Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 262/2019-T
Data da decisão: 2019-12-20  IRC  
Valor do pedido: € 62.996,65
Tema: IRC – Dedutibilidade de custos; furtos e roubos; prova.
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DECISÃO ARBITRAL

Os árbitros Conselheiro Carlos Cadilha (árbitro-presidente), Prof. Doutor Jónatas Machado e Prof. Doutor Victor Calvete (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formarem o presente Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:

I. Relatório

1. A A..., Unipessoal, Lda. contribuinte n.º..., com sede na ..., n.º..., ..., ...-... Lisboa – que em 2005 incorporou a “B..., Lda.” por fusão mediante transferência global do património – (doravante Requerente), vem requerer, ao abrigo do disposto no artigo 11.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 81/2018, de 15 de Outubro, a constituição de Tribunal Arbitral, retomando pretensão que havia formulado junto do Tribunal Tributário de Lisboa em 11 de Dezembro de 2009, pedindo  a anulação do despacho proferido em 20 de Novembro de 2009 e, bem assim, a anulação parcial do acto de liquidação adicional de IRC/2004 n.º 2006..., no montante de € 60.530,67 e respectivos juros compensatórios no valor de € 2.465,98, por violação do disposto no artigo 23º do CIRC e artigo 60º, n.º 7, da LGT, bem como o reembolso do imposto já pago pela Requerente, na parte correspondente às correcções impugnadas, no valor de € 62.996,65 e o pagamento de juros indemnizatórios previstos na alínea e) do n.º 1 do artigo 30º e artigo 43º da LGT e no artigo 61º do CPPT, contados a partir de 29 de Agosto de 2006, data em que o imposto foi indevidamente pago pela Requerente.

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em 11 de Abril de 2019, pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida.

3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD nomeou os signatários como árbitros do tribunal arbitral coletivo, no dia 03 de Junho de 2019, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

4. As partes foram devidamente notificadas dessa nomeação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

5. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 26 de Junho de 2019.

 

6. Na sua Resposta, apresentada a 5 de Novembro de 2019, a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante AT ou Requerida) veio sustentar improcedência da presente acção, entendendo dever manter-se a correcção adicional com os fundamentos do Relatório/Conclusões (também abreviadamente referido como RIT), sustentando dever ser absolvida de todos os pedidos, com as legais consequências. 

 

7. A Requerente veio sustentar a procedência do seu pedido com base nos seguintes argumentos: 

a)            À data do exercício em causa (2004), a “B..., Lda” (entretanto incorporada na Requerente) geria, explorava e administrava 43 postos de abastecimento e áreas de serviço em auto-estradas ou em outros locais, nos quais levava a cabo: (i) o abastecimento de combustíveis e lubrificantes;  (ii) o comércio de peças, acessórios, sobressalentes e outros artigos para veículos automóveis; (iii) a exploração de restaurante, “snack-bar”, postos de venda de lembranças e utilidades; (iv) a comercialização de comida preparada, bebidas, tabaco, livros, jornais, revistas, produtos de drogaria e mercearia e outros compreendidos no ramo de supermercados.

b)           Relativamente ao exercício de 2004, a “B..., Lda” (entretanto incorporada na aqui Requerente) suportou um custo de € 206.139,05 com a ocorrência de “fugas” (correspondendo tal designação à situação em que um indivíduo realiza um abastecimento na sua viatura e abandona a estação de serviço sem pagar e em que “desaparecem” produtos da loja sem causa conhecida) e de € 13.963,24 com a verificação de “assaltos” (i.e. roubos).

c)            Na sequência de análise interna da declaração Modelo 22 apresentada pela “B..., Lda.” (entretanto incorporada na aqui Requerente), realizado pela Direcção de Serviços de Inspecção Tributária da Direcção Geral dos Impostos, com referência ao exercício de 2004, foi a Requerente notificada, em 26 de Maio de 2006, do projecto de correcções do relatório de inspecção. 

d)           Entre essas correcções incluíam-se as relativas à não consideração como custo do exercício dos montantes de € 13.963,24 e € 206.138,05 referentes a custos/perdas extraordinárias – Assaltos e custos/perdas extraordinárias e fugas, respectivamente.

e)           As “fugas” produzem um efeito patrimonial especialmente lesivo, porque sempre que um “cliente” efectua um abastecimento e abandona a estação de serviço sem efectuar o respectivo pagamento, a Requerente suporta uma perda nas suas existências, sendo que o combustível vendido a retalho constitui a principal mercadoria comercializada nas operações de retalho da Requerente. Do mesmo modo, sempre que “desaparecem” produtos das lojas, a Requerente suporta a perda correspondente a esse desaparecimento.

f)            Estas perdas encontram-se devidamente suportadas em documentos idóneos e bastantes, dispondo a Requerente de um sistema de gestão de inventário que lhe permite controlar as entradas e saídas de produtos (sejam combustíveis, sejam produtos de loja).

g)            Relativamente aos combustíveis que se encontram nos tanques das estações de serviços da Requerente, todos os movimentos de entrada e saída são registadas automaticamente através de numeradores aí instalados que possibilitam o registo contabilístico a que corresponde a movimentação dos produtos, ficando garantido o controlo de movimentação dos combustíveis comercializados nas estações de serviço da Requerente, e de eventuais “fugas” através destes registos automáticos.

h)           À data do exercício em causa – 2004 – a “B..., Lda” dispunha de um manual relativo a normas e procedimentos com identificação dos procedimentos que deveriam ser levados a cabo para controlo das quebras de existências e bem assim das fugas/roubos, sendo certo que já se mostravam implementados vários procedimentos internos tendentes ao controlo destas situações.

i)             No exercício de 2004, a Requerente suportou, a título de custo com a aquisição do combustível e produtos das lojas, a quantia de €176.263.046,00, verificando-se que o valor referente às quebras de mercadorias decorrentes de “fugas” e “assaltos” corresponde, em termos percentuais, a apenas 0,12% do valor global do custo com a aquisição do combustível e produtos das lojas.

j)             Nos postos de abastecimento/estações de serviço à data do exercício de 2004, a “B..., Lda” dispunha já de sistemas de alarme instalados na entrada dos estabelecimentos comerciais e, bem assim, de diversas câmaras de vigilância, assegurando, em cada um dos postos de abastecimento/estações de serviço com maior volume de transacções (sitos na sua maioria na área da grande Lisboa) e no que respeita ao exercício de 2004, a permanência de um segurança privado, o que implicou um custo mensal por posto na ordem dos € 2.000.

k)            A Autoridade Tributária, no âmbito da inspecção realizada em 2008, no que respeita a questão idêntica à tratada nos presentes autos e com base na documentação que então lhe foi apresentada, aceitou a posição defendida pela aqui Requerente, ou seja, que os custos suportados com a ocorrência de fugas/assaltos se enquadram no âmbito de aplicação do artigo 23.º, n.º 1 do CIRC;

l)             O Acórdão do STJ de 11 de Novembro de 1998 considerou que integra um crime de furto a conduta do arguido que conduz o seu carro até junto de uma bomba de gasolina, diz ao empregado para meter certa importância de gasolina e, quando já foi colocado o combustível no depósito e nestes aplicado o respectivo tampão, se afasta com o automóvel, pondo-se em fuga, com intenção de se apropriar do dito combustível sem pagar o seu preço – podendo o artigo ser tirado livremente pelo comprador, ou entregue pelo empregado, não impede que o crime de furto se possa vir a verificar;

m)          A perda material proveniente do furto, nos limites atrás referidos, constitui custo ou perda de exercício, por isso que se torna indispensável para a manutenção da fonte produtora;

n)           Se a existência de mercadorias é havida como um valor positivo porque se destina à realização de operações de afluxo de valores positivos ao rédito da empresa, a perda material de tais unidades, seja a que título for, e desde que comprovada em termos razoáveis, não pode deixar de ser havida como realidade que foi indispensável suportar para a realização dos proveitos ou para a manutenção da força produtora;

o)           O Despacho de 15 de Junho de 2009 sobre quebras de mercadorias nas grandes superfícies de venda a retalho, emitido pelo substituto legal do Director Geral dos Impostos, sancionou o entendimento de que, em sede de IRC, as quebras de mercadorias nas grandes superfícies de venda a retalho são inerentes à actividade normal das empresas desse sector pelo que se enquadram, em regra, no princípio da indispensabilidade previsto no corpo do n.º 1 do artigo 23º do CIRC;

p)           De acordo com esse Despacho, para a aceitação como custo das quebras não é de exigir participações à polícia por furto contra desconhecidos nem a exigência de apólices de seguro uma vez que as quebras não identificadas resultam do exercício normal da actividade, não revestindo uma natureza extraordinária e imprevisível;

q)           A aceitação como custo de tais quebras dependerá: (i) da análise das situações concretas em que os mesmos ocorreram, o que englobará a verificação da existência de sistemas de controlo implementados (sistemas de rádio anti-roubo, CCTV, segurança privada e locais de venda assistida), para assegurar a minimização dos furtos, bem como a existência de um sistema devidamente organizado de registo informático de quebras de existências e de controlo interno, e bem assim, (ii) da demonstração que se situam dentro dos limites razoáveis para o sector de actividade;

r)            Existindo clara identidade entre a actividade desenvolvida pelas grandes superfícies de venda a retalho e a actividade desenvolvida pela aqui Requerente, não poderá deixar de se concluir no sentido da plena aplicação ao caso sub judice do entendimento sancionado por Despacho de 15 de Junho de 2009, sob pena de flagrante violação do princípio da igualdade fiscal;

s)            Uma estação de serviço, tal como sucede com um supermercado, constitui um espaço aberto ao público em geral, sem qualquer restrição na admissão de clientes, sendo que tais espaços comerciais implicam forçosamente a possibilidade de ocorrência de furtos;

t)            É facto público e notório que a ocorrência de furtos (seja por via da subtracção de mercadorias no interior do estabelecimento comercial, seja por via do abastecimento de combustíveis sem que seja efectuado o pagamento devido), no sector específico em que actua a Requerente (tal como, aliás, sucede em todos os sectores de distribuição com portas abertas ao público), constitui uma realidade indesejavelmente frequente, certa e previsível, inerente a este ramo de atividade:

u)           Os danos decorrentes da verificação das acima referidas situações de furto (“fugas” e “assaltos”) constituem um custo que as empresas do sector da venda de combustível a retalho (onde se inclui a aqui Requerente) têm necessariamente de suportar no exercício da sua actividade económica;

v)            A Requerente possui, quer em relação aos combustíveis, quer em relação aos produtos de loja, procedimentos de controlo previamente definidos que possibilitam o apuramento dos montantes em causa e através dos quais procura minimizar estas situações; procedimentos esses já explicitados junto da AT e por ela aceites na inspecção externa ao exercício de 2008, sendo que se encontravam instalados em 19 postos de abastecimento/estações de serviço sistemas de alarme instalados na entrada dos estabelecimentos comerciais e, bem assim, diversas câmaras de vigilância;

w)          Embora a Requerente tenha actuado com a diligência necessária de forma a tentar reduzir o mais possível a ocorrência (inevitável) das referidas situações de “fugas” e “assaltos”, as políticas internas de segurança levadas a cabo pela aqui Requerente apenas permitem diminuir a sua intensidade, não sendo possível, de todo, eliminar radicalmente a sua verificação;

x)            Não existem companhias de seguros que aceitem cobrir na íntegra os riscos associados a um sector de actividade que é, e sempre foi, assolado por danos (advenientes de situações de furto) de ocorrência diária, como é o sector da distribuição onde se enquadra a actividade desempenhada pela Requerente;

y)            Os danos decorrentes da verificação das acima referidas situações de furto (“fugas” e “assaltos”) constituem um custo que as empresas do sector da venda de combustível a retalho (onde se inclui a aqui Requerente) têm necessariamente de suportar no exercício da sua actividade económica, pelo que os custos de € 206.139,05 (suportado com a ocorrência de “fugas”) e de € 13.963,24 (suportado com a verificação de “assaltos”) constituem custos comprovadamente indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, enquadrando-se consequentemente no disposto no artigo 23º, n.º 1, do CIRC;

z)            A correcção promovida ao exercício de 2004, de € 60.530,67 (acrescido de € 2.465,98 a título de juros compensatórios), foi assim indevida, mostrando-se o acto de liquidação e despacho de indeferimento da reclamação graciosa apresentada feridos do vício de violação de lei por preterição do disposto no artigo 23º, n.º 1, do CIRC, e viciados por falta de fundamentação;

aa)         As correcções propostas pela DSIT referentes aos “custos associados a eventos seguráveis”, consubstanciadas na liquidação adicional de IRC n.º 2006... e admitidas como válidas pelo despacho de indeferimento expresso da reclamação graciosa apresentada, mostram-se feridas de ilegalidade. 

8. A Requerida respondeu, por impugnação, sustentando que o presente pedido deve ser julgado improcedente, com os seguintes fundamentos, provenientes uns da fundamentação das correcções efectuadas (Relatório/Conclusões), outros da decisão da Reclamação Graciosa e outros ainda de uma Informação (AJT - 221/08) elaborada no seu âmbito, mas todos imputados a um (mesmo) Relatório de Inspecção Tributária (RIT):

a)            O reconhecimento da dedutibilidade fiscal de qualquer gasto/custo e, mais propriamente in casu as perdas em existências, tem de estar fundado em elementos objectivos precisos e iniludíveis, que permitam aferir quanto aos bens que efectivamente tenham sido suprimidos do circuito comercial e, por esse facto, os proveitos a eles subjacentes não deverão ser objecto de tributação;

b)           Foi solicitado, através do ofício n.º ... de 13 de Março de 2006, que a Requerente informasse se possuía seguro para este tipo de ocorrências, tendo esta esclarecido em resposta ao quesito 9º do referido ofício, que deu entrada em 24 de Março de 2006, que “de acordo com a política do Grupo, a empresa não possui seguros para fazer face a este tipo de ocorrências”.

c)            O custo em causa, referente a eventos não segurados, não é comprovadamente indispensável para a realização de proveitos ou ganhos sujeitos a imposto, conforme o n.º 1 do artigo 23º do Código do IRC, sendo que não se pode aceitar como uma fatalidade o facto de haver furtos neste tipo de estabelecimento, dado que já existem, e com toda a certeza poderão vir a ser aperfeiçoados, esquemas de vigilância e segurança, permitindo reduzir este tipo de custos a valores residuais, sob pena de, sem quaisquer provas do valor efectivo das perdas e sem que houvesse necessidade de um especial cuidado na implementação dos referidos esquemas de segurança, a AT fosse obrigada a aceitar fiscalmente o conjunto desses valores;

d)           Assaltos e fugas revestem diferente natureza jurídica, sendo que nos assaltos, não há consentimento do ofendido, integrando os mesmos o ilícito penal comum, ao passo que nas fugas há consentimento ao abastecimento, com disponibilização do bem em venda ao cliente sem exigência prévia de pagamento, ocorrendo uma venda sem pagamento, no quadro de uma celebração contratual, com o inerente sinalagma obrigacional, embora a parte compradora não cumpra a sua obrigação contratual ao não pagar o bem adquirido, consubstanciando um ilícito cível;

e)           Havendo uma venda no caso das fugas, houve rendimento (ou proveito), preenchendo-se o tipo da incidência tributária, não se podendo falar aí de encargos para a obtenção de proveitos, já que não está esgotada a possibilidade de recuperação dos mesmos em sede processual cível, relevando esse proveito, de forma mais curial, para o âmbito das provisões para cobranças duvidosas nos termos dos artigos 34°, n.º 1, al. a), e 35°, n.º 1, al. c) do CIRC;

f)            A não ser este o entendimento quanto ao enquadramento jurídico, persiste uma omissão legislativa no Código do IRC, que não cabe à Inspeção colmatar por recurso à analogia – porque a tal o proíbe o art.º 11º, n.º 4 da LGT – carecendo o Código do IRC de ser dotado com normas que enquadrem em encargos, para efeitos do artigo 23.°, as situações de percepção de proveitos que, por via da fuga, com o concomitante incumprimento contratual, obstam a que o vendedor aceda à contrapartida pecuniária que lhe é devida;

g)            Face ao ordenamento jurídico português, os furtos e o incumprimento contratual (ex. em concreto as fugas após abastecimento consentido), não são (ainda) considerados uma normalidade, quando muito serão uma fatalidade a que só o empenho de toda a comunidade pode pôr cobro;

h)           Do conformismo a essa fatalidade que o contribuinte aceita em termos penais e cíveis, não envidando os mecanismos legais processuais para o contrariar, à aceitação por parte da AT de tais factos como desoneradores da matéria tributável, vai uma grande distância;

i)             Dispondo actualmente as empresas que operam no sector de actividade em causa – por via do seu sistema de inventário e por muito grande que seja o volume de bens transaccionados – de um conhecimento detalhado, à unidade, dos bens em existências/mercadorias em cada momento, é possível, por confronto entre o inventário permanente, de obrigação legal, e o controlo periódico de stocks, determinar com exactidão quais os bens que, por motivos desconhecidos (supostamente furto), se encontram em falta nos respetivos existências/mercadorias, pelo que as quebras alegadas pela Requerente, teriam de ser comprovadas, recaindo sobre ela esse ónus de demonstração, nos termos do artigo 74º, n.º 1, da LGT;

j)             Se a Requerente pretende ver reconhecido o direito a deduzir fiscalmente uma parte de um valor que acresceu ao resultado líquido, terá de: i) comprovar a que respeita o montante global acrescido; ii) comprovar que do mesmo faz parte o valor cuja dedução fiscal agora reclama; iii) juntar os elementos de prova necessários para que a AT possa proceder à análise, verificação e controlo do valor em causa, exigência que decorre do disposto nos nºs. 1 e 2 do artigo 123.º do CIRC, na medida em que o mesmo irá fazer parte integrante da parcela negativa de que é composto o lucro tributável:

k)            Os documentos de prova juntos à petição que consubstanciou o recurso hierárquico foram os mesmos que haviam sido juntos em sede de reclamação: i) cópia da certidão do registo comercial; ii) Projeto de conclusões do RIT; iii) Audição prévia; iv) Relatório Final de Inspeção; v) Nota de liquidação e de compensação; vi) Mapa resumo das coberturas; vii) Acórdão do Tribunal Central Administrativo; viii) Despacho da DSIRC de 30 de Abril de 1996, não sendo aptos à demonstração da realidade apontada como base factual da situação que se pretendia corrigir;

l)             Os elementos de prova carreados em sede administrativa não foram aptos à demonstração que se impunha de que no exercício de 2004 a Requerente teve quebras em inventários no montante que reclama, não demonstrando a existência de um custo fiscalmente dedutível de € 220.102,29;

m)          Não basta alegar, sem mais, que em resultado da inventariação física se constatou que as existências finais não correspondiam às que estavam registadas, sendo necessária, pelo menos, a evidência da forma como se procedeu ao apuramento do valor que se reclama, mormente pela indicação da quantidade de bens que terão sido objecto de furto/fugas, qual o seu valor unitário;

n)           Não é possível presumir que determinada percentagem de bens, adquiridos e incorporados nas existências, seja considerada suprimida destas, por circunstâncias inerentes ao negócio, sob pena de se gerar uma ausência de tributação sobre rendimentos efectivamente obtidos, o que constituiria uma violação do princípio constitucional da tributação segundo o rendimento real;

o)           A DSIT, estava, nos termos do artigo 68.º, n.º 4-b) da LGT, a prosseguir o entendimento da AT de que só são aceites fiscalmente como custos bens furtados, não segurados, que integrem o inventário das existências, não estando incluídos os furtos de dinheiro (assaltos) e as fugas após abastecimento consentido, as quais serão mais do âmbito das provisões para cobranças duvidosas nos termos dos artigos 34º, n.º 1-a) e 35º, n.º 1, c) ambos do CIRC;

p)           No presente processo os custos cujo relevo se pretende ver reconhecido para efeitos fiscais não foram devidamente comprovados, pelo que não poderão ser aceites.

9. Por despacho proferido a 7 de Outubro de 2019 o tribunal decidiu prescindir da realização de audiência de julgamento prevista no artigo 18.º do RJAT, entre o mais porque tal não tinha sido necessariamente requerido, e porque a única testemunha indicada era diferente da que prestara depoimento no anterior processo judicial; tendo em conta que o relevo factual é o da data dos factos, ouvir no processo uma testemunha que não fora indicada há quase uma década não se afigurava uma mais-valia; demais, como se inferia do ponto 16 das alegações produzidas pela Requerente no âmbito do processo de impugnação judicial, o testemunho deveria incidir sobre “os procedimentos levados a cabo em cada posto de abastecimento gerido pela impugnante no que toca à identificação das alegadas “fugas” e “assaltos”.”, uma matéria que, no âmbito do processo de impugnação judicial tinha merecido a seguinte referência do Ministério Público no seu Parecer: “Mostra-se assente que, no exercício em análise, a “B..., Lda” suportou custos, devidamente comprovados, naquelas duas rubricas. Custos esses que, na sua materialidade, não se encontram questionados, pela AT.”

 

II. SANEAMENTO

10. O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, como se dispõe nos artigos 2.º, n.º 1, al. a), e 4.º, ambos do RJAT.

11. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (vd. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma, e artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

III. Do Mérito

III.1.1. Factos provados

12. Consideram-se provados os seguintes factos:

a)            À data do exercício em causa (2004), a “B..., Lda” (entretanto incorporada na Requerente) geria, explorava e administrava 43 postos de abastecimento e áreas de serviço em auto-estradas ou em outros locais, nos quais levava a cabo: (i) o abastecimento de combustíveis e lubrificantes;  (ii) o comércio de peças, acessórios, sobressalentes e outros artigos para veículos automóveis;  (iii) a exploração de restaurante, “snack-bar”, postos de venda de lembranças e utilidades; (iv) a comercialização de comida preparada, bebidas, tabaco, livros, jornais, revistas, produtos de drogaria e mercearia e outros compreendidos no ramo de supermercados;

b)           Nas estações de serviço são efectuadas mensalmente contagens de inventário dos produtos em loja (cfr. Documentos n.º 18 e 19);

c)            O resultado destas contagens é introduzido no sistema informático de suporte à contabilidade da Requerente, sendo posteriormente as quantidades existentes em stock comparadas com as verificadas (cfr. Documentos n.º 20 e 21);

d)           As diferenças são lançadas contabilisticamente através de um tipo de movimento com o código 701 ou 702, consoante se trate de sobras ou quebras, adotando-se o mesmo procedimento relativamente aos furtos, sendo os procedimentos automáticos devidamente supervisionados pelos gerentes das estações de serviço e pelos responsáveis de área, os quais apõem as respectivas assinaturas nos documentos de controle  (cfr. Documentos n.º 22 a 25);

e)           À data do exercício em causa – 2004 – a “B..., Lda” (entretanto incorporada na aqui Requerente), dispunha de um manual relativo a normas e procedimentos com identificação dos procedimentos que deveriam ser levados a cabo para controlo das quebras de existências e bem assim das fugas/roubos, sendo certo que já se mostravam implementados vários procedimentos internos tendentes ao controlo destas situações (cfr. Documentos n.º 26 e 27);

f)            Na sequência de análise interna da declaração Modelo 22 apresentada pela “B..., Lda.” (entretanto incorporada na aqui Requerente), realizado pela Direcção de Serviços de Inspecção Tributária da Direcção Geral dos Impostos, com referência ao exercício de 2004, foi a aqui Requerente notificada, em 26 de Maio de 2006, do projecto de correcções do relatório de inspecção (cfr. documento n.º 5);

g)            Entre essas correcções incluíam-se as relativas à não consideração como custo do exercício dos montantes de € 13.963,24 e € 206.138,05 referentes a custos/perdas extraordinárias – Assaltos e custos/perdas extraordinárias e fugas, respectivamente (cfr. documento n.º 5);

h)           A Requerente, em 7 de Junho de 2006 e no âmbito do direito de audição, apresentou a resposta devida (cfr. documento n.º 6);

i)             Em 4 de Julho de 2006, a Requerente foi notificada do Relatório/Correcções resultantes da acção de inspecção, o qual não divergiu do Projecto de Correcções inicialmente apresentado pela AT (cfr. documento n.º 7); estes documentos constituem a única fundamentação das correcções efectuadas;

j)             A Requerente foi notificada, em 27 de Julho de 2006, da nota de liquidação adicional de IRC n.º 2006..., no montante total de € 63.743,31 (cfr. documento n.º 8);

k)            Em 21 de Dezembro de 2006, a Requerente apresentou reclamação graciosa da referida liquidação adicional de IRC n.º 2006..., tendo como objecto: (i) a anulação parcial no montante de € 60.530,67 da liquidação adicional de IRC n.º 2006..., respeitante ao exercício de 2004 e respectivos juros compensatórios; (ii) reembolso do imposto já pago na parte correspondente às correcções reclamadas, no valor de € 62.996,65, bem como dos respectivos juros compensatórios e (iii) pagamento dos juros indemnizatórios previstos na alínea e) do n.º 1 do artigo 30º, no artigo 43º da LGT e no artigo 61º do CPPT, contados desde 29 de Agosto de 2006, data em que o imposto foi por si indevidamente pago (cfr. documento n.º 9);

l)             Em 4 de Junho de 2009, foi a Requerente notificada do projecto de decisão da reclamação graciosa por si apresentada, tendo apresentado a competente resposta por requerimento datado de 19 de Junho de 2009 (cfr. documentos n.º 10 e 11);

m)          Por requerimento de 28 de Setembro de 2009, a Requerente requereu a junção aos autos de reclamação graciosa de dois ofícios, um proveniente da DSIRC e outro da DSIVA, relativos ao tratamento tributário que deverá ser dado às quebras de existências (cfr. documento n.º 12);

n)           Por despacho proferido pelo Chefe de Divisão (por subdelegação do Director de Finanças Adjunto), em 20 de Novembro de 2009, foi indeferida a reclamação graciosa apresentada pela Requerente (cfr. documentos n.º 13 e 14);

o)           A Autoridade Tributária, no âmbito da inspecção realizada em 2008, no que respeita a questão idêntica à tratada nos presentes autos e com base na documentação que então lhe foi apresentada, aceitou a posição defendida pela aqui Requerente, ou seja, que os custos suportados com a ocorrência de fugas/ assaltos se enquadram no âmbito de aplicação do artigo 23.º, n.º 1 do CIRC. (cfr. Documento n.º 29)

 

III.1.2. Factos não provados

 

Não há factos relevantes para a apreciação da causa que não se tenham provado.

 

 

III.1.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

O Tribunal não tem que se pronunciar sobre todos os detalhes da matéria de facto que foi alegada pelas partes, cabendo-lhe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT, e artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são seleccionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções para o objeto do litígio no direito aplicável (vd. artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do disposto no artigo 110.º, n.º 7, do CPPT, as provas documental e testemunhal apresentadas, bem como a declaração de parte que foi prestada, consideram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

III.2. MATÉRIA DE DIREITO

III. 2.1. Questões decidendas

Tendo em conta as posições assumidas pelas Partes, estão em discussão duas questões essenciais (a mais das questões acessórias do pedido de restituição da quantia paga e dos juros indemnizatórios - infra, III.2.4): 

- a interpretação do disposto no artigo 23.º do Código do IRC (tal como vigente à data dos factos) quanto ao enquadramento de assaltos e de furtos de combustíveis e, ou, de produtos diversos acessíveis ao público nos postos de abastecimento de combustíveis, como custos “indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto”  (infra, III.2.2); 

- a documentação desses custos (uma vez que tinham de ser “comprovadamente (...) indispensáveis”) de forma a serem fiscalmente relevantes (infra, III.2.3).

 

III.2.4. Perdas por roubo e furto como gastos

 

À data dos factos (2004), era a seguinte a redacção do artigo 23.º do Código do IRC :

 

Artigo 23.º

Custos ou perdas

1 - Consideram-se custos ou perdas os que comprovadamente forem indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nomeadamente os seguintes:

a) Encargos relativos à produção ou aquisição de quaisquer bens ou serviços, tais como matérias utilizadas, mão-de-obra, energia e outros gastos gerais de fabricação, conservação e reparação;

b) Encargos de distribuição e venda, abrangendo os de transportes, publicidade e colocação de mercadorias;

c) Encargos de natureza financeira, como juros de capitais alheios aplicados na exploração, descontos, ágios, transferências, diferenças de câmbio, gastos com operações de crédito, cobrança de dívidas e emissão de acções, obrigações e outros títulos e prémios de reembolso;

d) Encargos de natureza administrativa, tais como remunerações, ajudas de custo, pensões ou complementos de reforma, material de consumo corrente, transportes e comunicações, rendas, contencioso, seguros, incluindo os de vida e operações do ramo «Vida», contribuições para fundos de poupança-reforma, contribuições para fundos de pensões e para quaisquer regimes complementares da segurança social;

e) Encargos com análises, racionalização, investigação e consulta;

f) Encargos fiscais e parafiscais;

g) Reintegrações e amortizações;

h) Provisões;

i) Menos-valias realizadas;

j) Indemnizações resultantes de eventos cujo risco não seja segurável.

2 - Não são aceites como custos as despesas ilícitas, designadamente as que decorram de comportamentos que fundadamente indiciem a violação da legislação penal portuguesa, mesmo que ocorridos fora do alcance territorial da sua aplicação.

3 - No caso das rendas de locação financeira, não é aceite como custo ou perda do locatário a parte da renda destinada a amortização financeira.

4 - Excepto quando estejam abrangidos pelo disposto no artigo 40.º, não são aceites como custos os prémios de seguros de doença e de acidentes pessoais, bem como as importâncias despendidas com seguros e operações do ramo «Vida», contribuições para fundos de pensões e para quaisquer regimes complementares de segurança social que não sejam considerados rendimentos de trabalho dependente, nos termos da primeira parte do n.º 3) da alínea b) do n.º 3 do artigo 2.º do Código do IRS.

 

                Face a esta previsão normativa, a questão discutida pelas Partes é a de enquadrar nela – ou não – as perdas decorrentes de fugas (€ 206.139,05) e de assaltos (€ 13.963,24).

Começando por estes, a primeira nota a registar é a de que seria estranho que os agentes económicos fossem fiscalmente responsáveis pelo valor dos bens que lhes foram subtraídos à força. Neste particular, o símile reproduzido na Resposta da AT – e erradamente imputado ao Relatório de Inspecção Tributária (“Se um contribuinte com um determinado rendimento que obteve, adquire um bem móvel e posteriormente lho furtam, nem por isso deixa de ter que pagar IRS sobre esse rendimento.”) é destituído de sentido: por um lado, porque o facto tributário nesse exemplo é a obtenção do rendimento, sendo indiferente o que lhe sucede depois, enquanto que, no caso dos autos, o que está em causa é apurar em que termos é que a perda de um activo destinado a ser vendido interfere no próprio facto tributário; por outro lado, porque na actividade das empresas, ao contrário do que acontece para o tal “contribuinte”, vigora o princípio da plena dedutibilidade dos custos (nos termos do próprio n.º 1 do artigo 23.º do Código do IRC, na sua presente redacção: “Para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC.”); finalmente, se bem que isso seja o menos, porque um furto não é o correspondente aos assaltos – que seriam o termo de comparação relevante –mas sim um roubo.

Diga-se que uma tal comparação não persuadiu sequer a AT, uma vez que esta admitiu uma diferença relevante nas situações de assaltos e nas de fugas, como se comprova de outro segmento reproduzido na Resposta da AT (e igualmente imputado, sem fundamento, ao Relatório de Inspecção Tributária, quando é proveniente da Informação AJT – 221/08, elaborada no quadro da Reclamação Graciosa interposta pela Requerente):

 

“E aqui é que reside o busílis, na distinção factual e jurídica entre os assaltos e as fugas. 

Ali, nos assaltos, não há o consentimento do ofendido, integra o ilícito penal comum.

Aqui, nas fugas, há consentimento ao abastecimento, há disponibilização do bem em venda ao cliente sem exigência prévia de pagamento. Efetivamente, há venda, não há é pagamento. Ou seja, houve celebração contratual, houve sinalagma obrigacional, só que a parte compradora não cumpriu a sua ·obrigação contratual ao não pagar o bem que adquiriu. Aqui há já um ilícito cível.

Mas formalmente ·houve venda, logo houve rendimento (ou proveito, como se lhe queira chamar), preencheu-se o tipo· da incidência real, no meu entendimento jurídico.

E não se pode falar aqui·em encargos para a obtenção de proveitos, porque já estamos no campo da perceção do proveito ainda que com não cumprimento contratual por parte do devedor. Não é como tal uma situação que na sua factualidade seja enquadrável. no art° 23°/1 CIRC, porque está para lá do normativo, está a jusante deste.

É uma situação que compagina o ressarcimento de natureza cível. Mas há - incidência tributária porque o proveito, que é o valor do abastecimento, se preencheu no seu tipo, até porque com a fuga não se esgotou a possibilidade da sua recuperação em sede processual cível.”

 

                O que quer que tal construção valha – e, embora não haja fundamento para desqualificar as “fugas” após o abastecimento como ilícitos penais, a avaliação das concepções da AT sobre tais ilícitos é alheia ao âmbito dos presentes autos –, não há fundamento para assimilar a fuga do posto de abastecimento após o abastecimento a um mero crédito incobrável, como expressamente fez a AT (que, mais uma vez que reproduz essa passagem na sua Resposta como sendo do Relatório de Inspecção Tributária, quando é proveniente da Informação AJT – 221/08, elaborada no quadro da Reclamação Graciosa interposta pela Requerente): “com a fuga não s• esgotou a possibilidade da sua recuperação em sede processual cível.”

É que, desde logo, à concepção de créditos incobráveis é inerente o conhecimento da identidade do devedor (não há créditos contra incertos), e o que é inerente às fugas – ou, pela mesma ordem de ideias, aos furtos – é o desconhecimento da identidade do devedor.

Em todo o caso, a distinção que assim parece ter tido relevo para a fundamentação das correcções realizadas pela AT (distinção que esta parece manter nos autos) traduzir-se-ia, então, em duas realidades diversas: assaltos, como ilícitos penais, cujas perdas seriam irrecuperáveis, e fugas, como ilícitos civis, que originariam créditos incobráveis. Uma tal argumentação – qualquer que seja a sua valia dogmática, que, repete-se, não cabe aqui apreciar – padece, porém, de uma incongruência: levando-a a sério, não haveria razão para desconsiderar o montante de perdas (€ 13.963,24) associado aos assaltos. Tendo em conta, ainda para mais, o reduzidíssimo valor angariado com essa actividade criminosa , não havia razão para não admitir que tais custos residuais eram indispensáveis – no sentido de inevitáveis – ao negócio. Evidentemente, a consideração – constante da Informação AJT - 221/08, que a Resposta da AT confunde com o RIT – de que “Em momento algum, face aos autos, se constata como é que o dinheiro furtado e não pago com a fuga, se revela como fundamental para a obtenção dos proveitos” constitui uma grosseira incompreensão do que está em causa (e da própria interpretação aí defendida das fugas como meros ilícitos civis).

Quer dizer: nos próprios termos da argumentação desenvolvida (a posteriori, como se verá depois) para fundamentar as correcções efectuadas, uma parte das conclusões da AT – ainda que referente à menor parcela em discussão (€ 13.963,24) – parece, nos seus próprios termos, claramente infundada.

 

Vejamos agora a outra parcela: as perdas decorrentes de fugas (€ 206.139,05).

A doutrina e a jurisprudência que abordaram os requisitos fixados na redacção do artigo 23.º do Código do IRC que fazia depender a dedução dos gastos empresariais da sua indispensabilidade tiveram sobretudo em vista situações de realização deliberada (ie, dependente de uma decisão dos responsáveis pela empresa) e pré-ordenada a um ganho ou, pelo menos, ao interesse da empresa (ainda que infrutífera ou equivocadamente) como se pode comprovar do que se escreveu no Acórdão do STA de 15 de Novembro de 2017, proferido no Proc. 0372/16 (http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/1963aa656327249a802581df005946e3?OpenDocument&ExpandSection=1#_Section1 ):

 

Mas como deve aferir-se o conceito de indispensabilidade?

Consideramos definitivamente arredada uma visão finalística da indispensabilidade (enquanto requisito para que os custos sejam aceites como custos fiscais), segundo a qual se exigiria uma relação de causa efeito, do tipo conditio sine qua non, entre custos e proveitos, de modo que apenas possam ser considerados dedutíveis os custos em relação aos quais seja possível estabelecer uma conexão objectiva com os proveitos (Criticando esse entendimento restritivo da indispensabilidade, ANTÓNIO MOURA PORTUGAL, A Dedutibilidade dos Custos na Jurisprudência Fiscal Portuguesa, pág. 243 e segs., e TOMÁS CASTRO TAVARES, Da Relação de Dependência Parcial entre a Contabilidade e o Direito Fiscal Na Determinação do Rendimento Tributável das Pessoas Colectivas: Algumas Reflexões ao Nível dos Custos, Ciência e Técnica Fiscal n.º 396, págs. 131 a 133, e A Dedutibilidade dos Custos em Sede de IRC, Fisco n.º 101/102, Janeiro de 2002, pág. 40.).

Entendemos a indispensabilidade como referida à ligação dos custos à actividade desenvolvida pelo contribuinte. «Os custos indispensáveis equivalem aos gastos contraídos no interesse da empresa ou, por outras palavras, em todos os actos abstractamente subsumíveis num perfil lucrativo. [...] O gasto imprescindível equivale a todo o custo realizado em ordem à obtenção dos ingressos e que represente um decaimento económico para a empresa. Em regra, portanto, a dedutibilidade fiscal depende, apenas, de uma relação causal e justificada com a actividade produtiva da empresa» (TOMÁS CASTRO TAVARES, Da Relação..., loc. cit., pág. 136.). Dito de outro modo, só não serão indispensáveis os custos que não tenham relação causal e justificada com a actividade produtiva da empresa. É este o entendimento que vem sendo seguido por esta Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo (Entre muitos outros, fazendo um exaustivo tratamento do tema, vide o acórdão de 30 de Novembro de 2011, proferido no processo n.º 107/11, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/c0debd9869a94ea78025795f003be743.

 Mais recentemente, o acórdão de 28 de Junho de 2017, proferido no processo n.º 627/16, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/9ff886014e34df8d80258152004d86f8.).

Assim, o controlo a efectuar pela AT sobre a verificação deste requisito da indispensabilidade tem de ser pela negativa, ou seja, a AT só deverá desconsiderar como custos fiscais os que claramente não tenham potencialidade para gerar incremento dos ganhos, não podendo «o agente administrativo competente para determinar a matéria colectável arvorar-se a gestor e qualificar a indispensabilidade ao nível da boa e da má gestão, segundo o seu sentimento ou sentido pessoal; basta que se trate de operação realizada como acto de gestão, sem se entrar na apreciação dos seus efeitos, positivos ou negativos, do gasto ou encargo assumido para os resultados da realização de proveitos ou para a manutenção da fonte produtora» (VÍTOR FAVEIRO, Noções Fundamentais de Direito Fiscal Português, volume II, página 601.).

 

                No mesmo sentido ia a jurisprudência arbitral . Veja-se, por exemplo, a decisão de 30 de Setembro de 2019 no Processo n.º 45/2019-T , onde, fazendo-se a recensão da anterior jurisprudência sobre a matéria, se concluiu que “O gasto imprescindível equivalia a todo o custo realizado em ordem à obtenção de ingressos e que representasse um decaimento económico para a empresa.” 

Se bem julgamos, esta tónica na teleologia lucrativa dos gastos – certamente gerada pelo aflorar à prática jurisdicional (e, portanto, também à reflexão doutrinária) de uma maior divergência de possíveis entendimentos sobre a indispensabilidade de gastos dependentes de decisões de gestão – pode ter enviesado a posição da AT sobre a subsunção a tal requisito de custos que, pela sua própria natureza, eram anti-lucrativos e nada deliberados. Pelo menos é o que se infere das seguintes passagens (também reproduzidas na Resposta da AT como sendo do Relatório de Inspecção Tributária quando são provenientes da Informação AJT – 221/08, elaborada no quadro da Reclamação Graciosa interposta pela Requerente) em que se considera, respectivamente, estar-se perante uma lacuna da lei, e não contribuírem tais verbas para a obtenção de proveitos:

 

“A não ser este o entendimento quanto ao enquadramento nos termos em que o propugno, então, .persiste uma omissão legislativa no CIRC, que não· cabe à inspeção colmatar por recurso à analogia, porque a tal o proíbe· o art-º 11º/4 LGT, carecendo o-CIRC de ser dotado com as normas que enquadrem·em encargos para efeitos do art° 23° estas situações: a de perceção de proveitos que por via da fuga, com o concomitante incumprimento-contratual, obstam a que o vendedor aceda à contrapartida pecuniária que lhe é devida.”

(...)

“outra não poderia ter sido a decisão da Inspecção que não a da sua não aceitação

como custo fiscal, por se tratar de verbas que não contribuíram para a obtenção dos proveitos nos termos do art° 23° CIRC.”

                Esta concepção não deixa de ser paradoxal, na medida em que, como no caso, são os gastos mais inevitáveis – aqueles em relação aos quais não há controlo – que vêm a ser considerados menos indispensáveis.

Aliás, tanto isso é assim que a AT, para justificar a sua posição, imputa à Requerente omissão de decisões de gastos – com seguros  – fazendo por esta nova via negativa (a sindicância do que os contribuintes não fizeram e na sua óptica deviam ter feito)  o que, afinal, já se sabe que não pode fazer por via positiva: a sindicância do que os contribuintes  fizeram e na sua óptica não deviam ter feito.

Ora, é ponto assente desde a substituição do Código da Contribuição Industrial pelo Código do IRC , que “o controle da Administração Tributária, ainda que estribado no conceito mais restritivo de “indispensabilidade”, tem que ser um controle pela negativa, eliminando como custos apenas os que claramente não tenham potencialidade para gerar incremento dos ganhos.”  Falta acrescentar, portanto, que por essa via negativa também não pode eliminar custos que considere que podiam ter sido evitados (incorrendo em outros custos).

Em todo o caso, como notado há muito por Manuel PORTO , sempre se entendeu que “a palavra indispensáveis não pode deixar de ser entendida num sentido amplo, estando em causa não só os custos materialmente necessários ao processo produtivo como também todos os encargos a que legalmente se esteja obrigado. A lógica a ter em conta aponta para que sejam indispensáveis todos os encargos a que não pode fugir-se (...), só assim se chegando, como deve chegar-se à tributação apenas do rendimento disponível das empresas”.

Isso mesmo foi claramente afirmado na decisão proferida em 21 de Janeiro de 2013 no Processo n.º 91/2012-T : revisitando-se a doutrina e a jurisprudência na matéria, concluiu-se que “qualquer decaimento económico (custo) que tenha uma relação com o objecto societário, seja incorrido no âmbito da actividade, ou evidencie um business purpose, cumprirá o requisito da indispensabilidade, não se lhe devendo, por esta razão, recusar a aceitação fiscal ao abrigo do artigo 23.º do CIRC.” Muito menos se para evitar esse decaimento económico seria necessário incorrer em maiores – ou ainda que fossem menores – custos: naturalmente sem prejuízo do que dispuser o legislador, essa decisão cabe aos agentes económicos, não à AT.

Na mais recente decisão de 25 de Fevereiro de 2016, proferida no Processo n.º 258/2015-T , sintetizaram-se as visões possíveis:

Num sentido mais restritivo, a indispensabilidade resultará necessariamente da ligação directa e biunívoca entre um proveito e um custo que o suportou; no seu sentido mais amplo, a indispensabilidade que torna fiscalmente dedutíveis os custos corresponderá a uma ampla integração das despesas apresentadas em operações relativas ao escopo societário, independentemente de ele contribuir ou não para a obtenção de proveitos*. Há ainda quem admita sentidos intermédios, dando-se por custos “indispensáveis” aqueles que são obrigatoriamente suportados em virtude da actividade das empresas, independentemente da consideração dos resultados*.

                Em qualquer dos entendimentos, porém, os gastos incorridos integrariam o perímetro do conceito de “indispensabilidade” (ainda que no sentido de “inevitabilidade”). E que a inevitabilidade dos custos – à margem de qualquer teleologia lucrativa que assumam – é uma dimensão necessária da dedução de custos prevista pela norma do artigo 23.º do Código de IRC resulta logo do seu teor literal: pelo menos nas alíneas f) (“Encargos fiscais e parafiscais;”), e i) (“Menos-valias realizadas;”) a vontade da gestão é indiferente – se é que não oposta – à sua realização.

                Estabelecido este perímetro para a norma, cabe agora apurar se os gastos invocados se reconduzem, no plano dos factos, à previsão normativa.

                Como é sabido, qualquer actividade implica perdas por deficiente utilização ou descuido, e qualquer actividade que implique o livre acesso do público está sujeita a danos e furtos. Essas perdas são intrínsecas à actividade económica e irremovíveis e sempre teriam de encontrar cobertura no sistema de contabilidade e no sistema fiscal.

O tratamento fiscal a dar aos furtos de bens já foi, como seria de esperar, objecto de decisões arbitrais (Proc. 615/2014-T, decidido em 24 de Junho de 2015) e judiciais, designadamente no Supremo Tribunal Administrativo (Acórdão de 11 de Junho de 1997, proferido no recurso com o n.º 12.610, Acórdão de 29 de Junho de 2005, proferido no Proc. n.º 0317/05, e Acórdão de 26 de Novembro de 2010 proferido no Proc. 0943/10) e no Tribunal Central Administrativo Sul (vg, Acórdão de 9 de Dezembro de 1998 proferido no Proc. 00400/97 e Acórdão de 2 de Julho de 2002 proferido no Proc. 6540/02). Uma vez que este último foi tirado no quadro da mesma redacção do artigo 23.º do Código do IRC e a propósito de uma situação análoga à dos autos (furto de mercadorias em armazém) vamos deter-nos nele .

 Dando conta do entendimento da AT contrário à aceitação de perdas por roubo ou extravio, o Acórdão citava as Noções Fundamentais de Direito Fiscal de Vítor Faveiro (“se a existência de mercadorias é havida como um valor positivo porque se destinam à realização de operações de afluxo de valores positivos ao rédito da empresa, a perda material de tais unidades, seja a que título for, e desde que comprovada em termos razoáveis, não pode deixar de ser havida como realidade que «foi indispensável suportar para a realização dos proveitos ou para a manutenção da fonte produtora») e anterior jurisprudência (o já referido Acórdão de 11 de Junho de 1997: “O valor do furto de dinheiro ou de mercadorias constitui custo ou perda imputável ao exercício respectivo”) para concluir que “O desaparecimento de mercadorias originado por causas exógenas, ou seja, estranhas à actividade da empresa, deve ser havido como perda.” E formulava ainda as seguintes conclusões:

“III – Sendo inequívoco que a existência de mercadorias é um valor positivo, porque se destinam à realização de operações de afluxo de valores positivos ao rédito da empresa, a perda material de mercadorias, seja a que título for, designadamente por furto, não pode deixar de ser considerada como realidade que foi «indispensável para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora».

IV – Assim, demonstrado que ficou o furto de mercadorias mantidas em armazém pela Impugnante e a impossibilidade de fazer com as seguradoras assumam contratualmente o risco por tal facto, nada obsta a que o valor desse furto seja considerado como custo ou perda para efeitos fiscais.” 

                Também na citada decisão do CAAD (Proc. 615/2014-T), se ecoou essa fórmula de Vítor FAVEIRO:

“Sendo inequívoco que a existência de mercadorias é um valor positivo, porque se destinam à realização de operações de afluxo de valores positivos ao rédito da empresa, a perda material de mercadorias, seja a que título for, designadamente por furto, não pode deixar de ser considerada como realidade que foi “indispensável para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora”.”

 

A própria AT assumiu, mais do que uma vez, que as perdas por furtos se incluem entre as contingências da actividade económica e que, portanto, podem ser consideradas custos. Assim:

i. na Informação Vinculativa / Ficha Doutrinária sobre Quebras Anormais de Existências  a consulta apresentada invocava o Parecer 63/92 do Centro de Estudos Fiscais (CEF), elaborado no âmbito do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC), e referia: 

“1.22 - No referido parecer, na parte intitulada "Furtos e Roubos", o CEF admite que os pequenos furtos de existências são inerentes à própria actividade normal da empresa, preenchendo claramente o requisito da indispensabilidade, apontando o exemplo concreto das superfícies de venda a retalho e estabelece como condição que i) os controlos instituídos assegurem a minimização da ocorrência dos furtos e que ii) o sistema confira fiabilidade à tradução contabilística dessas ocorrências;

1.23 - Com efeito, o CEF reconhece a inevitabilidade desses pequenos furtos, ainda que sublinhe a importância da minimização dessas ocorrências e a necessidade de assegurar que a relevância fiscal de um furto não se constitua em via relativamente fácil de evasão fiscal;

1.24 - Relativamente aos pequenos furtos de existências verificados em superfícies de venda a retalho, considera o mesmo parecer poder aceitar-se a correspondente perda para efeitos fiscais, devendo o sujeito passivo demonstrar que as perdas se situam dentro dos limites razoáveis para o sector de actividade e em condições de exercício do mesmo e indicar quais os sistemas de controlo e contabilístico, designadamente de natureza informática, instituídos em conexão com a verificação desses eventos;

1.25 - Assim, a indispensabilidade de tais custos não resulta da sua ligação a um proveito, mas sim da sua ocorrência em consequência directa do exercício de uma actividade. A indispensabilidade, numa interpretação ampla, que é a correcta, do artigo 23° do CIRC, resulta da sua inevitabilidade económica, pois que para obter os proveitos sujeitos a imposto as empresas da grande distribuição têm de suportar perdas, que só em inventário se revelam, em virtude de as causas que as determinam não serem comprováveis aquando da sua ocorrência;” 

 

                Na Resposta a essa consulta, considerou a AT, designadamente, o seguinte:

 

“18 - Sobre a matéria em apreciação as posições assumidas pela Administração Fiscal têm incidido objectivamente no âmbito do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC).

19 - No âmbito do IRC, as quebras de existências identificadas e não identificadas (pequenos furtos) nas grandes superfícies de venda a retalho são tidas como ocorrências inerentes à própria actividade das empresas, tal como se refere no parecer n° 63/92 do CEF, pelo que se enquadram, em regra, no princípio da indispensabilidade, tendo em conta as circunstâncias de cada situação em concreto.

20 - Por despacho do Director-Geral dos Impostos, numa informação elaborada em 2008 pela Direcção de Serviços do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (DSIRC) foi sancionado o entendimento a saber:

i) "a análise das circunstâncias concretas deve englobar para além da verificação da existência de sistemas de controlo implementados (sistemas de rádio anti-roubo, CCTV, segurança privada e locais de venda assistida), para assegurar a minimização dos furtos, bem como a existência de um sistema devidamente organizado de registo informático de quebras de existências e de controlo interno;

ii) este sistema organizativo de quebras de existências deve englobar não só as quebras identificadas bem como as quebras não identificadas (furtos de existências). Para as quebras identificadas deve ser elaborado documento interno donde conste todos os elementos identificativos do produto (descrição, código, quantidade, motivo da quebra e destino do produto), assinado pelo responsável da secção e pelo gerente da loja. Este documento interno deve servir de suporte à regularização do sistema de gestão de stocks, devendo ser emitida por este sistema uma listagem de regularização de stocks que suportará os lançamentos contabilísticos de quebras de existências;

Para as quebras não identificadas deve ser elaborado documento de inventário com as diferenças de stock, devendo ser assinado pelos analistas de inventário e pelo gerente da loja. Este documento deverá servir de suporte à regularização do sistema de gestão de stocks bem como deve servir como documento de suporte aos lançamentos contabilísticos de quebras de existências;

Um sistema organizativo com os elementos indicados deverá dispensar a elaboração de autos de destruição e de abate;

iii) para além da análise das circunstâncias concretas as empresas de venda a retalho em grandes superfícies, em regime de livre serviço, devem demonstrar que as perdas por quebras de existências se situam dentro de limites razoáveis para o sector de actividade em que a empresa se insere;

iv) não parece que seja de exigir, nas quebras não identificadas em resultado de furto de pequenos valores, de participações à polícia por furto contra desconhecidos porquanto os resultados práticos traduzir-se-ão no arquivamento dos processos por falta de conhecimento do autor do furto e face aos reduzidos valores unitários dos bens furtados que não justificam a realização de diligências;

v) relativamente à exigência de apólices de seguro afigura-se que, no caso concreto, tratando-se de furtos que resultam do exercício normal da actividade não revestindo uma natureza extraordinária e imprevisível, não deverão ser solicitadas aos sujeitos passivos uma vez que é de prever que os custos administrativos a debitar pelas empresas seguradoras para a gestão de um número elevado de participações não justificarão a celebração de contratos de seguros;”  

 

                ii. no Ofício n.º..., remetido pela Direcção de Serviços do IRC à APED em 22 de Junho de 2009, foi informado que tinha sido sancionado, pelo substituto legal do Director-Geral dos Impostos, o entendimento de que, em sede de IRC,

“As quebras de mercadorias nas grandes superfícies de venda a retalho são inerentes à actividade normal das empresas desse sector pelo que se enquadram, em regra, no princípio da indispensabilidade previsto no corpo do nº 1 do artigo 23º do CIRC, segundo o qual são aceites para efeitos fiscais os custos que comprovadamente sejam indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora.”

 

e de que

“Para a aceitação como custo das quebras não é de exigir participações à polícia por furto contra desconhecidos [sic] nem a exigência de apólices de seguro uma vez que as quebras não identificadas resultam do exercício normal da actividade, não revestindo uma natureza extraordinária e imprevisível.”   

 

                iii. no Ofício n.º..., remetido pela Direcção de Serviços do IVA à APED em 8 de Junho de 2009, foi informado que tinha sido sancionado, pelo Director-Geral dos Impostos, o entendimento da Informação 1793 sobre o Enquadramento Tributário das Quebras em Existências, nos termos da qual

“será de aceitar como elidida a presunção do artigo 86º do CIVA quando os bens considerados perdidos, por razões desconhecidas, preencham os critérios adoptados para efeitos de IRC, através, nomeadamente, de uma análise casuística e circunstancial de cada empresa, dentro de limites razoáveis para o sector de actividade” 

 

                Podemos, portanto (ignorando por ora o preenchimento do outro requisito, de ordem formal, do contemporâneo artigo 23.º, n.º 1, do Código de IRC), sintetizar o percurso feito, formulando as seguintes conclusões:

i.             a fundamentação (adoptada a posteriori) pela AT e trazida a estes autos para desconsiderar os assaltos e fugas é diferenciada;

ii.            em nenhum das suas configurações é de molde a afastar a aplicação do disposto substancialmente no referido artigo, na redacção vigente à data dos factos;

iii.           tanto os assaltos como as fugas cabem nos riscos do negócio em causa;

iv.           não cabia à AT substituir-se aos agentes económicos nas opções quanto aos custos que devem incorrer para evitar outros custos – tal como não lhe cabia interferir nas opções quanto aos custos que deviam incorrer para obter ganhos;

v.            havia suficientes antecedentes doutrinais, jurisprudenciais, e da própria AT, para que a tese sobre a não “indispensabilidade” dos custos que se discutiam nos autos tivesse sido atempadamente corrigida.

 

 

III.2.4. Documentação das perdas por roubo e furto

Como já resulta da transcrição integral, acima feita, das normas do artigo 23.º do Código do IRC na redacção vigente à época dos factos, não estava nele prevista a necessidade de comprovação documental dos “Gastos” (que era a então epígrafe do artigo). O n.º 3, na actual redacção (“Os gastos dedutíveis nos termos dos números anteriores devem estar comprovados documentalmente, independentemente da natureza ou suporte dos documentos utilizados para esse efeito.”), só foi introduzido pela Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro.

Não quer isso dizer, claro, que não houvesse necessidade de comprovar os gastos (e “perdas”, como agora se refere na actual epígrafe), uma vez que a anterior redacção do n.º 1 incluía um advérbio de modo: “comprovadamente”, justificando a actual insistência da AT em que “«nos termos desta norma, os gastos têm de respeitar dois princípios: i) encontrarem-se devidamente documentados; ii) serem indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora».” 

O caso é que essa actual preocupação da AT não foi a preocupação que a AT assumiu na altura de fundamentar as correcções efectuadas: o Projecto de Correcções limitava-se, nesta parte, a referir o seguinte, sob a epígrafe “b) Eventos não segurados (Assaltos e Fugas)”:

“O sujeito passivo considerou como custo do exercício, contabilizando nas contas 6938-8793 Outros Custos/perdas extraordinários – Assaltos”, o montante de €13.963,24 e “6938-8794 Outros Custos/perdas extraordinários – Fugas”, o montante de €206.139,05, totalizando €220.102,29.

Foi solicitado, através do nosso ofício n.º ... de 13/3/2006, para que informasse se possuía seguro para este tipo de ocorrências, tendo esclarecido em resposta ao quesito 9.º do referido ofício, que “de acordo com a política do Grupo, a empresa não possui seguros para fazer face a este tipo de ocorrências”.

Nos termos do n.º 1 do art.º 23º do CIRC só são aceites como custo fiscal os que comprovadamente forem indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto, ou para a manutenção da fonte produtora.

Por todo o exposto, conclui-se que este valor diz respeito a eventos extraordinários, que apesar de seguráveis a empresa opta por não o fazer, não podendo desta forma serem estes custos fiscalmente dedutíveis.

Logo, será de acrescer ao lucro tributável a importância referida.”

No exercício do seu direito de audição prévia, a Requerente respondeu a este Projecto de Correcções, explicando, entre o mais, os termos em que contratara seguros e deixara de o fazer. No subsequente Relatório/Conclusões, a AT reproduziu ipsis verbis o que acima foi transcrito do Projecto de Correcções, acrescentando depois, a propósito do Direito de Audição, que a ora Requerente alegara que

“no que diz respeito aos assaltos, existe uma economia de custo ao não possuir um seguro para cobrir este tipo de eventos, uma vez que o seu custo (apólice e respectiva franquia) seria sempre superior ao valor dos encargos suportados directamente com os roubos. Relativamente às fugas, refere no ponto 24 que “retrata as situações em que um indivíduo realiza um abastecimento na sua viatura e abandona a estação de serviço, sem proceder ao respectivo pagamento” alegando assim que “não preenchem o conceito de sinistro (e, logo, de evento segurável). Ainda que tal não fosse o caso (...) registou um custo menor àquele que suportaria, caso houvesse contratado um seguro, porquanto este teria por objectivo recuperar os custos reais e cobrar uma margem de lucro.” Refere ainda no ponto 50 que “os custos decorrentes das perdas perfilam-se como autênticos custos de mercadoria vendida, pelo que os preços de venda ao público são aumentados para fazer face a estes eventos certos e regulares” no âmbito desta actividade, sendo apenas incerto o seu valor, pelo que, e acrescenta no ponto 51, “sendo os proveitos tributáveis e estando perante regularmente associados à exploração, os mesmos configuram custos fiscalmente dedutíveis.” 

 Não obstante o exposto somos a concluir que a fundamentação apresentada para além de contraditória é também escassa no que diz respeito à prova da indispensabilidade deste tipo de ocorrências.

Assim, se por um lado argumenta que perante as seguradoras não é possível realizar seguros para fazer face aos referidos eventos, por outro diz-se que já existiram seguros. Contudo a empresa opta por não os contratar por economia de custo. Também não podemos aceitar como fatalidade o facto de haver furtos neste tipo de estabelecimentos, dado que já existem, e com toda a certeza poderão vir a ser aperfeiçoados esquemas de vigilância e segurança, permitindo reduzir este tipo de custos a valores residuais, sob pena de que sem quaisquer provas do valor efectivo das perdas e sem que houvesse necessidade de um especial cuidado na implementação dos referidos esquemas de vigilância e segurança, a Administração Fiscal ver-se-ia obrigada a aceitar fiscalmente o conjunto desses valores.

Por tudo o exposto, somos da opinião que o custo em causa não é comprovadamente indispensável para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto, conforme o n.º 1 do art.º 23º do CIRC, pelo que será de manter a correcção inicialmente proposta.”

Em consequência, a Reclamação Graciosa intentada pela Requerente nem sequer se referiu a qualquer documentação sobre os procedimentos internos de registo de ocorrências – e nem tinha de o fazer: a fundamentação dos actos de liquidação tem de os anteceder ou ser deles contemporânea, não pode ser posterior . Uma vez que a AT não invocou, para desconsiderar a dedução dos gastos apresentados como resultantes de assaltos e fugas, falta de documentação desses montantes, a documentação apresentada pela Requerente – e que a Resposta da AT enumera como prova de insuficiência do alegado por esta – não visou ultrapassar essa insuficiência, justamente porque ela não lhe tinha sido imputada. Bem ao contrário, insurgiu-se a Requerente contra a imputada contradição entre ter tido seguros e ter deixado de os ter, e contra a exigência de prova da indispensabilidade (dos assaltos e fugas, na fórmula adoptada), que tinha sido o que o Relatório/Conclusões lhe apontara: “somos a concluir que a fundamentação apresentada para além de contraditória é também escassa no que diz respeito à prova da indispensabilidade deste tipo de ocorrências”.

Nessa Reclamação escreveu-se, designadamente, o seguinte (parágrafos 10 a 12):

(...) “Inicialmente, a DSIT concluiu que a inexistência de uma apólice de seguro – de que a Reclamante não dispõe – era suficiente para precludir a dedutibilidade fiscal do referido encargo.

11. Face aos fundamentos alegados pela Reclamante no decurso da audição prévia – demonstrando que estes eventos não são passíveis de seguro –, a DSIT manteve a decisão anterior, mas desta vez adaptando a respectiva fundamentação.

12. Concretamente, a DSIT afirmou que “(...) não podemos aceitar como fatalidade o facto de haver furtos neste tipo de estabelecimentos, dado que já existem, e com toda a certeza poderão vir a ser aperfeiçoados esquemas de vigilância e segurança, permitindo reduzir este tipo de custosa valores residuais (...)”, razão pela qual o custo em causa “(...) não é comprovadamente indispensável para a geração de proveitos tributáveis (...)”.”

 

                Como também invocou a Requerente nessa Reclamação (e invocara antes, na Audição Prévia):

- os valores que a AT punha em causa já eram residuais: constituíam 0,12% do valor de aquisição das mercadorias vendidas no ano de 2004 (€ 176.263.046,00);

- na audição prévia foi apresentado o histórico de seguros da Requerente, evidenciando a oscilação entre seguros que custavam demais e foram descontinuados por ela e seguros que cobriam demais e foram descontinuados pela seguradora;

- algumas seguradoras recusavam segurar furtos (ou fugas) por não os considerarem “sinistros”, ie, eventos imprevisíveis e de ocorrência incerta. As demais só aceitavam seguros com prémios superiores à média dos prejuízos registados, e agravariam os prémios sempre que as indemnizações ultrapassassem essa média;

- havia um Despacho, de 30 de Abril de 1996, do Director de Serviços do IRC, a admitir a relevância dos custos que fossem incorridos para evitar custos superiores;

- havia um Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul a considerar subsumíveis ao artigo 23.º do Código do IRC as perdas decorrentes de furtos;

- as mesmas explicações tinham sido prestadas, em anos anteriores, a outras equipas de inspecção, tendo sido sempre aceites.     

                Ou seja, a Reclamação Graciosa cobriu integralmente a fundamentação do acto reclamado, não podendo quaisquer outros argumentos ser usados pela AT para fundamentar a posição que então tomou.

Quer dizer que qualquer que fosse o mérito da invocada falta de documentação dos custos incorridos pela Requerente, ao não tê-los invocado como fundamento da decisão, deixou tal falta de poder ser apreciada no quadro deste procedimento arbitral, como é entendimento pacífico e a própria AT já alegou em outros processos. 

 

 

III.2.4. Pedido de restituição da quantia paga e juros

Como consequência da anulação da liquidação, a Requerente tem direito ao reembolso das quantias indevidamente pagas (artigo 100.º da LGT), quer a título de correcção, quer de juros compensatórios.

A Requerente também solicita os juros indemnizatórios devidos.

No que concerne a juros indemnizatórios, de harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito», o que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 29.º do RJAT] que estabelece, que «a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do acto ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão».

É certo que o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utiliza a expressão «declaração de ilegalidade» para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias. Não obstante isso, deverá entender-se que se compreendem nas competências do tribunal arbitral os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, em sintonia, aliás, com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira directriz, que «o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária».

O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de actos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e do artigo 61.º, n.º 4 do CPPT (na redacção dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a que corresponde o n.º 2 na redacção inicial), que «se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea».

Assim, o n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, ao dizer que «é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

No caso em apreço, a anulação da liquidação dá lugar a reembolso do imposto pago, acrescido dos juros indemnizatórios devidos.

O regime substantivo do direito a juros indemnizatórios é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece, no que aqui interessa, o seguinte:

 

Artigo 43.º

Pagamento indevido da prestação tributária

1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

 

O erro que afecta a liquidação é imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira, pois foi elaborada por sua iniciativa.

Por isso, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios.

Os juros indemnizatórios são devidos, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, 61.º, n.º 5, do CPPT, 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril, à taxa legal supletiva, e contados desde a data do pagamento até à data do processamento da respectiva nota de crédito.

 

 

 

IV. DECISÃO

Termos em que se decide

a)            Julgar procedente o pedido arbitral quanto à correcção promovida ao exercício de 2004, determinando a anulação do despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa proferido em 20 de Novembro de 2009;

b)           Determinar a anulação parcial do acto de liquidação adicional de IRC/2004 n.º 2006..., no montante de € 60.530,67, e juros compensatórios no valor de € 2.465,98, relativo a deduções por assaltos e furtos;

c)            Condenar a Autoridade Tributária a devolver esse montante e a pagar juros indemnizatórios, à taxa legal, calculados sobre o imposto pago, até ao reembolso integral da quantia devida;

d)           Condenar a Autoridade Tributária nas custas do processo.

 

V. VALOR DO PROCESSO

Fixa-se o valor do processo em € 62.996,65 nos termos do disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, als. a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

VI. CUSTAS

Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de € 2 448.00, a cargo da Requerida, conformemente ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e do artigo 4.º, n.º 5, do RCPAT.

 

Notifique-se.

Lisboa, 20 de Dezembro de 2019.

 

O Árbitro Presidente

 

 

(Carlos Cadilha)

 

 

O Árbitro Vogal

 

 

(Jónatas E. M. Machado)

 

 

O Árbitro Vogal

 

 

23 de Dezembro de 2019

(Victor Calvete)