não existisse prejuízo, pois não será indiferente o processamento do imposto pelo prestador ou a sua autoliquidação pelo adquirente da prestação de serviços, e respetivo contexto para o exercício do direito da dedução. Pelo que, a requerente não demonstrou, nem poderia, a alegada duplicação de coleta.

 

A este propósito, convoca-se o que foi decidido no processo arbitral nº 661/2016-T. que se enquadra perfeitamente no caso concreto dos presentes autos:

 “Com efeito, e como se assinala, por ex., no seguinte aresto do STA: “I - Por aplicação das regras gerais, o prestador de serviços é o sujeito passivo de IVA, mas nas denominadas situações de reversão da dívida tributária ou inversão da sujeição ou do sujeito passivo (reverse charge), o adquirente dos serviços ou dos bens torna-se o sujeito passivo do imposto pela respectiva aquisição, devendo proceder, em conformidade, à liquidação do imposto, sendo-lhe atribuído o direito à dedução do IVA pago pela aquisição dos serviços. II - A duplicação da colecta, prevista no art 205.° do CPPT, resulta da aplicação do mesmo preceito legal mais do que uma vez ao mesmo facto tributário ou situação tributária concreta, sendo que a não exigência de segundo pagamento [à recorrente/requerente], a que a invocação da duplicação de colecta se reconduz, apenas se pode justificar se o primeiro [exigido à prestadora de serviços] era devido, pois, se não o foi, o que foi pago poderá ser ulteriormente reembolsado, através dos meios adequados de impugnação e revisão do acto tributário e, numa situação desse tipo, não se justifica que se prescinda do segundo pagamento, que é efectivamente devido.” (Ac. do STA de 27/2/2013, rec. 01079/12).

Referindo ainda, o mencionado aresto, que “não se verificam os pressupostos da duplicação da colecta, pois, como refere o Ministério Público, no seu douto Parecer, «(...) o pagamento do IVA efectuado pela prestadora de serviços de construção de civil não é devido, uma vez que o sujeito passivo do imposto é a recorrente. Não sendo devido tal pagamento não faz qualquer sentido que se prescinda do pagamento por parte da recorrente, esse sim, legalmente, devido». Assim sendo, sempre assistirá à prestadora de serviços a possibilidade de poder obter o reembolso do imposto indevidamente liquidado através dos mecanismos e meios processuais adequados. Como observa, neste sentido, o Ministério Público, no seu douto Parecer, «O indevido pagamento do IVA por parte da prestadora de serviços poderia ter sido resolvido pela devolução das facturas pela recorrente para serem rectificadas ou solicitando àquela que efectuasse a regularização prevista no artigo 78,°/3 do CIVA, sendo a impugnante/recorrente reembolsada, pela prestadora dos serviços, do IVA que lhe foi indevidamente liquidado. (...). A recorrente não pode é, por via da acção de impugnação judicial, pretender o reembolso do IVA, indevidamente pago, por via da anulação do acto tributário sindicado, pois que, como se viu, a liquidação tem arrimo legal, uma vez que o sujeito passivo do IVA é ela mesma e não a prestadora de serviços, não se verificando, pois, a alegada duplicação de colecta».”

 

22. Dito de outro modo, face ao regime de inversão de imposto em presença, não seria aceitável outro entendimento diferente do que vem exposto, sob pena de impedir a AT de corrigir este tipo de situações, impondo ao verdadeiro sujeito passivo a liquidação adicional. Como bem alega a AT, outro entendimento seria o equivalente a ter a “solução” para contornar o regime legal do reverse charge. Pelas mesmas razões, não procede o que vem alegado quanto à violação do princípio da justiça, porquanto não se demonstra a duplicação de receita do Estado. De notar que, a receita do estado não é necessariamente a mesma, no caso de autoliquidação (como devia ter sido) ou de liquidação por parte do prestador de serviços. Não é, por isso, correta a conclusão da Requerente sobre a ausência de prejuízo para o Estado. Não se percebe, aliás, que uma empresa como a Requerente, com claro objetivo de investimento turístico e imobiliário na região do ... não tenha acautelado o correto processamento e ou regularização do imposto em causa.

Conclui-se, pois, que face à matéria de facto provada nos presentes autos não se pode considerar demonstrada a duplicação de pagamentos de IVA ao Estado, nos termos que vêm alegados pela Requerente, pelo que, também nesta questão tem de improceder o pedido formulado pela Requerente.

 

 

  1. Quanto à violação do princípio da neutralidade do IVA, subjacente à Diretiva 2006/112/CE e ao pedido de Reenvio Prejudicial ao TJUE

 

23. Quanto à alegada violação do princípio da neutralidade do IVA, que vem, por último, invocado como fundamento da ilegalidade das liquidações e fundamento para o pedido de reenvio prejudicial, importa ter em conta o correto enquadramento da questão à luz da jurisprudência do TJUE. Na verdade, o princípio da neutralidade tem de ser interpretado de modo a compatibilizar-se com o grau de autonomia que por opção do legislador comunitário foi atribuído aos Estados Membros, de modo a permitir que estes exerçam o seu poder de regulamentação do imposto no espaço interno de cada país, atendendo às especificidades próprias e às dificuldades sentidas, nomeadamente, quanto ao controlo da fraude ao imposto. Não se esqueça que este é um dos pilares fundamentais do bom funcionamento do imposto.

A harmonização fiscal em sede de IVA é, como se sabe, uma harmonização imperfeita. Estamos longe de um imposto único e igualitário em todo o espaço da EU.

O princípio da neutralidade do IVA, constitui a base estruturante do imposto, emanação do Tratado de Roma, que desde 1967 foi evidenciado nos preâmbulos das duas primeiras Diretivas do IVA, como fundamento ou razão de ser da adoção deste tipo de imposto e da rejeição do modelo dos impostos em cascata.

O princípio da neutralidade, consagrado e desenvolvido desde a primeira Diretiva IVA, impõe uma igualdade de tratamento de mercadorias similares e, diferentemente dos impostos cumulativos em cascata, implica que o IVA comunitário deva incidir da mesma forma em todas as fases ou momentos do circuito económico. O princípio da neutralidade é sistematicamente invocado pela Comissão para se opor às legislações nacionais tidas por incompatíveis com as regras comunitárias, bem como pelas administrações fiscais e pelos contribuintes dos diversos Estados membros, tendo sido, inúmeras vezes, aplicado pelo TJUE. Assim, é já bastante clara a interpretação do princípio, bem assim como o seu âmbito e alcance.

A Sexta Diretiva veio reafirmar a relevância do princípio da neutralidade do imposto, referindo-se ao seu objetivo essencial que consiste na realização de um verdadeiro mercado interno comunitário, para justificar a necessidade da neutralidade do IVA quanto à origem dos bens e das prestações de serviços.

O princípio da neutralidade tem um corolário importante no clássico princípio jurídico da não-discriminação e encontra a sua justificação noutros princípios que regem o IVA, tais como os princípios da igualdade de tratamento, da proibição de duplas tributações ou da ausência de tributação. Existirá neutralidade relativamente ao consumo, quando o imposto não influi nas escolhas dos diversos bens ou serviços por parte dos consumidores. Um imposto será neutro na perspetiva da produção, se não induz os produtores a alterações na forma de organização do seu processo produtivo. Trata-se de um imposto harmonizado, mas que permite às ordens jurídicas internas regulamentar o imposto nas respetivas ordens jurídicas, ajustando as suas regras às necessidades específicas de cada uma. Esta opção é clara e se assim não fosse, há muito a EU poderia ter adotado um imposto uniformizado.

Como salienta Pitta e Cunha, “Já há muito a ciência fiscal abandonou a antiga concepção de neutralidade do imposto, segundo a qual a tributação neutra seria aquela que não influi na vida económica. Toda a fiscalidade produz hoje inevitáveis modificações na economia; entende-se hoje que o imposto é ‘neutro’ quando opera modificações homotéticas, iguais para todos os elementos do meio económico.”[5]

Um imposto totalmente neutro parece estar fora de questão sempre se concedendo algumas isenções, existindo, eventualmente, diferenciações na taxa aplicável às diferentes transações de bens e serviços.

24. O TJUE tem já um longo percurso de jurisprudência produzida, pelo que, não se vê justificação ou necessidade de reenvio prejudicial sobre a questão em discussão nos autos.

Assim, da análise da jurisprudência do TJUE, no que toca às prestações de serviços, o princípio da neutralidade significa que não devem ser tratadas de modo diferente prestações em si mesmas semelhantes e que estejam em concorrência entre si.[6]

Em suma, segundo o TJUE o princípio da neutralidade opõe-se a que mercadorias ou prestações de serviços semelhantes, que estão, portanto, em concorrência entre si, sejam tratadas de maneira diferente do ponto de vista do imposto sobre o valor acrescentado. Nele se inclui o princípio da eliminação das distorções da concorrência resultantes de um tratamento diferenciado do ponto de vista do imposto sobre o valor acrescentado, de modo a não permitir distorções de concorrência, duplicação de tributo, ausência de tributação, ou seja, impõe a igualdade de tratamento das pessoas no tocante ao mesmo tipo de operações.[7]

Do princípio da neutralidade se extrai, também, a proibição da dupla tributação ou da ausência de tributação, com implicações ao nível do direito à dedução.

No Caso Comissão/Itália, o TJUE concluiu que resulta da própria letra do artigo 18°, n° 4, da Sexta Diretiva e, em especial, da expressão “nas condições por eles fixadas”, que os Estados Membros dispõem de uma certa liberdade de manobra para fixar as condições de reembolso do excesso de IVA. Como, porém, o reembolso do excesso de IVA é um dos elementos fundamentais para garantir a aplicação do princípio da neutralidade, as condições fixadas pelos Estados Membros não podem ser tais que atentem contra este princípio, fazendo recair sobre o contribuinte, no todo ou em parte, o peso do IVA.

Quanto à questão do regime de inversão de imposto, conhecido como “reverse charge” o TJUE já se pronunciou no âmbito dos processos apensos C-95/07 e C-96/07 (Ecotrade SpA contra Agenzia Entrate Ufficio Genova 3) sobre o mecanismo de inversão do ónus da liquidação do IVA, tendo concluído que: “O Estado Membro tem a liberdade de regulamentar o imposto internamente, nomeadamente considerando como isenta ou não isenta determinada transação, ou inverter o ónus da liquidação do imposto.

 

Assim, do ponto de vista do TJUE, a posição quanto a esta questão parece clara e evidente, reconhecendo que os Estados membros têm a possibilidade de adotar medidas ajustadas ao controlo do imposto, entre as quais, se refere a da inversão do ónus da liquidação do imposto, desde que o faça de modo não discriminatório de modo a não afetar a neutralidade do imposto.

 

Assim, cabe a cada Estado membro regulamentar, de forma não discriminatória nem desproporcional, o regime das isenções ou outras medidas derrogatórias, entre elas, o regime da inversão da liquidação de imposto. Cabe nos poderes de autonomia do Estado membro a regulamentação do imposto, definindo os pressupostos para aplicação do regime de inversão de liquidação do imposto.

A questão em apreço não suscita quaisquer dúvidas interpretativas ou de aplicação das normas e, designadamente, de desconformidade com o direito da União Europeia, que justificasse o recurso ao reenvio prejudicial como sugerido pela Requerente.

 

25. De resto, importa salientar que a aplicação, pelo legislador nacional, do regime de inversão do sujeito passivo ou “reverse charge”, nas prestações de serviços de construção civil é expressamente consentida pela Diretiva n.º 2006/69/CE de 24 de julho. Como se diz no preâmbulo do DL 21/2007 de 29 de janeiro:

- “O presente decreto-lei procede à introdução na legislação do IVA de um conjunto de medidas destinado a combater algumas situações de fraude, evasão e abuso que se vêm verificando na realização das operações imobiliárias sujeitas a tributação, seguindo, nesta matéria, a experiência anteriormente adquirida e as melhores práticas adoptadas em outros Estados membros da União Europeia.

(…) Fora do âmbito das operações previstas nos nºs 30 e 31 do artigo 9° do Código do IVA, mas ainda no domínio de algumas prestações de serviços relativas a bens imóveis, nomeadamente nos trabalhos de construção civil realizados por empreiteiros e subempreiteiros, o presente decreto-lei vem adoptar, de igual modo, uma outra faculdade conferida pela Directiva n.° 2006/69/CE, do Conselho, de 24 de Julho. Assim, por via da inversão do sujeito passivo, passa a caber aos adquirentes ou destinatários daqueles serviços, quando se configurem como sujeitos passivos com direito à dedução total ou parcial do imposto, proceder à liquidação do IVA devido, o qual poderá ser também objecto de dedução nos termos gerais. Com esta medida, visam acautelar-se algumas situações que redundam em prejuízo do erário público, actualmente decorrentes do nascimento do direito à dedução do IVA suportado, sem que esse imposto chegue a ser entregue nos cofres do Estado”.

 

26. Assim, em conclusão, por força do disposto no artigo 2º, n.º 1, j) do CIVA, na redação dada do referido DL 21/2007, “as pessoas singulares ou colectivas referidas na alínea a) que disponham de sede, estabelecimento estável ou domicílio em território nacional e que pratiquem operações que confiram o direito à dedução total ou parcial do imposto, quando sejam adquirentes de serviços de construção civil, incluindo a remodelação, reparação, manutenção, conservação e demolição de bens imóveis, em regime de empreitada ou subempreitada”.

 

Esta disposição legal, não se afigura discriminatória, nem desproporcional e está em conformidade com os poderes de autonomia do Estado português na regulamentação do imposto, na linha da interpretação já efetuada pelo TJUE sobre a questão da inversão do sujeito passivo de imposto, nos termos supra expostos. Improcede, pois, o requerido reenvio prejudicial.

 

27. Por tudo o que vem exposto, conclui-se que não padecem de qualquer vício os actos de liquidação impugnados que por isso, devem ser mantidos.

Na verdade, o que se prova, em matéria de pagamentos e recebimentos pelo Estado relativos aos referidos serviços de construção civil é apenas que a Requerente recebeu o IVA indicado nas faturas, ao exercer indevidamente o direito à dedução e posterior pedido de reembolso.

Por isso, antes das liquidações efetuadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira, a situação que se depara é a de a Requerente ter em seu poder indevidamente o montante de IVA, pelo que os efeitos da dedução deveriam ser eliminados.

É certo que, tendo a Requerente pago indevidamente o IVA ao fornecedor ficará prejudicada, pois não poderá exercer o direito à dedução relativamente àquele. Porém, não se tendo provado que o IVA pago ao fornecedor tenha sido entregue ao Estado, não se pode considerar demonstrado que o Estado não ficou prejudicado com a dedução de IVA efetuada pela Requerente.  Assim, não se pode considerar violado quer o princípio da neutralidade do IVA,

Improcedem, assim, todos os pedidos formulados no pedido de pronúncia arbitral.

 

V. Decisão

Em conformidade com o exposto, decide este Tribunal Arbitral:

  1. Julgar totalmente improcedentes todos os pedidos formulados no pedido de pronúncia arbitral;
  2. Condenar a Requerente pelo pagamento das custas arbitrais devidas.

 

 

VI. VALOR DO PROCESSO

Fixa-se o valor do processo em €40.329,26, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

VII. CUSTAS

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €2.142,00, nos termos da Tabela II do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 5º do citado Regulamento, a pagar pela parte vencida.

 

Notifique.

Lisboa, 28– 01 - 2019

 

O Tribunal Arbitral Singular,

 

 

_________________________

(Maria do Rosário Anjos)

 



[1] Cfr: Palma, Clotilde Celorico - Revista TOC, N.° 118, janeiro de 2010, página 31.

[2] Cfr.: Moreira, Manuela Virginia da Silva Andrade; A Fraude Carrossel ao IVA, Mestrado de Direito Tributário e Fiscal da Escola de Direito da Universidade do Minho; in repositório da UM: http://hdl.handle.net/1822/44474.

 

[3] Cfr: Acórdão TCAN de 26-02-2015, processo nº 00448/11.5BEVIS, in www.dgsi.pt.

[4] Cfr.: Acórdão STA de Acórdão de 27-02-2013, Processo nº 01079/1, in www.dgsi.pt.

 

 

[5] Pitta e Cunha, P. - “A tributação do valor acrescentado”, Vinte Anos de Imposto Sobre o Valor Acrescentado em Portugal: Jornadas Fiscais em Homenagem ao Professor José Guilherme Xavier de Basto, Almedina, Coimbra, Novembro 2008, p. 113

[6] Neste sentido, vd. (v., designadamente, Acórdãos de 12 de Junho de 1979, Caso Nederlandse Spoorwegen, Proc. 126/78, Rec., p. 2041, de 11 de Outubro de 2001, Adam, Proc. C-267/99, Colect., p. I-7467, n.° 36; de 23 de Outubro de 2003, Comissão/Alemanha, Proc.C-109/02, Colect., p. I-12691, n.° 20, e de 26 de Maio de 2005, Kingscrest Associates e Montecello, Proc. C-498/03, Colect., p. I-4427, n.° 41). No mesmo sentido vd. conclusões da Advogada Geral Juliane Kokott  apresentadas no Caso TNT (Acórdão de 23 de Abril de 2009, Proc. C-357/07, Colect., p. I-5189),

 

[7] Neste sentido, vide, nomeadamente, os Acórdãos de 7 de Setembro de 1999, Caso Gregg, cit.,n.ºs 19 e 20, de 26 de Maio de 2005, Caso Kingscrest Associates e Montecello, cit., n.º 29, e de 28 de Junho de 2007, Caso JP Morgan Flemming Claverhouse, Proc. C-363/05, Colect., p. I-5517, n.ºs 46 e 47, bem como o Acórdão de 3 de Maio de 2001, Caso Comissão/França, Proc. C-481/98, Colect., p. I-3369, n.º 22.