Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 113/2018-T
Data da decisão: 2018-07-17  IRC  
Valor do pedido: € 55.103,95
Tema: IRC – Derrama Estadual.
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Decisão Arbitral [1]

 

  1. RELATÓRIO

 

A…, SA, pessoa coletiva nº … (adiante designada por Requerente), com sede na Rua …, nº…, no Porto, veio, ao abrigo do art. 2º nº 1, al. a) e dos arts. 10º e seguintes do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, previsto no Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, com a redação introduzida pelo art. 228º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante abreviadamente designado “RJAT”) e dos arts. 1º e 2º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, apresentar pedido de pronúncia arbitral sobre a legalidade da liquidação adicional de Imposto sobre Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) com o nº 2013…, relativa ao ano de 2010, pretendendo a declaração de ilegalidade parcial da referida liquidação e consequente anulação parcial, bem como o reembolso do valor indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.

 

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 15.03.2018.

 

A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, nos termos do disposto na al. a) do nº 2 do art. 6º e da al. b) do nº 1 do art. 11º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou a signatária como árbitro do tribunal arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

Em 07.05.2018, as Partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do art. 11º, nº 1, als a) e b), do RJAT e dos arts. 6º e 7º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na al. c) do nº 1 do art. 11º do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 28.05.2018.

 

Devidamente notificada, a Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta em que defendeu a improcedência do pedido, defendendo-se apenas por impugnação.

 

Por se entender que inexiste controvérsia em relação aos factos essenciais e relevantes para a decisão e que têm suporte documental bastante, foi dispensada a reunião a que alude o art. 18º do RJAT.

 

As Partes prescindiram da apresentação de alegações.

 

Foi fixado o dia 30.07.2018 para prolação da decisão final.

 

  1. SANEAMENTO

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas quanto ao pedido de pronúncia arbitral e estão devidamente representadas, nos termos do disposto nos arts. 4º e 10º do RJAT e do art. 1º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março.

 

Não se verificam excepções nem nulidades, pelo que se impõe conhecer, em seguida, do mérito do pedido.

 

 

3. MÉRITO

 

3. 1. MATÉRIA DE FACTO

 

3.1.1. Factos provados

 

Julgam-se provados os seguintes factos:

 

  1. A Requerente é uma sociedade de direito português. Sujeita ao regime geral de tributação em sede de IRC e cujo ano fiscal coincide com o ano civil.
  2. A Requerente fez a entrega da declaração de rendimentos – modelo 22 de IRC – relativa ao exercício de 2010 em 31 de Maio de 2011 (doc. 5 junto com o pedido arbitral).
  3. Na sequência de procedimento inspectivo, a Requerente, acolhendo as correcções feitas pela AT à matéria colectável de IRC, apresentou em 31.07.2017 declaração de rendimentos de substituição do IRC relativo a 2010;
  4. Que deu origem à liquidação adicional de IRC com o nº 2013…, relativa ao ano de 2010, tendo sido apurado no montante de € 1.665.088,42 de imposto a reembolsar (doc. 2 junto com o pedido arbitral);
  5. Tendo sido apurado o montante de € 109.095,13 a título de Derrama Estadual, e gerada a nota de cobrança n.º 2013… no valor de € 9.414,11, cujo pagamento a Requerente efectuou em 11.10.2013 (Ponto 4.1. da Resposta e Anexo 9 do Processo Administrativo);
  6. Em 03.08.2017, a Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa (Proc. …2017…), requerendo o reembolso de € 55.547,57 acrescido de juros indemnizatórios (doc. 3 junto com o pedido arbitral).
  7. Proferido projecto de decisão, no sentido do indeferimento, e notificado à Requerente a 30.10.2017, esta não se pronunciou quanto ao mesmo (doc. 4 junto com o pedido arbitral).
  8. Por despacho de 14.12.2017, notificado à Requerente em 19.12.2017, o pedido de revisão oficiosa foi indeferido (doc. 1 junto com o pedido arbitral).
  9. O presente pedido de constituição de tribunal arbitral foi apresentado a 14.03.2018.

 

3.1.2. Factos não provados

 

Inexistem outros factos com relevo para apreciação do mérito da causa que não se tenham provado.

 

3.1.3. Motivação quanto à matéria de facto

 

No tocante à matéria de facto provada, a convicção do Tribunal Arbitral fundou-se na livre apreciação das posições assumidas pelas Partes (em sede de facto) e no teor dos documentos juntos aos autos, não contestados pelas Partes, bem como na análise do processo administrativo anexado pela Requerida.

 

3.2. MATÉRIA DE DIREITO

 

3.2.1. Questão principal

 

A Requerente vem impugnar a liquidação adicional nº 2013…, referente ao exercício de 2010, na parte que apurou imposto no montante de € 109.095,13 a título de Derrama Estadual por entender que padece de vício de violação de lei em virtude de, para efeito de determinação daquele valor, ter sido considerado o período de 1 de Janeiro até 31 de Dezembro de 2010 quando, como alega, a Derrama Estadual apenas entrou em vigor a 1 de Julho daquele ano.

Por seu turno, a Requerida sustenta que o facto tributário que está na origem da tributação da derrama estadual é o lucro tributável que não pode ser visto de forma parcelar ou isolada, mas sim como um facto tributário complexo de formação sucessiva, com início no primeiro dia de tributação e conclusão no final do respectivo período de tributação, em conformidade com a característica de anuidade do imposto, que está presente no âmbito do IRC. Acrescenta ainda que dada a incidência complexa do tributo em questão e exigência que o mesmo acarreta em termos de visão unitária e global, tais características não se compaginam com qualquer autonomização ou cisão por períodos temporais dentro do mesmo exercício fiscal.

A questão de fundo a apreciar neste processo assenta em saber como se aplica o art. 2º da Lei nº 12-A/2010 de 30 de Junho, que criou a Derrama Estadual, ao exercício de 2010.

O referido art. 2º veio aditar ao Código do IRC, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-B/88, de 30 de Novembro, entre outros, o art. 87º-A com a seguinte redacção:

«Artigo 87.º-A

Derrama estadual

 

1 - Sobre a parte do lucro tributável superior a (euro) 2 000 000 sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas apurado por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e por não residentes com estabelecimento estável em território português, incide uma taxa adicional de 2,5 %.

2 - Quando seja aplicável o regime especial de tributação dos grupos de sociedades, a taxa a que se refere o número anterior incide sobre o lucro tributável apurado na declaração periódica individual de cada uma das sociedades do grupo, incluindo a da sociedade dominante.

3 - Os sujeitos passivos referidos nos números anteriores devem proceder à liquidação da derrama adicional na declaração periódica de rendimentos a que se refere o artigo 120.º»

A pretensão da Requerente assenta no entendimento de que a Derrama Estadual apenas se pode aplicar à parte do lucro tributável apurado no período de 1 de Julho a 31 de Dezembro de 2010, enquanto a Requerida, AT, invocando o princípio da anualidade, defende que a Derrama Estadual deve aplicar-se a todo o exercício fiscal, ou seja, desde 1 de Janeiro até 31 de Dezembro do mesmo ano.

Cumpre decidir.

Para decidir a questão principal importa antes de mais determinar a data de entrada em vigor da Lei nº 12-A/2010 de 30 de Junho.

Ora, a própria Lei prevê esta questão no art. 20º, nº 1, estabelecendo como data de entrada em vigor do diploma o dia seguinte ao da sua publicação. Tendo a Lei nº 12-A/2010 sido publicada no Diário da República n.º 125/2010, 1º Suplemento, Série I de 30.06.2010, a sua entrada em vigor deu-se no dia 1 de Julho de 2010.

Determinada a entrada em vigor, há agora que apurar a que factos se aplica: se apenas aos que ocorreram a partir de 1 de Julho ou se também se aplica àqueles que ocorreram antes dessa data.

Não resultando daquele diploma legal qualquer resposta a esta questão, terá de se recorrer à Lei Geral Tributária (LGT), como prevê o art. 1º, aplicando-se ao caso concreto o art. 12º, como já foi decidido no Acórdão para Uniformização de Jurisprudência do STA de 02.12.2015, proferido no proc. 734/15, caso em que se discutia questão de natureza semelhante, e nos Acórdãos proferidos pelo CAAD nos procs. 26/2016, 432/2016, 770/2014 ou 135/2013, entre outros.

O art. 12º da LGT dispõe assim:

 

«Artigo 12.º

Aplicação da lei tributária no tempo

1 - As normas tributárias aplicam-se aos factos posteriores à sua entrada em vigor, não podendo ser criados quaisquer impostos retroactivos.

2 - Se o facto tributário for de formação sucessiva, a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor.

3 - As normas sobre procedimento e processo são de aplicação imediata, sem prejuízo das garantias, direitos e interesses legítimos anteriormente constituídos dos contribuintes.

4 - Não são abrangidas pelo disposto no número anterior as normas que, embora integradas no processo de determinação da matéria tributável, tenham por função o desenvolvimento das normas de incidência tributária.»

Ora, no caso da Derrama Estadual, como esta incide sobre parte do lucro tributável da empresa, estamos perante um facto tributário de formação sucessiva, aplicando-se-lhe a regra do nº 2 do art. 12º: a lei nova só se aplica a partir da sua entrada em vigor, ou seja, no presente caso, a partir de 1 de Julho.

Como se refere no acórdão do CAAD proferido a 23.01.2017, no proc. 432/2016, a propósito da aplicação do art. 12º, nº 2 da LGT, «trata-se de um critério plasmado na lei de modo absolutamente claro, inteligível, praticável, e que não leva neste caso concreto a qualquer injustiça; é, além disso, e repita-se, um critério que o legislador poderia expressamente ter afastado – e não fez».

Como ali bem se explicou «resultando das normas sobre aplicação da lei no tempo e sobre o âmbito de competência temporal das normas fiscais que a Derrama Estadual criada pela Lei n.º 12- A/2010, de 20 de junho, apenas se aplica à parte do lucro tributável correspondente ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor não temos aqui uma situação de retroatividade cuja admissibilidade caiba apreciar. Apenas estaríamos perante um caso de retroatividade se a Derrama Estadual fosse aplicada a uma parte do lucro tributável que se tivesse criado antes da data da sua entrada em vigor – o que vimos não acontecer por ter o legislador resolvido esse conflito potencial através do critério pro rata temporis plasmado no artigo 1, n.º 2 da LGT. Apenas estaríamos perante um caso de retroatividade – cuja legitimidade cumpriria analisar – se houvesse na própria Lei n.º 12-A/2010, de 20 de junho, uma norma que derrogasse a regra constante do artigo 12.º, n.º 2 da LGT que é assim geral do Direito Tributário para os conflitos (ainda que aparentes) de normas fiscais no tempo no caso de factos tributários de formação sucessiva, norma essa que poderia, em tese atribuir a competência temporal da norma à totalidade do facto tributário que se estivesse a formar no dia da sua entrada em vigor (caso em que a norma seria parcialmente retroativa) ou apenas aos factos tributários continuados cuja formação se iniciasse após a sua entrada em vigor. Tendo em conta que a Constituição da República Portuguesa (CRP) tomou uma posição expressa sobre a retroatividade das normas fiscais em 1997 – introduzindo no artigo 103.º n.º 3 a regra que ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que tenham natureza retroativa – e que em 1998 o legislador estipulou na LGT regras sobre a aplicação da lei fiscal no tempo – que apesar de não terem valor reforçado não podem deixar de se aplicar aos aplicadores da norma fiscal – o legislador da lei fiscal ordinária que queira dispor sobre a sua aplicação no tempo está vinculado a este quadro normativo, ou a tomar uma decisão expressa de derrogar as normas supletivas, como aqui poderia ter feito quanto ao artigo 12.º, n.º 2 (abrindo naturalmente depois a discussão sobre a legitimidade constitucional dessa opção em face do princípio de não retroatividade constante da CRP). »

Assim sendo, temos de considerar contrária à lei a aplicação da Derrama Estadual à parte do lucro tributável correspondente ao período anterior a 1 de Julho de 2010.

A liquidação adicional em crise tem então de ser considerada ilegal na parte referente à Derrama Estadual sobre o lucro tributável correspondente ao primeiro semestre de 2010 por violação do art. 12º, nº 2 da LGT e, consequentemente, parcialmente anulada.

       
     

3.2.2. Juros indemnizatórios

Embora o art. 2.º, n.º 1, als. a) e b), do RJAT utilize a expressão «declaração de ilegalidade» para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira directriz, que «o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária».

O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de actos tributários, admite a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do art. 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e do art. 61º, nº 4 do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT) (na redacção dada pela Lei nº 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a que corresponde o nº 2 na redacção inicial), que «se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea».

Assim, o nº 5 do art. 24º do RJAT, ao dizer que «é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

No caso em apreço, é manifesto que, na sequência da ilegalidade do acto de liquidação, há lugar a pagamento de juros indemnizatórios, pois a liquidação é imputável à AT, que, por sua iniciativa, o praticou sem suporte legal.

Consequentemente, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios, nos termos dos arts. 24º, nº 5 do RJAT, 43º, nº 1 da LGT e 61º do CPPT, a determinar pela AT em execução do presente acórdão.

3.2.3. Questões de conhecimento prejudicado

Procedendo o pedido de pronúncia arbitral por vício de violação de lei, o que proporciona eficaz tutela do interesse da Requerente, fica prejudicado, por ser inútil [artigo 130.º do Código do Processo Civil (CPC)] o conhecimento das demais questões colocadas.

4. DECISÃO

 

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

  1. Julgar procedente, por vício de violação de lei, o pedido de anulação parcial do acto tributário objecto do pedido arbitral correspondente à liquidação adicional de IRC nº 2013…, referente ao ano de 2010;
  2. Condenar a Administração Tributária e Aduaneira a restituir à Requerente o montante de imposto pago, acrescido dos respectivos juros indemnizatórios;
  3. Condenar a Requerida no pagamento das custas do presente processo.

 

5. VALOR DO PROCESSO

 

De harmonia com o disposto no art. 306º, nº 2 do CPC, 97º-A, nº 1, al. a) do CPPT e 3º, nº 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 55.103,95.

 

6.  CUSTAS

 

Nos termos do art. 22º, nº 4 do RJAT, fixa-se o montante das custas em
€ 2.142,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 17 de Julho de 2018

 

 

O árbitro,

 

 

 

Cristina Aragão Seia



[1] A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990, excepto no que diz respeito às transcrições efectuadas.