Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 616/2017-T
Data da decisão: 2018-06-18  IMT  
Valor do pedido: € 3.049.016,28
Tema: IMT - Resolução do contrato – Ineficácia - Fundamentação do acto tributário.
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Decisão Arbitral

 

 

            Os árbitros Dr. Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente, designado pelos outros Árbitros), Prof. Doutor Francisco José Nicolau Domingos e Dr. Jesuíno Alcântara Martins, designados, respectivamente, pela Requerente e pela Requerida, para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 15-02-2018, acordam no seguinte:

 

1. Relatório

           

            A…, Lda, NIPC …, com sede na Rua…, n.º … -…, …-… em ..., veio, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea a), artigo 10.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, e dos artigos 96.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), apresentar pedido de constituição de tribunal arbitral e de pronúncia arbitral contra as liquidações de IMT referentes ao acto de transmissão verificado no ano de 2007, cujo montante total foi de € 3.049.016,28 (três milhões quarenta e nove mil e dezasseis Euros e vinte e oito cêntimos).

            Este valor foi liquidado pela Autoridade Tributária e Aduaneira através dos Documentos n.ºs … (no valor de € 343.844,52), … (no valor de € 255.066,21), … (no valor de € 323.049,11), …  (no valor de € 306.926,91), … (no valor de € 311.329,86), … (no valor de €29.528,87), … (no valor de € 285.274,42), … (no valor de € 292.989,17), … (no valor de € 309.869,46) ([1]), … (no valor de € 294.289,03), e … (no valor de € 296.848,72) (documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido).

            A Requerente pede a devolução do montante pago, com juros indemnizatórios.

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 27-11-2017.

Na sequência de renúncia do Árbitro inicialmente designado, a Requerente designou como Árbitro o Prof. Doutor Francisco José Nicolau Domingos, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea b), do RJAT.

Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 6.º e do n.º 3 do RJAT, e dentro do prazo previsto no n.º 1 do artigo 13.º do RJAT, o dirigente máximo do serviço da Administração Tributária designou como Árbitro o Dr. Jesuíno Alcântara Martins.

Os Árbitros designados pelas Partes designaram Árbitro Presidente o Cons. Jorge Lopes de Sousa, que aceitou a designação.

Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 7 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do CAAD informou as Partes dessa designação em 25-01-2018.

Assim, em conformidade com o preceituado no n.º 7 artigo 11.º do RJAT, decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artigo 13.º do RJAT sem que as Partes nada viessem dizer, o Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 15-02-2018.

A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou Resposta, em que, para além de indicar deficiências do pedido de pronúncia arbitral, suscitou as excepções de inimpugnabilidade dos actos tributários (com intempestividade do pedido de constituição de tribunal arbitral), da caducidade do pedido de anulação por facto superveniente, da incompetência parcial do Tribunal Arbitral e da litispendência.

Para além disso, a Administração Tributária e Aduaneira defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.     

Em 26-03-2018, a Requerente veio juntar uma certidão em que se refere a data do trânsito em julgado da decisão do processo n.º .../11...TVLSB, que correu termos no tribunal da Comarca de Lisboa.

Por despacho de 12-04-2018, foi indeferido o requerimento de produção de prova testemunhal, dispensada a realização de reunião e decidido que o processo prosseguisse com alegações escritas.

As Partes apresentaram alegações, tendo a Requerente juntado documentos.

A Autoridade Tributária e Aduaneira, depois das alegações, veio juntar documentos e requerer a realização de diligência pelo Tribunal Arbitral, o que foi indeferido.

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.

            As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

            Não há nulidades nem obstáculos à apreciação do mérito da causa.

 

           

            2. Matéria de facto

 

            2.1. Factos provados

 

            Consideram-se provados os seguintes factos:

 

  1. A Requerente A… Lda, NIPC … adquiriu por cisão-fusão com a B…, SA, NIPC…, através de escritura notarial celebrada em 03-07-2007 no Cartório Notarial de Lisboa do Notário C…, 101 imóveis correspondentes aos lotes autorizados no Alvará de Loteamento nº …/…com os seus aditamentos emitidos pela Câmara Municipal de…, designados por fase 5ª e 6ª que seriam implantados na Urbanização da…;
  2. Os lotes referenciados estavam previstos no citado Alvará …/…correspondendo a uma autorização de loteamento sem emissão de licenças de construção legais para os imóveis previstos na 5ª e 6ª fase;
  3. Com base nesse Alvará …/… foram abertas as descrições prediais na Conservatória do Registo Predial de …, tendo a cada lote nele previsto sido atribuído um número matricial com a descrição prevista no Alvará;
  4. A Administração Tributária e Aduaneira emitiu as liquidações de IMT relativas à transmissão dos 101 imóveis, que constam dos Documentos n.ºs … (no valor de € 343.844,52), … (no valor de € 255.066,21), … (no valor de € 323.049,11), … (no valor de € 306.926,91), … (no valor de € 311.329,86), … (no valor de €29.528,87), … (no valor de € 285.274,42), … (no valor de € 292.989,17), … (no valor de € 309.869,46), … (no valor de € 294.289,03), e … (no valor de € 296.848,72) (documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido e processo administrativo);
  5. Em 03-07-2007, a Requerente procedeu ao pagamento do IMT relativo à transmissão dos 101 imóveis (documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  6. Por sentença do … Juízo da 1.ª Secção Comércio do Tribunal da Comarca de Lisboa, Instância Central, datada de 09-02-2015, rectificada por despacho de 29-06-2015, proferida a seguinte decisão:

(i) Julgo a presente acção procedente e declaro resolvida, com todos os efeitos legais, a cisão-fusão das sociedades “A…, Lda”, pessoa coletiva nº … e “B…, SA”, pessoa colectiva nº…, outorgada por escritura pública lavrada em 3 de Julho de 2007 no Cartório Notarial de Lisboa do Notário C…, exarada de folhas 89 a 92 do livro de notas número 66 daquele Cartório.

ii) determino que, após trânsito, seja remetida certidão da presente sentença à Conservatória do Registo Comercial de Lisboa e à Conservatória do Registo Predial de …, bem como certidão da escritura pública lavrada em 3 de Julho de 2007 no Cartório Notarial de Lisboa do Notário C…, que se encontra a fls. 89 a 161 dos autos, por forma a poderem ser identificados todos os registos decorrentes da cisão-fusão, designadamente:

a) Os registos de aquisição, a favor da Autora, por “Transmissão por Transferência de Património”, com a “Causa: Cisão-Fusão”, dos 101 (cento e um) prédios devidamente identificados na Escritura de fls. 89 a 161 dos autos, e que aqui se dão por integralmente reproduzidos -inscrição “Ap. ... de 2007/07/04”;

b) O registo da “Cisão/Fusão, Aumento de Capital e Alteração do Contrato de Sociedade”, a que corresponde a “Insc 2 Ap. …/…” referente à A…, Lda”, pessoa colectiva nº…;

c) O registo da “Cisão”, a que corresponde a “Insc 4 Ap. …/…” referente à “A…, S.A.”, pessoa colectiva nº… .

 

  1. Em 14-11-2007, a Câmara Municipal de… (CM…) aprovou os projectos das obras de urbanização relativas às 5ª e 6ª fases e a "aferição do valor a liquidar quando da emissão do alvará de loteamento ” (de acordo com a “Tabela de 2007”) fixando o respectivo montante em € 18.218.699,78 (ponto 39 da sentença junta pela Requerente como documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  2.  Com a emissão do Aditamento n.º 4, que autorizou a realização das obras de urbanização para as 5ª e 6ª fases, foram liquidadas pela Câmara Municipal de … as taxas correspondentes (sentença referida, ponto 41);
  3. Em 16-4-2008, a Câmara Municipal de … emitiu o Aditamento n.º 4 ao alvará de loteamento n.º…/…, que titula a aprovação do projecto das obras de urbanização para os prédios sitos na 5ª e 6ª fases da …;
  4. A transferência parcial do património da B… para a Requerente visava, nos termos que constam do contrato, “assegurar melhores condições de promoção e financiamento bancário das construções a realizar nos lotes de terreno para construção”, o que constituiu o motivo determinante do contrato» (cláusula 7.ª do contrato-promessa) (sentença referida, ponto IV.2. O Direito), por a B… não possuir essas condições (artigo 33 da petição do processo de impugnação judicial n.º …/12…BELRS, junta com a resposta como documento n.º 3, cujo teor se dá como reproduzido);
  5. Do contrato-promessa constava que os «lotes de terreno para construção estão devidamente licenciados pela Câmara Municipal de …, não existindo quaisquer entraves e condicionamentos à emissão das licenças de construção dos edifícios previstos no alvará de loteamento» (cláusula 33) (sentença referida, ponto IV.2. O Direito);
  6. Por decisão de 05-05-2009, a CM…, «com fundamento na falta de pagamento das taxas devidas de acordo com o regulamento considerado aplicável», suspendeu o alvará de loteamento respeitante às 5ª e 6ª fases da …, correspondente aos prédios transferidos para a ora Requerente, mantendo-se esta «impedida de obter as condições de promoção e de financiamento bancário das construções que pretendia realizar naqueles lotes de terreno» (sentença referida ponto IV.2. O Direito);
  7.  Os terrenos transmitidos para a Requerente viram o seu valor comercial substancialmente reduzido (ainda que tivessem o alvará de loteamento não suspenso), em cerca de 50 a 60% do seu valor original (sentença referida ponto IV.2. O Direito);
  8. A solicitação da Requerente, um Oficial de Justiça do … Juízo da 1.ª Secção Comércio do Tribunal da Comarca de Lisboa, emitiu, em 15-10-2017, a certidão que consta do documento junto pela Requerente em 26-03-2018, cujo teor se dá como reproduzido, em que, além do mais, é certificado narrativamente que «a sentença foi proferida a 09-02-2015, com rectificação a 29-06-2015, com trânsito em julgado a 01-10-2015»;
  9.  Em 14-12-2015, a Requerente reclamou graciosamente das liquidações de IMT referidas nos autos, solicitando a devolução das quantias pagas, ao abrigo do artigo 43.º n.º 2 do CIMT, dando origem aos processos de reclamação graciosa n.º… 2016…, …2016… e …2016… (processo administrativo);
  10. Na sua reclamação, que consta do processo administrativo, cujo teor se dá como reproduzido, a Requerente refere, além do mais, o seguinte:

      «(...) VEM AO ABRIGO DO DISPOSTO DO ARTIGO 43.º, n.º 2, DO CIMT deduzir RECLAMAÇÃO GRACIOSA com base em FACTO SUPERVENIENTE (...)»

12. O FACTO JURÍDICO TRANSLATIVO QUE ORIGINOU O IMT DESAPARECEU RETROACTIVAMENTE POR DECISÃO JUDICIAL TRANSITADA NA ORDEM JURÍDICA.

13. O facto jurídico relevante gerador da obrigação de pagar IMT (transmissão do património predial) foi erradicado da Ordem Jurídica por sentença transitada em julgado tendo sido eliminadas todas as referências e registos - Comerciais e Prediais - a ela reportados.

14. O IMPOSTO NÃO É DEVIDO POR NÃO HAVER TRANSMISSÃO IMOBILIÁRIA VÁLIDA.

15. Aquilo que sustenta teoricamente a tributação do IMT é o enriquecimento do adquirente que - entende-se - deverá legitimar o pagamento de Imposto Municipal por ser esta a entidade que fornece as comodidades e externalidades aos proprietários dos imóveis sitos no Município.

16. NO CASO EM ANÁLISE NÃO HÁ TRANSMISSÃO IMOBILIÁRIA VÁLIDA.

17. NOS TERMOS DA LEI O IMPOSTO PAGO DEVERÁ SER DEVOLVIDO À REQUERENTE ACRESCIDO DOS JUROS LEGAIS DEVIDOS.

 

  1. A Administração Tributária e Aduaneira considerou a reclamação graciosa como se fossem várias reclamações, que indeferiu com os fundamentos que constam da Informação cuja cópia consta do documento n.º 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, em que se refere, além do mais, o seguinte:

«Através do ofício n.º…, de 2016.0728, a Divisão de Justiça Administrativa da DF de Lisboa, solicita a pronúncia por parte desta Direção de Serviços, acerca do enquadramento e procedimentos a adotar, com referência à factualidade apresentada, tendo em vista a apreciação de procedimentos de reclamações graciosas apresentadas pela sociedade A…, SA.

FACTOS:

1. Por escritura pública de cisão-fusão realizada em 2007.07 03, transitaram do património da empresa cindida B…, SA, com o NIPC…, para a sociedade incorporante B…, SA, onze imóveis inscritos na matriz predial urbana da freguesia e concelho de …

2. Pelas referidas transmissões, houve lugar à liquidação e pagamento de IMT no montante global de 3 049 016,28€, pela sociedade incorporante.

3. Reconduzindo-se aquela transmissão à 1ª transmissão na vigência do IMI. houve lugar a avaliação para determinação dos respetivos valores patrimoniais de acordo com as normas do CIMI.

4. Na sequência dos novos VPTs foram emitidas liquidações adicionais de IMT e de IS (verba 1.1 e 28) e de IMI.

5. Os novos VPTs foram objeto de impugnação Judicial, motivando o processo n º …/11 …BELRS (SICJUT …2011…).

6. As liquidações adicionais de IMI/2007, no montante de 4.713.001,62€, foram objeto de impugnação judicial motivando o processo n.º…/12…. BELRS (SICJUT/…).

7. Ao abrigo do preceituado no n.º 4, do artigo 70.º do CPPT, e invocando a título de facto superveniente, o trânsito em julgado, em outubro de 2015, da sentença que declarou resolvida a cisão-fusão das referidas sociedades, a sociedade incorporante reagiu contra as liquidações de IMT, deduzindo reclamação graciosa.

8. Com idêntico fundamento, em março de 2016, reclamou graciosamente das liquidações adicionais de IMT, tendo estas sido apensadas à impugnação judicial n º…/12…BELRS

 

SÍNTESE DAS ALEGAÇÕES DA RECLAMANTE:

A reclamante invocou como causa para o pedido de resolução da operação de cisão-fusão, a alteração substancial das circunstâncias em que as partes haviam fundado a decisão na génese daquela operação, logrando a resolução (judicial) do negócio com efeitos retroativos.

Em consequência da resolução o negócio jurídico foi declarado resolvido e erradicado da ordem jurídica com efeito retroactivo"

Conclui então que "o imposto não é devido por não haver transmissão imobiliária válida, pelo que requer a devolução do imposto pago, acrescido dos juros legais devidos.

 

APRECIAÇÃO:

De acordo com o preceituado no artigo 437.º do Código Civil, a modificação anómala das circunstâncias envolventes e motivadoras do negócio, quando lesiva e alheia à vontade das partes pode fundar o direito à resolução do negócio pela parte lesada.

Na factualidade em apreço, a operação de cisão-fusão teve como escopo assegurar melhores condições de promoção e financiamento bancário das construções a realizar nos lotes de terreno para construção".

A ocorrência em momento posterior, de diversos constrangimentos entre a Recorrente e a edilidade, relacionados com o não pagamento de taxas camarárias e com diferendos entretanto surgidos, determinou o recurso à via judicial, motivando que o objeto do negócio se tenha tornado impossível, inviabilizando o exercício da atividade de promoção imobiliária e a obtenção do necessário financiamento bancário.

Atento o circunstancialismo descrito, foi pedida a resolução do negócio, tendo o Tribunal de Comércio declarado resolvido o negócio, com o efeito previsto na 1ª parte do n.º 1, do artigo 434.º do Código Civil, ou seja, com efeito retroativo, motivando para as partes, o surgimento da obrigação de devolução de tudo quanto haja sido recebido em função da celebração do negócio validamente celebrado, entretanto resolvido

Decorre do disposto no n.º 1, do artigo 38.º da LGT, que a ineficácia dos negócios jurídicos (ainda que dotada de eficácia retroativa) não determina de per si, no plano tributário, a restituição das importâncias despendidas a título de imposto, considerando-se justificada a tributação, desde que, em consequência do negócio celebrado, se tenham produzido os efeitos económicos pretendidos pelas partes.

Espelha aquele preceito legal, a prevalência que em determinadas situações é conferida pelo direito tributário à vertente económica dos negócios. Como na factualidade em apreço, se está em presença de um negócio com eficácia real, translativo da propriedade (ainda que por via indireta), uma vez que a fusão operou a transferência da propriedade dos imóveis para a sociedade incorporante, efeito económico querido pelas partes, mostra-se por esse facto, devida a tributação.

No atinente ao pedido de devolução do IMT pago, alegando não ser devido o imposto por não haver transmissão/imobiliária válida, cremos não lhe assistir razão, porquanto o negócio ora resolvido, existiu validamente e manteve a sua eficácia, desde a outorga do respetivo contrato até ser objeto de resolução pelo tribunal.

Para que se colocasse a possibilidade de devolução do imposto, nos moldes invocados pela Reclamante, ou seja, considerando-se não existir uma transmissão imobiliária válida, tornar-se-ia imprescindível apurar da existência de um vício gerador de invalidade (absoluta ou relativa) assacável ao negócio, pois não olvidando que o negócio foi realizado, só o negócio reputado de nulo, ou anulado, se pode considerar como não tendo sido realizado, para efeitos de subsunção ao disposto no artigo 44.º do CIMT.

O negócio em apreço não mereceu nenhum juízo de desvalor ou desconformidade com a ordem jurídica.

Na factualidade subjacente, na sequência de ação interposta para o efeito, o tribunal julgando verificado o requisito previsto no artigo 437.º do CC (o qual não se reporta de forma alguma à validade do contrato), declarou resolvido (extinto) o negócio.

A destruição do negócio operada pela resolução foi motivada por circunstâncias externas ao negócio e não vícios decorrentes do mesmo, que o inquinassem tornando-o nulo ou anulável.

A resolução não se verificou em consequência de um qualquer vício gerador de invalidade (absoluta ou relativa), antes decorrendo da verificação de circunstâncias objetivas, as referidas alterações supervenientes das circunstâncias que fundaram a decisão de contratar, alheias à vontade das partes e que a lei, no artigo 432.º do CC releva para efeitos de extinção do negócio válido.

O artigo 434.º do CC, equipara no plano das repercussões entre as partes contratantes, os efeitos da resolução do negócio, aos da nulidade ou anulabilidade, querendo com isto significar que aquelas se constituem na obrigação de restituir reciprocamente tudo o que hajam recebido da outra, em função do negócio, reconstituindo-se tanto quanto possível a situação que existiria se não tivesse sido realizado o negócio. O artigo 45.º do CIMT contempla especificamente a figura da resolução do negócio, como causa suscetível de fundar a anulação proporcional do imposto pago, operando através dos mecanismos da reclamação graciosa e da impugnação judicial.

"Este artigo pressupõe a realização do acto ou facto translativo e a sua subsequente inutilização".

Em conformidade como disposto no nº 2, desse mesmo artigo, o prazo para reclamar conta-se a partir da ocorrência do facto resolutivo, na vertente situação, atento o disposto no n.º 2, do artigo 43.º do CIMT, a partir da data do trânsito em julgado da sentença que declarou resolvida a Cisão-Fusão.

A anulação proporcional realiza-se de acordo com o estabelecido no n.º 3, daquele preceito legal, ou seja, multiplicando-se a sua oitava pelo número de anos completos que ainda faltem para oito. Atento o exposto, importa aferir, em face dos elementos concretos, da possibilidade de se efetuar a anulação prevista no artigo 45 º.

• Liquidação- 2007-07-03

• Prolação da sentença- 2015-02-09

• Trânsito em julgado- 2015-10-01

Datando as liquidações sindicadas de 2007-07-03, o termo do prazo de oito anos aí estabelecido ocorreu indubitavelmente em 2015.

Considerando a data do trânsito em julgado, como termo inicial para o cômputo do número de anos completos que, com referência à data da transmissão ainda pudessem faltar para oito, confirma-se que em 2015 já não seria possível proceder à anulação proporcional do IMT, porquanto se estaria no oitavo e último ano daquele prazo, e como tal não remanesceria nenhum ano completo, que legitimasse, de acordo com o preceituado no n.º 3 do artigo 45º do CIMT, aquela anulação.

 

  1. Nas decisões das reclamações graciosas a Administração Tributária e Aduaneira pronunciou-se sobre os pressupostos processuais, considerando, além do mais, que foi apresentado tempestivamente o pedido;
  2. Em Março de 2016, a Requerente reclamou graciosamente de liquidações adicionais de IMT, relativas à transmissão dos imóveis referidos nos autos, que foram apensadas à impugnação judicial n º .../12...BELRS;
  3. A Requerente e a B…, S.A. apresentaram no Tribunal Tributário de Lisboa uma impugnação judicial, que tem o n.º …/11…BELRS (documento n.º 1 junto com a resposta, cujo teor se dá como reproduzido);
  4. A impugnação judicial referida na alínea anterior tem por objecto a fixação dos valores patrimoniais tributários dos imóveis referidos nos autos, resultantes de segundas avaliações;
  5. A impugnação judicial referida foi decidida pela sentença que consta do documento n.º 1 junto com a resposta e dela foi interposto recurso pela Administração Tributária e Aduaneira, nos termos do documento n.º 2 junto com a resposta, cujo teor se dá como reproduzido;
  6. Em 10-01-2012, a Requerente apresentou no Tribunal Tributário de Lisboa uma impugnação judicial, que tem o n.º …/12…BELRS, em que impugna a decisão de indeferimento de reclamação graciosa de liquidações adicionais de IMT relativas aos imóveis referidos nos autos (documento n.º 3 junto com a resposta, cujo teor se dá como reproduzido);
  7. Em 28-11-2011 e 20-06-2014, foram registadas na … Conservatória do Registo Predial de … penhoras sobre seis lotes de terreno transmitidos para a Requerente, situação que se mantinha em 09-01-2018, sendo a Requerente indicada como a proprietária dos lotes (documento n.º 4 junto com a resposta, cujo teor se dá como reproduzido);
  8. Em 07-03-2013, foi registada hipoteca voluntária sobre três prédios transmitidos para a Requerente (documento n.º 5 junto com a resposta, cujo teor se dá como reproduzido);
  9. Em 09-12-2010, foi registada hipoteca voluntária sobre nove prédios transmitidos para a Requerente (documento n.º 6 junto com a resposta, cujo teor se dá como reproduzido);
  10. O indeferimento das reclamações graciosas foi notificado à Requerente por carta expedida em 14-09-2017 (processo administrativo);
  11. Em 25-11-2017, a Requerente apresentou o pedido de constituição de tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.

 

      2.2. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto

 

Não há factos relevantes para decisão da causa que não se tenham provado.

Os factos provados baseiam-se no processo administrativo e nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral, não havendo controvérsia sobre eles.

           

 

3. Questão da incompetência parcial do Tribunal Arbitral em razão da matéria

 

 

A Administração Tributária e Aduaneira suscita a excepção da incompetência do Tribunal Arbitral para apreciar o «vício de forma (partindo do pressuposto que este último se reporta à decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa), porquanto a apreciação de tal matéria extravasa as competências que lhe estão reservadas por lei».

Examinando o pedido de pronúncia arbitral não se detecta qualquer imputação de vício de forma à decisão da reclamação graciosa, designadamente por falta de fundamentação.

A única referência a vício de falta de fundamentação é a que consta da parte final em que a Requerente defende que «deverão as liquidações suprarreferidas ser declaras nulas por violação de lei (inexistência de facto tributário juridicamente válido) e falta absoluta de fundamentação».

No entanto, a Requerente, nas alegações, alude à falta de fundamentação da decisão da reclamação graciosa, apesar de dizer que o pedido é de declaração de ilegalidade das liquidações.

Quanto um acto de segundo grau aprecia a legalidade de outros actos e os mantém na ordem jurídica, alterando a sua fundamentação, ocorre revogação destes por substituição, passando a existir na ordem jurídica novos actos, com o sentido dos primeiros, mas com a nova fundamentação.

«No âmbito do tipo de actos administrativos que reiteram ou reproduzem a definição jurídica e a estatuição de acto anterior, não são meramente confirmativos os que representam uma novação da vontade resolutiva da Administração. Novação que se pode revelar por ter ocorrido alteração da situação factual ou do regime jurídico ou por adição de novos fundamentos que expressem a vontade administrativa de representação da anterior decisão». ([2])

No caso dos autos, em que foi invocada em reclamação graciosa a invalidade de liquidações com fundamento em facto superveniente, é manifesto que a decisão de indeferimento não é meramente confirmativa das liquidações, pois reconduz-se necessariamente à manutenção destas na ordem jurídica nas novas circunstâncias de facto e de direito, que implicam a uma alteração da fundamentação, pois a inicial já não basta para assegurar a legalidade daquelas.

Isto é, a situação gerada com a decisão da reclamação graciosa que manteve as liquidações com os novos fundamentos é equivalente à emissão de novas liquidações com estes novos fundamentos, pelo que podem enfermar de qualquer vício, inclusivamente a falta de fundamentação, indispensável em todos os actos lesivos (artigo 268.º, n.º 3, da CRP).

Trata-se, assim, de situação que não se confunde com as decisões de reclamações graciosas de natureza meramente confirmativa, que se limitam a manter as liquidações impugnadas sem alterar os fundamentos em que se basearam. Quando a decisão da reclamação graciosa tem natureza meramente confirmativa, a insuficiência da sua fundamentação não tem efeito invalidante das liquidações, pois mantém-se a fundamentação inicial. Mas, nos casos em que há alteração dos pressupostos em que assentaram as liquidações iniciais ou é alterada a fundamentação para as manter na ordem jurídica, as renovadas liquidações estão sujeitas a todas as exigências, inclusivamente a de fundamentação. E, constando a sua fundamentação da reclamação graciosa, é óbvio que a sua falta constituirá ilegalidade das liquidações renovadas.

Assim, tendo este Tribunal Arbitral competência para apreciar a legalidade de liquidações [artigo 2,º, n.º 1, alínea a), do RJAT] e podendo estas serem impugnadas com fundamento em qualquer ilegalidade, inclusivamente «ausência ou vício da fundamentação legalmente exigida» [artigo 99.º do CPPT, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT] é manifesto que a apreciação do vício de falta de fundamentação se enquadra nas competências deste Tribunal Arbitral.

Improcede, assim a excepção de incompetência suscitada pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

 

4. Questão da litispendência

 

A Administração Tributária e Aduaneira suscita a questão da litispendência por estar pendente no Tribunal Tributário de Lisboa impugnação judicial, que tem o n.º .../12...BELRS, em que a Requerente impugna a decisão de indeferimento de reclamação graciosa de liquidações adicionais de IMT relativas aos imóveis referidos nos autos.

A litispendência ocorre quando se repete uma causa, ocorrendo repetição «quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir» [artigos 580.º e 581.º, n.º 1, do CPC, subsidiariamente aplicável, por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT].

Nos termos do n.º 3 do mesmo artigo 581.º «há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico».

Pretendendo a Requerente nesse processo de impugnação judicial anular as liquidações adicionais e no presente processo arbitral as liquidações iniciais, é manifesto que os efeitos jurídicos que a Requerente pretende obter nos dois processos são distintos.

Por isso, não havendo identidade de pedidos, improcede a excepção da litispendência.

 

 

5. Questão da inimpugnabilidade dos actos tributários e intempestividade do pedido de constituição de tribunal arbitral

 

 

A Administração Tributária e Aduaneira defende que, «embora o pedido de pronúncia arbitral tenha sido apresentado tempestivamente à luz da notificação das decisões de indeferimento das Reclamações Graciosas (dado que não decorreram mais de 90 dias entre aqueles dois eventos), certo é que as liquidações de IMT sub judice não são impugnáveis, porquanto encontravam-se consolidadas na ordem jurídica à altura da dedução daquelas reclamações e, por conseguinte, já havia caducado o direito de reagir contra elas por parte da Requerente».

A Administração Tributária e Aduaneira extrai tal conclusão de considerações que faz sobre o hipotético trânsito em julgado da sentença proferida no processo n.º …/11…TVLSB, que entende que ocorre com o termo do prazo para interposição de recurso. Com o decurso deste prazo, na tese da Administração Tributária e Aduaneira, «a sentença ficou definitivamente consolidada na ordem jurídica a 2015-03-26».

No entanto, o Oficial de Justiça do … Juízo da 1.ª Secção Comércio do Tribunal da Comarca de Lisboa, Instância Central, certificou que o trânsito em julgado da sentença ocorreu em 01-10-2015.

De harmonia com o disposto no artigo 628.º do CPC, «a decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação».

Tanto o recurso como a reclamação são formas de impugnação de decisões judiciais e, por isso, tanto obsta ao trânsito em julgado o recurso como a reclamação.

Consequentemente, só se pode concluir que uma sentença transitou em julgado se decorreram os prazos do recurso e da reclamação e nenhum destes meios de impugnação foi utilizado.

Por isso, do facto de não ter sido interposto recurso e ter decorrido o respectivo prazo não se pode extrair a conclusão de que a sentença transitou em julgado.

A arguição de nulidades da sentença, quando dirigida ao juiz que proferiu a decisão, consubstancia «reclamação», para este efeito, como há muito se entende, de acordo com a máxima tradicional «das nulidades reclama-se, dos despachos recorre-se» ([3]). O mesmo sucederá com o pedido de rectificação invocando lapso material formulado dentro do prazo de reclamação, quando se concluir que a alteração introduzida não deve ser considerada uma mera rectificação de um lapso material, por alterar ou for aditamento ao que ficou decidido. Não pode ser qualificada como rectificação uma alteração da parte decisória cuja incorrecção material se não detectava da leitura do respectivo texto.  ([4])

Se foi apresentada tempestivamente alguma reclamação, o trânsito em julgado apenas se forma quando estiver transitada em julgado a decisão que a apreciar. O facto de as nulidades da sentença deverem ser arguidas em recurso, quando ele é admissível, não obsta a que, se, indevidamente, as nulidades forem arguidas perante o juiz que proferiu a decisão, o trânsito em julgado não se forme antes de a reclamação ser apreciada por decisão transitada em julgado, pois a alteração introduzida na sentença pode ser impugnada, nos termos do art. 617.º, n.ºs 4 e 6, do CPC. Não se pode considerar o mérito da reclamação, nomeadamente pela questão formal de não ter sido deduzida em recurso, para, retroactivamente, considerar o trânsito independentemente dela, o que se confirma pelo art. 670.º, n.º 2, do CPC ([5]). Só a «decisão impugnada através de incidente manifestamente infundado considera-se, para todos os efeitos, transitada em julgado» (art. 670.º, n.º 5, do CPC). ([6])

Nas suas alegações a Autoridade Tributária e Aduaneira defende que o pedido de rectificação não constitui reclamação, mas, mesmo que se entenda que a «correcção» efectuada no despacho de 29-06-2015 cabe no conceito de «rectificação», conclui-se desse despacho que a Requerente não apresentou apenas um pedido de rectificação por «erro de escrita», pois formulou também um «pedido de esclarecimento», como resulta explicitamente do despacho de 29-06-2015:

 

«Tem efectivamente razão a A, no que respeita ao apontado erro de escrita de que a sentença padece, o qual, nos termos do art. 614.º do CPC passa a corrigir-se.

Quanto ao pedido de esclarecimento da decisão em razão dos (no caso, também seus)   destinatários, Conservatórias do Registo Comercial e Predial, terá também razão a A».           (negrito nosso).

 

            É inequívoco, assim, que a Requerente formulou dois pedidos de alteração da sentença, dirigidos ao Juiz que proferiu a decisão, um de rectificação de erro de escrita e outro de esclarecimento.

            Naquele despacho, os dois pedidos são apreciados separadamente, reconhecendo-se que, em ambos os casos, a Requerente tinha razão.

            O pedido de esclarecimento consubstancia processualmente arguição de nulidade de sentença por «obscuridade», à face do preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC. ([7])

Apresentada uma reclamação que foi considerada fundada, o trânsito em julgado da decisão reclamada apenas ocorre depois de se transitar em julgado a decisão judicial que a aprecie, isto é, quando se tornou inimpugnável o despacho de 29-06-2015.

Assim, tendo a Requerente apresentado as reclamações graciosas em 14-12-02015, antes do decurso do prazo de 120 dias previsto no n.º 1 do artigo 70.º do CPPT, tem de se concluir pela tempestividade das reclamações, como bem se entendeu nas decisões administrativas que as apreciaram, que constam do processo administrativo.

Pelo exposto, improcede a excepção da inimpugnabilidade dos actos de liquidação suscitada pela Administração Tributária e Aduaneira.

Por outro lado, essa questão da inimpugnabilidade dos actos que são objecto do pedido de pronúncia arbitral por alegado decurso do prazo de impugnação administrativa não tem a ver com a tempestividade da apresentação do pedido de pronúncia arbitral.

Na verdade, o prazo para apresentação de pedido de constituição de tribunal arbitral conta-se a partir da notificação da decisão da reclamação graciosa, como decorre da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT.

Por isso, mesmo que fossem inimpugnáveis os actos impugnados por as reclamações graciosas terem sido intempestivas, o pedido de pronúncia arbitral foi apresentado no prazo de 90 dias a contar da notificação da decisão das reclamações graciosas (a notificação foi efectuada através de carta expedida em 14-09-2017 e o pedido de constituição de tribunal arbitral sido apresentado em 25-11-2017), pelo que tem de se concluir que a apresentação deste foi tempestiva.

Improcedem, assim, as excepções de inimpugnabilidade das liquidações e de intempestividade do pedido de constituição de tribunal arbitral.

 

6. Questão da caducidade do pedido de anulação por facto superveniente

 

Defende a Autoridade Tributária e Aduaneira, como excepção, que, a ter ocorrido em 01-10-2015, o trânsito em julgado da decisão judicial de resolução do contrato de cisão-fusão, terá decorrido o prazo de caducidade previsto no artigo 45.º, n.º 1, do CIMT, pois as liquidações têm data de 02-07-2007 e a transmissão ocorreu em 03-07-2007 (data da escritura de cisão-fusão).

Não se está perante uma questão prévia que obste à apreciação do mérito do pedido de pronúncia arbitral, mas sim da apreciação de um possível fundamento de procedência ou improcedência.

O artigo 45.º do CIMT estabelece o seguinte:

 

Artigo 45.º

Anulação proporcional

1 - Se antes de decorridos oito anos sobre a transmissão, vier a verificar-se a condição resolutiva ou se der a resolução do contrato, pode obter-se, por meio de reclamação ou de impugnação judicial, a anulação proporcional do IMT.

2 - Os prazos para deduzir a reclamação ou a impugnação com tais fundamentos contam-se a partir da ocorrência do facto.

3 - O imposto é anulado em importância equivalente ao produto da sua oitava parte pelo número de anos completos que faltarem para oito.

 

A resolução dos contratos está especialmente prevista no n.º 1 deste artigo 45.º como fundamento de anulação proporcional.

A Requerente defende que este artigo 45.º apenas é aplicável no caso de resolução por acordo das partes no contrato.

Não há qualquer razão para restringir a aplicação deste regime aos casos de resolução por acordo das partes, pois, embora possa ser feita por acordo ([8]), a resolução pode ser feita por iniciativa de uma das partes ou por um Tribunal (artigo 436.º do Código Civil). ([9])

De qualquer modo, apenas são abrangidas por esta norma as situações em que a resolução do contrato ocorre «antes de decorridos oito anos sobre a transmissão».

No caso em apreço, entre a data da transmissão (03-07-2007) e a data da resolução (01-10-2015, data em que transitou em julgado a sentença que a decidiu) decorreram mais de 8 anos, pelo que não se verifica a situação prevista neste artigo.

Não se trata de uma situação de caducidade do exercício de um direito a anulação parcial, mas sim de inexistência desse direito, por não se verificar um dos requisitos para ele se formar. ([10])

Conclui-se, assim, que a pretensão da Requerente não pode proceder com fundamento neste artigo 45.º do CIMT.

 

 

7. Questão da falta de fundamentação da decisão da reclamação graciosa

 

Como se referiu a Autoridade Tributária e Aduaneira interpretou o pedido de pronúncia arbitral como imputando vício de falta de fundamentação à decisão da reclamação graciosa, o que é confirmado pelas alegações da Requerente.

A Requerente não indica no pedido de pronúncia arbitral quais as razões pelas quais tem tal entendimento, mas indica-as nas suas alegações, dizendo o seguinte:

«Como é possível fundamentar a inexistência de um facto tributário? Sendo um facto negativo é de difícil senão impossível prova ou fundamentação.

Os argumentos apresentados pela AT vão no sentido da existência de facto e da sua subsistência na ordem jurídica dando-lhe um efeito de mera ineficácia.

NÃO É ISSO QUE RESULTA DA SENTENÇA JUDICIAL.

Se a AT - em negação perante a realidade - alega uma série de factos e formula uma série de raciocínios que não se aplicam ao caso em análise em que existe ABSOLUTA FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO.

A AT ao pretender manter na ordem jurídica e atribuir efeitos jurídicos e fiscais na esfera da Recorrente aos putativos lotes que deixaram - por sentença - de integrar o seu património está a violar a sentença transitada em julgado.

(...)

No caso em análise a AT desconsiderou o teor material da sentença transitada em julgado e os comandos que ela continha pretendendo atribuir um efeito de anulabilidade àquilo que é representado como uma nulidade.

A AT INCUMPRIU O SEU DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO BÁSICO PORQUE IGNORA O VALOR DA SENTENÇA E O SEU CONTEÚDO MATERIAL».

 

A exigência de fundamentação de actos administrativos lesivos consta do n.º 3 do artigo 268.º da CRP, em que se estabelece que «os actos administrativos estão sujeitos a notificação aos interessados, na forma prevista na lei, e carecem de fundamentação expressa e acessível quando afectem direitos ou interesses legalmente protegidos».

Especialmente para a fundamentação dos actos tributários, o artigo 77.º, n.ºs 1 e 2, da LGT, estabelece que «a decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária» e que «a fundamentação dos actos tributários pode ser efectuada de forma sumária, devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo».

O Supremo Tribunal Administrativo tem vindo a entender uniformemente que a fundamentação do acto administrativo ou tributário é um conceito relativo que varia conforme o tipo de acto e as circunstâncias do caso concreto, mas que a fundamentação é suficiente quando permite a um destinatário normal aperceber-se do itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo autor do acto para proferir a decisão, isto é, quando aquele possa conhecer as razões por que o autor do acto decidiu como decidiu e não de forma diferente, de forma a poder desencadear dos mecanismos administrativos ou contenciosos de impugnação. ([11])

Na fundamentação da decisão da reclamação graciosa refere-se, além do mais, o seguinte:

Decorre do disposto no n.º 1, do artigo 38.º da LGT, que a ineficácia dos negócios jurídicos (ainda que dotada de eficácia retroativa) não determina de per si, no plano tributário, a restituição das importâncias despendidas a título de imposto, considerando-se justificada a tributação, desde que, em consequência do negócio celebrado, se tenham produzido os efeitos económicos pretendidos pelas partes.

Espelha aquele preceito legal, a prevalência que em determinadas situações é conferida pelo direito tributário à vertente económica dos negócios. Como na factualidade em apreço, se está em presença de um negócio com eficácia real, translativo da propriedade (ainda que por via indireta), uma vez que a fusão operou a transferência da propriedade dos imóveis para a sociedade incorporante, efeito económico querido pelas partes, mostra-se por esse facto, devida a tributação.

No atinente ao pedido de devolução do IMT pago, alegando não ser devido o imposto por não haver transmissão/imobiliária válida, cremos não lhe assistir razão, porquanto o negócio ora resolvido, existiu validamente e manteve a sua eficácia, desde a outorga do respetivo contrato até ser objeto de resolução pelo tribunal.

Para que se colocasse a possibilidade de devolução do imposto, nos moldes invocados pela Reclamante, ou seja, considerando-se não existir uma transmissão imobiliária válida, tornar-se-ia imprescindível apurar da existência de um vício gerador de invalidada (absoluta ou relativa) assacável ao negócio, pois não olvidando que o negócio foi realizado, só o negócio reputado de nulo, ou anulado, se pode considerar como não tendo sido realizado, para efeitos de subsunção ao disposto no artigo 44.º do CIMT.

O negócio em apreço não mereceu nenhum juízo de desvalor ou desconformidade com a ordem jurídica.

 

Como se vê por este excerto, a Autoridade Tributária e Aduaneira expôs as razões pelas quais entendeu não se estar perante uma situação de inexistência de facto tributário: está-se «em presença de um negócio com eficácia real, translativo da propriedade (ainda que por via indireta), uma vez que a fusão operou a transferência da propriedade dos imóveis para a sociedade incorporante, efeito económico querido pelas partes», este «existiu validamente e manteve a sua eficácia, desde a outorga do respetivo contrato até ser objeto de resolução pelo tribunal».

E a Autoridade Tributária e Aduaneira esclareceu as razões pelas quais entendia que não poderia haver devolução do imposto, como se não existisse a transmissão: «para que se colocasse a possibilidade de devolução do imposto, nos moldes invocados pela Reclamante, ou seja, considerando-se não existir uma transmissão imobiliária válida, tornar-se-ia imprescindível apurar da existência de um vício gerador de invalidade (absoluta ou relativa) assacável ao negócio, pois não olvidando que o negócio foi realizado, só o negócio reputado de nulo, ou anulado, se pode considerar como não tendo sido realizado, para efeitos de subsunção ao disposto no artigo 44.º do CIMT».

Pelo exposto, sejam ou não correctas as considerações feitas pela Autoridade Tributária e Aduaneira, é de concluir que são perfeitamente claras as razões pelas quais a Autoridade Tributária e Aduaneira decidiu como decidiu.

No que concerne à referência que na decisão da reclamação graciosa se faz à ineficácia do negócio, enquadrável no artigo 38.º, n.º 1, da LGT, também é claro o entendimento da Autoridade Tributária e Aduaneira.

Por isso, a decisão das reclamações graciosas não enferma de vício de falta de fundamentação.

 

8. Questão da inexistência do facto tributário

 

A Requerente defende o seguinte, em suma, nas reclamações graciosas e no presente processo:

– a sentença que decidiu a resolução do contrato através do qual se operou a transmissão dos imóveis, com efeito de nulidade, tem o alcance de uma erradicação da Ordem Jurídica do acto translativo com eficácia ex-tunc, incluindo eliminação de registos subsequentes dele resultantes;

– o facto jurídico translativo que originou o IMT desapareceu retroactivamente por decisão judicial transitada na ordem jurídica;

– o imposto não é devido por não haver transmissão imobiliária válida;

– o facto de estarem penhorados pela AT alguns dos putativos imóveis como garantia da suspensão de execuções fiscais lançadas sobre eles por impostos adicionais liquidados e impugnados não implica que estes putativos imóveis tenham materialidade, gozo ou fruição do putativo imóvel pela Recorrente;

– os imóveis referidos - que já não são juridicamente seus por força da sentença transitada - têm as penhoras efetuadas pela AT para suster as execuções de liquidações adicionais ilegais feitas sobre esses mesmos imóveis.

 

 

            A Autoridade Tributária e Aduaneira na decisão das reclamações graciosas e no presente processo defende, em suma, o seguinte:

 

– o artigo 38.º, n.º 1, da LGT apenas permite a devolução do imposto pago, em situações de resolução de negócios, quando não se tenham produzido os efeitos produzidos pelas partes;

– o negócio em apreço não mereceu nenhum juízo de desvalor ou desconformidade com a ordem jurídica;

– a resolução não se verificou em consequência de um qualquer vício gerador de invalidade (absoluta ou relativa), antes decorrendo alterações supervenientes das circunstâncias que fundaram a decisão de contratar;

– o facto translativo chegou efetivamente a concretizar-se, pelo que não há lugar à aplicação do artigo 44.º do CIMT, uma vez que esta norma apenas opera quando o acto ou facto não se realizou de todo;

– já não é possível aplicar o regime do artigo 45.º, n.º 1, do CIMT, porque quando foi decidida a resolução do contrato, já não remanescia nenhum ano completo dos oito aí previstos como permitindo anulação proporcional;

– o caso julgado só se forma sobre a parte dispositiva da sentença, que é decisão de resolução do contrato de cisão-fusão;

– a pretensa resolução do contrato de cisão-fusão não operou qualquer mudança na titularidade dos prédios no plano dos factos;

– os prédios em causa continuam a manter-se na esfera jurídica da Requerente e foram oferecidos pela Requerente, assim continuam oferecidos, como garantia para a suspensão de vários processos de execução fiscal.

 

O direito tributário contém um regime próprio, diferente do regime de direito civil, sobre os efeitos da ineficácia de negócios jurídicos, concretizado genericamente no n.º 1 do artigo 38.º da LGT, que estabelece que «a ineficácia dos negócios jurídicos não obsta à tributação, no momento em que esta deva legalmente ocorrer, caso já se tenham produzido os efeitos económicos pretendidos pelas partes».

No entanto, não se fornecendo um conceito próprio de «ineficácia», será aplicável a concepção que esse conceito tem no direito civil, por força do disto no n.º 2 do artigo 11.º da LGT que estabelece que «sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer directamente da lei».

Este conceito de ineficácia, em sentido lato, abrange todas as situações em que «um negócio não produz, por impedimento decorrente do ordenamento jurídico, no todo ou em parte, os efeitos que tenderia a produzir, segundo o teor das declarações respectivas», abrangendo não só as situações de invalidade, mas também as de ineficácia em sentido estrito, que depende, «não de uma falta ou irregularidade dos elementos internos do negócio, mas de alguma circunstância extrínseca que, conjuntamente com o negócio, integra a situação de facto (fattispecie) produtiva de efeitos jurídicos». ([12])

«A invalidade é uma espécie do género ineficácia: enquanto a ineficácia «lato sensu» compreende todas as hipóteses em que, por causas intrínsecas ou extrínsecas, o negócio não deve produzir os efeitos a que tendia, a invalidade é apenas a ineficácia que provém de uma falta ou irregularidade dos elementos internos (essenciais, formativos) do negócio». ([13]) No conceito de invalidade incluem-se não só a nulidade ou anulabilidade, como também a inexistência do negócio jurídico. ([14])

No caso em apreço, a resolução do contrato por alteração das circunstâncias, prevista nos artigos 437.º a 439.º do Código Civil, está-se perante uma situação de ineficácia em sentido restrito, enquadrável na previsão do n.º 1 do artigo 38.º da LGT, como se entendeu na decisão das reclamações graciosas.

O artigo 439.º do Código Civil determina a aplicação, no âmbito do direito civil, do regime da resolução do contrato, previsto nos artigos 432.º a 436.º do mesmo Código, entre os quais se inclui, em regra, a aplicação do regime da nulidade, com efeitos retroactivos, se tal não contrariar a vontade das partes ou a finalidade da resolução (artigos 433.º e 434.º, n.º 1, do Código Civil), sem prejuízo de direitos de terceiros, limitados pelas regras do registo, no caso de bens imóveis (artigo 435.º do mesmo Código).

Porém, para efeitos tributários os efeitos da ineficácia são definidos pelo artigo 38.º, n.º 1, da LGT, que é uma norma especial e, por isso, prevalece sobre as regras do direito civil, no seu domínio de aplicação. Assim, no âmbito do direito tributário, é o regime deste artigo 38.º, n.º 1, que é aplicável, na falta de norma especial, independentemente de os efeitos cíveis serem os da nulidade (como defende a Requerente), ou mesmo os da inexistência jurídica do negócio.

Nos termos deste artigo 38.º, n.º 1, a ineficácia não obsta à tributação, no momento em que esta deva legalmente ocorrer, caso já se tenham produzido os efeitos económicos pretendidos pelas partes com o negócio jurídico.

Por isso, é correcta a posição assumida pela Administração Aduaneira ao entender que «a ineficácia dos negócios jurídicos (ainda que dotada de eficácia retroativa) não determina de per si, no plano tributário, a restituição das importâncias despendidas a título de imposto, considerando-se justificada a tributação, desde que, em consequência do negócio celebrado, se tenham produzido os efeitos económicos pretendidos pelas partes».

Assim, a questão da tributação, à face daquele artigo 38.º, n.º 1, da LGT, reconduz-se a saber se se produziram os efeitos económicos pretendidos pelas partes.

Os efeitos pretendidos pelas partes no contrato de cisão-fusão eram a transmissão da propriedade dos imóveis, que foi efectivamente concretizada, pois a Requerente passou a ser a proprietária dos lotes de terreno para construção e a utilizar alguns deles para constituição de hipotecas e em penhoras que lhe permitiram obter a suspensão de execuções fiscais.

            Não se está perante lotes virtuais, pois os terrenos existiam, a autorização de loteamento transformou-os juridicamente em terrenos para construção com a inerente alteração do seu valor económico (e até parte das infra-estruturas urbanísticas já existiam, segundo de vê pela sentença do Tribunal Tributário de Lisboa proferida no processo n.º …/12…BELRS), estavam inscritos e definidos no registo predial e até foram constituídas hipotecas voluntárias e realizadas penhoras sobre vários.

Por isso, não se demonstra que correspondam à realidade, antes pelo contrário, as afirmações da Requerente de os lotes «não tinham existência material porque não passaram de um desenho de uma planta camarária sem qualquer correspondência com algo que fosse visível, que fosse possível apreender e fruir» e de não entrou na posse efectiva desses lotes, não havendo.

Nestas circunstâncias, é de concluir que se operaram os efeitos económicos do contrato de cisão-fusão que são relevantes para tributação em IMT, que são os inerentes à transmissão da propriedade dos imóveis referidos, com todos os correspondentes direitos, que a Requerente passou a poder exercer na totalidade até à resolução. Na verdade, não há qualquer fundamento jurídico ou factual que permita concluir pela correspondência à realidade da afirmação da Requerente de que «nunca pode desenvolver e construir e comercializar os lotes», pois não se divisa qualquer obstáculo ao exercício em relação a eles todos os direitos inerentes ao direito de propriedade, como qualquer outro proprietário e como a B… os pôde exercer ao celebrar o negócio que os transmitiu. Com efeito, foi apenas «com fundamento na falta de pagamento das taxas devidas de acordo com o regulamento considerado aplicável» que a Câmara Municipal de ..., em 05-05-2009, suspendeu o alvará de loteamento respeitante às 5ª e 6ª fases da … [alínea l) da matéria de facto fixada].

Assim, houve uma transmissão efectiva do direito de propriedade, os lotes existiram na titularidade da Requerente e esta podia exercer todos os direitos inerentes ao direito de propriedade em relação a eles (inclusivamente vender os lotes, ou construir pagando as taxas autárquicas cuja falta de pagamento foi o único fundamento da suspensão do alvará), tendo também a Requerente beneficiado desse direito para efeitos de suspensão de execuções fiscais (através da constituição de hipotecas e penhoras, que se mantêm, por força do referido artigo 435.º, n.º 1, do Código Civil).

            Aliás, como salienta a Autoridade Tributária e Aduaneira, ainda no início de 2018 a Requerente beneficiava de efeitos económicos do contrato, derivados da transmissão dos lotes, a nível da sua utilização para suspender execuções fiscais.

            Por isso, não se está perante uma situação em que a tributação seja afastada pelo artigo 38.º, n.º 1, da LGT.

 

                       

9. Pedidos de devolução das quantias pagas com juros indemnizatórios

 

            Pelo exposto, improcede o pedido de pronúncia arbitral.

            Tendo os pedidos de reembolso e de juros indemnizatórios como pressuposto existência de pagamento indevido (artigo 43.º, n.º 1, da LGT), não se demonstrando que este tenha ocorrido, improcedem necessariamente estes pedidos.

 

           

10. Decisão

 

            Nestes termos acordam neste Tribunal Arbitral em:

  1. Julgar improcedentes as excepções da incompetência parcial do Tribunal Arbitral, da inimpugnabilidade dos actos tributários e da litispendência;
  2. Julgar improcedentes os pedidos de declaração de nulidade das liquidações e dos pedidos de devolução de quantias e juros indemnizatórios;
  3. Absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira destes pedidos.

 

 

            11. Valor do processo

 

   De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 3.049.016,28.

 

 

Lisboa, 18-06-2018

 

Os Árbitros

 

(Jorge Lopes de Sousa)

 

 

(Francisco José Nicolau Domingos)

(vencido conforme declaração junta)

 

 

 

(Jesuíno Alcântara Martins)

 

 

 

 

 

 

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

 

Voto vencido a questão da inexistência do facto tributário, pelo que se impõe descrever os fundamentos que, a nosso ver, justificariam uma decisão diversa.

 

 

  1. Matéria de facto relevante para a questão da inexistência do facto tributário

 

Dos factos assentes resulta que foi celebrada escritura pública de cisão-fusão na modalidade de transferência parcial do património para a sociedade incorporante (A…, Lda.). Contudo, por sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa foi declarada resolvida com todos os efeitos legais a cisão-fusão das sociedades A…, Lda. e B…, S.A., bem como a remessa de certidão da sentença à Conservatória de Registo Predial de …, por forma a serem identificados e cancelados todos os registos da cisão-fusão.

No teor da referida decisão judicial consta ainda que: «Operada a resolução, deve em consequência conforme decorre da Lei, ser reposta a situação que existiria se a cisão-fusão não tivesse sido celebrada, com o consequente regresso da titularidade de todo o património destacado…». Como também que o alvará de loteamento n.º …/… da Câmara Municipal de …foi suspenso em 05/05/2009.

 

 

  1. Conceito de transmissão para efeitos de Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT)

 

 

A questão central destes autos consiste em saber se com a transmissão do património via cisão-fusão, negócioesse entretanto resolvido, operou a transmissão patrimonial para efeitos de IMT.

Por isso importa apurar, qual o conceito de transmissão relevante para efeitos de IMT?

            A primeira nota é a de que não é idêntico o conceito de transmissão fiscal com o de transmissão civil, embora quando um prédio é transmitido civilmente, a constituição ou transferência do direito de propriedade ocorre por mero efeito do contrato, regra geral, pela celebração do contrato de compra e venda, formalismo que produz efeitos na esfera fiscal.  A escritura pública ou equivalente são os documentos que titulam a transmissão de imóveis e que, assim, são relevantes para o conceito de transmissão fiscal para efeitos de IMT, constituindo a vertente formal da transmissão para incidência do imposto objeto dos autos.

Sucede que, na incidência de IMT cabem hipóteses em que é irrelevante a existência do título translativo, como é disso exemplo, a celebração de contrato-promessa em que o promitente-adquirente se comporte como um verdadeiro proprietário, através de condutas que manifestem o corpus e o animus possessório.

A luta contra a fraude e a evasão fiscal teve o condão de alterar o conceito de transmissão para efeitos de IMT, a incidência incorpora as transmissões onerosas de imóveis, qualquer que seja o título por que operem. Ou, dito de outro modo, quando o «adquirente» seja por essa via titular de direitos de uso e fruição da coisa economicamente equivalentes ao conteúdo do direito de propriedade, a transferência é económica. Nessa transferência releva o aspeto económico da transmissão, o enriquecimento real do beneficiário, traduzido pela fruição dos bens ou com o proveito económico obtido com a sua alienação emergente do exercício do direito de disposição. A substância económica tem preferência sobre a forma jurídica utilizada, isto é, tem aplicação o princípio do realismo do Direito Fiscal[15].

Os artigos 1.º e 2.º do Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (CIMT) correspondem, no essencial, aos artigos 1.º e 2.º do Código do Imposto Municipal da SISA e do Imposto sobre as Sucessões e Doações (CIMSISD)[16].

Por isso importa, a nosso ver, citar diretamente algumas posições doutrinais relativamente à incidência objetiva em sede de IMT com origem no conceito de transmissão económica de bens imóveis.

Para ALBERTO XAVIER[17], o conceito fiscal de transmissão transparece a ideia de que: «…mais importante que a circulação jurídica entre patrimónios é o resultado económico da circulação de poderes efetivos sobre os bens que sejam reveladores de capacidade contributiva». Já F. PINTO FERNANDES/NUNO PINTO FERNANDES[18] entendem que o conceito de transmissão: «… para efeitos de sisa é mais amplo que o que resulta da lei civil. Em tese geral, e em face da inexistência de um conceito de transmissão entre as normas respeitantes à sisa, ao contrário do que acontece quanto ao imposto sobre as sucessões e doações no § 1.° do art. 3.°, teremos de caracterizá-la de harmonia com os princípios que afloram dos artigos 1.°, 2.°, 8.° e 152.°, em face dos quais a transmissão compreende não só a transmissão civil como também a transmissão económica, ou de facto, mesmo que despida de formalidades legais ou ferida de nulidades ou anulabilidades não reconhecidas judicialmente, salientando-se a situação material resultante da simples mudança dos possuidores dos bens».

Em resumo, é legítimo extrair a conclusão de que a transmissão económica que integra a incidência do IMT atribui ao adquirente direitos de fruição com equivalência em relação àqueles que se produzem com a transmissão jurídica. Como também, a transmissão pode até ser despida da forma legal ou encontrar-se ferida de nulidades ou anulabilidades.

 

  1. Questão da inexistência do facto tributário

 

A resolução consiste na destruição da relação contratual, através da qual se declara que o contrato se tem como não celebrado. A resolução pode ser judicial, quando necessita do concurso do tribunal para operar os seus efeitos, sendo certo que goza, por via de regra, de eficácia retroativa[19].

A resolução é equiparada quantos aos seus efeitos à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico[20].

No caso concreto, é inequívoco que deixou de ser possível a emissão de licenças de construção.

Assim é admissível formular duas questões:  i) O direito à construção integra o conteúdo do direito de propriedade quando estejamos perante um lote de terreno para construção? e ii) Quais as consequências do art. 38.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária (LGT) para o caso sub judice?

Na lição de SALDANHA SANCHES encontramos a propósito de posse sem propriedade (conceito essencial na economia do IMT) a seguinte referência: «…quando estão em jogo situações em que alguém detém um bem com os direitos e faculdades que se aproximam da propriedade jurídica (sublinhado nosso) e é tratado como se tivesse a propriedade desse bem sem juridicamente a ter[21]».

Assim, importa perceber se o direito à construção constitui uma faculdade do direito de propriedade.  Para FREITAS DO AMARAL o ius aedificandi constitui uma faculdade privada pertencente ao particular proprietário, em virtude do disposto nos artigos 1524.º e seguintes do Código Civil (CC), acerca do direito de superfície, afirmando o seguinte: «…se o proprietário do solo pode ceder [nos termos do Código Civil] a outrem o direito de construir sobre o próprio terreno, é porque, como proprietário, dispõe desse direito[22]».

Se assim o é, essa faculdade do direito de propriedade deixou de existir, pelo que há que responder à segunda pergunta formulada.

Anota a doutrina relativamente aos efeitos tributários da ineficácia civil [23]: «No n.º 1 dispõe-se sobre a tributação dos efeitos económicos pretendidos pelas partes que tenham sido produzidos pelas partes apesar da ineficácia do negócio. Tal tributação só ocorrerá se, e na medida em que, tais efeitos existam e recaiam na previsão de um tipo legal de imposto. (…) Têm os efeitos económicos que se tenham produzido e subsistirem, para ser tributados, de caber na previsão de uma norma tributária (nosso sublinhado)». Para outro autor: «O presente artigo consagra, no seu número 1, a eficácia perante a Administração Tributária dos negócios jurídicos ineficazes no âmbito do direito comum, nos casos em que já se tenham produzido os efeitos económicos pretendidos pelas partes, de que resulta o direito em tais circunstâncias, à tributação do negócio jurídico ineficaz. Paralelismo tem o presente artigo com o parágrafo 41.º, número 1, da “Abgabeordnung”, que estabelece a irrelevância da ineficácia de um negócio jurídico para efeitos de tributação se e enquanto as partes permitirem que perdure o seu resultado económico»[24].

Isto é, há que verificar se os efeitos económicos que se produziram na presente hipótese se mantêm e recaem na previsão legal de um tipo legal de imposto.

Ora, utilizando a doutrina, pensamos que é seguro afirmar que com a suspensão do alvará de loteamento essa faculdade económica que permite a plena fruição do direito de propriedade foi eliminada.

No entanto, não se pode ignorar que posteriormente à resolução da cisão-fusão não há notícia da eventual perda de interesse do credor em relação às várias hipotecas voluntárias constituídas sobre os lotes de terreno para construção (atos anteriores à resolução da cisão-fusão) e que fazem parte do referido alvará n.º …/… da Câmara Municipal de… .

 Por isso, ao abrigo do princípio da investigação aplicável no contencioso tributário e porque estamos perante um facto alegado por uma das partes, dever-se-ia determinar o convite para esclarecerem se as hipotecas se mantêm, até porque constitui um facto notório que frequentemente os devedores procedem ao pagamento das dívidas, mas não efetuam o cancelamento das hipotecas. Para além do mais, a sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Instância Central, 1.ª Sec. Comércio no âmbito do processo n.º .../11...TVLSB refere que: «Também não existem terceiros cujos direitos adquiridos possam ser prejudicados pela resolução».

Apenas em caso afirmativo, a subsistência da oneração dos lotes atestaria um elemento da propriedade económica que legitimaria a manutenção das liquidações na ordem jurídica.

Por outro lado, cremos que a falta de atualização dos registos pode não emergir da vontade direta da Requerente, pois logo na sentença de resolução da fusão-cisão determinou-se o envio de certidão da decisão judicial para a Conservatória do Registo Predial de … para os fins tidos por convenientes.

Em suma, a nosso ver, só na hipótese da manutenção das hipotecas voluntárias em data posterior à resolução da cisão-fusão se manifestaria um efeito económico que legitimaria a tributação.

 

 

Lisboa, 18 de junho de 2018

 

 

Francisco Nicolau Domingos

 



[1] A Requerente omitiu no pedido de pronúncia arbitral referência a esta liquidação, mas ela foi junta com aquele, e a Requerente veio corrigir o lapso nas suas alegações (ponto 4), lapso esse que é aceite pela       Administração Tributária e Aduaneira (artigo 6.º da Resposta).

  Por isso, considera-se corrigido o lapso, ao abrigo dos artigos 249.º e 295.º do Código Civil.

[2] Acórdão do Pleno do Supremo Tribunal Administrativo de 18-4-1989, processo n.º 16583, publicado em Apêndice ao Diário da República de 07-09-1990, página 271.

[3] Neste sentido, entre muitos, pode ver-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30-03-2017, processo n.º 135/11.4TTCSC.L1.S1, na esteira de ARTUR ANSELMO DE CASTRO, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, Almedina, pág.133, e ANTUNES VARELA, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, Limitada, pág. 372 e segs..

Trata-se de um acórdão de 2017, proferido num processo iniciado em 2011, pelo que corresponde a uma visão actualizada do Supremo Tribunal de Justiça.

[4] Acórdão do STJ de 26-11-2015, processo n.º 706/05.6TBOER.L1.S1.

 [5]Neste sentido, pode ver-se o acórdão do STJ de 06-09-2006, processo n.º 06P1555.

[6] Este regime está previsto para as decisões proferidas em recurso, mas será aplicável a decisões de 1.ª Instância, por analogia, atento o princípio da unidade do sistema jurídico (artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil), que pressupõe a sua coerência.

Mas, mesmo que se entenda que esta norma apenas é aplicável às decisões proferidas em recurso, extrai-se dela o entendimento legislativo de que, quando é suscitado um incidente no prazo de impugnação da decisão, designadamente uma reclamação, difere-se o trânsito em julgado da decisão reclamada para o momento em que a decisão do incidente se tornar inimpugnável.

[7] Não está em causa no presente processo saber se o Juiz tinha competência para apreciar esta reclamação, pois apreciou-a e a decisão não foi impugnada, tendo transitado em julgado, como certificou a Secretaria do Tribunal da Comarca de Lisboa: essa arguição foi feita através de reclamação e foi deferida a arguição, o que implica que quem tinha competência para decidir entendeu ser adequada essa forma de arguição.

Por isso, não tendo sido impugnado o despacho de rectificação e esclarecimento, o decidido forma caso julgado, sendo obrigatório para todas as entidades (artigo 205.º, n.º 2, da CRP).

 

               

 

[8] PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, volume I, 2.ª edição, página 362.

[9] Aliás o Supremo Tribunal Administrativo, nos acórdãos de 02-11-2006, processo n.º 0460/16, e de 29-03-2017, proferido no processo n.º 097/16, até entendeu que é afastado o acordo das partes no contrato como fundamento de anulação proporcional na situação paralela que se previa no artigo 153.º do Código do Imposto Municipal de Sisa e do Imposto sobre Sucessões e Doações.

[10] Aliás, como se conclui do facto de no n.º 3 deste artigo 45.º se prever que com a anulação proporcional em função de anos completos, não haverá anulação quando tiverem decorrido mais de sete anos após a transmissão.

[11] Essencialmente neste sentido, podem ver-se, entre muitos, os seguintes acórdãos do STA: de 4-11-1998, processo n.º 40618; de 10-3-1999, processo n.º 32796; de 6-6-1999, processo n.º 42142; de 9-2-2000, processo n.º 44018; de 28-3-2000, processo n.º 29197; de 16-3-2001, do Pleno, processo n.º 40618; de 14-11-2001, processo n.º 39559; de 18-12-2002, processo n.º 48366.

[12] MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 1980, página 466.

   No mesmo sentido, MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral Da Relação Jurídica, volume II, 1974, página 411.

[13] MOTA PINTO, obra e local citados.

[14] MOTA PINTO, obra citada, página 468.

[15] Para mais desenvolvimento v. J. SILVÉRIO MATEUS/L. CORVELO DE FREITAS, Os impostos sobre o Património Imobiliário. O Imposto do Selo., 1.ª edição, Engifisco, 2005, p. 310 a 336 e JOSÉ MARIA FERNANDES PIRES, Lições de Impostos sobre o Património e do Selo, 2.ª edição, Almedina, 2012, p. 213 a 218.

[16] Neste sentido, J. SILVÉRIO MATEUS/L. CORVELO DE FREITAS, Os impostos sobre o Património Imobiliário. O Imposto do Selo., 1.ª edição, Engifisco, 2005, p. 310 e 315.

[17] Manual de Direito Fiscal – volume I, p. 183.

[18] Código do Imposto Municipal da SISA e do Imposto sobre as Sucessões e Doações. Anotado e Comentado, 3.ª edição, Rei dos Livros, 1993, p. 33.

[19] JOÃO DE MATOS ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral. Volume II, 7.ª edição, Almedina, 1999, p. 274 a 278.

[20] V. neste sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no recurso n.º 343/04.4TBMTJ.P1.S1, de 24/01/2012 em que foi Relator o Conselheiro AZEVEDO RAMOS.

[21] JOSÉ LUÍS SALDANHA SANCHES, Os Limites do Planeamento Fiscal – Substância e Forma no Direito Fiscal Português, Comunitário e Internacional, Coimbra Editora, 2006, p. 58.

[22] DIOGO FREITAS DO AMARAL, Apreciação da Dissertação de Doutoramento do Licenciado Fernando Alves Correia “O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade”, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Vol. XXXII, 1991, p.99.

[23] DIOGO LEITE DE CAMPOS/BENJAMIM SILVA RODRIGUES/JORGE LOPES DE SOUSA, Lei Geral Tributária – anotada e comentada, 4.ª edição, Encontro da Escrita Editora, 2012, p. 300 e 301.

[24] ANTÓNIO LIMA GUERREIRO, Lei Geral Tributária – Anotada, Rei dos Livros, 2001, p.183.