Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 271/2018-T
Data da decisão: 2018-11-29  IUC  
Valor do pedido: € 20.500,09
Tema: IUC – incidência subjetiva (contratos de locação financeira e transmissão prévia à verificação do facto gerador).
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Decisão Arbitral

 

A árbitro Raquel Franco, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral constituído em 06-08-2018, decide nos termos e com os fundamentos que se seguem:

 

1. Relatório

 

No dia 29-05-2018, a A... SUCURSAL EM PORTUGAL (“Requerente”, doravante), pessoa coletiva nº..., domiciliada na Rua ..., ..., Lisboa, área do ... Serviço de Finanças de Lisboa, apresentou, ao abrigo do disposto nos artigos 2º nº 1 a) e 10º nº 1 a) do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro (que aprovou o RJAT), e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, na qualidade de incorporante, por fusão, da sociedade, entretanto extinta, B...– INSTITUIÇÃO FINANCEIRA DE CRÉDITO, SA (“B...”, doravante), anterior pessoa coletiva n.º..., que tinha sede na mesma morada, um pedido de constituição de tribunal arbitral com designação do Árbitro pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, nos termos do disposto nos artigos 6º nº 1 e 11º do referido diploma, com os fundamentos que faz constar da petição inicial que junta.

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular a signatária e notificou as partes dessa designação em 16-07-2018.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral singular ficou constituído em 06-08-2018, seguindo-se os pertinentes trâmites legais.

 

2. Saneamento

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, e é competente.

 

As Partes estão devidamente representadas, são legítimas e gozam de personalidade e capacidade judiciárias (tudo nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

O processo não enferma de nulidades.

 

A Requerida invocou a exceção de intempestividade do pedido, tendo a Requerente sido notificada para se pronunciar sobre a mesma, o que fez. Na sequência desta pronúncia, o Tribunal proferiu um despacho com o seguinte conteúdo:

(i) A Requerida tinha invocado esta exceção alegando que o prazo para o pedido de revisão oficiosa dos atos de liquidação de IUC era de 120 dias após o terminus do prazo para o respetivo pagamento voluntário, o qual já se encontraria ultrapassado na data de apresentação do pedido de revisão oficiosa;

(ii) A Requerente sustenta que o prazo aplicável à apresentação do pedido de revisão oficiosa é o prazo de 4 anos previsto no n.º 1 do artigo 78.º da LGT, considerando que houve erro imputável aos serviços no apuramento dos factos e direito aplicável à liquidação de imposto;

(iii) O STA tem vindo a entender, de forma reiterada, que, podendo a AT, por sua iniciativa, proceder à revisão oficiosa do ato tributário no prazo de 4 anos após a liquidação ou a todo o tempo no caso de o tributo ainda não ter sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços (nos termos do artigo 78.º, n.º 1 da LGT), também o contribuinte pode, naquele prazo, pedir a revisão oficiosa com fundamento em erro imputável aos serviços. Por outro lado, deve considerar-se erro imputável aos serviços o erro nos pressupostos de facto e de direito, sendo essa imputabilidade aos serviços independente da demonstração de culpa dos funcionários envolvidos na emissão do ato afetado pelo erro (vide, por todos e com numerosa indicação de jurisprudência, o acórdão da Seção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 6 de fevereiro de 2013, proferido no processo n.º 839/11, publicado no Apêndice ao Diário da República de 11 de março de 2014, pp. 587 a 601).

(iv) Aplicando a citada jurisprudência ao caso concreto, verifica-se que a Requerente apresentou o pedido de revisão oficiosa dos atos de liquidação do IUC dentro do prazo de 4 anos previsto no artigo 78.º, n.º 1 da LGT.

(v) Em 20.02.2018, a AT proferiu despacho de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, tendo a Requerente apresentado pedido de pronúncia arbitral cujo objeto é esse ato de indeferimento dentro do prazo legal de 90 dias para o efeito.

Conclui-se, assim, pela não procedência da exceção de intempestividade apresentada pela AT.

(...).”

 

As Partes foram ainda notificadas da dispensa da reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, bem como do prazo para apresentação de alegações escritas, que vieram a apresentar posteriormente.

 

3. Posições das Partes

 

Requerente

O despacho de indeferimento (de pedido de revisão oficiosa) impugnado e as liquidações de IUC e JC em questão padecem de erro nos pressupostos de facto e de vício de violação de lei, pelo que deve ser declarada a ilegalidade de todos, com a sua consequente anulação. O erro invocado baseia-se nos seguintes argumentos:

- Nas datas da exigibilidade do IUC respeitante às viaturas em causa, a B... ou (1) havia locado esses veículos a favor de terceiros, ou (2) não era sequer a proprietária dos veículos em questão, por já os ter vendido aos locatários ou a terceiros;

- Nos termos do disposto no artigo 3.º do CIUC, os responsáveis pelo pagamento do IUC são os proprietários dos veículos à data da exigibilidade do IUC, ou seja, na data da matrícula ou nas datas de aniversário em relação à data da matrícula (nº 1 do artigo 3º do CIUC), e ainda os “(…) locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação” na mesma data, uma vez que estes são legalmente equiparados aos proprietários dos automóveis – vide nº 2 do artigo 3º do mesmo diploma legal.

- Consequentemente, nos períodos em apreço, e para as viaturas visadas pelas liquidações ora impugnadas, verifica-se que a B... não era a proprietária das mesmas na data da exigibilidade do imposto, ou então, era na mesma data meramente a locadora financeira ou a locadora em contratos de ALD com promessa de compra e venda;

- As vendas da B... a terceiros ocorrem precisamente na data da emissão das faturas pela B... a esses terceiros compradores – faturas, essas, que portanto titulam as vendas das viaturas. A Requerente juntou as faturas de venda das viaturas aos respetivos adquirentes, as quais documentam e demonstram precisamente a venda das viaturas em momento anterior ao da data da exigibilidade do IUC - data da matrícula ou respetivas datas de aniversário.

- Nos casos em que a B... locou as viaturas a favor de terceiros e lhes concedeu a opção de compra das respetivas viaturas por força dos contratos de locação, a B... não era o sujeito passivo do IUC. Com efeito, após o terminus de tais contratos, a B... procede à transmissão da propriedade das respetivas viaturas aos correspondentes locatários ou a terceiros, por um valor residual, as quais se encontram identificadas em quadro anexo ao pedido arbitral. Tais transferências de propriedade deram-se por mero efeito dos aludidos contratos, estando as mesmas devidamente suportadas pelas respetivas faturas de venda, as quais fazem parte dos dossiers referente a cada uma das matrículas em questão, os quais foram anexados ao pedido arbitral.

A transmissão da propriedade automóvel efetua-se por mero efeito do contrato, não ficando dependente de qualquer ato posterior para que se constitua ou para que se torne efetiva, legal e juridicamente, tal como a tradição da coisa ou o registo.

- Segundo o n.º 1 do artigo 1.º do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro, alterado pela Lei n.º 39/2008, de 11 de Agosto, o registo da aquisição de um automóvel não tem qualquer valor constitutivo, na medida em que apenas tem como objetivo publicitar a situação jurídica do veículo, não podendo a ausência de registo afetar a qualidade de proprietário, nem a eficácia plena dos contratos de compra e venda de um veículo automóvel.

- Nos termos do artigo 29.º do mesmo diploma legal, ex vi artigo 7.º do Código de Registo Predial, “O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.”, o que significa que o registo do automóvel por parte do adquirente mais não constitui do que a presunção de que o direito de propriedade pertence ao sujeito que o registou. Todavia, tal presunção é ilidível.

 - Por outro lado, importa salientar que, nos termos do n.º 1 do artigo 5.º do Código do Registo Predial, os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respetivo registo. Ora, de acordo com o n.º 4 do artigo 5.º do referido Código, a definição de terceiros para efeitos de registo, envolve aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si. Consequentemente, atenta a noção legal de terceiro, e na medida em que não são preenchidos os requisitos legais inscritos nessa noção, a AT não poderá ser qualificada como tal, não podendo, assim, invocar a ausência de registo para justificar a ineficácia dos contratos de compra e venda das viaturas em questão.

- Mesmo nas situações em que o comprador (novo proprietário do veículo), não providencie o registo do seu direito de propriedade, presume-se que esse direito continua a ser do vendedor, podendo contudo essa presunção ser ilidida mediante prova em contrário.

- Nos termos do artigo 1.º do CIUC, neste imposto vigora o “Princípio da equivalência”, segundo o qual “O imposto único de circulação obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária.”.

- O imposto em questão pressupõe a efetiva utilização dos veículos e o “custo ambiental e viário” provocado por essa mesma utilização - tributando o utilizador dos veículos, que retira benefício dessa mesma utilização, com os referidos custos sociais. Assim sendo, é óbvio que o IUC não visa tributar as instituições financeiras especializadas no crédito automóvel, como é o caso da B..., pela simples razão de que não é nem foi esta o utilizador dos veículos que o IUC pretendeu onerar – na medida em que a B..., enquanto instituição financeira especializada no crédito automóvel, não produz qualquer “custo ambiental e viário”, não sendo o “poluidor - pagador” que o legislador pretendeu tributar.

- As faturas de venda e de locação (faturas de rendas) foram contabilizadas pela B... enquanto proveitos, como é igualmente do conhecimento oficioso da AT - pois foram declarados nas respetivas declarações de rendimentos para efeitos de IRC e nas sucessivas declarações de IES apresentadas. Como tal, essas vendas e locações (rendas) foram tributadas em sede de IRC, na esfera da B... . Ora, por imperativo da unidade do sistema jurídico fiscal (artigo 9º do CC), não pode a mesma fatura de venda ou de renda de locação constituir um proveito tributado em sede de IRC, mas já não servir para titular e demonstrar as mesmas vendas ou locações para efeitos de IUC.

- O despacho de indeferimento do pedido de Revisão Oficiosa dispensou o direito de audição prévia. Ao fazê-lo, violou os artigos 60º nº 1 b) e nº 5 da LGT, e 267º nº 5 da CRP, pelo que, também por esse motivo, o despacho de indeferimento aqui impugnado deve ser anulado.

- Não sendo devido IUC, pelas razões sobreditas, não são igualmente devidos quaisquer juros compensatórios, acessórios e dependentes do IUC, com base no qual são liquidados e do qual dependem.

- Dado que as liquidações foram pagas, para além da devolução do IUC e JC indevidamente pago, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios, contados desde a data do pagamento, por erro de facto e de Direito da AT, nos termos dos artigos 43º e 100º da LGT. Sem prescindir, entende ter, no mínimo, direito a juros indemnizatórios desde a data do (ilegal) indeferimento do pedido de Revisão Oficiosa.

 

Requerida

- Quanto às liquidações referentes a veículos objeto de locação financeira ou de um contrato de aluguer de longa duração com promessa de compra e venda, ainda que se concluísse estarmos perante contratos de locação financeira outorgados pela Requerente, sempre cabia a esta última demonstrar ter dado cumprimento à obrigação acessória imposta pelo artigo 19.º do CIUC.

- A aplicação do artigo 3.º do CIUC deve ser conjugada com o disposto no artigo 19.º do mesmo código, no qual se estabelece que «para efeitos do artigo 3.º do presente código (…), ficam as entidades que procedam à locação financeira, locação operacional ou ao aluguer de longa duração de veículos obrigadas a fornecer à Direcção-geral dos Impostos os dados relativos à identificação dos utilizadores dos veículos locados.» Deste modo, a seguir-se a propugnada tese defendida pela Requerente quanto ao facto do artigo 3.º do CIUC consagrar uma presunção ilidível, então forçoso é concluir que o funcionamento daquele artigo (i.e., a ilisão da presunção) depende igualmente do cumprimento do estatuído no artigo 19.º do CIUC, conforme se retira o seu elemento literal (« para efeitos do artigo 3.º do presente código (…)»

- Quanto às liquidações referentes a veículos alineados antes da exigibilidade do imposto, o entendimento propugnado pela Requerente incorre não só de uma enviesada leitura da letra da lei, como da adoção de uma interpretação que não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal e decorre ainda de uma interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no artigo em apreço, e bem assim, em todo o CIUC.

- O legislador tributário, ao estabelecer no artigo 3.º, n.º 1 quem são os sujeitos passivos do IUC, estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

- Note-se que o legislador não usou a expressão “presumem-se”, como poderia ter feito, por exemplo, nos seguintes termos: são sujeitos passivos do imposto os proprietários d os veículos, presumindo-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados. Em contrapartida, o normativo fiscal está repleto de previsões análogas à consagrada na parte final do n.º 1 do artigo 3.º, em que o legislador fiscal, dentro da sua liberdade de conformação legislativa, expressa e intencionalmente, consagra o que deve considerar-se legalmente, para efeitos de incidência, de rendimento, de isenção, de determinação e de periodização do lucro tributável, para efeitos de residência, de localização, entre muitos outros. Pelo que, se se entendesse que ao usar a expressão “considera-se” o legislador fiscal teria consagrado uma presunção, praticamente todas as normas de incidência em sede de IRC seriam afastadas precisamente porque a contabilidade prescreve soluções diferentes das do CIRC, sendo exatamente o fim do legislador afastar tais regras contabilísticas

- Também o elemento sistemático de interpretação da lei demonstra que a solução propugnada pela Requerente é intolerável, não encontrando o entendimento por esta sufragado qualquer apoio na lei. Mesmo admitindo que, do ponto de vista das regras do direito civil e do registo predial, a ausência de registo não afeta a aquisição da qualidade de proprietário e que o registo não é condição de validade dos contratos com eficácia real, nos termos estabelecidos no CIUC (que no caso em apreço constitui lei especial, a qual, nos termos gerais de direito derroga a norma geral), o legislador tributário quis intencional e expressamente que fossem considerados como proprietários, locatários, adquirentes com reserva de propriedade ou titulares do direito de opção de compra no aluguer de longa duração, as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados.

- À luz de uma interpretação teleológica do regime consagrado em todo o CIUC, a interpretação propugnada pela Requerente no sentido de que o sujeito passivo do imposto é o proprietário efetivo, independentemente de não figurar no registo automóvel o registo dessa qualidade, é manifestamente errada. E é uma interpretação errada na medida em que é a própria ratio do regime consagrado no CIUC que constitui prova clara de que aquilo que o legislador fiscal pretendeu foi criar um imposto assente na tributação do proprietário do veículo tal como consta do registo automóvel. E isto precisamente porque o novo regime de tributação do IUC veio alterar de forma substancial o regime de tributação automóvel, passando a ser sujeitos passivos do imposto os proprietários constantes do registo de propriedade, independentemente da circulação dos veículos na via pública. 

- Quanto aos documentos juntos aos autos pela Requerente para prova do peticionado, entende a Requerida que as faturas e as cópias de contrato de aluguer de veículo sem condutor não são suficientes. As faturas não são aptas a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático como é a compra e venda, pois tais documentos não revelam por si só uma imprescindível e inequívoca declaração de vontade (i.e. , a aceitação) por parte dos pretensos adquirentes. A inequívoca declaração de vontade dos pretensos adquirentes poderia ser indiciada mediante a junção de cópia do referido modelo oficial para registo da propriedade automóvel, pois trata-se de documento assinado pelas partes intervenientes. Porém, a Requerente não juntou cópias do referido modelo oficial para registo da propriedade automóvel quando podia e devia tê-lo feito, ou seja, no requerimento do pedido de pronúncia arbitral, encontrando-se agora precludida a possibilidade de o fazer em momento ulterior. Acresce que a falta do carácter sinalagmático das faturas poderia ser suprida mediante a prova do recebimento do preço nelas constante por parte da Requerente. A Requerente não juntou prova documental do recebimento do preço quando podia e devia tê-lo feito, ou seja, no requerimento do pedido de pronúncia arbitral, encontrando-se agora precludida a possibilidade de o fazerem em momento ulterior, conforme s

- Quanto a juros indemnizatórios e custas, entende a AT não serem os mesmos devidos ou da sua responsabilidade na medida em que o IUC é liquidado de acordo com a informação registral oportunamente transmitida pelo Instituto dos Registos e Notariado e não de acordo com a informação gerada pela própria Requerida. Ora, não tendo a Requerente cuidado da atualização do registo automóvel, como aliás podia e competia [artigo 5.º/1-a) do Decreto-Lei 54/75, de 12 de fevereiro, e artigo 118.º/4 do Código da Estrada], e não tendo mandado cancelar as matrículas dos veículos aqui em apreço, forçoso é concluir que a Requerente não procedeu com o zelo que lhe era exigível. E ao não ter procedido com o zelo que lhe era exigível, levou inexoravelmente a Requerida a limitar-se a dar cumprimento às obrigações legais a que está adstrita e, paralelamente, a seguir a informação registral que lhe foi fornecida por quem de direito. Consequentemente, deverá a Requerente ser condenada ao pagamento das custas arbitrais decorrentes do presente pedido de pronúncia arbitral, nos termos do artigo 527.º/1 do CPC ex vi do artigo 29.º/1-e) do RJAT, em linha, aliás, com questão similar decidida no âmbito processo que, sob o n.º 72/2013-T, correu termos neste centro de arbitragem. O mesmo raciocínio se aplica relativamente ao pedido de condenação ao pagamento de juros indemnizatórios formulado pelas Requerentes.

 

4. Cumulação de pedidos

 

Considerando a existência de uma relação direta entre as liquidações tributárias cuja legalidade é questionada no presente processo, nada obsta à apreciação conjunta dos atos tributários em causa, dado que, em face do que vem alegado e da documentação junta, se constata que, no essencial, a eventual procedência do pedido depende das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação das normas legais relativas à incidência subjetiva do IUC. Assim, estará em causa essencialmente a apreciação das mesmas circunstâncias de facto e a aplicação das mesmas normas legais acerca da incidência subjetiva do IUC, sendo legal a cumulação de pedidos, nos termos do artigo 3.º do RJAT e 104.º do CPPT.

 

 

 

5. Matéria de facto

5.1. Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

 

  1. A B... é uma Instituição Financeira que, no âmbito do seu objeto social, pratica operações permitidas aos Bancos, com a exceção da receção de depósitos, celebrando com os seus clientes contratos de Aluguer de Longa Duração (ALD) e contratos de Locação Financeira (leasing) de veículos automóveis.
  2. A Requerente incorporou a B..., por fusão transfronteiriça, com transmissão global do património (ativos e passivos) da B..., afetação do mesmo património à Requerente (sucursal em Portugal) e consequente extinção da B... (documento 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral - PPA).
  3. No âmbito da sua atividade comercial, a B... tem vindo a celebrar contratos de natureza diversa com os seus clientes, entre os quais se destacam os contratos de aluguer de veículo sem condutor com promessa de compra e venda, contratos de locação financeira e contratos de financiamento.
  4. A Requerente adquire viaturas novas aos importadores nacionais C... e D... e por norma faz locações – leasing (locação financeira) ou ALD (aluguer de longa duração) - dessas mesmas viaturas a favor de terceiros.
  5. Após o termo de tais contratos, a B... procede à transmissão da propriedade das viaturas aos correspondentes locatários ou a terceiros, por um valor residual.
  6. Em casos residuais, a B... concede crédito/financiamento a terceiros, para a aquisição automóvel, reservando contudo a propriedade das viaturas.
  7. De entre as liquidações impugnadas, uma parte diz respeito a situações em que o facto gerador do imposto ocorreu na pendência de contratos de locação financeira (conforme listagem constante do documento 8 junto com o PPA);
  8. As outras liquidações dizem respeito a situações em que o facto tributário ocorreu já depois de transferida a propriedade sobre o veículo em causa (conforme listagem constante do documento 8 junto com o PPA);
  9. A Requerente foi notificada das liquidações de IUC que são objeto do presente processo, relativas aos exercícios de 2009 a 2011, e que constam do documento 3.
  10. A Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa cujo objeto eram as liquidações acima mencionadas em 02.02.2017 (documento 4 junto com o PPA).
  11. O pedido foi indeferido através de despacho de 20.02.2018 (documento 2 junto com o PPA).
  12. As liquidações que são objeto do processo encontram-se pagas (documento 3 junto com o PPA).

 

5.2 Factos não provados

 

Não se verificam factos com relevância para a decisão que não tenham sido considerados provados.

 

5.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral, no processo administrativo e em factos enunciados pelas Partes nas respetivas peças processuais relativamente aos quais não existe controvérsia.

 

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que for alegado pelas Partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada e não provada (cf. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT).

 

Os factos são selecionados de acordo com a respetiva pertinência jurídica, a qual é determinada em função das várias soluções possíveis para a causa (cf. o anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, atual 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT).

 

Tendo em consideração as posições assumidas pelas Partes, consideram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima enunciados e não provados os também acima enunciados.

 

6. Thema decidendum

 

A questão de fundo em causa nos presentes autos consiste em saber se os factos alegados pela Requerente consubstanciam motivos de exclusão de incidência subjetiva de imposto e se, em consequência, se deve considerar que os atos impugnados enfermam de erro sobre os pressupostos do facto tributário, o que consubstanciaria um vício de violação de lei determinante da respetiva anulação, com as devidas consequências legais.

 

7. Fundamentação de direito

 

A Requerente fundamenta o seu pedido no argumento de não se encontrarem preenchidos os pressupostos de incidência subjetiva previstos no artigo 3.º do CIUC.

 

Estão em causa os seguintes dois tipos de situações:

I.         Liquidações cujo facto gerador alegadamente ocorreu em momento em que a Requerente já havia procedido à venda do veículo, no termo de um contrato de locação financeira ou de aluguer de longa duração;

II.        Liquidações cujo facto gerador ocorreu na pendência de contratos de locação financeira;

 

I) Veículos alegadamente alienados antes da data da exigibilidade do imposto

 

Quanto a estas liquidações, alega a Requerente que os veículos sobre os quais incide o IUC já tinham sido alienados na data em que o facto gerador do imposto se verificou, pretendendo provar tais factos através de elementos que junta com a designação “dossier de cada veículo” e que contêm as seguintes categorias de documentos:

  • faturas;
  • documentos internos com a designação “listagem de contratos terminados”, de onde constam o cliente, a matrícula, a data de entrega, a data de fim, o valor financiado, o valor faturado e o valor residual em euros e em escudos;
  • cópias de contratos-promessa de compra e venda de veículos automóveis e respetivas autorizações de débito bancário;
  • cópias de contratos de aluguer de veículo sem condutor;
  • cópias de contratos de aluguer de veículo sem condutor e prestação de serviços;
  • declarações de entrega de veículos;
  • declarações de renúncia ao período de reflexão associadas a contratos de compra e venda de veículos;
  • cartas indicando a receção de contratos de aluguer incompletos;
  • referências para pagamento via multibanco dos valores dos contratos;
  • boletins de adesão a veículos de substituição;
  • fichas de informação normalizada em matéria de crédito aos consumidores (informação pré-contratual);
  • recibos provisórios relativo à prestação de caução (contratos V..., V..., V..., V..., V..., V..., V..., V..., V...).

 

Das faturas constam as seguintes indicações alternativas: “válido como recibo após boa cobrança” ou “documento produzido por computador pelo que não precisa de assinatura. Válido como recibo após boa cobrança. A regularização da presente fatura deverá ser efetuada à A... (Portugal), ..., ...-... ..., cessionária deste débito” ou “agradecemos notem que nesta data efetuamos o seguinte lançamento a débito na vossa Conta-Corrente, referente à viatura em assunto. A regularização do presente documento deverá ser efetuada à B...– Sucursal Portugal, ..., ..., ...-... Lisboa, cessionária deste débito” ou “documento produzido por computador pelo que não precisa de assinatura. Válido como recibo após boa cobrança. Veículo usado vendido no estado em que se encontra e sem garantia” ou “agradecemos notem que nesta data efetuamos o seguinte lançamento a débito na vossa Conta-Corrente, referente à viatura em assunto. A regularização do presente documento deverá ser efetuada à E..., S.A., ..., n.º..., ... Lisboa, cessionária deste débito” ou “agradecemos notem que nesta data efetuamos os seguintes lançamentos a débito na vossa Conta-Corrente. A regularização do presente documento deverá ser efetuada à A...– Sucursal Portugal, ... ..., ...-... Lisboa, cessionária deste débito”.

Entende a AT que as faturas não são aptas a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático como é a compra e venda, pois tais documentos não revelam por si só uma imprescindível e inequívoca declaração de vontade (i.e., a aceitação) por parte dos pretensos adquirentes.

 

A Requerente invoca o disposto no artigo 3.º do CIUC, o qual, em seu entender, estabelece uma presunção implícita de propriedade dos veículos a favor de quem os mesmos se encontrem registados, presunção essa que, por força da aplicação da regra geral prevista no artigo 73º da Lei Geral Tributária, é ilidível mediante prova em contrário. Já para a Requerida, o artigo 3.º do CIUC não estabelece qualquer presunção implícita, mas uma verdadeira ficção legal, inilidível.

 

Esta questão tem sido abundantemente tratada pela jurisprudência arbitral ao longo dos últimos anos (cf. as decisões proferidas nos processos 286/2013-T, de 2 de maio de 2014, 293/2013-T, de 9 de junho de 2014, 46/2014-T de 5 de setembro, 246 e 247/2014 T, de 10 de outubro, entre outros), tendo ainda sido objeto do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul proferido em 19-03-2015, processo n.º 08300/14. Seguindo este tribunal de perto a linha jurisprudencial delineada nos processos acima indicados, indicar-se-ão aqui apenas os seus traços mais significativos.

 

À data dos factos geradores do imposto liquidado através das liquidações impugnadas, o n.º 1 do artigo 3.º do CIUC estabelecia que:

“São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.” 

A questão que se discute a propósito desta norma é a seguinte: deverá entender-se que o legislador utilizou a palavra “considerando-se” como poderia ter utilizado a palavra “presumindo-se” ou, pelo contrário, que o legislador quis estabelecer uma ficção legal, vedando a possibilidade de se realizar prova em contrário?

 

Nos termos do disposto no artigo 349.º do Código Civil, “presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.” Por outro lado, o n.º 2 do artigo 350.º do Código Civil esclarece que as presunções legais podem ser ilididas mediante prova em contrário, salvo nos casos em que a lei o proibir.

 

No que diz respeito às presunções de incidência tributária, determina o artigo 73.º da Lei Geral Tributária que estas admitem sempre prova em contrário.

 

As “ficções legais” consistem, diferentemente, “num processo jurídico que considera uma situação ou um facto como distinto da realidade para lhe atribuir consequências jurídicas”.

 

Ora, contrariamente ao que defende a Requerida e como já foi reconhecido nas decisões arbitrais e judiciais referidas, a análise do elemento literal, bem como dos elementos histórico e teleológico presentes na norma em questão conduzem à conclusão de que o legislador não pretendeu estabelecer qualquer ficção legal mas apenas e só uma presunção, ilidível mediante prova em contrário nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 73.º da Lei Geral Tributária. Tratando-se a norma de incidência prevista no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC de uma norma de incidência tributária, outro entendimento seria claramente contrário aos princípios que regem a relação jurídica fiscal.

 

Quanto ao elemento histórico, importa referir que o CIUC teve a sua génese na criação, através do DL 599/72, de 30 de Dezembro, do imposto sobre veículos, o qual já consagrava expressamente que o imposto era devido pelos proprietários dos veículos, presumindo-se como tais as pessoas em nome de quem os mesmos se encontram matriculados ou registados . Por outro lado, o artigo 2.º do Regulamento dos Impostos de Circulação e de Camionagem (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 116/94) estabelecia que: “são sujeitos passivos do imposto de circulação e do imposto de camionagem os proprietários dos veículos, presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas singulares ou coletivas em nome das quais os mesmos se encontram registados”. 

 

É certo que, no CIUC, o legislador substituiu a expressão “presumindo-se” pela expressão “considerando-se”, o que, na perspetiva da Requerida, traduziu a consagração de uma ficção legal, inilidível. Não consideramos, no entanto, que assim seja. A mudança de verbo não consubstancia uma alteração de fundo na norma de incidência, que, a nosso ver, continua a estabelecer uma presunção ilidível mediante prova em contrário – em conformidade, aliás, com o disposto no artigo 73.º da LGT.

 

Como afirmam DIOGO LEITE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES E JORGE LOPES DE SOUSA, na anotação ao n.º 3 do artigo 73.º da LGT, “as presunções em matéria de incidência tributária podem ser explícitas, reveladas pela utilização da expressão presume-se ou semelhante (…). No entanto, as presunções também podem estar implícitas em normas de incidência, designadamente de incidência objetiva, quando se consideram como constituindo matéria tributável determinados valores de bens móveis ou imóveis, em situações em que não é inviável apurar o valor real”.

 

Em suma, em matéria de incidência tributária, as presunções podem ser reveladas pela expressão “presume-se” ou por expressão semelhante. A título de exemplo, refere JORGE LOPES DE SOUSA que no artigo 40.º, n.º 1, do CIRS, se utiliza a expressão “presume-se”, ao passo que no artigo 46.º, n.º 2 do mesmo Código se faz uso da expressão “considera-se”, não havendo qualquer diferença entre uma e outra expressão, ambas significando, afinal, o mesmo: uma presunção legal.

 

Quanto ao elemento teleológico, importa referir que o princípio estruturante da reforma da tributação automóvel é justamente o da incidência da tributação sobre o verdadeiro utilizador do veículo, não se coadunando este princípio com a leitura “cega” da letra da lei, que poderia levar, afinal, a tributar quem não fosse proprietário e, dessa forma, quem não fosse o sujeito causador do “custo ambiental e viário” provocado pelo veículo, a que alude o artigo 1.º do CIUC.

 

Assim, quanto à incidência subjetiva do imposto, é de concluir que não se verificam alterações relativamente à situação anteriormente em vigor no âmbito do Imposto Municipal sobre Veículos, Imposto de circulação e Imposto de Camionagem, como aliás é amplamente reconhecido pela doutrina, continuando a valer uma presunção ilidível nesta matéria. Este entendimento é, ainda, o único que se afigura adequado e conforme ao princípio da verdade material e da justiça, subjacentes às relações fiscais, com o objetivo de tributar o real e efetivo proprietário e não aquele que, por circunstâncias de diversa natureza, não passa, por vezes, de um aparente e falso proprietário, por constar do registo automóvel. 

 

Nesta conformidade, considerando os elementos de interpretação da lei referidos, somos conduzidos à conclusão de que a expressão “considerando-se” tem exatamente o mesmo sentido que a expressão “presumindo-se”, devendo, desta forma, entender-se que o artigo 3.º, n.º 1, do CIUC, consagra uma verdadeira presunção de propriedade e não qualquer ficção, sendo, por isso, tal presunção ilidível. Por ser assim, tem de se permitir ao titular inscrito no registo automóvel a possibilidade de apresentar elementos probatórios bastantes para a demonstração de que o efetivo proprietário é, afinal, pessoa diferente da que consta do registo.

 

Por último, cumpre atender, na presente análise, ao valor jurídico do registo automóvel. Assim, nos termos do disposto no n.º 1, do artigo 1.º do DL 54/75, de 12 de Fevereiro, que instituiu o Registo da Propriedade Automóvel, “o registo de veículos tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respetivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico”. Acrescenta ainda o artigo 7.º do Código do Registo Predial que “o registo definitivo constituiu presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”. O registo de propriedade automóvel não tem, portanto, natureza constitutiva, mas meramente declarativa, permitindo apenas a inscrição no registo presumir a existência do direito e a sua titularidade. Logo, a presunção resultante do registo pode ser ilidida mediante prova em contrário. E isto é assim justamente porque, nos termos do disposto no artigo 408.º do Código Civil, salvas as exceções previstas na lei, a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, não ficando a sua validade dependente da inscrição no registo.

 

Em suma, o registo automóvel, na economia do CIUC, representa mera presunção ilidível dos sujeitos passivos do imposto. No caso de um contrato de compra e venda de um veículo automóvel, não prevendo a lei qualquer exceção para o mesmo, o contrato tem eficácia real, passando o adquirente a ser o seu proprietário, independentemente do registo; do mesmo modo, o titular inscrito no registo deixará de ser o proprietário, pese embora ainda possa constar, por algum tempo ou mesmo muito, do registo como tal.

 

De notar ainda que as transmissões efetuadas são oponíveis à Requerida, apesar do disposto no n.º 1 do artigo 5.º do Código do Registo Predial, que dispõe: “os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros quando registados.” A noção de terceiros para efeitos de registo está consagrada no n.º 4 do mesmo artigo 5.º: terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si, o que, manifestamente não é o caso da AT. Assim, a AT não é terceiro para efeitos de registo.

 

Em consequência do que antecede, o proprietário registado de um automóvel pode fazer prova, para efeitos de tributação em sede de IUC, de que já não é o proprietário efetivo do veículo em causa, nomeadamente por ter procedido à respetiva venda. Para tanto, importa ter-se presente que estamos perante contratos de compra e venda que, relativos a coisas móveis e não estando sujeitos a quaisquer formalismos especiais nos termos do artigo 219.º do Código Civil, operam a correspondente transferência de direitos reais nos termos do n.º 1 do artigo 408.º do mesmo código. Por outro lado, a prova da existência de um contrato de compra e venda pode ser efetuada por qualquer meio, sendo a fatura um documento contabilístico idóneo para este efeito, como para muitos outros, nomeadamente fiscais. As faturas titulam vendas, transações ou prestações de serviços e, desde que emitidas na forma legal, constituem elementos de suporte de lançamentos contabilísticos sistematizados numa contabilidade organizada de acordo com a legislação comercial e fiscal, sendo os dados que delas constem abrangidos pela presunção de veracidade a que se refere o artigo 75.º, n.º 1, da LGT. Neste sentido, não se aceita que se questione a sua força probatória apenas para o fim da prova da transmissão da propriedade do veículo, sob pena de cairmos no absurdo jurídico de, a partir do mesmo documento, se reconhecer que a transação existiu para efeitos de incidência de imposto sobre o rendimento, mas não existiu para efeitos de IUC. Mas, tratando-se de uma presunção, nada impede a demonstração da sua falsidade ou inadequação face aos requisitos legais estabelecidos no artigo 36.º do CIVA. Trata-se, também neste caso, de uma presunção ilidível, sendo que o ónus da prova cabe à AT[1]. Contudo, a AT não impugnou, nem suscitou dúvidas quanto às operações tituladas pelas faturas apresentadas pela Requerente, tendo-se limitado a questionar a capacidade das mesmas para titularem vendas e fazerem prova das mesmas.

 

Assim, consideram-se provadas as vendas alegadas pela Requerente, ocorridas em momento prévio ao da ocorrência do facto gerador. Fica, assim, ilidida a presunção de propriedade derivada do registo automóvel prevista no artigo 3.º do CIUC, devendo, portanto, proceder-se à anulação das correspondentes liquidações identificadas em lista anexa ao presente pedido de pronúncia, com fundamento em ilegalidade e erro nos pressupostos em que se suportam.

 

b) Veículos abrangidos por contratos de locação financeira ou por contratos de ALD com promessa de compra e venda

 

Foram considerados provados os factos alegados pela Requerente, ou seja, que os veículos aos quais respeita o imposto liquidado através destas liquidações eram objeto de contratos de locação financeira na data em que ocorreu o facto gerador do imposto.

 

Entende a Requerida, contudo, que cabia à Requerente demonstrar ter dado cumprimento à obrigação acessória imposta pelo artigo 19.º do CIUC. A este propósito, veja-se, a título de exemplo, o que vem referido na decisão arbitral proferida no processo n.º 14/2013-T, de 15/10/2013: “o locatário financeiro é equiparado a proprietário para efeitos do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, o mesmo é dizer para ser sujeito passivo do IUC (cfr. n.º 2 do art. 3.º). [...] não dispondo o locador, por imposição legal e contratual, do potencial de utilização do veículo e tendo o locatário o gozo exclusivo do automóvel, [e reafirmando-se] a conclusão a que já tínhamos chegado de que [...] manda a ratio legis do CIUC que, nos termos do referido n.º 2 do artigo 3.º deste Código, seja o locatário o responsável pelo pagamento do imposto, uma vez que é ele que tem o potencial de utilização do veículo e provoca os custos viários e ambientais a ele inerentes. À mesma conclusão se chega quando se verifica a importância dada aos utilizadores dos veículos locados no artigo 19.º do CIUC. Com efeito, nos termos do disposto neste artigo, as entidades que procedam, designadamente, à locação financeira de veículos ficam obrigadas a fornecer à AT (ex-DGCI), a identidade fiscal dos utilizadores dos veículos locados para efeitos do disposto no artigo 3.º do CIUC (incidência subjetiva), bem como do n.º 1 do artigo 3.º da Lei da respetiva aprovação, uma vez que nos termos desta norma da Lei n.º 22-A/2007, se a receita gerada pelo IUC for incidente sobre veículos objeto de aluguer de longa duração ou de locação operacional, deve ser afeta ao município de residência do respetivo utilizador (sublinhados nossos). [...] [Mas, apesar dessa obrigação, tal não impede que,] na data da ocorrência do facto gerador do imposto, vigor[e] um contrato de locação financeira que tem por objeto um automóvel, para efeitos do disposto no artigo 3.º, nºs. 1 e 2, do CIUC, [sendo que o] sujeito passivo do IUC é o locatário mesmo que o registo do direito de propriedade do veículo se encontre feito em nome da entidade locadora, desde que esta faça prova da existência do referido contrato.”

 

Pelo exposto, improcede a alegação da AT relativa ao artigo 19.º do CIUC, uma vez que a mesma visa sobrepor uma obrigação de cariz formal a uma realidade substancial claramente demonstrativa da condição da Requerente como entidade locadora nos contratos subjacentes. 

 

Assim, também quanto a estas liquidações, considera-se assistir razão à Requerente, devendo os atos de liquidação ser anulados, por invalidade em função de erro sobre os pressupostos de facto e de direito.

 

Dos juros indemnizatórios

 

A Requerente solicita, finalmente, que lhe seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios, ao abrigo dos artigos 43.º e 100.º da LGT.

 

O artigo 100.º da LGT prevê que “A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.”

 

 Por outro lado, nos termos do n.º 1 do artigo 43.º da LGT, serão devidos juros indemnizatórios "quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido."

 

No presente caso, a anulação das liquidações ocorre apenas por via da impugnação do indeferimento dos pedidos de revisão oficiosa apresentados pela Requerente em 02-02-2017, pelo que lhe é igualmente aplicável o disposto na al. c) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT: “3 - São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias: (…) - c) Quando a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.”  

 

A AT proferiu despacho de indeferimento do pedido de revisão em 20.02.2018, na sequência do qual a Requerente se apresentou perante este tribunal. Ora, conforme já decidiu o STA[2], o princípio da igualdade impõe tratamento semelhante entre o contribuinte cujo pedido de revisão obtém êxito para além do prazo de um ano junto da administração, e o contribuinte que obtém idêntico resultado, também para além desse prazo, junto do tribunal. Em qualquer dos casos, a demora de mais de um ano é imputável à administração e deriva da prática de ato ilegal: ou porque tardou a dar razão ao contribuinte ou porque não lha deu e veio a revelar-se que o devia ter feito. Verifica-se, portanto, in casu, o direito a juros indemnizatórios da Requerente, contados a partir do termo do prazo de um ano após apresentação do pedido de revisão oficiosa e até à data da restituição à Requerente dos montantes correspondentes às liquidações anuladas.

 

8. Decisão                      

De harmonia com o exposto, decide este Tribunal Arbitral nos termos que se seguem:

a) Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade do indeferimento do pedido de revisão oficiosa, determinando-se, em consequência, a sua anulação;

b) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral relativamente à anulação das liquidações de imposto e de juros compensatórios, no que diz respeito aos períodos de tributação e veículos identificados em lista anexa ao presente pedido de pronúncia arbitral;

c) Julgar procedente o pedido no que concerne ao reconhecimento do direito aos juros indemnizatórios que forem devidos a partir de um ano após a apresentação do pedido de revisão oficiosa e até à data da restituição à Requerente dos montantes das liquidações anuladas.

d) Condenar a Requerida nas custas do presente processo.

9. Valor do processo

Em conformidade com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, é fixado ao processo o valor de € 20.500,09 (vinte mil e quinhentos euros e nove cêntimos).

 

10. Custas

Nos termos do disposto no artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, o montante das custas é fixado em € 1.224,00 (mil duzentos e vinte e quatro euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Lisboa, 29 de novembro de 2018

A Árbitro

 

(Raquel Franco)

 



[1] Neste sentido, cf., entre outras, Decisões Arbitrais de 19.7.2013, Proc. 26/2013-T, de 10.9.2013, Proc. 27/2013-T, de n15.10.2013, Proc. 14/2013-T, de 5.12.2013, Proc. 73/2013-T, de 14.2.2014, Proc. 170/2013-T, de 30.4.2014, Proc., 256/2013-T, de 2.5.2014, Proc. 289/2013-T, de 6.6.2014, Proc. 294/2013-T, de 25.6.2014, Proc. 42/2014, de 6.7.2014, Proc. 52/2014-T, de 15.9.2017. Proc. 173/2017-T e de 4.10.2017, Proc 185/2017-T.

[2] Cf., a título exemplificativo, os acórdãos proferidos nos processos 0890/16 e 0926/17.