Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 162/2019-T
Data da decisão: 2019-12-23  IVA  
Valor do pedido: € 146.243,12
Tema: IVA – Prestação de Serviços de Nutrição – Isenção – Art. 9.º, n.º 1 do Código do IVA; Recurso extraordinário de revisão do acórdão: o fundamento previsto no artigo 696º, al. f), do CPC.
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DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

 

Os árbitros José Poças Falcão (árbitro presidente), Prof. Doutor Francisco Nicolau Domingos e Dra. Marisa Almeida Araújo (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o presente Tribunal Arbitral, constituído em 22 de maio de 2019, acordam no seguinte:

 

I.             Relatório

 

A A..., Lda., pessoa coletiva n.º ..., com sede na Rua ..., ..., ..., ...-... ..., (adiante apenas  designada por Requerente) veio, ao abrigo do artigo 10.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (adiante apenas designado por RJAT) e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 março, requerer a constituição de tribunal arbitral.

 

A Requerente pretende que o Tribunal declare a ilegalidade dos atos tributários consubstanciados nas liquidações adicionais de IVA e respetivos juros compensatórios, praticados e notificados na sequência da ação de inspeção aos exercícios de 2013 e 2014, objeto de reclamação graciosa expressamente indeferida pela AT, no montante total de 146.243,12 Euros.

 

Considera a Requerente, por um lado, que a AT não logrou fundamentar suficientemente o Relatório de Inspeção, em violação do disposto nos artigos 77.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária (“LGT”) e 268.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa (“CRP”), e, por outro lado, que incorreu em erro sobre os pressupostos (errada interpretação e aplicação da lei), por todos os serviços de nutrição prestados serem enquadráveis no disposto no artigo 9.º, 1) do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (CIVA) e, desta forma, isentos do imposto, e não apenas as consultas avulsas de nutrição.

A título subsidiário, a Requerente invoca que, caso os serviços de nutrição fossem tributados em IVA, o cálculo do imposto devia ser feito “por dentro”, considerando-se o IVA incluído no preço final que foi praticado com os clientes, que são consumidores finais.

 

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (de ora em diante designada por “AT”).

 

Em 11 de março de 2019, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação, nomeadamente com a notificação à AT, em 15 de março 2019. Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Conselho Deontológico do CAAD designou os árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, aqui signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

As partes, notificadas dessa designação em 2 de maio de 2019, não se opuseram, nos termos dos artigos 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) e 8.º do RJAT e 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

O Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 22 de maio de 2019.

 

Em 3 de julho de 2019, a Requerida apresentou Resposta, na qual se defende por impugnação e pugna pela improcedência e consequente absolvição do pedido e juntou o processo administrativo. Alegando que, no que tange ao exercício dos serviços de nutrição, revela-se o carácter de acessoriedade face ao serviço principal prestado, de acesso e utilização do ginásio, configurando uma prestação global única, passível de IVA.

 

Por despacho de 14 de outubro de 2019, o Tribunal Arbitral determinou a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, com inquirição das testemunhas, por entender existir matéria, com relevo para a decisão, passível de prova testemunhal, tendo a reunião sido reagendada para 12 de novembro de 2019.

A referida a reunião teve lugar às 14:30, tendo sido ouvidas as testemunhas arroladas pela Requerente, B..., C... e D..., e deferido o aproveitamento da prova testemunhal produzida nos processos do CAAD números 259/2019-T e 373/2018-T.

 

O Tribunal Arbitral Coletivo notificou as partes para alegações escritas sucessivas, que ambas apresentaram, mantendo no essencial, as posições anteriormente assumidas.

 

Por despacho de 12 de novembro de 2019, decidiu o Tribunal, com os fundamentos nele referidos, prorrogar o prazo previsto para a decisão, por dois meses, nos termos do artigo 21.º, n.º 2, do RJAT.

 

II.            Saneamento

 

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objeto do processo (cf. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º do RJAT).

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

A cumulação de pedidos é admissível, em conformidade com o preceituado no artigo 3.º, n.º 1 do RJAT, atendendo a que está em causa a apreciação de idênticas circunstâncias de facto e o mesmo regime jurídico. Em concreto, a relação de acessoriedade, para efeitos de IVA, entre os serviços (consultas) de nutrição disponibilizados pela Requerente e a utilização do ginásio.

 

III.          Fundamentação

 

III.I. Matéria de facto

 

A.           Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que se julgam provados:

 

1.            A Requerente é uma sociedade de direito português, constituída em 2009, encontrando-se inscrita pelo exercício de “atividades de ginásio (fitness), a que corresponde o CAE 93130; formação profissional a que corresponde o CAE 85591; “outras atividades de saúde humana N.E.” a que corresponde o CAE 86906 e “atividades de bem-estar físico” com CAE 96040.

2.            A Requerente está enquadrada no regime normal de periodicidade mensal de IVA.

3.            O pedido de pronúncia arbitral tem por objeto as liquidações adicionais de IVA mantidas no seguimento do indeferimento da reclamação graciosa, a qual teve a sua génese no procedimento de inspeção tributária aos exercícios de 2013 e 2014, nomeadamente, com fonte nas ordens de serviço números OI2017..., sendo parte integrante do processo administrativo, que se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.

4.            No referido procedimento, os serviços de inspeção concluíram que as prestações de serviços dietéticos devem ser consideradas acessórias em relação à prestação principal - utilização de instalações desportivas - e, por essa razão, estão sujeitas a IVA à taxa de 23%, prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 18.º do CIVA.

5.            De acordo com o Relatório dos Serviços de Inspeção Tributária (doravante designado por SIT) estão em causa as duas consultas de nutrição constantes do "Contrato de Prestação de Serviços de Dietética", associado ao contrato de prestação de serviços de ginásio denominado "Contrato Individual de Adesão", relativamente às quais não foi liquidado IVA, por a Requerente entender que estão abrangidas pela isenção do artigo 9.º, alínea 1) do CIVA.

6.            Entenderam os SIT haver lugar à liquidação de IVA sobre a "Prestação de Serviços Dietéticos" (SDIET) à taxa aplicável ao serviço de ginásio, ou seja, à taxa de 23%, nos termos do artigo 18.º do CIVA.

7.            Conforme plasmado no pto IlI do RIT, foi determinado o valor a corrigir, em sede de IVA, resultante da não consideração da " prestação de serviços dietéticos" como atividade isenta nos termos da alínea 1) do artigo 9.º do CIVA para os anos de 2013 e 2014.

8.            Por outro lado, da correção efetuada ao "IVA não liquidado", decorrente tributação de operações que o sujeito passivo considerou estarem isentas, resultou uma alteração dos valores sobre os quais incidiu o método da afetação real, para determinação do direito à dedução do IVA para os exercícios de 2013 e 2014.

9.            Estando em causa as liquidações de 2013:

i) Liquidação n.º 2018..., referente ao período 2013/01;

ii) Liquidação n.º 2018..., e respetiva demonstração de liquidação de juros compensatórios, referente ao período 2013/02;

iii) Liquidação n.º 2018..., e respetiva demonstração de liquidação de juros compensatórios, referente ao período 2013/03;

iv) Liquidação n.º 2018..., e respetiva demonstração de liquidação de juros compensatórios, referente ao período 2013/04;

v) Liquidação n.º 2018..., e respetiva demonstração de liquidação de juros compensatórios, referente ao período 2013/05;

vi) Liquidação n.º 2018..., e respetiva demonstração de liquidação de juros compensatórios, referente ao período 2013/06;

vii) Liquidação n.º 2018..., e respetiva demonstração de liquidação de juros compensatórios, referente ao período 2013/07;

viii) Liquidação n.º 2018..., e respetiva demonstração de liquidação de juros compensatórios, referente ao período 2013/08;

ix) Liquidação n.º 2018..., e respetiva demonstração de liquidação de juros compensatórios, referente ao período 2013/09;

x) Liquidação n.º 2018..., e respetiva demonstração de liquidação de juros compensatórios, referente ao período 2013/10;

xi) Liquidação n.º 2018..., e respetiva demonstração de liquidação de juros compensatórios, referente ao período 2013/11;

xii) Liquidação n.º 2018..., e respetiva demonstração de liquidação de juros compensatórios, referente ao período 2013/12.

10.          Todas de 17 de abril de 2018, com imposto no montante total de 28.852,98 Euros e respetivas demonstrações de liquidação de juros de IVA no montante total de 5.070,78 Euros.

11.          Relativamente às liquidações de 2014:

i) Liquidação n.º 2018..., e respetiva demonstração de liquidação de juros compensatórios, referente ao período 2014/01;

ii) Liquidação n.º 2018..., e respetiva demonstração de liquidação de juros compensatórios, referente ao período 2014/02;

iii) Liquidação n.º 2018..., e respetiva demonstração de liquidação de juros compensatórios, referente ao período 2014/03;

iv) Liquidação n.º 2018..., e respetiva demonstração de liquidação de juros compensatórios, referente ao período 2014/04;

v) Liquidação n.º 2018..., e respetiva demonstração de liquidação de juros compensatórios, referente ao período 2014/05;

vi) Liquidação n.º 2018..., e respetiva demonstração de liquidação de juros compensatórios, referente ao período 2014/06;

vii) Liquidação n.º 2018..., e respetiva demonstração de liquidação de juros compensatórios, referente ao período 2014/07;

viii) Liquidação n.º 2018..., e respetiva demonstração de liquidação de juros compensatórios, referente ao período 2014/08;

ix) Liquidação n.º 2018..., e respetiva demonstração de liquidação de juros compensatórios, referente ao período 2014/09;

x) Liquidação n.º 2018..., e respetiva demonstração de liquidação de juros compensatórios, referente ao período 2014/10;

xi) Liquidação n.º 2018..., e respetiva demonstração de liquidação de juros compensatórios, referente ao período 2014/11;

xii) Liquidação n.º 2018..., e respetiva demonstração de liquidação de juros compensatórios, referente ao período 2014/12.

12.          Todas de 17 de abril de 2018, com imposto no montante total de 98.231,35 Euros e respetivas demonstrações de liquidação de juros compensatórios, no montante total de 14.088,01 Euros.

13.          No total de:

 

                IVA        Juros     TOTAL

2013      28.852,98 Euros               5.070,78 Euros 33.923,76 Euros

2014      98.231,35 Euros               14.088,01 Euros               112.319,36 Euros

                                               146.243,12 Euros

 

14.          O Grupo E..., no qual a Requerente se insere, existe atualmente em oito países e reúne mais de 275.000 sócios. Iniciou a sua atividade na Península Ibérica há 20 anos e no exercício de 2012 passou a integrar um grupo empresarial hoje denominado F... que é constituído por 16 empresas.

15.          Uma dessas empresas é a Requerente, que tem como atividade a criação, promoção e exploração de health clubs, gestão, formação e consultoria em desporto, manutenção física e bem-estar, serviço de nutrição e outras atividades de saúde pública, incluindo tratamentos de fisioterapia.

16.          A Requerente desenvolvia a sua atividade em 2013 e 2014, num Health Club do Grupo E... localizado em Lisboa, na ..., Edifício  ...–..., ...-... Lisboa.

17.          A Requerente proporciona aos seus sócios não só a prática de ginásio similar aos seus concorrentes de mercado, mas vai bastante para além da mera prática de exercício físico, proporcionando ainda outros serviços, como o acompanhamento nutricional.

18.          O clube conta com Ginásio, zona de treino funcional, três estúdios, uma piscina, saunas e banho turco, zona de restauração, dois gabinetes dedicados à Fisioterapia e dois Gabinetes de Nutrição. Como serviços, o clube oferece um variado leque de aulas de grupo, treino personalizado, serviços de estética, massagem, fisioterapia e nutrição.

19.          Serviços estes que se inserem na mais ampla política do Grupo E... bem espelhada na máxima: … assente em três pilares “…, … e …” (Exercício, Nutrição, Repouso).

20.          Dando corpo à implementação em território nacional da nova política comercial internacional, a E... levou a cabo uma remodelação nos seus serviços, imagem, instalações e contratação de pessoal, de modo a relevar a vertente da nutrição, publicitando-a como novo target da marca E... .

21.          Foi com base nesta máxima que, na vertente “…”, em 2013, a Requerente passou a proporcionar aos seus sócios serviços de nutrição, mediante a subscrição de um contrato denominado “Contrato de Prestação de Serviços Dietéticos”, que consiste exatamente na mesma coisa que os serviços de nutrição.

22.          As expressões e licenciaturas de dietética e nutrição são equivalentes desde a constituição da Ordem dos Nutricionistas em 1 de janeiro de 2011.

23.          Aos sócios que aceitaram este novo serviço foi oferecido um desconto na mensalidade do ginásio correspondente ao valor do novo serviço de nutrição, como forma de incentivo à adesão aos novos serviços da Requerente e por estratégia de marketing.

24.          Os serviços de nutrição/ dietéticos são prestados em locais individualizados em resultado dos investimentos e alterações introduzidas nos vários edifícios F... .

25.          A Requerente tem duas salas onde só se prestam serviços de nutrição e que foram adaptados para essa finalidade, dispondo de máquinas e de medidores de gordura corporal – tanitas, com software próprio.

26.          A Requerente contratou em 2013 nutricionistas e em 2014, sendo que atualmente o Grupo E... já conta com 49 nutricionistas, que desenvolvem a sua atividade nos agora já 21 ginásios geridos pelo Grupo E... em Portugal.

27.          O Contrato de Prestação de Serviços Dietéticos/Nutrição incluía duas consultas de nutrição presenciais e dois acompanhamentos telefónicos anuais nos quais se fazia apenas um follow up das consultas.

28.          No entanto, sempre que os sócios pretendessem mais do que duas consultas de nutrição por ano, podiam adquirir consultas, vendidas, quer isoladamente, quer em packs, sendo estas prestadas pelos mesmos profissionais das consultas iniciais do Contrato de Prestação de Serviços Dietéticos e assumiam semelhante configuração.

29.          Os clientes podiam usufruir apenas da componente de ginásio, sem as consultas de nutrição ou o inverso.

30.          A Requerente proporcionou mais de 1.900 consultas de nutrição nos anos de 2013 e 2014, sendo que o número de sócios nestes anos foi o que se apresenta no quadro seguinte:

 

31.          As consultas são efetuadas nas instalações da Requerente, pelos nutricionistas que pertencem aos quadros da Requerente, conforme suprarreferido e em instalações próprias para aquele fim, com software (SANUT) específico para serviços de nutrição.

32.          Todas as consultas (quer as iniciais quer as premium) são prestadas pelos mesmos profissionais e nas mesmas condições, não divergindo quer na duração quer na qualidade.

33.          A Requerente, bem como todo o Grupo E... em Portugal, têm programas de estágios remunerados com base num Protocolo com a Ordem dos Nutricionistas, onde são recebidos estagiários nos clubes da F... que aí completam a sua formação, tendo a Requerente recebido em 2013 estagiários.

 

B.            Não há factos relevantes para esta Decisão Arbitral que não se tenham provado.

 

C.            Fundamentação da Fixação da Matéria de Facto

A matéria de facto foi fixada por este Tribunal Arbitral Coletivo e a sua convicção ficou formada com base nas peças processuais, requerimentos apresentados pelas Partes e nos documentos juntos por estas ao presente Processo.

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, conforme n.º 1 do artigo 596.º e n.º 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e consignar se a considera provada ou não provada, conforme n.º 2 do artigo 123.º Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC. Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g. força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas Partes e a prova documental junta aos autos, conjugada com os depoimentos das testemunhas prestados em audiência, consideraram-se provados, com relevo para esta Decisão Arbitral, os factos acima elencados.

 

III.II Matéria de Direito (fundamentação)

 

A.           Questão do reenvio prejudicial:

 

No entender da Requerida, atenta a Jurisprudência referida no RIT, é pacífico que, a isenção prevista na alínea c), do n.º 1, do artigo 132.º da Diretiva 2006/112/CE, apenas se aplica quando o serviço tenha como fim, prestar assistência a pessoas, diagnosticando e tratando uma doença ou qualquer outra anomalia de saúde, não se aplicando nas hipóteses, como o dos autos, os destinatários dos serviços não tenham qualquer doença. E, por outro, quando tais serviços fazem parte de um conjunto, como os em apreço, que incluem a utilização do ginásio, aulas, etc. e também, consultas de dietista/nutricionista, em que, os destinatários não podem usufruir das sessões de nutrição/dietista, senão em conjunto com a frequência do ginásio, estando aquele contrato dependente deste e tendo como destinatários dos serviços clientes que apenas aderiram ao ginásio, tendo mais tarde vindo a aderir também às sessões (gratuitas na ótica do cliente) de dietista/nutrição, a decomposição na facturação de tais serviços, que não é possível na contratação, reveste um carácter artificial, contrário à Diretiva 2006/112/CE. Como também, o facto de os serviços de dietista/nutricionista, serem facturados em 15,00 Euros mensais (isentos de IVA), independentemente da utilização dos mesmos por parte dos destinatários dos serviços, atribuindo em virtude de tal contratação, um desconto na mensalidade que está sujeita e não isenta de IVA de igual montante, acabando por se traduzir num serviço gratuito para o cliente, que apenas reduz o montante de IVA a liquidar pelo prestador, relativo aos montantes que aufere pela prestação global dos serviços, é também contrário à Diretiva 2006/112/CE, por poder criar distorções na concorrência.

A não ser assim, a Requerida defende que entender-se como contrário à supremacia do Direito da União sobre o Direito Nacional, prevista no artigo 8.º, n.º 4, da CRP e de que é corolário a obrigatoriedade de reenvio prejudicial prevista no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (que substituiu o artigo 234.º do Tratado de Roma, anterior artigo 177.º), sendo que a jurisprudência do TJUE, como a referida no RIT tem carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, quando tem por objeto questões de Direito da União Europeia.

A Requerida entende que, atenta a Jurisprudência do TJUE, é claro que:

i) A isenção em apreço não deve ser aplicada quando o fim do serviço não seja tratar ou diagnosticar doenças, como no caso não é;

ii) Que a decomposição na faturação, de serviços que na contratação não podem ser destacados, reveste um carácter artificial e, que;

iii) Quando na celebração de um contrato isento de IVA, dependente da celebração/manutenção, com o mesmo destinatário de serviços, de um outro contrato sujeito e não isento de IVA, seja concedido, por celebração do 1º, um desconto, este deve ser refletido na parte (isenta) a faturar em virtude desse contrato e não na parte não isenta a faturar por via do outro contrato, sob pena de a aplicação da isenção criar distorções na concorrência e ser por via disso, contrária à referida Diretiva.

É corolário da obrigatoriedade de reenvio prejudicial prevista no artigo 267.º do TFUE quando se suscita uma questão de interpretação e aplicação de Direito da União Europeia. No entanto, quando a lei comunitária é clara, ainda que em questões não estritamente idênticas, e não subsistem dúvidas sobre a interpretação do texto em causa, dispensa-se a necessidade de reenvio.

 

No caso em apreço, o tribunal entende que, pelos motivos descritos, não há necessidade de reenvio ou de suspender os presentes autos nos termos requeridos pela AT, promovendo-se a tramitação subsequente dos autos.

 

B.            Questão da qualificação das prestações de serviços de nutrição como acessórias em relação aos serviços de utilização de instalações desportivas, por parte dos clientes da Requerente.

 

O caráter acessório de tais serviços (nutrição), invocado pela AT e contestado pela Requerente, implica(rá) a sua perda de autonomia e o correspondente enquadramento na prestação dita “principal” [serviços de ginásio], deixando de ser abrangidos pela isenção de IVA.

A jurisprudência comunitária tem vindo a confirmar que uma prestação deve ser considerada acessória em relação a uma prestação principal, quando não constitua para a clientela um fim em si, mas um meio de beneficiar de melhores condições do serviço principal prestado.

Este conceito resulta da jurisprudência comunitária, nomeadamente, nos seguintes acórdãos:

i)            Acórdão de 22 de outubro de 1998 «T.P.Madgett, R.M. Baldwin e The Howden Court Hotel», Processos apensos C-308/96 e C-94/97, onde o Tribunal considerou que poderia haver prestações que, embora relacionadas com a prestação principal, «não constituem (…) um fim em si, mas um meio de beneficiar das melhores condições do serviço principal.», concluindo nesse contexto que se trata de «prestações (…) puramente acessórias relativamente às prestações [efetuadas a título principal]».

ii)            Acórdão de 25 de fevereiro de 1999, «Card Protection Plan Ltd», Processo C-349/96, através do qual o TJCE firmou o entendimento de que «uma prestação deve ser considerada acessória em relação a uma prestação principal quando não constitua para a clientela um fim em si, mas um meio de beneficiar nas melhores condições do serviço principal do prestador».

 

Considerando o acórdão 373/2018-T, de 14 de junho de 2019 que, nesta matéria, elenca as principais decisões do TJUE e que aqui consideramos, nomeadamente, o acórdão de 27 de setembro de 2012, «Field Fisher Waterhouse LLP», processo C-392/11, o Tribunal de Justiça declarou que se está em presença de uma prestação única quando uma ou várias prestações constituem uma prestação principal e a outra ou as outras prestações constituem uma ou várias prestações acessórias, a que se aplica o tratamento fiscal da prestação principal. Em particular, uma prestação deve ser considerada acessória em relação a uma prestação principal, quando não constitua para a clientela um fim em si mesmo, mas um meio de beneficiar, nas melhores condições, do serviço principal do prestador. Neste sentido, vide os seguintes acórdãos: a) CPP – Processo n.º C 349/96, Colet., p. I 973, n.° 30, de 25 de fevereiro de 1999; b) Part Service, C-425/06, Colet., p. I 897, n.° 52 de 21 de fevereiro de 2008; c) Bog e outros, Processos números C 497/09, C 499/09, C 501/09 e C 502/09, Colet., p. I 1457, n.° 54, de 10 de março de 2011).

O acórdão de 17 de Janeiro de 2013 do Tribunal de Justiça da União Europeia, «BGZ Leasing Sp.z o.o», Processo C-224/11, onde se refere que está «em causa uma operação única, nomeadamente, quando dois ou vários elementos ou atos fornecidos pelo sujeito passivo ao cliente estão tão estreitamente ligados que formam, objetivamente, uma única prestação económica indissociável, cuja decomposição revestiria um caráter artificial» e que «a operação constituída por uma única prestação no plano económico não deve ser artificialmente decomposta para não alterar a funcionalidade do sistema do IVA». Continua, ainda, referindo que «para determinar se as prestações fornecidas constituem várias prestações independentes ou uma prestação única, importa averiguar os elementos característicos da operação em causa», designadamente «uma determinada conexão entre si»”.

 

Quanto aos factos em apreço nos presentes autos, considerando que uma prestação é considerada acessória em relação a uma prestação principal quando não constitua, para a clientela, um fim em si mesmo, mas um meio de beneficiar, nas melhores condições, do serviço principal do prestador.

Considerando a análise, que aqui sufragamos, no acórdão que temos vindo a citar “o exercício das atividades profissionais na área da saúde designadas por atividades paramédicas, encontra-se regulamentado pelo Decreto-Lei n.º 261/93, de 24 de julho, que estabelece as respetivas condições e naquelas inclui a Dietética, definida como a “[a]plicação de conhecimentos de nutrição e dietética na saúde em geral e na educação de grupos e indivíduos, quer em situação de bem-estar quer na doença, designadamente no domínio da promoção e tratamento e da gestão de recursos alimentares.” – artigo 1.º, n.º 3 do referido diploma e  n.º 5 da Lista anexa.

De acordo com o artigo 1.º, n.º 1 do citado Decreto-Lei n.º 261/93, as atividades paramédicas “compreendem a utilização de técnicas de base científica com fins de promoção da saúde e de prevenção, diagnóstico e tratamento da doença, ou de reabilitação”, visando assim, quer a fase de tratamento de um problema, quer a sua prevenção, sendo este último aspeto particularmente importante e sensível no domínio das doenças crónicas como a hipertensão e a diabetes, verdadeiros flagelos de saúde pública das sociedades modernas, cuja relação com a obesidade e a manutenção de hábitos sedentários é por todos conhecida.

Adicionalmente, o Decreto-Lei n.º 320/99, de 11 de agosto, em concretização da Base I da Lei n.º 48/90, de 24 de agosto (“Lei de Bases da Saúde”), veio definir os princípios gerais “em matéria do exercício das profissões de diagnóstico e terapêutica” e proceder à sua regulamentação, incluindo de forma expressa no seu âmbito a profissão de Dietista”.

Com a criação da Ordem dos Nutricionistas, através da Lei n.º 51/2010, de 14 de dezembro o exercício da profissão denominada de “nutricionista” ou “dietista” (como as testemunhas explicaram não há relevância na designação) está dependente de título profissional, a regras técnicas e deontológicas.

 

A prestação de serviços de aconselhamento nutricional através de consultas presenciais ou por meios telemáticos é, nos termos da legislação acima referida, enquadrável no âmbito da prestação de serviços paramédicos e, em consequência, subsumível à norma de isenção de IVA constante do artigo 9.º, 1) do Código deste imposto, segundo o qual:

 

“Artigo 9.º

Isenções nas operações internas

Estão isentas do imposto:

1) As prestações de serviços efetuadas no exercício das profissões de médico, odontologista, parteiro, enfermeiro e outras profissões paramédicas;

[…]”

 

Esta norma resulta da transposição do artigo 132.º, n.º 1, alínea c) da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, publicada no JO L 347, de 11 de dezembro de 2006, que estabelece a disciplina do “sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado” na União Europeia, adiante designada por “Diretiva IVA”. Dispõe a referida norma de direito europeu que são isentas (pelos Estados-Membros) “[a]s prestações de serviços de assistência efectuadas no âmbito do exercício de profissões médicas e paramédicas, tal como definidas pelo Estado–Membro em causa”.

Esta isenção, que resulta da anterior Sexta Diretiva  [(artigo 13.º, A), n.º 1, alínea c)], insere-se nas isenções em benefício das atividades de interesse geral, que visam reduzir o custo dos cuidados de saúde, tornando-os mais acessíveis aos particulares, como reiteradamente afirmado pelo Tribunal de Justiça – cf., a título de exemplo, os casos Dornier, C-45/01, de 6 de novembro de 2003, e Kügler, C-141/00, de 10 de setembro de 2002.

No que respeita à isenção aqui em análise, ela é aplicável aos serviços efetuados no exercício de profissões paramédicas, que, de acordo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça serão as que se configurem como serviços de assistência com uma finalidade terapêutica – Acórdãos Ygeia, C-394/04, de 1 de dezembro de 2005; Dornier, C-45/01; Kugler, C-141/00; e D. e W., C-384/98, de 14 de setembro de 2000.

Seguindo o acórdão que temos vindo a citar “O Tribunal de Justiça esclarece ainda que a finalidade terapêutica não tem de ser compreendida numa aceção particularmente restrita, considerando que as prestações efetuadas para fins de prevenção, que visem proteger a saúde humana, também são abrangidas”.

“Com efeito, mesmo nos casos em que as pessoas sejam objeto de exames ou de outras intervenções médicas e paramédicas de carácter preventivo e não sofram de qualquer doença ou anomalia de saúde, a inclusão das referidas prestações nos conceitos de assistência é conforme ao objetivo de redução do custo dos cuidados de saúde subjacente à isenção do artigo 132.º, n.º 1, alínea c) da Diretiva IVA. “Portanto, as prestações médicas efetuadas com a finalidade de proteger, incluindo manter ou restabelecer, a saúde das pessoas beneficiam da isenção” – Acórdãos L.u.P., C-106/05, de 8 de agosto de 2006; Unterpertinger, C-212/01, de 20 de novembro de 2003; D’Ambrumenil, C-307/01, de 20 de novembro de 2003; e Comissão/França, C-76/99, de 11 de janeiro de 2001”.

Para além disso ainda, e continuando na esteira do acórdão citado: “Relativamente à forma jurídica do sujeito passivo que fornece as prestações médicas ou paramédicas previstas na isenção de IVA, que no caso em apreciação é uma sociedade comercial, o Tribunal de Justiça também clarificou que a isenção não se limita às pessoas singulares, pois tal restrição não resulta do elemento gramatical e contraria o objetivo da isenção que é justificado pela necessidade de reduzir as despesas médicas e de favorecer o acesso à proteção da saúde, para além de que não se coordena ao princípio da neutralidade fiscal que postula idêntico tratamento para as pessoas singulares e para as pessoas coletivas. Segundo o Tribunal de Justiça, “basta que sejam preenchidas duas condições, a saber, que se trate de prestações médicas e que estas sejam fornecidas por pessoas que possuam as qualificações profissionais exigidas.” – Acórdão Kugler, C-141/00”.

A Requerente, no caso sub judice, como as testemunhas o explicaram, desenvolveu todo um programa de consultas de nutrição, realizadas por profissionais – devidamente acreditados pela Ordem dos Nutricionistas – que consubstanciam uma prática clínica.

Da prova que resulta dos autos é inequívoco que a Requerente desenvolveu um programa inovador com o escopo de prestar um serviço novo e autónomo – em relação aos demais que presta, nomeadamente de ginásio – com vista a captar nova clientela, o que se verificou.

Desta forma, encontram-se reunidos os requisitos indispensáveis e suficientes à aplicação da isenção de IVA prevista no artigo 9.º, 1) do CIVA.

É certo que a Requerida – ainda que não questione a prática clínica das consultas de nutrição e a sua mais-valia, mas tão-só o seu o caráter autónomo desses serviços. Mas, de entre os elementos de facto dados como provados releva demonstrar – como acontece in casu – que as consultas de nutrição se apresentam distintas e independentes dos demais serviços da Requerente – ainda que as consultas sejam realizadas no ginásio, têm um espaço autonomizado e diferenciado.

Ora, de entre a descrição factual dada como provada do ponto de vista de “consumidor médio” podemos concluir que estamos perante prestações distintas, com clientela distinta, com meios e profissionais distintos.

Neste âmbito, e seguindo a orientação do acórdão que temos vindo a citar, segundo o TJUE “(...) a “dupla circunstância de que, por um lado, do artigo 2.°, n.º 1, da Sexta Diretiva [artigo 2.º, n.º 1, alínea a) da Diretiva IVA] decorre que cada operação deve normalmente ser considerada distinta e independente e que, por outro, a operação constituída por uma única prestação no plano económico não deve ser artificialmente decomposta para não alterar a funcionalidade do sistema do IVA, importa assim, em primeiro lugar, procurar encontrar os elementos característicos da operação em causa para determinar se o sujeito passivo fornece ao consumidor, entendido como um consumidor médio, diversas prestações principais distintas ou uma prestação única […]. O mesmo se passa quando dois ou vários elementos ou atos fornecidos pelo sujeito passivo ao consumidor, entendido como consumidor médio, estão tão estreitamente conexionados que formam, objetivamente, uma única prestação económica indissociável cuja decomposição teria natureza artificial – Levob Verzekeringen, C-41/94. No mesmo sentido, veja-se o caso Aktiebolaget NN, C-111/05, de 29 de março de 2007.

A realização, a título oneroso, de uma prestação que não é indispensável para atingir o objetivo visado pela prestação “principal”, se bem que possa ser considerada muito útil para essa prestação, não será considerada uma prestação estreitamente conexa, conforme preconiza o Tribunal de Justiça no caso Ygeia, C 394/04, de 1 de dezembro de 2005.

Acresce que se o cliente tiver a faculdade de escolher os seus prestadores e/ou as modalidades de utilização dos bens ou serviços em causa, as prestações relacionadas com estes bens ou serviços podem, em princípio, ser consideradas distintas da operação dita “principal” – Acórdão Wojskowa Agencja Mieszkaniowa, C-42/14, de 16 de abril de 2015”.

 

Por conseguinte, também no caso concreto, as prestações de serviços são perfeitamente autonomizáveis – com meios humanos e materiais distintos – com clientela sem total coincidência e existem independentemente umas das outras.

Ainda que do plano comercial da Requerente se tenham estabelecido condições vantajosas que fomentam e promovem a adesão aos novos serviços de nutrição, tendo em vista o arranque dessa nova área de atividade,  assegurar maior oferta e apresentar um conceito vanguardista, com o intuito de fidelização dos clientes, não conduz à consideração destes como meramente acessórios à utilização do ginásio. Aliás, demonstra-se que há uma vasta clientela autónoma para os serviços de nutrição.

As consultas têm objectivos específicos e, com profissionais acreditadas, não dependem da prestação de serviços relativos ao ginásio.

Face ao exposto, conclui-se pela não acessoriedade das consultas de nutrição prestadas pela Requerente relativamente aos serviços de utilização de instalações desportivas e, em consequência, pela aplicabilidade da isenção prevista no artigo 9.º, 1) do Código do IVA, enfermando os atos tributários impugnados de erro de direito, pelo que devem ser anulados.

 

* * *

Por fim, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria inútil –artigo 608.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

IV.          Decisão

 

Termos em que se decide,

 

Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e declarar a ilegalidade do ato de indeferimento da reclamação graciosa e, em termos finais, das liquidações adicionais de IVA e respetivos juros compensatórios, identificadas no probatório, anulando-as.

            

Valor do processo

 

Em conformidade com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2 do CPC e 97.º - A, n.º 1 do CPPT e 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de 146.243,12 Euros.

 

Custas

Custas a suportar pela Requerida, no montante de 3.060,00 Euros, cf. artigo 22.º, n.º 4 do RJAT e da Tabela I anexa ao RCPAT.

 

Notifique.

 

Lisboa, 23 de dezembro 2019

 

O Tribunal Arbitral Coletivo,

 

José Poças Falcão

(Árbitro Presidente)

 

Francisco Nicolau Domingos

(Árbitro Vogal)

 

Marisa Almeida Araújo

 (Árbitro Vogal)

 

 

 

*************************************

 

Recurso extraordinário de revisão do acórdão: o fundamento previsto no artigo 696º, al. f), do CPC.

 

 

A - Breve síntese da situação do processo

 

Pelos  árbitros José Poças Falcão (árbitro presidente), Prof. Doutor Francisco Nicolau Domingos e Dra. Marisa Almeida Araújo (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 22 de maio de 2019, foi proferido, notificado às partes e transitou em julgado (em 3-2-2020) o acórdão de 23-12-2019,  que, julgando totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral, declarou a ilegalidade do ato de indeferimento da reclamação graciosa e, em termos finais, das liquidações adicionais de IVA e respetivos juros compensatórios, identificadas no probatório, anulando-as.

Após arquivamento do processo, veio a demandada, Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”), apresentar ao CAAD um pedido de recurso extraordinário de revisão daquele acórdão fundando-se,  no essencial para apreciação da admissibilidade deste recurso, na incompatibilidade desse acórdão com a decisão proferida pelo TJUE, em 04-3-2021 no âmbito do processo n.º C-581/19 [de que foi junta cópia], situação que, no entender da ora recorrente, além de vincular o Estado português, constituiria fundamento para a revisão da decisão arbitral citada na medida em que esta seria contrária à doutrina do TJUE sobre a mesma matéria em discussão em ambos os processos.

Por despacho do presidente do CAAD foi proferido, em 21-4-2021, o seguinte despacho: “(...)Com referência ao processo em epígrafe, remeta-se ao Tribunal Arbitral que proferiu a decisão o “Recurso Extraordinário de Revisão” apresentado pela Requerida, em 05-04- 2021.

Informe-se ainda de que, para efeitos de tramitação, foi retomada a fase do processo arbitral no Sistema de Gestão Processual.

Dê conhecimento.

Por decisão de 7-4-2021, foi declarado reconstituído o Tribunal e notificada a recorrida para se pronunciar sobre o pedido de admissão do recurso.

 

B - Os fundamento para o recurso extraordinário de revisão

 

É sabido e dispensamo-nos de grandes dissertações ou alongamentos na respetiva fundamentação, que a decisão do Tribunal sobre o mérito da causa, após trânsito em julgado, fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados, em geral, pelos artigos 580.º e 581.º, do CPC, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º, do mesmo CPC.

Estes últimos artigos (696.º a 702.º) constituem a base legal e/ou processual para a interposição de recurso, extraordinário, de revisão da decisão transitada, apesar de tudo sempre sujeito a prazo (em regra, a interposição deve ocorrer antes de transcorridos mais de cinco anos sobre o trânsito em julgado da decisão – cf. artigo 697.º-2, do CPC).

Pode afirmar-se que este recurso serve essencialmente para repor a justiça nos casos em que surjam factos ou situações, supervenientes ao trânsito, que a ponham clamorosamente em causa e que justifiquem, de algum modo, que seja imperativa a afetação, sempre de forma o mais possível equilibrada,  dos valores fundamentais da certeza e da segurança jurídicas[1].

O Código de Procedimento e de Processo Tributário (cf. artigo 293.º do CPPT), tal como todos os regimes processuais dos demais ramos do Direito, admitem o recurso de revisão, desde que interposto até quatro anos após trânsito da decisão revidenda e no prazo de 30 dias a contar do conhecimento dos factos ou circunstâncias que lhe servem de fundamento.

Relativamente à arbitragem tributária não há certamente qualquer razão válida para a inaplicabilidade do sobredito regime de revisão ainda que, nesta sede, tenha consagração o princípio da irrecorribilidade das decisões arbitrais ou da restrição dos recursos [cf. artigo 124.º-4/h), da Lei n.º 3-B/2010, através da qual a Assembleia da República concedeu ao Governo a autorização legislativa em que este se baseou para aprovar o Dec-Lei n.º 10/2011 (Regime de Arbitragem Tributária ou, abreviadamente, RJAT].

E qual deverá ser então o regime de recursos de revisão das decisões arbitrais em matéria tributária?

A resposta a esta questão não poderá ser outra se não a que resulta da situação de caso omisso, ou seja, a aplicação do regime previsto no artigo 293.º, do CPPT, que é a norma subsidiariamente aplicável por força do artigo 29.º-1, do RJAT.

Concluindo-se assim pela admissibilidade de recurso de revisão da decisão arbitral tributária, importa apurar se o fundamento ora invocado pela recorrente estará ou não preenchido, considerando serem patentes e não suscetíveis de discussão pelas partes,  quer o trânsito em julgado, quer a interposição no limite de quatro anos previsto no citado artigo 293.º, do CPPT (aplicável, como se viu, subsidiariamente), na redação dada pela Lei n.º 118/2019), quer ainda a competência do Tribunal Arbitral, ora reconstituído, para admitir (ou não) o recurso, quer finalmente a tempestividade da apresentação do requerimento de interposição no prazo de 30 dias (em 5-4-2021) após notificação da citada decisão do TJUE (em 4-3-2021)

Vejamos então.

Adiante-se, desde logo, que, conforme desde há muito tem sido repetidamente afirmado pela Jurisprudência (Cf., inter alia, Ac do Pleno da 2ª Secção do STA, de 7-6-1995, recurso n.º 5239, in DR – Apêndice de 31 de Março de 1997, pgs. 36-40 e Ac do  STA – 2ª Secção, de 23-4-1997, in  DR - Apêncide  de 9-10-1997, p. 1094) não tem o Tribunal, na fundamentação da decisão, o dever de dissecar e/ou analisar os argumentos aduzidos pelas partes mas tem apenas e  tão somente o dever de decidir a questão jurídica suscitada  e fundamentar a sua decisão

Funda-se o recurso na alínea f), do artigo 696.º, do CPC[2], aplicável subsidiariamente, como se viu, à arbitragem tributária [cf. ainda artigo 2.º-e), do CPPT].

Resulta desta norma a admissibilidade do recurso de revisão quando a decisão transitada em julgado “seja inconciliável com a decisão definitiva de uma instância internacional de recurso vinculativa para o Estado Português” (grifado ou negrito nosso).

Será então, como é o caso segundo os fundamentos do recurso, que uma decisão do TJUE, proferida em sede ou processo de reenvio prejudicial relativo a litígio em que o respetivo objeto tem contornos idênticos à questão que foi decidida na presente causa arbitral, por conduzir ou ter conduzido a solução diversa, constitui fundamento para a ora peticionada revisão?

Adiante-se desde já, decidida e claramente, ser negativa a resposta.

Na verdade e em primeiro lugar, no processo de reenvio prejudicial[3] para o TJUE, não está em causa a apreciação do mérito de qualquer causa mas tão só e apenas o sentido interpretativo do direito europeu, no caso, a Diretiva 2006/112/CE, do Conselho, de 28-11-2006 (a denominada “Diretiva IVA”)[4].

Assinale-se que o recurso prejudicial para o TJUE tem como objeto a colocação ao TJUE por um Tribunal da ordem jurídica nacional,  de uma questão ou várias questões com vista a resposta ou respostas por essa instância judicial europeia visando permitir ao Tribunal nacional a prolação de decisão conforme ao Direito da União Europeia na interpretação vinculativa que lhe for dada pelo TJUE.

A decisão a proferir ou proferida pelo TJUE no âmbito de processo de reenvio prejudicial, não visa assim e  claramente  revogar decisões judiciais proferidas por Tribunais nacionais – Cf., neste sentido, v. g., o Acórdão da Relação de Lisboa, no processo n.º 1832/16.9T8LSB.L2/6ª Secção, in www.dgsi.pt.

Por conseguinte, não é correto falar-se, na circunstância, de “decisão definitiva de instância internacional de recurso”.

Por outro lado, não preenche o requisito de revisão ora em causa, a circunstância de, numa ação ou procedimento, ter havido uma decisão, por uma instância internacional, sem a clara e expressa referência concreta a algum ou alguns processos decididos pela ordem jurídica nacional, implicando de algum modo o sentido das decisões proferidas.

Assim é que, na linha da jurisprudência arbitral se não unânime, pelo menos largamente maioritária que no essencial igualmente se sufraga, revelada, entre outros, nos despachos cujas cópias foram juntas pela recorrida com as suas alegações sobre o pedido de admissão do recurso (Despachos nos processos do CAAD n.ºs 169/2019-T, 164/2019-T, 159/2019-T, 170/2019-T, 161/2019-T, 160/2019-T e 373/2018-T), o recurso ora interposto não pode ser admitido.

 

C - Decisão

 

Não se revelando, deste modo,  preenchido o pressuposto em que se funda o pedido de recurso de revisão formulado pela Autoridade Tributária e Aduaneira, ou seja e designadamente, a decisão do TJUE invocada não foi proferida por instância internacional de recurso, o recurso de revisão formulado pela AT é indeferido.

Naturalmente que se revela manifestamente inútil, por ficar prejudicada com esta decisão (Cf. artigos 130.º e 608.º/2, do CPC),  a apreciação dos demais requisitos previstos  no citado artigo 696.º/f), do CPC e a que se aludiu supra de forma incidental, designadamente se a decisão proferida pelo TJUE no citado processo C-581/19, poderá ser considerada como decisão inconciliável com a decisão arbitral revidenda e vinculativa para o Estado português para efeitos daquela norma.

 

·         Notifique-se

·         Publique-se esta decisão nos termos do disposto no artigo 16.º, alínea g), do RJAT.

Lisboa, 5 de julho de 2021

 

O Tribunal Arbitral Coletivo,

 

José Poças Falcão

(Árbitro Presidente)

 

Francisco Nicolau Domingos

(Árbitro Vogal)

 

 Marisa Almeida Araújo

 (Árbitro Vogal)



[1] “Constitui uma válvula de segurança do sistema por forma a possibilitar a reparação de um erro ou injustiça grave cometidos numa reponderação do decidido” (Ricardo de Oliveira e Sousa, A Revisão de Sentenças Judiciais no Ordenamento Jurídico Português, in Revista “Julgar On Line, julho de 2016).

[2] A possibilidade de revisão por incompatibilidade da decisão nacional transitada com a decisão de uma instância internacional de recurso, vinculativa para o Estado português, constituiu uma inovação do DL n.º 303/2007 e derivou da necessidade de endereçar o problema da falta de meios internos de execução das decisões do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), conforme resulta do preâmbulo do citado diploma, dirigindo-se aos casos em que uma decisão nacional transitada em julgado tenha violado a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (Cf. Maria José Rangel de Mesquita, Introdução ao Contencioso da União Europeia, Almedina, 2015, pg. 219).

O STA, em acórdão de 2-7-2014, no processo 0360/13, publicado em www.dgsi.pt, considerou que um acórdão do TJUE proferido no âmbito de processo, por incumprimento, movido contra o Estado português, assume um caráter vinculativo para este e é suscetível de recurso de revisão, verificados que sejam os demais pressuposto da norma do artigo 771.º-f), do CPC então em vigor e correspondente ao atual 696.º.

[3] O instituto jurídico do reenvio prejudicial não é uma via de recurso, mas antes um processo especial de cooperação direta, tendente a garantir a uniformidade dos efeitos jurídicos das normas de direito da EU através de todo o seu território (cf. Luísa Lourenço,  O Reenvio Prejudicial para o TJUE e os Pareceres Consultivos do Tribunal EFTA,  in Revista Julgar n.º 35, 2018.

[4] Cf. artigo 167.º, do TFUE (Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia).