Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 226/2018-T
Data da decisão: 2018-12-13  Selo  
Valor do pedido: € 29.625,00
Tema: IS – Sociedades de capital de risco.
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DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

1. A..., S.A., com o número de identificação fiscal..., com sede na Rua ..., ..., ...-... Porto, apresentou, em 02-05-2018, pedido de constituição do tribunal arbitral, nos termos dos artigos 2º e 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em conjugação com o artigo 102º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada apenas por Requerida, ou ATA).

 

2. A Requerente pretende, com o seu pedido, a declaração de ilegalidade da decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa com o Processo n.º ...2017..., praticada pela Direção de Finanças do Porto, relativa a autoliquidações de imposto do selo com referência aos anos de 2015 e 2016, com o consequente reembolso do imposto pago, bem como o reconhecimento ao direito a juros indemnizatórios.

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 03-05-2018.

 

3.1. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou o signatário como árbitro do tribunal arbitral singular, que comunicou a aceitação da designação dentro do prazo.

 

3.2. Em 25-06-2018 as partes foram notificadas da designação do árbitro, não tendo sido arguido qualquer impedimento.

 

3.3. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11º do RJAT, o tribunal arbitral foi constituído em 16-07-2018.

 

3.4. Nestes termos, o Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objeto do processo.

 

4. A fundamentar o pedido de pronúncia arbitral a Requerente alega, em síntese, o seguinte:

A Requerente é uma Sociedade de Capital de Risco (SCR), regularmente constituída ao abrigo da legislação nacional, em particular do actual Regime Jurídico do Capital de Risco, Empreendedorismo Social e Investimento Especializado, que se encontra estabelecido na Lei n.º 18/2015, de 4 de março, consistindo a sua actividade principal, à data das autoliquidações de imposto do selo agora contestadas, na gestão do Fundo de Capital de Risco B... (FCR).

No âmbito dessa actividade, a Requerente cobrava trimestralmente uma comissão de gestão àquele FCR, sobre a qual liquidava imposto do selo à taxa de 4% prevista na verba 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo, o que fez entre março de 2015 e dezembro de 2016.

Porém, as SCR não se encontram tipificadas como «sociedades financeiras» na legislação nacional desde 2002, o que significa que tais comissões estão excluídas da esfera de incidência do imposto do selo, em especial da verba 17.3.4 da TGIS. É inequívoco que a sujeição a imposto do selo prevista naquela verba tem como condição essencial que a entidade que cobra a comissão corresponda a uma das tipologias jurídicas nela previstas (instituições de crédito, sociedades financeiras, outras entidades legalmente equiparadas a sociedades financeiras e quaisquer outras instituições financeiras).

O Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF) é o único diploma existente no ordenamento jurídico português que elenca, qualifica e densifica expressamente as entidades que se enquadram na categoria de instituições de crédito, sociedades financeiras e instituições financeiras, conforme consta da alínea z) do artigo 2.º-A e dos artigos 3.º e 6.º do referido diploma.

A versão original do artigo 6.º do RGICSF previa expressamente na alínea h) do n.º 1, que as SCR eram qualificadas como sociedades financeiras, previsão expressa que perdurou até ao final de 2002. Tendo tal alínea sido revogada pelo Decreto-Lei n.º 319/2002, de 28 de dezembro, as SCR perderam, inequivocamente, a qualificação jurídica de sociedade financeira e, consequentemente, deixaram de se enquadrar no conceito de instituição financeira.

Foi intenção expressa do legislador terminar com a qualificação daquela tipologia de entidades como sociedade financeira, afastando-as do espectro das entidades que se encontram abrangidas pelo RGICSF.

Não pode invocar-se um alegado lapso do legislador; não só pela proximidade das alterações introduzidas àquela norma, mas, principalmente, atendendo aos princípios gerais de interpretação das leis, nos termos dos quais deve considerar-se sempre que o legislador «consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» (cit.), tal como fica expresso no n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil, não sendo por isso admissível alegar-se o mero esquecimento, para a não inclusão das SCR naqueles conceitos. O próprio regime jurídico da actividade de investimento em capital de risco, publicado pela já citada Lei n.º 18/2015, de 4 de março, vem corroborar esta realidade, ao determinar, no seu artigo 2.º que as SCR não são «intermediários financeiros».

Estando em causa uma norma de incidência, a mesma está sujeita ao Princípio da Legalidade consagrado no artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa (doravante ‘Constituição’), bem como no artigo 8.º da LGT, princípio que exige que as normas de incidência sejam precisas e com um elevado grau de determinação, não conferindo discricionariedade no julgamento dos conceitos envolvidos. A interpretação da norma constante da Verba 17.3.4 da TGIS, na redação em vigor, tal como é feita pela AT no indeferimento em crise, segundo a qual as SCR qualificam como outras instituições financeiras, é inconstitucional por violação do disposto no n.º 2 do artigo 104.º da Constituição, inconstitucionalidade que desde já se invoca para todos os efeitos legais.

Caso se entenda pela sujeição das SCR à verba 17.3.4 da TGIS, o que apenas se coloca por mera hipótese académica, sempre se dirá que concluindo-se pela sujeição, será aplicável a isenção constante do artigo 7.º, nº 1, alínea e) do Código do Imposto do Selo.

A introdução do n.º 7 ao artigo 7.º do Código do Imposto do Selo foi acompanhada por uma disposição da Lei do OE para 2016 (em concreto, o artigo 154.º daquele diploma) que lhe atribuiu carácter interpretativo. O legislador civilista terá procurado acautelar os princípios da segurança e paz jurídica, evitando que a figura do caracter interpretativo não seja mais do que um disfarce da retroatividade da nova lei, importando neste âmbito ter presente o princípio constitucional da Proibição da Norma Fiscal Retroativa consagrado no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição e reforçado no n.º 1 do artigo 12.º da LGT.

A regra introduzida no n.º 7 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo, à qual foi atribuído carácter interpretativo, tem natureza inovadora, na medida em que ressuscitou uma norma que não vigorava na ordem jurídica nacional desde 2003, não podendo por isso deixar de ser considerada retroactiva e, como tal, contrária ao princípio constitucional da proibição da norma fiscal retroactiva previsto no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição.

O corolário lógico de tudo o que aqui foi dito a este respeito encontra-se espelhado nos recentes Acórdãos do Tribunal Constitucional relativos aos processos n.º 519/17, de 4 de outubro de 2017, e n.º 449/17, de 20 de fevereiro de 2018, os quais foram proferidos na sequência de recurso interposto pela AT às decisões do Tribunal Arbitral relativas aos processos n.º 633/2016-T, de 19 de maio de 2017, e n.º 348/2016-T, de 2 de maio de 2017, respetivamente. As decisões recorridas pela AT são, em tudo, semelhantes à temática aqui exposta, tendo, em ambos os casos, o Tribunal Constitucional confirmado a inconstitucionalidade do carácter interpretativo atribuído à norma introduzida no n.º 7 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo.

Conclui, por isso, a Requerente pela ilegalidade do despacho de indeferimento da reclamação graciosa objecto do pedido arbitral.

 

5. A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, invocando em síntese, o seguinte:

O n.º 2 do art. 1º do CIS estabelece que “não sujeitas a imposto as operações sujeitas a imposto sobre o valor acrescentado e dele não isentas”.

A isenção de IVA consagrada na alínea 27 do art. 9º do CIVA prevista para as operações de “administração ou gestão de fundos de investimento”, na linha da redacção da alínea g) do n.º 1 do art. 135º da Directiva n.º 2006/112/CE é aplicável a qualquer “fundo de investimento”, independentemente da sua natureza e finalidade.

A isenção de IVA é uma condição sine qua non para a incidência do imposto do selo.

A sujeição a imposto do selo das comissões cobradas pelas entidades gestoras de fundos, a título de contraprestação pela administração e gestão dos fundos, depende da verificação cumulativa de um elemento subjectivo e de um elemento objectivo. As operações decritas na verba 17.3.4 apenas estão sujeitas a imposto do selo quando sejam realizadas por ou com intermediação de instituições de crédito, sociedades financeiras ou outras entidades a ela legalmente equiparadas e quaisquer outras instituições financeiras, o que preenche o elemento subjectivo de incidência do imposto, sendo o objectivo verificado quando constituam contraprestação por serviços financeiros prestados.

As SCR são consideradas como instituições financeiras, como se extrai da alínea l), do n.º 1 do art. 6º do RGICSF, conjugando essa norma com a leitura de outros dispositivos legais, como consente expressamente aquela alínea, embora de regime especial, dado que a regulamentação está especificada na Lei 18/2015, de 4 de Março.

O conceito fiscal relevante de “instituições de crédito, sociedades financeiras ou outras entidades a elas legalmente equiparadas e quaisquer outras instituições financeiras” para efeitos da norma de incidência em causa há-de ser, em primeira linha, o que vigore no direito financeiro, em particular, no direito bancário, quer nacional, quer comunitário; e não, naturalmente, apenas com base nos diplomas legais de constituição da própria Requerente.

Ora, precisamente o art. 6º do RGICSF considera que “são sociedades financeiras … outras empresas que, correspondendo à definição de sociedade financeira, sejam como tal qualificadas pela lei”. É o que sucede com a alínea f) do n.º 1 do art. 30º do Código dos Valores Mobiliários (CVM) quando se refere a “outras instituições financeiras autorizadas ou reguladas, designadamente fundos de titularização de créditos, respectivas sociedades gestoras e demais sociedades financeiras previstas na lei, sociedades de titularização de créditos, sociedades de capital de risco, fundos de capital e respectivas sociedades gestoras”. E o mesmo ocorre com a alínea h) do n.º 1 do art. 3º da Lei 25/2008, de 5 de Junho em que, sob a epígrafe “entidades financeiras”, estatui que as “sociedades e investidores de capital de risco” são entidades financeiras.

Assim, e ao contrário do que alega a Requerente, resulta expressa e manifestamente da Lei que as SCR consubstanciam instituições financeiras, para efeitos da verba 17.3.4 da TGIS.

A isenção concedida pelo art. 7º, n.º1, e) do CIS, reporta-se aos juros, às comissões cobradas, às garantias prestadas ou à mera utilização, em todos os casos, por reporte ao crédito concedido.

Acresce que o n.º 7 do art. 7º do CIS, introduzido pela Lei 7-A/2016, de 30 de Março, se trata de mera explicitação de uma norma anterior, tendo-se o legislador limitado a vir a esclarecer um conceito pré-existente.

É, por isso, incorrecta a leitura da Requerente de que o legislador quis dizer que apenas a utilização se reportaria ao crédito concedido, quando o próprio legislador vem afirmar que o quis dizer foi que quer os juros e comissões, quer as garantias prestadas, quer a própria utilização se reportavam, todos eles, ao crédito concedido.

De qualquer modo, não existe qualquer retroactividade daquela Lei: apenas e só uma norma interpretativa, a esclarecer o sentido pretendido pelo legislador, perante as dúvidas que surgiam na interpretação do preceito legal. Ou seja, há uma interpretação autêntica que não pode ser afastada apenas por conveniência.

Quer dizer que a isenção prevista na alínea e) do n.º 1 do art.7º do CIS não aproveita à Requerente.

Conclui a Requerida pela legalidade do despacho de indeferimento da reclamação graciosa bem como dos actos de autoliquidação de IS contestados que deverão, assim, ser mantidos, sustentando que, em qualquer circunstância não poderão ser exigidos juros indemnizatórios.

 

6. Por despacho de 28-05-2018, foi dispensada a reunião do artigo 18º do RJAT, tendo as partes apresentado alegações.

Onde a Requerente, em suma, reforçando o já alegado no requerimento inicial, veio dizer que:

- Independentemente de as comissões se encontrarem efectivamente isentas em sede de IVA, tal não determina que tal isenção seja condição sine qua non para a incidência do imposto do selo. Na verdade, estamos perante uma norma de incidência negativa, dado que de acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 1.º do Código do Imposto do Selo «não são sujeitas a imposto as operações as operações sujeitas a imposto sobre o valor acrescentado e dele não isentas».

- A AT vem erroneamente, procurar sustento no Código dos Valores Mobiliários, em especial na alínea f) do n.º 1 do artigo 30.º, descurando o facto de essa norma relevar apenas para efeitos de qualificação de determinada entidade como investidor qualificado, para efeitos de aplicação do referido Código.

- O n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 25/2008, de 5 de junho, consagra apenas o elenco das entidades que estão sujeitas ao regime do branqueamento de capitais e não define ou determina o que se entende por cada uma dessas entidades.

- O n.º 7 no artigo 7.ºdo CIS foi acompanhada por uma disposição da Lei do OE para 2016 (cfr. artigo 154.º) que lhe atribuiu carácter interpretativo, mas a norma em apreço tem um carácter inovador e não meramente interpretativo, atendendo ao facto de ter repescado uma norma que não vigorava no ordenamento jurídico desde 2003.

Por seu turno, a Requerida rebateu o constante daquelas alegações, reiterando o que alegou na resposta apresentada.

 

II – Saneamento

 

7.1. O tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído.

7.2. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (artigos 4º e 10º, n.º 2, do RJAT e artigo 1º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

7.3. O processo não enferma de nulidades.

7.4. A cumulação de pedidos é legal, face ao disposto no art. 3º, n.º 1 do RJAT.

7.5. Não foram suscitadas excepções que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

 

 

 

 

III – MATÉRIA DE FACTO E DE DIREITO

 

III.1. Matéria de facto

 

Atendendo às posições assumidas pelas partes e à prova documental junta aos autos, incluindo o processo administrativo, consideram-se provados, com relevo para apreciação e decisão das questões suscitadas, os seguintes factos:

  1. A Requerente é uma Sociedade de Capital de Risco (SCR), regularmente constituída ao abrigo da legislação nacional, designadamente do Regime Jurídico do Capital de Risco, Empreendedorismo Social e Investimento Especializado, que se encontra actualmente estabelecido na Lei n.º 18/2015, de 4 de Março;
  2. À data das autoliquidações de imposto do selo agora contestadas, a actividade principal da Requerente consistia na gestão do Fundo de Capital de Risco B...;
  3. No âmbito dessa actividade, a Requerente cobrava trimestralmente uma comissão de gestão, sobre a qual liquidava imposto do selo à taxa de 4%, prevista na verba 17.3.4 da TGIS, em face do que liquidou, nos anos de 2015 e 2016, imposto no valor de 29.625,00 €;
  4. A Requerente procedeu à entrega do imposto do selo, no referido valor de 29.625,00 €;
  5. Foi apresentada pela Requerente reclamação graciosa às autoliquidações de imposto do selo em causa;
  6. Sobre a reclamação graciosa recaiu despacho de indeferimento que foi notificado à Requerente por disponibilização no Via CTT no dia 30-01-2018.

 

Fundamentação da matéria de facto:

 

A matéria de facto dada como provada assenta no exame crítico da prova documental apresentada e não contestada, que aqui se dá por reproduzida, bem como do processo administrativo junto aos autos.

 

9.3. Inexistem outros factos com relevo para apreciação do mérito da causa que não se tenham provado.

 

 

III.2. Matéria de Direito

 

Conforme resulta do pedido arbitral, a Requerente manifesta a sua inconformidade com a liquidação de Imposto do Selo a que procedeu, por entender, em suma, não estarem as operações em causa sujeitas a esse imposto ou, ainda que o estivessem, sempre beneficiariam de isenção do mesmo.

 

Vejamos:

 

Está então em apreciação, num primeiro momento, a aplicação do disposto na verba 17.3.4 da TGIS que determina estarem sujeitas a imposto do selo:

- “17.3. Operações realizadas por ou com intermediação de instituições de crédito, sociedades financeiras ou outras entidades a elas legalmente equiparadas e quaisquer outras instituições financeiras – sobre o valor cobrado:

(…)

- 17.3.4. “Outras comissões e contraprestações por serviços financeiros 4%”.

 

Na versão da Requerente, as SCR, como é o seu caso, não se encontram abrangidas pela previsão daquela norma, uma vez que não integram o conceito de instituições de crédito, sociedades financeiras ou outras entidades a elas legalmente equiparadas e quaisquer outras instituições financeiras.

 

Pelo contrário, sustenta a Requerida que as SCR são consideradas como instituições financeiras, invocando como suporte de tal conclusão o disposto na alínea l) do n.º 1 do art. 6º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), em primeira linha, mas também o disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 30º do Código dos Valores Mobiliários (CVM) e ainda a alínea h) do n.º 1 do art. 3º da Lei 25/2008, de 5 de Junho.

 

Diga-se, desde já, que concordamos integralmente com o que refere a Requerida a propósito do percurso a efectuar tendo em vista a qualificação de uma entidade como instituição financeira, passando a transcrever o que se diz na Resposta:

- “De harmonia com o n.º 2 do artigo 11º da LGT, no domínio da exegese jurídico-tributária «sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido que aí têm, salvo se outro decorrer directamente da lei».

- Decorre do citado normativo que o conceito fiscal relevante «de instituições de crédito, sociedades financeiras ou outras entidades a elas legalmente equiparadas e quaisquer outras instituições financeiras» para efeitos da norma de incidência em causa há-de ser, em primeira linha, o que vigore no direito financeiro, em particular, no direito bancário, quer nacional, quer comunitário”.

 

É efectivamente dentro destes parâmetros que haveremos de encontrar a resposta à questão de saber se uma SCR deve ser qualificada como uma entidade financeira.

 

Mas antes de entrarmos nesse percurso, diga-se contudo, preliminarmente, que não se aceita o argumento da Requerida de que “a isenção de IVA é uma condição sine qua non para a incidência do imposto do selo”. Pelo contrário, concordamos com a Requerente quando considera que estamos ao invés perante uma norma de incidência negativa.

 

Com efeito, quando o n.º 2 do art. 1º do CIS determina que “não são sujeitas a imposto as operações sujeitas a imposto sobre o valor acrescentado e dele não isentas” isso significa que não haverá sujeição a Imposto do Selo caso a operação já seja sujeita, e não isenta, a IVA. Mas isso não significaria que a referida isenção em sede de IVA pudesse dar lugar, por si só, à aplicação do Imposto do Selo (o que, reconheça-se, a Requerida também assume quando entende deverem ocorrer os elementos – objectivo e subjectivo – previstos na verba 17.3.4 da TGIS para esse efeito).

 

Voltando, então, ao conceito de instituição financeira é relativamente pacífico que, na ausência de definição legal expressa no ordenamento jurídico nacional, se admite que o RGICSF contempla apenas um conceito em sentido estrito daquela, o qual convive com um conceito mais amplo e onde se incluirão as instituições financeiras não monetárias.

 

Seguindo o que afirma Carlos Costa Pina – Instituições e Mercados financeiros, Coimbra, 2005, pag. 249 – a limitação do conceito de sociedades financeiras é meramente formal, apenas para efeito da aplicação do RGICSF. A que não é alheia, como se diz na Decisão Arbitral n.º 348/2016-T “a tendência verificada do progressivo desaparecimento das barreiras e das distinções entre os três sectores financeiros tradicionais (banca, valores mobiliários e seguros), com a consequente fusão de interesses e actividades entre os diversos tipos de instituições da área financeira, em especial, entre as instituições monetária e não monetárias, e o aparecimento de novos conceitos como os da banca universal, bancassurance ou de assurfinance, etc., que tendem a exprimir fórmulas de colaboração entre instituições financeiras de objectos distintos mas similares concorrendo entre si”.

 

Não desconhecemos a existência de várias decisões arbitrais, incluindo a que o signatário subscreveu já este ano, no acórdão 352/2017-T, quando consideram que o alcance do conceito de instituição financeira extravasa o que dispõe o RGICSF. Dissemos aí que enumerando o art. 6º daquele diploma tipos de sociedades financeiras e excluindo-se especificamente outras, isso só por si não impede que outras sociedades ou entidades possam ser consideradas “entidades financeiras” para outros efeitos, que não os previstos pelo RGICSF. É que o artigo 6º do RGICSF não tem uma preocupação doutrinal, de determinação exaustiva da conotação e denotação dos conceitos de sociedade financeira ou de instituição financeira, mas sim de demarcação do âmbito de aplicação do regime geral em causa.

 

Com efeito, conforme aí se salientou, muita da jurisprudência arbitral (a título de exemplo, as decisões nº 303/17, n.º 9/17, n.º 667/16, n.º 633/16, n.º 348/16 ou n.º 279/16), conclui que podemos encontrar instituições financeiras ou sociedades financeiras para além do âmbito de aplicação do RGICSF.

 

Sucede que a generalidade de tais decisões tinha em mente as sociedades gestoras de fundos, sociedades gestoras de participações do sector de seguros e afins.

 

Será que os argumentos aí invocados valerão também para as sociedades de capital de risco?

 

Para a Requerida não haverá dúvidas pois assume, sem reticências a “Requerente enquanto sociedade gestora de fundos” (veja-se, designadamente, os art. 21º e 25º da resposta).

 

Que tais sociedades – SCR – não se inserem no conceito restrito de instituições financeiras para os efeitos do RGICSF, parece pacífico até para a Requerida ao concluir que aquelas se incluiriam na norma residual em que se traduz a alínea l) do n.º1 do art. 6º daquele regime, quando remete a definição de instituição financeira para outros diplomas legais: “outras empresas que, correspondendo à definição de sociedade financeira, sejam como tal definidas pela lei”.

 

As SCR têm um regime jurídico próprio, actualmente regulado pela Lei 18/2015 de 4 de Março que, no n.º 1 do art. 9º, estipula que:

- “As sociedades de capital de risco e os investidores em capital de risco têm como objeto principal a realização de investimentos em capital de risco e, no desenvolvimento da respetiva atividade, podem realizar as seguintes operações:

a) Investir em instrumentos de capital próprio, bem como em valores mobiliários ou direitos convertíveis, permutáveis ou que confiram o direito à sua aquisição;

b) Investir em instrumentos de capital alheio, incluindo empréstimos e créditos, das sociedades em que participem ou em que se proponham participar;

c) Investir em instrumentos híbridos das sociedades em que participem ou em que se proponham participar;

d) Prestar garantias em benefício das sociedades em que participem ou em que se proponham participar;

e) Aplicar os seus excedentes de tesouraria em instrumentos financeiros;

f) Realizar as operações financeiras, nomeadamente de cobertura de risco, necessárias ao desenvolvimento da respetiva atividade”.

 

Por outro lado, dispõe o n.º 1 do artigo 2º do mesmo diploma que “não obstante o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 293.º do Código dos Valores Mobiliários, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 486/99, de 13 de novembro, as sociedades referidas no artigo anterior não são intermediários financeiros”, onde se incluem as SCR. Determinando aquela alínea b) do n.º 1 do artigo 293.º do Código dos Valores Mobiliários que são consideradas actividades de intermediação financeira ”os serviços auxiliares dos serviços e atividades de investimento”.

 

Desde já se adianta que não se vislumbra que a qualificação de uma SCR como instituição financeira possa resultar do objecto social que lhes é legalmente fixado e acabado de referir.

 

É certo que os artigo 30º e 359º do CVM se referem expressamente às SCR, o primeiro, na alínea f) do n.º 1 do art. 30º ao considerar como investidores qualificados “outras instituições financeiras autorizadas ou reguladas, designadamente fundos de titularização de créditos, respectivas sociedades gestoras e demais sociedades financeiras previstas na lei, sociedades de titularização de créditos, sociedades de capital de risco, fundos de capital de risco e respectivas sociedades gestoras”. E o 359º para estabelecer que as SCR estão sujeitas à supervisão da Comissão do Mercado dos Valores Mobiliários.

 

Parece-nos, todavia, que tais disposições não têm outro alcance que não seja o de determinar que as SCR tenham o estatuto de investidores qualificados enquanto operadores no mercado de valores mobiliários. Aliás, o art. 110º-A do CVM contempla a possibilidade de outras entidades poderem ter a qualificação, por opção, de investidor qualificado, sem que venham, por esse facto, consideradas como entidades financeiras.

 

Note-se, por outro lado, o que a propósito da figura dos investidores, se diz no preâmbulo do CVM: O Código dedica o capítulo V do título I aos investidores, o que acontece pela primeira vez num diploma deste género. Estabelece-se a distinção entre investidores institucionais e investidores não institucionais, equiparando aos primeiros outras entidades que não beneficiam da protecção conferida a estes últimos”.

 

O único diploma em que, ainda que de forma indiciária, se poderia considerar estarem as SCR incluídas no âmbito das entidades financeiras seria a Lei de Branqueamento de Capitais – Lei 25/2008 de 5 de Junho – quando, ao elencar as entidades a ela sujeitas, sob o título “entidades financeiras”, inclui, na alínea h), as SCR.

 

Entendemos que tal facto, desde logo por não se estar perante um diploma que regulamente actividade financeira, mas que apenas contém “medidas de natureza preventiva e repressiva de combate ao branqueamento de vantagens de proveniência ilícita e ao financiamento do terrorismo”, não é susceptível de, por si só, atribuir a qualificação de entidade financeira às entidades ali previstas.

 

Acresce a tudo o se disse, que as SCR estavam expressamente consagradas na alínea h) do aludido art. 6º do RGICSF, a qual veio a ser revogada pelo DL 319/2022, de 28 de Dezembro quando criou o diploma disciplinador da constituição e actividade das SCR (hoje regulado pela já referida Lei 18/2015 de 4 de Março). Quer dizer, é indiscutível que o legislador pretendeu de forma expressa retirar do âmbito do RGICSF as sociedades de capital de risco, não se vislumbrando argumentos que possam justificar interpretação diversa dessa opção legislativa.

 

Posto isto, há que ter presente que o que está aqui em causa é a aplicação de uma norma de incidência que, por contender com um elemento essencial do imposto, na sua aplicação lhe são exigidas cautelas especiais, face ao princípio constitucional da legalidade, previsto no art. 103º da CRP. Sendo certo que, pelas mesmas razões, está vedado o recurso à analogia (art. 11º, n.º 4 da LGT).

 

Face ao que se deixou dito, consideramos que não resulta da letra, nem sequer do espírito, da lei que as SCR possam ser incluídas no conceito de instituição financeira da verba 17.3 da TGIS. Pelo que, inexistindo o elemento subjectivo de incidência, não serão de aplicar às comissões por aquelas cobradas, a verba 17.3.4 daquela Tabela.

 

Decorre do exposto lograr ter êxito a pretensão da Requerente, declarando-se a ilegalidade do despacho de indeferimento da reclamação graciosa e das liquidações de imposto do selo, impondo-se a sua anulação.

 

Fica, assim, prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas.

 

DOS JUROS INDEMNIZATÓRIOS

 

Além do reembolso do imposto, pretendem a Requerente que seja declarado o direito ao pagamento de juros indemnizatórios.

 

Tal direito vem consagrado no artigo 43º da LGT, o qual tem como pressuposto que se apure, em reclamação graciosa ou impugnação judicial - ou em arbitragem tributária – que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida em montante superior ao legalmente devido.

 

O reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral, resulta do disposto no artigo 24º, n.º 5 do RJAT, quando estipula que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”.

 

No caso em apreço, as liquidações contestadas foram efectuadas pela própria Requerente.

 

Todavia, tendo reclamado por via graciosa, da ilegalidade das mesmas, a AT ignorou todos os elementos que tinha ao seu dispor e que deveriam ter obstado à concretização das liquidações impugnadas, não dando procedência ao seu pedido, persistindo no erro.

 

É, pois, manifesto, que a ilegalidade dos actos de liquidação em apreço é imputável a erro da AT.

 

Pelo que assiste à Requerente o direito ao pretendido pagamento de juros indemnizatórios.

 

 

IV. DECISÃO

 

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

 

  1. Julgar procedente o pedido arbitral formulado, declarando a ilegalidade do despacho de indeferimento proferido na reclamação graciosa com o n.º ...2017..., praticado pela Direção de Finanças do Porto, relativa às autoliquidações de imposto do selo com referência aos anos de 2015 e 2016 que, por isso, devem ser anuladas.
  2. Condenar a Administração Tributária e Aduaneira a restituir o montante de imposto pago, acrescido de juros indemnizatórios.
  3. Condenar a Requerida no pagamento das custas do processo.

 

 

 

 

V. VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em 29.625,00 €, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

VI. CUSTAS

 

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 1.530,00 €, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

Lisboa, 13 de Dezembro de 2018

 

 

 

O Árbitro

 

 

 

 

 

(António A. Franco)