Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 215/2018-T
Data da decisão: 2018-11-16  IRC  
Valor do pedido: € 226.757,10
Tema: IRC – Revogação do ato - Extinção da instância.
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DECISÃO ARBITRAL

 

 

Acordam em tribunal arbitral

 

I – Relatório

 

1. A..., LDA., portadora do número de identificação de pessoa coletiva ..., com sede na Rua ..., n.º ..., em ..., vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade dos actos tributários de liquidação adicional de IRC e de juros compensatórios, referentes ao período de 2013, no montante total de € 125.094,19, e das liquidações adicionais de IRC e de juros compensatórios, referentes ao período de 2014, no montante total de € 101.662,91, requerendo ainda o reembolso do montante indevidamente pago e a condenação no pagamento de juros indemnizatórios.

 

Notificada para apresentar resposta, a Administração Tributária veio pedir a prorrogação do prazo, nos termos previstos no artigo 569.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, que foi deferido, e dentro do prazo de prorrogação juntou um despacho de revogação dos actos tributários impugnados proferido pelo dirigente máximo do serviço.

 

Por despacho arbitral de 11 de outubro de 2018, foi determinada a notificação da Requerente para se pronunciar sobre o acto revogatório e as suas consequências quanto ao prosseguimento do processo.

 

Em resposta, a Requerente veio dizer o seguinte:

 

  1. Nos termos do n.º 1 do artigo 13.º do RJAT, a Autoridade Tributária tem 30 dias, a contar do conhecimento do pedido de constituição, para revogar o ato sindicado.
  2. Ou seja, tinha até ao final de maio para revogar o ato, revogação essa que, nos termos da lei, deveria ter sucedido em momento anterior à constituição deste tribunal.
  1. Acresce que a Autoridade Tributária não se pronuncia sobre o pedido de juros indemnizatórios, que foi devidamente formulado no pedido de constituição deste tribunal.
  2. Nestes termos, requer-se a notificação da Autoridade Tributária para que esta se pronuncie expressamente quanto ao pedido de juros indemnizatórios formulado no requerimento inicial, o que se invoca para os devidos efeitos legais.
  3. Caso a Requerida se pronuncie favoravelmente, então a Requerente aceita a revogação do ato e a referida decisão favorável quanto aos juros indemnizatórios.
  4. No caso inverso, deverá a presente ação prosseguir os seus termos.

 

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 10 de julho de 2018.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades nem foram invocadas excepções.

 

Cabe apreciar e decidir.

 

II - Fundamentação

 

3. Na sequência do pedido de pronúncia formulado pela Requerente, o tribunal arbitral foi constituído em 10 de julho de 2018, e, por despacho de 12 de julho seguinte, foi determinada a notificação do dirigente máximo do serviço da administração tributária para, no prazo de 30 dias, apresentar resposta. Ainda dentro desse prazo, os juristas designados para patrocinarem a Administração Tributária requereram a prorrogação do prazo de resposta por dez dias, nos termos previstos no artigo 569.º, n.º 5, do Código de Processo Civil. O pedido foi deferido e antes do decurso do prazo de prorrogação foi junto despacho Subdirectora-Geral da Gestão Tributária do Imposto sobre o Rendimento, praticado com delegação de poderes, que revoga os actos tributários de liquidação impugnados.

 

O despacho de revogação, datado de 2 de outubro de 2018, remete para a fundamentação constante da informação elaborada pela Divisão de Serviços do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, pela qual se entende ser de revogar os actos em causa em face da decisão proferida no âmbito do processo arbitral n.º 313/2017-T, que teve como objecto idênticos actos tributários referentes ao exercício de 2012 e foi favorável à Requerente.

 

Notificada para se pronunciar sobre as consequências processuais da revogação, a Requerente veio dizer que que o acto revogatório foi praticado já depois de transcorrido o prazo a que se refere o artigo 13.º, n.º 1, do RJAT e que a Administração Tributária não se pronunciou sobre os juros indemnizatórios que foram peticionados no pedido arbitral, vindo a concluir que só aceita a revogação se a Administração, notificada para o efeito, se pronunciar favoravelmente quanto ao pedido de juros indemnizatórios, devendo, em caso contrário, o processo prosseguir os seus termos.

4. Cabe preliminarmente referir que o novo Código de Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, passou a distinguir entre a revogação e a anulação administrativa, fazendo corresponder a cada uma destas figuras as duas anteriores modalidades de revogação ab-rogatória ou extintiva e revogação anulatória. Segundo a definição constante do artigo 165.º, a revogação é “o ato administrativo que determina a cessação dos efeitos de outro ato, por razões de mérito, conveniência ou oportunidade”, ao passo que a anulação administrativa é “o ato administrativo que determina a destruição dos efeitos de outro ato, com fundamento em invalidade”. A revogação produz, em regra, apenas efeitos para o futuro (artigo 171.º, n.º 1), enquanto que a anulação administrativa, tendo por objeto a eliminação do mundo jurídico de atos anuláveis, tem, em regra, efeitos retroativos (artigo 171.º, n.º 3).

No caso vertente, a Autoridade Tributária entendeu ser de seguir o sentido decisório de decisão arbitral proferida num processo anterior em que se discutiam actos tributários de idêntica natureza aos que estão aqui em causa, pelo que praticou, segundo a nova terminologia, um acto de anulação administrativa, isto é, um acto que tem como fundamento considerações de legalidade administrativa e não de mera discricionariedade. Assim sendo, o falado despacho de 2 de outubro de 2018, embora adopte a fórmula verbal anteriormente aplicável, corresponde a um verdadeiro acto anulatório.

A questão que a Requerente primeiramente coloca é a de saber - atendendo ao disposto no artigo 13.º, n.º 1, do RJAT - se é possível proceder, na pendência do processo arbitral, à anulação administrativa dos actos tributários impugnados.

O citado artigo 13.º, n.º 1, do RJAT, sob a epígrafe “Efeitos do pedido de constituição do tribunal arbitral”, dispõe o seguinte:

Nos pedidos de pronúncia arbitral que tenham por objeto a apreciação da legalidade dos atos tributários previstos no artigo 2.º, o dirigente máximo do serviço da administração tributária pode, no prazo de 30 dias a contar do conhecimento do pedido de constituição do tribunal arbitral, proceder à revogação, ratificação, reforma ou conversão do ato tributário cuja ilegalidade foi suscitada, praticando, quando necessário, ato tributário substitutivo, devendo notificar o presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) da sua decisão, iniciando-se então a contagem do prazo referido na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º

O prazo previsto a alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º a que essa disposição se refere é o que respeita à comunicação às partes da constituição do tribunal arbitral, o que permite concluir que esse é um prazo procedimental, inserido no procedimento de constituição do tribunal, e que decorre ainda antes de ter início o processo arbitral (cfr. artigo 15.º).

Tal não significa, no entanto, que à Administração esteja vedado a anulação administrativa do acto impugnado já na pendência do processo arbitral.

A Autoridade Tributária, enquanto entidade administrativa, encontra-se subordinada às disposições do Código de Procedimento Administrativo (artigo 2.º, n.º 1), e, por outro lado, como resulta do disposto no artigo 29.º do RJAT, são de aplicação subsidiária ao processo arbitral tributário, de acordo com a natureza do caso omisso, entre outras, as normas sobre o processo nos tribunais administrativos.

O artigo 168.º do CPA, que define os condicionalismos aplicáveis à anulação administrativa, no seu n.º 3, estabelece que “quando o ato tenha sido objecto de impugnação jurisdicional, a anulação administrativa só pode ter lugar até ao encerramento da discussão”. Deve entender-se como encerramento da discussão, em correspondência com o estabelecido no artigo 604.º, n.º 3, alínea e), do CPC, o momento em que as partes produzam alegações orais ou o termo do prazo para alegações escritas ou o termo da fase dos articulados quando as partes tenham dispensado as alegações finais e o estado do processo permita sem necessidade de mais indagações a apreciação do pedido.

Haverá de concluir-se, por conseguinte, que o CPA alargou os poderes de disposição da Administração na pendência do processo, permitindo, na linha do que já vinha sugerido pela doutrina, que a anulação administrativa, quando o acto tenha sido objecto de impugnação jurisdicional possa ter lugar até ao encerramento da discussão, e não apenas até à resposta, como estava previsto no artigo 141.º, n.º 1, do CPA de 1991.

Seja como for, nada obsta a que a Administração, ao abrigo do citado artigo 168.º, n.º 3, possa anular o acto tributário impugnado na pendência do processo, desde que dentro do limite temporal definido nessa disposição, e essa faculdade nada tem a ver com o regime específico a que se refere o artigo 13.º, n.º 1, do RJAT, que confere a possibilidade de a Administração anular o acto impugnado ainda no âmbito do procedimento de constituição do tribunal arbitral. O que o regime especial desse artigo proíbe, para além do prazo de 30 dias a contar do conhecimento do pedido de constituição do tribunal arbitral, é a prática de um novo acto tributário relativamente ao mesmo sujeito passivo, imposto e período de tributação, a não ser com fundamento em factos novos (n.º 3). Mas não a própria anulação administrativa do acto sem nova regulação da situação jurídica.

Dito isto, não pode deixar de reconhecer-se que a anulação administrativa é tempestiva, visto que a Autoridade Tributária praticou o acto anulatório ainda dentro prazo para a apresentação da resposta, havendo de atribuir-se à anulação, nesse condicionalismo,  os correspondentes efeitos de direito.

No que concerne às consequências processuais da anulação administrativa interessa a norma do artigo 64.º do CPTA, subsidiariamente aplicável, que, entre outros dispositivos, se refere às situações em que, na pendência do processo impugnatório, o ato impugnado é objeto de anulação administrativa acompanhada ou seguida de nova definição da situação jurídica, caso em que se admite que o processo impugnatório prossiga contra o novo ato com fundamento na reincidência nas mesmas ilegalidades. Prevê-se aí a hipótese típica de ampliação do objecto do processo quando, na pendência de um processo impugnatório, a Administração anule o acto impugnado praticando um novo acto em sua substituição contra o qual o impugnante poderá ter ainda interesse em reagir. E, por outro lado, importa reter que, por efeito do disposto no artigo 13.º, n.º 3, do RJAT, a substituição do acto na pendência do processo apenas poderia ocorrer desde que não implicasse a invocação de factos novos.  

 É patente que não é essa, no entanto, a situação do caso.

A Administração anulou os actos sem instituir uma qualquer nova regulação da situação jurídica, limitando-se a conformar-se com o julgado num outro processo arbitral em que foi analisada a legalidade de idênticos actos tributários referentes ao mesmo sujeito passivo e reportados a um período anterior.

Ora, a anulação do ato impugnado pela própria Administração, na pendência do processo, satisfazendo a pretensão impugnatória do autor, conduz à impossibilidade superveniente da lide, que constitui causa de extinção da instância (artigo 277.º, alínea e), do CPC).

5. A Requerente vem dizer, no entanto, que só aceita a revogação (deverá ler-se anulação administrativa) se a Autoridade Tributária se pronunciar favoravelmente em relação ao pedido de juros indemnizatórios e, de outro modo, o processo deve prosseguir os seus termos, depreendendo-se que pretende que o processo prossiga para efeito da condenação no pagamento de juros indemnizatórios.

 

Importa ter presente a este propósito que a anulação administrativa é de iniciativa oficiosa da Administração e, constituindo um acto unilateral, os seus efeitos não dependem da manifestação de vontade do interessado particular. Por outro lado, o pedido arbitral referente aos juros indemnizatórios apenas pode ser entendido com uma pretensão condenatória de natureza acessória ou consequencial relativamente ao pedido principal, implicando que o processo devesse prosseguir para a apreciação incidental da legalidade do acto impugnado apenas para o efeito de saber se há lugar ao pretendido ressarcimento a título de juros indemnizatórios.

 

O certo é que a anulação administrativa determina a destruição dos efeitos do acto administrativo anulado (artigo 165.º, n.º 2, do CPA), com a sua consequente eliminação da ordem jurídica, pelo que se verifica uma situação de impossibilidade superveniente da lide por falta de objecto processual.

 

Acresce que o artigo 172.º do CPA, sob a epígrafe “Consequências da anulação administrativa”, reproduz o disposto no artigo 173.º do CPTA, aplicável à execução de sentenças de anulação de actos administrativos, estipulando um conjunto de deveres de executar relativamente ao acto anulado administrativamente que correspondem aos que igualmente se impõem à Administração se houver lugar a anulação contenciosa no âmbito de um processo impugnatório. O que faz supor que as consequências resultantes da anulação de um acto administrativo são fundamentalmente idênticas, independentemente da anulação resultar de um acto da própria Administração ou de decisão jurisdicional proferida em processo impugnatório (nestes precisos termos, Carlos Fernandes Cadilha, “Implicações do Novo Regime do Código de Procedimento Administrativo no Direito Processual Administrativo”, in Julgar n.º 26, maio-agosto 2015, pág. 31).

 

Sendo um dos deveres em que a Administração fica constituída, por efeito da anulação administrativa do acto, a reconstituição da situação que existiria se o acto  não tivesse sido praticado, mediante a execução do efeito repristinatório da anulação, nada impede que nesse âmbito sejam devidos juros indemnizatórios por pagamento indevido de prestação tributária, em consonância com o também estabelecido no artigo 43.º da Lei Geral Tributária.

 

E não está excluído, em qualquer caso, que a Requerente possa deduzir um pedido indemnizatório em acção de responsabilidade civil autónoma.

 

O que não pode deixar de reconhecer-se é que o presente processo arbitral por efeito da anulação administrativa dos actos impugnados não pode prosseguir por impossibilidade superveniente da lide.

 

III – Decisão

 

Termos em que se decide julgar extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide.

 

Valor da causa

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 226.757,10, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 4284,00, que fica a cargo da Requerida (artigo 536.º, n.º 3, segunda parte, do CPC).

 

Notifique.

 

Lisboa, 16 de novembro de 2018

  

 

O Presidente do Tribunal Arbitral

 

Carlos Fernandes Cadilha

 

O Árbitro vogal

 

André Sousa Tavares

 

O Árbitro vogal

 

André Festas da Silva