Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 257/2019-T
Data da decisão: 2020-01-13  IVA  
Valor do pedido: € 1.067.377,39
Tema: IVA – Imposto indevidamente mencionado na factura.
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Acordam os Árbitros José Pedro Carvalho (Árbitro Presidente), Miguel Patrício e Carla Castelo Trindade, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral, na seguinte:

 

DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

 

I – RELATÓRIO

 

1.            No dia 09 de Abril de 2019, A..., NIPC..., com sede na ..., n.º..., ...-... Lisboa, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade do acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa n.º ...2018... e, consequentemente, das autoliquidações de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”) referentes aos meses de Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro do ano de 2014, no valor de €1.067.377,39, que são objecto daquele pedido.

 

2.            Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, o seguinte:

i.             as indemnizações consubstanciam subvenções públicas, pelo que face à legislação e jurisprudência aplicáveis na matéria, encontram-se excluídas de tributação em sede de IVA, pelo que ao ter liquidado IVA a Requerente incorreu em erro;

ii.            o pedido de revisão oficiosa é o meio adequado à impugnação dos atos tributários de autoliquidação de tributos;

 

3.            No dia 10-04-2019, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

4.            A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

5.            Em 03-06-2019, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

6.            Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 26-06-2019.

 

7.            No dia 16-09-2019, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por excepção e por impugnação.

 

8.            Foi facultada a Requerente a possibilidade de, querendo, exercer o contraditório relativamente à matéria de excepção suscitada pela AT, o que fez.

 

9.            Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.

 

10.          Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, abstiveram-se as mesmas de as apresentar.

 

11.          Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT, prazo esse que foi prorrogado por dois meses, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo.

 

12.          O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

1-            A Requerente é uma entidade pública empresarial, pessoa colectiva de direito público, dotada de autonomia administrativa, financeira e patrimonial, com sede em território nacional.

2-            A Requerente encontra-se registada, a título principal, para o exercício de actividade de “Transporte interurbano de passageiros em caminho de ferro” (CAE 49100).

3-            Para efeitos de IVA, a Requerente encontra-se enquadrada no regime normal de periodicidade mensal, nos termos do artigo 41.º, n.º 1, alínea a) do Código do IVA.

4-            O Regulamento (CE) n.º 1370/2007, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Outubro de 2007 e o Decreto-Lei n.º 167/2008, de 26 de Agosto estabeleceram o regime jurídico aplicável à definição e compensação de Obrigações de Serviço Público (doravante designado “OSP”) de transporte de passageiros, possibilitando a adopção transitória e gradual de medidas para a implementação de contratos de serviço público.

5-            No âmbito dos referidos diplomas, previa-se que o pagamento de indemnizações compensatórias por “OSP” deveria ser estabelecido objectivamente e assentar em critérios que evitassem a sobrecompensação ou compensação cruzada.

6-            Foi publicada a Resolução do Conselho de Ministros n.º .../2011, de 18 de Abril de 2011, na qual se estabelecia que “O pagamento de compensações de obrigações de serviço público deve ser estabelecido de forma objectiva e alicerçado em critérios de transparência, economia e eficiência do serviço prestado, de modo a evitar a sobrecompensação ou compensação cruzada. Neste contexto, importa contratualizar (...) com a A..., e (...), entidades a quem se encontra cometida, respectivamente, a prestação de serviços públicos de gestão da infra-estrutura integrante da rede ferroviária nacional, de transporte ferroviário de passageiros na rede ferroviária nacional e de transporte colectivo de passageiros em sistema de metro, o regime transitório de financiamento da prestação do serviço público.”

7-            A Resolução n.º .../2011 autorizou a atribuição à Requerente de uma indemnização compensatória no montante de €32.600.000,00, estabelecendo que “a estes valores acresce IVA à taxa legal em vigor”.

8-            Em concretização da referida Resolução, foi celebrado o contrato denominado “Regime transitório de Financiamento da Prestação de Serviço Público” entre o Estado e a Requerente, que estaria vigente entre os anos de 2011 e 2019.

9-            No referido contrato estabeleciam-se as condições de prestação pela Requerente, das “OSP” de transporte ferroviário de passageiros a rede ferroviária nacional e as compensações financeiras a pagar pelo Estado.

10-         O contrato denominado “Regime Transitório de Financiamento da Prestação de Serviço Público”, celebrado entre o Estado e a Requerente, contemplava as OSP a que se encontrava adstrita a Requerente e que se reconduziam aos interesses públicos previstos na legislação europeia e nacional.

11-         Neste âmbito, a Requerente comprometia-se a assegurar o número de circulações com o nível de serviço aprovado pelo Estado, praticar, nos termos da legislação vigente, preços de transporte controlados administrativamente, assegurar o transporte das pessoas e entidades com direito de transporte gratuito ou a preços bonificados, de acordo com a legislação em vigor e assegurar um serviço de transporte seguro, eficiente e com níveis de qualidade adequados.

12-         O valor das indemnizações compensatórias tem como finalidade assegurar a cobertura de custos incorridos pela Requerente na prestação das OSP.

13-         O referido contrato foi, posteriormente, revogado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 3/2012, de 9 de Janeiro.

14-         Entretanto, não houve lugar à formalização de novos contratos, pelo que a atribuição de indemnizações compensatórias se processou nos moldes previstos nas Resoluções de Conselhos de Ministros que autorizavam a respectiva atribuição.

15-         A Resolução n.º .../2014, de 29 de Agosto de 2014 estabelecia “que as verbas atribuídas que revestem a natureza de indemnizações compensatórias a atribuir à (...) A..., (...) se enquadram nas disposições constantes do Regulamento (CE) n.º 1370/2007, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Outubro de 2007, e no Decreto-Lei n.º 167/2008, de 26 de Agosto, alterado pela Lei n.º 64/2013, de 27 de Agosto”.

16-         A Resolução em apreço veio autorizar a atribuição de uma indemnização compensatória no montante de €18.857.000,00.

17-         A Resolução do Conselho de Ministros n.º .../2011 estabeleceu que aos valores indicados a título de indemnizações compensatórias “acresce IVA à taxa legal em vigor”.

18-         Em cumprimento do contrato denominado “Regime Transitório de Financiamento da Prestação de Serviço Público”, celebrado com o Estado Português e no âmbito da sua actividade de prestação de serviços de transporte ferroviário de passageiros e mercadorias em linhas férreas, troços de linha e ramais que integram ou venham a integrar a rede ferroviária nacional, bem como o transporte internacional de passageiros, os quais se traduzem na realização de serviços de interesse geral, recebeu a título de compensação pela sua realização, determinados valores de indemnizações compensatórias.

19-         A Requerente procedeu à autoliquidação do IVA correspondente, à taxa legal em vigor à data dos factos (6%), por aplicação da verba 2.1 da Lista I Anexa ao Código do IVA, do seguinte modo:

 

20-         Não se conformando com as autoliquidações de IVA efetuadas, a Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa, nos termos do artigo 78.º da LGT.

21-         O referido pedido de revisão foi indeferido.

22-         Da decisão do pedido de revisão consta, para além do mais, o seguinte:

 

A.2. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

B. DO DIREITO

 

i.             Da matéria de excepção

a)            Da alegada incompetência material em virtude de não ter sido apreciada a legalidade de um acto de liquidação

A Requerida apresentou Resposta defendendo-se por excepção, tendo invocado, em primeiro lugar, a incompetência material do Tribunal Arbitral, uma vez que, no seu entender, na decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa não foi apreciada a legalidade de um ato de liquidação.

Afirma a Requerida que “a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa foi motivada pelo entendimento de que não seria aplicável o prazo de quatro anos previsto no artigo 98.º, n.º 2 do Código do IVA e no n.º 1 do artigo 78.º da LGT, nem sequer o prazo de dois anos previsto no n.º 1 do artigo 131.º do CPPT ou no n.º 6 do artigo 78.º do CIVA”, não se tendo debruçado sobre a legalidade dos actos de liquidação subjacentes.

Com efeito, entende a Requerida, que o acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa consubstancia um acto administrativo em matéria tributária que, por não comportar a apreciação da legalidade de um acto de liquidação, não pode ser sindicado através da impugnação judicial, pelo que o meio processual adequado seria a acção administrativa.

Mais sustenta que, constituindo o processo arbitral tributário um meio processual alternativo à impugnação judicial (cf. artigo 124.º, n.º 1, 2 e 4, alínea a) da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril), e não sendo a impugnação judicial o meio processual adequado quando não tenha sido apreciada a legalidade da liquidação, a sindicância do acto em questão encontra-se fora do âmbito das matérias suscetíveis de apreciação em sede arbitral.

A Requerida invoca, em abono da sua tese, as decisões arbitrais proferidas no âmbito do processo n.º 244/2013-T, 249/2014-T, 299/2013-T e 613/2014-T.

Por seu turno, entende a Requerente que para aferir sobre a competência do Tribunal Arbitral quanto à possibilidade de pronúncia sobre a legalidade de determinado acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, impõe-se apurar se esse acto, de alguma forma, compreendeu a apreciação da legalidade do ato tributário que esteve na génese da revisão oficiosa. Sustenta a Requerente que, no caso sub judice, a AT não se limitou a indeferir o pedido de revisão com fundamento na sua intempestividade, inimputabilidade do erro aos serviços ou na não verificação de certos pressupostos formais, tendo também concluído que “(...)não padecem as autoliquidações objeto do presente procedimento de qualquer ilegalidade, estando conforme às normas que lhes estão subjacentes”, pelo que, em seu entender, estaremos perante um acto administrativo que comporta a apreciação da legalidade das autoliquidações de IVA, razão pela qual é passível de sindicância pelo Tribunal Arbitral.

Relativamente à matéria em causa, diga-se, desde logo, que neste aspecto nunca assistiria razão à Requerida.

De acordo com o que tem sido o entendimento dominante, ou seja, de que apenas poderão ser objecto do processo arbitral os actos de segundo e terceiro grau que conheçam da legalidade da liquidação, e verificando-se que a decisão do procedimento de revisão oficiosa não se tenha pronunciado pela legalidade do acto de autoliquidação, deverá concluir-se pela extemporaneidade (e não pela incompetência) do pedido arbitral, uma vez que o n.º 1, al. a) do art.º 10.º do RJTA, remete para os factos previstos nos n.ºs 1 e 2 do art.º 102.º do CPPT, quanto aos actos susceptíveis de impugnação judicial, e como é jurisprudência assente, os actos de segundo e terceiro grau que não conheçam da legalidade dos actos de liquidação, não são susceptíveis de impugnação judicial, mas de acção administrativa especial, pelo que o concreto acto de decisão do procedimento de revisão oficiosa que não conheça da legalidade da liquidação não é susceptível de servir de termo inicial para o prazo de impugnação arbitral de tal acto de liquidação.

Deste modo, a questão suscitada sempre deveria ser formulada sob o prisma da tempestividade da lide, questão, igualmente, de conhecimento oficioso.

Posto isto, e conforme se verifica da leitura da decisão do procedimento de revisão oficiosa, a mesma conclui que não se mostram verificados os pressupostos para efectuar a revisão.

Neste sentido poder-se-ia concluir, nos termos previamente expostos, pela extemporaneidade do pedido arbitral, por claudicar a possibilidade de considerar a decisão do pedido de revisão oficiosa como termo inicial do prazo de impugnabilidade do acto de liquidação objecto da presente acção arbitral.

Não obstante, embora o dispositivo decisório do pedido de revisão expresse que foi considerado não se verificarem os pressupostos para efectuar a revisão peticionada, analisada devidamente a fundamentação da decisão, verifica-se que o pressuposto que a AT considerou não se verificar foi a existência de erro imputável aos serviços e que para chegar a tal conclusão analisou a legalidade da autoliquidação, julgando-a legal e, por isso, não afectada por erro.

Ou seja, no fundo a AT considerou não se verificarem os pressupostos para a revisão, por não existir erro de facto ou de direito, visto a autoliquidação ser, no seu entender legal.

Como se pode ler na decisão do pedido de revisão oficiosa, “não se verifica, no caso concreto, a existência de qualquer ilegalidade, e em consequência, o putativo erro na autoliquidação invocado jamais poderá ser imputável à AT, porque inexistente...”.

Ora, a ser assim, como é, dever-se-á concluir que no procedimento de revisão a AT conheceu da legalidade da liquidação, negando a existência de qualquer ilegalidade, nada obstando por isso ao conhecimento do mérito da causa.

Deverá, por isso, improceder a arguida excepção da incompetência do tribunal arbitral, e julgar-se tempestiva a presente lide.

 

b)           Da alegada incompetência do Tribunal Arbitral para apreciação dos pedidos de declaração da ilegalidade da decisão da revisão oficiosa

 

Subsequentemente, sustenta a Requerida que nos termos conjugados do artigo 2.º, alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011 e do artigo 2.º, n.º 1 do RJAT, que determinam a vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais, os Tribunais Arbitrais não tem competência para apreciar a legalidade dos actos de autoliquidação, quando não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos do artigo 131.º do CPPT.

Em seu entendimento, a equiparação do procedimento de revisão oficiosa ao disposto no artigo 131.º, n.º 1 do CPPT, para efeito da subsequente impugnação da respectiva decisão de indeferimento, está vedada em sede arbitral, uma vez que o artigo 2.º, alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011, exclui, literalmente, do âmbito da vinculação da AT à jurisdição arbitral “as pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação (...) que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do CPPT”, não se referindo aí a revisão oficiosa prevista no artigo 78.º da LGT. Pelo que foi intenção do legislador restringir o conhecimento na jurisdição arbitral às pretensões que, sendo relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, tenham sido precedidas, obrigatoriamente, de reclamação graciosa, prevista no artigo 131.º do CPPT.

Entende, ainda, a Requerida que uma interpretação extensiva do artigo 2.º, alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011, que equiparasse o procedimento de revisão oficiosa à reclamação graciosa prevista no artigo 131.º do CPPT, seria ilegal por dois motivos: por um lado, porque ponderados os elementos interpretativos literal, histórico e teleológico, não se alcança outra solução interpretativa, configurando um entendimento forçado a hipótese de o legislador ter o legislado de forma imperfeita. E, por outro lado, porque tal entendimento seria violador dos princípios constitucionais do Estado de Direito e da separação de poderes e da legalidade, como corolário do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários, que vinculam o legislador e toda a actividade da AT.

A Requerida suporta o seu entendimento nas decisões arbitrais proferidas nos processos n.º 51/2012-T, 263/2013-T e 303/2013-T.

Em resposta à excepção invocada pela Requerida, no que à alegada incompetência do Tribunal Arbitral para apreciação dos pedidos de declaração da ilegalidade da decisão da revisão oficiosa diz respeito, a Requerente começa por reafirmar a competência material do Tribunal Arbitral para se pronunciar sobre actos de segundo e terceiro grau que comportem a apreciação de um acto de liquidação.

Entende a Requerente, alicerçada nas decisões arbitrais proferidas nos processos 613/2014-T e 117/2013-T, que uma vez que a lei permite expressamente que os contribuintes optem pela reclamação graciosa ou pela revisão oficiosa de actos de autoliquidação e sendo o pedido de revisão oficiosa formulado no prazo da reclamação graciosa perfeitamente equiparável a uma reclamação graciosa, não pode haver qualquer razão que possa explicar que não possa aceder à via arbitral um contribuinte que tenha optado pela revisão do acto tributário em vez da reclamação graciosa.

A Requerente cita, em abono da sua posição, o Acórdão do Tribunal Constitucional no âmbito do processo n.º 636/17, de 11 de Maio de 2018, no qual se concluiu que “a integração dos casos em que existiu «pedido de revisão oficiosa» no âmbito da jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD ao abrigo do artigo 2.º, alínea a), da Portaria n.º 112-A/2011”, não é inconstitucional “encontrando-se tais situações, por isso abrangidas pela jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD”.

Pugna, por isso, a Requerente pela equiparação da revisão oficiosa à  reclamação graciosa prevista no artigo 133.º do CPPT, resultado esse que se pode alcançar, em seu entender, através dos critérios de interpretação do artigo 9.º do Código Civil, viabilizando-se, assim, a apresentação de pedidos de pronúncia arbitral relativamente a actos de autoliquidação que tenham sido precedidos de pedido de revisão oficiosa.

Nesta linha, conclui a Requerente pela arbitrabilidade das pretensões relativas à legalidade de actos de autoliquidação de tributos que tenham sido precedidas de decisões de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa que comportem a apreciação da legalidade dos referidos actos de liquidação.

A questão suscitada já foi amplamente debatida e está decidida e estabilizada na jurisprudência.

Assim, o Acórdão do TCA-Sul de 11-07-2019, proferido no processo 147/17.4BCLSB, esclareceu cabalmente que “Tendo a Impugnante previamente ao pedido de pronúncia arbitral recorrido à via administrativa para corrigir a autoliquidação, por via da interposição de revisão do ato tributário, a questão não é inarbitrável podendo/devendo o Tribunal Arbitral dela conhecer.”.

                Também o Tribunal Constitucional, no Acórdão de 11 de Maio de 2018, proferido no processo n.º 636/17, concluiu que não é “inconstitucional a norma que considera os pedidos de revisão oficiosa equivalentes às situações em que existiu «recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», para efeito da interpretação da alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, encontrando-se tais situações, por isso, abrangidas pela jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD”.

                Deste modo, e pelos fundamentos dos arestos citados, aos quais se adere integralmente, deverá improceder também esta excepção.

 

c)            Da alegada incompetência material face ao pedido de condenação da AT ao reembolso de IVA suportado em excesso

Quanto ao pedido formulado pela Requerente tendente à condenação da AT ao reconhecimento do direito à restituição do IVA liquidado e pago em excesso, entende a Requerida que tal pedido não se encontra abrangido pela competência dos tribunais arbitrais.

Sustenta a Requerida que o âmbito de competência dos tribunais arbitrais definido no artigo 2.º, n.º 1 do RJAT, não contempla a apreciação de pedidos tendentes ao reconhecimento de direitos em matéria tributária. Embora a lei de autorização legislativa ao abrigo da qual foi instituída a arbitragem em matéria tributária tivesse previsto que “O processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária” (cf. artigo 124.º, n.º 2 e 4, alínea b) da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril), o legislador optou por não contemplar no RJAT a possibilidade de apreciação de pedidos tendentes ao reconhecimento de direitos em matéria tributária. 

Com este fundamento, conclui a Requerida pela existência de uma excepção dilatória, consubstanciada na incompetência material do Tribunal Arbitral.

Quanto a esta questão, entende a Requerente que labora em erro a Requerida quando entende que o pedido formulado por aquela se reporta “à condenação da Administração Tributária ao reconhecimento do direito à restituição do IVA liquidado e pago em excesso”. Esclarece a Requerente que o pedido por si formulado é no sentido de que “seja declarada a ilegalidade do despacho de indeferimento da revisão oficiosa acima identificado e, bem assim, das autoliquidações de IVA subjacentes ao mesmo, sendo as mesmas anuladas para todos os efeitos legais”.

Com efeito, entende a Requerente que a obrigatoriedade de a AT reembolsar a Requerente pelo valor integral do IVA indevidamente pago, será uma consequência da anulação da decisão de indeferimento do pedido de revisão (que, consequentemente, implica também, a anulação dos actos de autoliquidação efectuados nas declarações periódicas de IVA de Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro de 2014), pelo que tal condenação não consubstancia, em seu entender, um pedido principal.

Uma vez mais será de reconhecer, na matéria ora em apreço, razão à Requerente.

Efectivamente, também se trata esta matéria de questão já discutida e sedimentada, podendo, por exemplo, ler-se no Acórdão do TCA-Sul de 22-05-2019, proferido no processo 7/18.1BCLSB, que “Não padece de vício inquinatório de nulidade por pronúncia indevida, a decisão do tribunal arbitral que condene a Requerida no reembolso à Requerente do montante de imposto pago e anulado”.

Como se esclarece neste aresto:

“A competência dos tribunais arbitrais está fixada no art.º2.º, n.º1 alíneas a) e b), do RJAT, pelo que importará, desde logo, indagar se o pedido de condenação da AT “no reembolso à Requerente do montante de imposto pago (€ 55.081,78)”, se compreende no âmbito da competência do tribunal arbitral para apreciar a declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta e a declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais.

Uma leitura conjugada do disposto naquele art.º2.º do RJAT com o disposto no art.º10.º, n.º1, alínea a) do mesmo diploma, parece apontar no sentido de que a competência dos tribunais arbitrais corresponderá, salvo restrições legais, aos casos em que, no processo judicial tributário, os tribunais tributários conhecem das pretensões através do meio processual da impugnação judicial – artigos 97.º, n.º1 alíneas a) a f), 99.º e 102.º, n.º1, todos do CPPT.

Como se sabe, em processo judicial tributário, é pelo pedido que se afere a adequação do meio processual ao fim por ele visado: se o pedido formulado pelo Autor não se ajusta à finalidade abstractamente configurada por lei para essa forma processual, ocorre erro na forma do processo (cf. Prof. Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado”, volume II, Coimbra Editora, 3.ª edição - reimpressão, págs. 288/289).

Só que, estando os tribunais arbitrais limitados na sua competência material à apreciação de pretensões que se prendem com “a declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta” e “a declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais”, quaisquer outras pretensões – não compatíveis, em processo judicial tributário, com a forma processual da impugnação judicial – excedem o âmbito da sua competência, fixada no art.º2.º, n.º1 do RJAT.

Ora, por força da consagração do princípio constitucional da tutela judicial efectiva (cf.artº.268.º, nº.4, da Constituição da República), o processo judicial tributário tem vindo a perder a sua natureza estrita de um contencioso de mera anulação e a conferir tutela a pretensões características de um contencioso de plena jurisdição. É que, como se diz no Acórdão deste tribunal de 06/08/2017, tirado no proc.º06112/12, aquele princípio constitucional “somente é alcançado se as sentenças puderem ter todos os efeitos necessários e aptos a proteger o direito ou interesse apreciado pelo Tribunal, assim não podendo limitar-se à mera anulação do acto tributário e podendo o processo de impugnação revestir uma natureza condenatória, caso o contribuinte solicite não só a anulação do acto tributário, mas também a devolução do montante pago acrescido dos respectivos juros””

Deste modo, pelos fundamentos expostos, aos quais se adere integralmente, julga-se ser de improceder a excepção ora apreciada.

 

ii.            Do fundo da causa

 

A questão principal que se coloca nos presentes autos de processo arbitral prende-se com o apurar do direito à correcção de IVA considerado como liquidado indevidamente, bem como da sujeição, ou não, a IVA, da indemnização compensatória auferida pela Requerente.

Sobre estas matérias, entende a Requerente, em suma, que as mencionadas indemnizações, consubstanciando subvenções públicas, face à legislação e jurisprudência aplicáveis nesta matéria, encontravam-se excluídas de tributação em sede de IVA, pelo que, ao ter sido liquidado IVA pela Requerente, ocorreu um erro.

A Requerente, trazendo à colação o Acórdão do TJUE Office des Produits Wallons (“OPW”), de 22 de Novembro de 2001, referente ao processo C-184/00, que define os pressupostos de tributação em IVA das subvenções à luz do direito europeu, entende que a sujeição a IVA de indemnizações compensatórias, ou de subvenções em geral, depende da verificação de determinados pressupostos, nomeadamente, de terem uma relação directa com transmissões de bens ou prestações de serviços de que sejam a contraprestação direta.

Conclui a Requerente que, no caso sub judice, “não é possível aferir um nexo direto entre a subvenção/dotação recebida pela Requerente e as operações por esta praticadas. Concretamente, o preço a pagar pelo consumidor dos bens ou serviços transacionados pela Requerente não é fixado de modo a que diminua na proporção da subvenção concedida pelo Estado, não constituindo um elemento de determinação do preço exigido pela Requerente aos consumidores finais”, pelo que a indemnização compensatória atribuída à Requerente não preenche os pressupostos de sujeição a IVA.

Mais sustenta a Requerente que, tendo sido liquidado imposto em excesso por erro de enquadramento das operações por si realizadas, pode socorrer-se do artigo 98.º, n.º 2 do Código do IVA para proceder à correcção do referido erro. Em seu entender, o artigo 98.º, n.º 2 do CIVA apenas não será aplicado às situações abrangidas por prazos regulados em disposições especiais do CIVA, como sejam as situações do artigo 78.º do CIVA.

Entende a Requerente que não pode equiparar-se a situação sub judice a uma “inexactidão de fatura” e, por esse motivo, pretender-se aplicar-se o artigo 78.º, n.º 1 e 3 do CIVA, já que apenas estamos perante uma “inexactidão da fatura” quando um dos requisitos a que a mesma se encontra adstrita não está observado, o que não é o caso.

Mais sustenta que o erro quanto à aplicação de determinados regimes jurídicos não constitui um erro material, nem um erro de cálculo, pelo que não lhe é aplicável o artigo 78.º, n.º 6 do CIVA, mas antes o regime geral do artigo 98.º, n.º 2 do CIVA.

                Por seu lado, sustenta a Requerida que não se verifica, no caso sub judice, a existência de qualquer ilegalidade, que permitisse preencher o conceito de “erro imputável aos serviços” e legitimar o recurso ao pedido de revisão oficiosa previsto no artigo 78.º da LGT.

Entende a Requerida que da conjugação do disposto no artigo 203.º e 226.º da Directiva IVA, com a alínea c) do n.º 1 do artigo 2.º do CIVA, decorre a obrigação de entrega ao Estado do IVA facturado, ainda que indevidamente, e independentemente do motivo.

 Acresce que, em seu entender, as autoliquidações efectuadas pelos sujeitos passivos de IVA, nas declarações periódicas apresentadas, apenas poderão ser objecto de anulação em sede de revisão oficiosa, no que se refere ao imposto incidente nas operações tributáveis, se o imposto em causa não estiver contido na fatura ou documento que titule o pagamento. Com efeito, em seu entender, para que fosse possível anular as autoliquidações sub judice, seria necessário que os documentos emitidos nos quais consta IVA à taxa legal em vigor, fossem corrigidos, nos termos legais, para que fosse eliminada a referida menção, conforme procedimento constante do artigo 78.º do CIVA.

                Considera, ainda a Requerida que, a circunstância alegada pela Requerente de que as operações em causa não estão sujeitas a IVA, não determina a ilegalidade das autoliquidações, mas, quando muito, da liquidação efetuada no documento de suporte emitido. Considera, em síntese, que os erros são prévios à autoliquidação e decorrem da própria facturação das operações pelo sujeito passivo.

                Entende também a Requerida que, uma vez que estamos perante documentos internos da Requerente, poderia equacionar-se a hipótese de estarmos perante uma situação enquadrável no n.º 3 do artigo 78.º do CIVA, nomeadamente, inexactidão das facturas.

                Acrescenta a Requerida que estamos, no caso sub judice, no âmbito do direito à dedução e não do direito à regularização do IVA, pelo que o prazo de revisão oficiosa não se sobrepõe aos prazos de regularização previstos no CIVA e, não tendo a Requerente procedido à regularização exigida no prazo legal em vigor, a situação tributária consolidou-se com o decurso do tempo.

Não tendo havido lugar a qualquer regularização dos documentos de suporte dos registos contabilísticos com base nos quais a Requerente apresentou as autoliquidações, dentro dos prazos e meios legalmente previstos, não pode a mesma proceder, através do procedimento de revisão oficiosa, obter esse mesmo efeito invocando o artigo 78.º da LGT, conjugado com o 98.º do CIVA.

Quanto à questão de fundo, isto é quanto à questão da sujeição ou não sujeição da indemnização compensatória a IVA, entende a Requerida que atentas as disposições conjugadas do artigo 16.º do CIVA e do artigo 73.º da Directiva IVA, serão incluídos no valor tributável da operação as subvenções conexas com o preço das operações desde que reunidos determinados requisitos, nomeadamente: que as subvenções sejam determinadas por referência aos valores de venda dos bens ou do volume de serviços fornecidos e que as subvenções sejam fixadas em momento anterior à realização das operações.

Conclui a Requerida pelo preenchimento dos referidos pressupostos e, consequentemente, pela sujeição a tributação das subvenções.

Vejamos, então.

 

*

Dispõe o artigo 27.º/1 do CIVA aplicável (Redacção de 2014) que “os sujeitos passivos são obrigados a entregar o montante do imposto exigível, apurado nos termos dos artigos 19.º a 26.º e 78.º, no prazo previsto no artigo 41.º, nos locais de cobrança legalmente autorizados” , sendo que o montante do imposto exigível é apurado, pela dedução, nos termos dos artigos 19.º e seguintes, a efectuar sobre o imposto incidente sobre as operações tributáveis que efectuaram.

                Para o efeito, e no que ao caso ora importa, os sujeitos passivos estão obrigados a “Enviar mensalmente uma declaração relativa às operações efetuadas no exercício da sua atividade no decurso do segundo mês precedente, com a indicação do imposto devido ou do crédito existente e dos elementos que serviram de base ao respetivo cálculo” (artigo 29.º/1/c) do CIVA).

                São estas declarações que, na medida em que das mesmas decorre uma obrigação de pagamento a título de imposto, constituem actos de (auto)liquidação, estão presentemente em causa.

                Ora, salvo melhor opinião, o IVA incidente sobre as operações tributáveis que o sujeito passivo efectuou e que deverá constar de tais declarações, será o IVA que foi liquidado nas correspondentes facturas emitidas pelo sujeito passivo declarante, no cumprimento das obrigações legais consagradas nos artigos 36.º/5/d) e 37.º/1 do CIVA.

                Tal entendimento impor-se-á, desde logo, face ao próprio Regime Comum do IVA (Directiva 2006/112/CE do Conselho, de  28 de Novembro de 2006), que dispõe expressamente (artigo 203.º) que “O IVA é devido por todas as pessoas que mencionem esse imposto numa factura.”, sendo que, nos termos do artigo 226.º daquele, a factura inclui, obrigatoriamente, a taxa do IVA aplicável .

                Também – e como não podia deixar de ser – o ordenamento jurídico nacional aponta no mesmo sentido, dispondo, desde logo, o artigo 2.º/1/c) do CIVA aplicável, que são sujeitos passivos do imposto, “As pessoas singulares ou colectivas que, em factura ou documento equivalente, mencionem indevidamente IVA.”.

                Daqui resulta, claramente, julga-se, a obrigação de entrega ao estado do IVA facturado, ainda que indevidamente, seja porque motivo for, incluindo, obviamente, quer a aplicação de uma taxa, quando nenhuma devia ser aplicada (porque se trata de uma operação não sujeita), quer a aplicação de uma taxa superior à devida.

                Por isso mesmo, dispõe o artigo 29.º/7 do referido Código do IVA que “Quando o valor tributável de uma operação ou o imposto correspondente sejam alterados por qualquer motivo, incluindo inexatidão, deve ser emitido documento retificativo de fatura.”, devendo aqui ter-se presente o artigo 219.º da Directiva supra-referida, que dispõe que “É assimilado a factura qualquer documento ou mensagem que altere a factura inicial e a ela faça referência específica e inequívoca.”.

                Por fim, mas não menos relevante, o artigo 97.º/3 do CIVA dispõe que “As liquidações só podem ser anuladas”, na sequência de recurso hierárquico, reclamação e/ou impugnação, “quando esteja provado que o imposto não foi incluído na fatura passada ao adquirente nos termos do artigo 37.º”.

                Deste modo fica demonstrado, julga-se, que a autoliquidação efectuada pelos sujeitos passivos de IVA, na declaração apresentada nos termos do artigo 29.º/1/c) do CIVA, apenas poderá ser anulada, mesmo em sede de impugnação, no que se refere ao apuramento do montante de imposto incidente sobre as operações tributáveis que efectuaram, se o imposto em causa não estiver contido em factura ou documento equivalente passado ao adquirente.

                O que, de resto, bem se compreende, já que, a mecânica do imposto em questão, consabidamente, assenta na essencialidade da factura, pelo que, desde logo, os destinatários das facturas da Requerente, poderão, reunindo os requisitos que lei aplicável lhes imponha, deduzir o imposto contido nas mesmas.

                Conclui-se, assim, que para que fosse possível anular as autoliquidações em questão, era necessário que as facturas emitidas pela Requerente, nas quais esta, confessadamente incluiu 6% de IVA, fossem corrigidas, nos termos legais, para que passasse a constar das mesmas a isenção que aquela entende correcta, bem como as menções legalmente imperativas em tais circunstâncias.

                Assim, sendo, como se julga que é, era necessário, que fosse seguido o procedimento estabelecido no artigo 78.º do CIVA, que dispõe, no seu n.º 1 que “As disposições dos artigos 36.º e seguintes devem ser observadas sempre que, emitida a fatura, o valor tributável de uma operação ou o respetivo imposto venham a sofrer retificação por qualquer motivo”.

                Tratando-se de uma rectificação para menos (ou zero, no caso) do valor do imposto respeitante às operações efectuadas pela Requerente, a alteração da factura ou documento equivalente deveria ser efectuada no prazo de 2 anos, conforme decorre do n.º 3 do mesmo artigo 78.º. Não obsta a este entendimento o disposto neste n.º 3 do art.º 78.º uma vez que as rectificações aí referidas não se devem restringir às derivadas de erro material ou manifesto, desde logo porquanto quando o legislador entendeu que assim deveria ser, como acontece no n.º 6 do mesmo artigo 78.º, disse-o claramente.

Não tendo sido levada a cabo qualquer rectificação das facturas emitidas, não se coloca, todavia, a questão da aplicação do n.º 3 do artigo 78.º, sendo certo que, em todo o caso, da eventual não subsunção da situação sub iudice ao disposto no artigo 78.º/3, não decorreria, de qualquer maneira, o afastamento da aplicação do n.º 1 da mesma norma, pelo que sempre deveria a Requerente – nesse caso sem dependência do prazo de 2 anos – dar observância ao disposto no artigo 36.º, fazendo constar das facturas a correcção – para menos (no caso zero) – do valor do imposto que entendesse devido.

Caso tivesse procedido ela própria à rectificação das facturas emitidas, a Requerente teria de dispor também, como impõe o n.º 5, ainda do mesmo artigo, de “prova de que o adquirente tomou conhecimento da rectificação ou de que foi reembolsado do imposto”.

A este propósito, note-se que o TJUE considerou já, no seu acórdão de 26 de janeiro de 2012, proferido no processo C588/10, que: Uma exigência que subordina a redução do valor tributável, tal como resulta de uma fatura inicial, à posse, pelo sujeito passivo, de um comprovativo da receção de uma fatura retificada enviado pelo adquirente dos bens ou serviços enquadrase no conceito de condição referido no artigo 90.°, n.º 1, da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado..

Não se verificando tais requisitos (dos artigos 29.º/7, 97.º/3, e 78.º/1, todos do CIVA), inexistem fundamentos legais para a anulação das autoliquidações em questão, que se verificam efectuadas em conformidade com as normas que as regulam.

Não obsta ao que vem de se concluir, a circunstância – não discutida na presente decisão, por ficar prejudicada face ao quanto se vem de expôr – de as operações em causa poderem ser  não sujeitas, e não tributáveis à taxa de 6%, facturada pela Requerente.

Com efeito, daí resulta, não a ilegalidade das autoliquidações efectuadas pela Requerente nas declarações a que alude o artigo 29.º/1/c) do CIVA, mas das liquidações efectuadas pela própria Requerente nas facturas que emitiu, em cumprimento do disposto no artigo 37.º/1 do CIVA , liquidações essa cuja correcção se impunha à própria Requerente, nos termos atrás expostos.

A circunstância – de conhecimento prejudicado, como se referiu já – de eventualmente o imposto não ser devido por as operações subjacentes se deverem considerar não sujeitas, não poderá, igualmente, constituir fundamento de anulação das autoliquidações à luz do direito comunitário.

De facto, como o TJUE decidiu já no processo Processo C427/10 (Banca Antoniana Popolare Veneta SpA) , O princípio da efetividade não se opõe a uma legislação nacional relativa à repetição do indevido, que prevê um prazo de prescrição mais longo para a ação de direito civil de repetição do indevido, intentada pelo destinatário de serviços contra o prestador desses serviços, sujeito passivo do imposto sobre o valor acrescentado, do que o prazo de prescrição específico para a ação de reembolso de direito tributário, intentada por esse fornecedor contra a Administração Fiscal, contanto que esse sujeito passivo possa efetivamente reclamar a esta Administração o reembolso daquele imposto. Esta última condição não se verifica quando a aplicação dessa legislação tem por consequência privar totalmente o sujeito passivo do direito de obter junto da Administração Fiscal a recuperação do imposto sobre o valor acrescentado indevido que ele próprio teve de reembolsar ao destinatário dos seus serviços.”.

Conforme se pode ler nas conclusões do advogado-geral no processo:

“17.       No que diz respeito ao sistema italiano de restituição do IVA indevidamente cobrado, não é a primeira vez que este sistema e os seus três aspectos são objecto de questões prejudiciais submetidas ao Tribunal de Justiça pelos tribunais italianos.

18    Em primeiro lugar, no processo que deu origem ao acórdão Reemtsma Cigarettenfabriken (6), o Tribunal de Justiça analisou o sistema italiano, à luz dos princípios da neutralidade, da efectividade e da não discriminação, do ponto de vista do facto de o referido sistema prever para o prestador de serviços e para o destinatário dos serviços vias diferentes para obterem o reembolso do IVA indevidamente cobrado e pago. O Tribunal de Justiça concluiu, por fim, que os referidos princípios não obstam a uma legislação segundo a qual apenas o prestador de serviços pode exigir o reembolso dos montantes indevidamente pagos a título de IVA às autoridades fiscais e o destinatário dos serviços pode propor uma acção de direito cível de repetição do indevido contra este fornecedor (7).

19.      Em segundo lugar, no acórdão que deu origem ao acórdão Edis (8), o Tribunal de Justiça abordou a outra vertente do sistema italiano de restituição do IVA indevidamente recebido, ou seja, a que diz respeito aos diferentes prazos de caducidade ou prescrição no caso, por um lado, de um pedido de reembolso do IVA indevidamente pago dirigido à Administração Fiscal e, por outro lado, de uma acção de repetição do indevido entre particulares. O Tribunal de Justiça declarou que o direito comunitário não obsta a que a legislação de um EstadoMembro inclua, ao lado de um prazo de prescrição de direito comum aplicável às acções de repetição do indevido entre particulares, modalidades específicas de reclamação e de acção judicial menos favoráveis para a contestação de taxas e outros tributos (9).

20.      Em terceiro lugar, no que diz respeito à própria duração do prazo de caducidade do pedido de reembolso do IVA indevidamente pago dirigido à Administração Fiscal, decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça que deve tratarse de um prazo razoável que proteja, por sua vez, o contribuinte e a administração em causa. Com efeito, esses prazos não podem, na prática, impossibilitar ou dificultar excessivamente o exercício dos direitos conferidos pelo ordenamento jurídico comunitário (10). A possibilidade de apresentar um pedido de reembolso do IVA indevidamente pago sem limites temporais contraria o princípio da segurança jurídica, que exige que a situação fiscal do sujeito passivo, atentos os seus direitos e obrigações face à Administração Fiscal, não seja indefinidamente susceptível de ser posta em causa (11).

21.      A apreciação do carácter razoável dos prazos é feita pelo Tribunal de Justiça caso a caso. No que diz respeito ao prazo de caducidade de dois anos, o Tribunal de Justiça considerou tal prazo razoável relativamente ao direito à dedução do IVA (12). Na nossa opinião, é possível aplicar esta conclusão por analogia ao direito ao reembolso do IVA indevidamente pago.”.

                Já no Acórdão em questão, pode ler-se o seguinte:

“22      No acórdão de 15 de Março de 2007, Reemtsma Cigarettenfabriken (C35/05, Colect., p. I2425, n.° 37), o Tribunal de Justiça decidiu que, não havendo regulamentação comunitária em matéria de pedidos de restituição de impostos indevidamente cobrados, cabia ao ordenamento jurídico interno de cada EstadoMembro prever as condições em que esses pedidos podem ser apresentados, devendo estas condições respeitar os princípios da equivalência e da efectividade, isto é, não devem ser menos favoráveis do que as condições relativas a reclamações semelhantes baseadas em disposições de direito interno, nem fixadas de modo a impossibilitar, na prática, o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica comunitária.

23      No n.° 42 do acórdão Reemtsma Cigarettenfabriken, já referido, o Tribunal de Justiça declarou que o princípio da efectividade não se opõe a uma legislação nacional segundo a qual apenas o fornecedor/prestador de serviços pode requerer o reembolso dos montantes indevidamente pagos a título do IVA às autoridades fiscais e o destinatário dos serviços pode intentar uma acção cível para repetição do indevido contra este fornecedor/prestador de serviços.

24      O Tribunal de Justiça reconheceu também a compatibilidade com o direito da União da fixação de prazos razoáveis de recurso, sob pena de caducidade, no interesse da segurança jurídica, que protege simultaneamente o contribuinte e a entidade administrativa em causa. Com efeito, esses prazos não são susceptíveis de, na prática, impossibilitar ou dificultar excessivamente o exercício dos direitos conferidos pelo ordenamento jurídico da União (v., neste sentido, acórdãos de 17 de Novembro de 1998, Aprile, C228/96, Colect., p. I7141, n.° 19, e de 30 de Junho de 2011, Meilicke e o., C262/09, ainda não publicado na Colectânea, n.° 56).

25      É o que sucede com um prazo de prescrição de dois anos, dado que esse prazo permite, em princípio, a qualquer sujeito passivo normalmente diligente invocar validamente os direitos que o ordenamento jurídico da União lhe confere (v., neste sentido, acórdão Alstom Power Hydro, já referido, n.ºs 20 e 21). Esta conclusão vale igualmente para um prazo de prescrição de dois anos, no quadro do direito ao reembolso do IVA indevidamente entregue à Administração Fiscal.

26      O Tribunal de Justiça decidiu igualmente que o princípio da efectividade não é violado no caso de um prazo nacional de prescrição pretensamente mais vantajoso para a Administração Fiscal do que o prazo de prescrição em vigor para os particulares (acórdão de 8 de Setembro de 2011, QBeef e Bosschaert, C89/10 e C96/10, ainda não publicado na Colectânea, n.° 42).

27      Por conseguinte, prever um prazo de prescrição específico de dois anos, durante o qual o sujeito passivo pode reclamar à Administração Fiscal o reembolso do IVA indevido, ao passo que o prazo de prescrição das acções de repetição do indevido entre os particulares é de dez anos, não é, em si, contrário ao princípio da efectividade.”.

Ou seja, e resumindo, o TJUE já deixou bem claro, face às regras comuns do IVA, é admissível a existência de situações em que o contribuinte fique privado de reaver imposto que não seria, face às regras aplicáveis, devido, por não ter seguido os procedimentos próprios previstos na legislação nacional, conquanto a aplicação dessa legislação não tenha por consequência privar totalmente o sujeito passivo do direito de obter junto da Administração Fiscal a recuperação do imposto sobre o valor acrescentado indevido.

Mais resulta claro, da jurisprudência daquele Tribunal comunitário, como se viu, que a disponibilização de um prazo de dois anos para o contribuinte proceder à regularização das facturas, e à comunicação dessa regularização ao adquirente, não é uma exigência desproporcional ou desadequada, que limite, injustificadamente o direito à dedução.

Do mesmo modo, e como se resume nas conclusões do advogado geral, está comunitariamente assente que a existência de meios diversos para obter a recuperação do imposto – como seja o procedimento de rectificação das facturas onde é liquidado imposto indevido ou em excesso, ou a reclamação graciosa/procedimento de revisão/impugnação judicial, no caso de irregularidades próprias das facturas – não é incompatível com o regime comum do IVA, ainda que a utilização daqueles meios esteja sujeita a prazos diversos.

Face ao exposto, não sendo o regime nacional relativo ao procedimento de rectificação de facturas onde é liquidado indevidamente, ou em excesso, imposto, tal como está desenhado, tenha por consequência privar totalmente o sujeito passivo do direito de obter junto da Administração Fiscal a recuperação do imposto sobre o valor acrescentado indevido, nem que, no caso concreto, esse mesmo regime tenha sido impraticável ou, por qualquer razão não imputável ao contribuinte, este tenha sido intolerantemente privado de o utilizar, não se poderá concluir de outra forma que não pela conformidade de tal regime, ora aplicado, com o direito comunitário.

Assim, como se decidiu no Acórdão do TCA-Sul de 04-07-2000, proferido no processo 1525/98 :

“1. A dívida de IVA de cada sujeito passivo é encontrada deduzindo da totalidade do imposto mencionado nas facturas processada aos seus clientes o imposto suportado nas facturas de aquisição de bens e serviços destinados à sua produção, tudo reportado a um certo período de tempo;

2. Se houver alteração do valor tributável dos bens ou serviços pode o sujeito passivo proceder à sua rectificação, sendo a mesma facultativa se o imposto mencionado na factura for superior, e obrigatória, se tal imposto for inferior;

3. Em caso de imposto mencionado na factura de montante superior ao devido, enquanto não for rectificado, é o mesmo devido, cabendo à AF fiscal a sua liquidação adicional, no caso de o sujeito passivo o não fizer;”.

                Ou seja, e em suma: os erros que a Requerente aponta às autoliquidações ora em crise não são, em rigor, erros daquelas, mas das facturas que servem de suporte àquelas, e com as quais elas devem ser, por força do regime nacional e comunitário do IVA, conformes, e que não se apura que tenham sido, nos termos legalmente previstos, rectificadas.

                Deste modo e por todo o exposto, não enfermando as autoliquidações sub iudice de qualquer erro, deverá improceder totalmente o pedido arbitral formulado, ficando prejudicado o conhecimento das restantes questões colocadas.

 

*

C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar integralmente improcedentes as excepções arguidas pela Requerida, bem como julgar improcedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:

a)            Manter na ordem jurídica o acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa n.º ...2018... e as autoliquidações de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”) da Requerente referentes aos meses de Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro do ano de 2014, no valor de € 1.067.377,39, que são objecto daquele pedido;

b)           Condenar a Requerente nas custas do processo, no montante abaixo fixado.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 1.067.377,39, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 14.688,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerente, uma vez que o pedido foi totalmente improcedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 13 de Janeiro de 2020

 

O Árbitro Presidente

(José Pedro Carvalho)

 

O Árbitro Vogal

(Miguel Patrício)

 

O Árbitro Vogal

(Carla Castelo Trindade)