Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 247/2019-T
Data da decisão: 2019-12-19   Outros 
Valor do pedido: € 80.751,56
Tema: Tributações Autónomas; SIFIDE
Versão em PDF

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Acordam os Árbitros José Pedro Carvalho (Árbitro Presidente), Elisabete Flora Louro Martins e Augusto Vieira, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral, na seguinte:

 

I – RELATÓRIO

 

1.            No dia 04 de Abril de 2019, A..., SGPS, S.A., NIPC..., com sede na Rua ..., ..., ..., ...-... Lisboa, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade do acto de autoliquidação de IRC, referente ao exercício de 2015, na medida correspondente à não dedução à parte da colecta do IRC produzida pelas taxas de tributação autónoma de incentivos fiscais em IRC, designadamente os benefícios apurados no âmbito do Sistema de Incentivos Fiscais à Investigação e Desenvolvimento Empresarial, assim como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa que teve aquele acto como objecto.

 

2.            Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, que os benefícios fiscais do SIFIDE devem ser deduzidos à colecta de tributações autónomas porque:

i.             o artigo 90.º do Código do IRC refere-se às formas de liquidação do IRC, aplicando-se ao apuramento do imposto devido em todas as situações previstas no código, incluindo a liquidação do montante das tributações autónomas;

ii.            a natureza das normas antiabuso, destinadas a evitar a fraude e a evasão fiscal, não exclui a possibilidade de deduções à coleta de IRC que com a aplicação dessas normas for determinada;

iii.           quer os objectivos extrafiscais prosseguidos pelo SIFIDE, quer os das tributações autónomas não ficam, de modo algum, preteridos com uma interpretação favorável à sua dedução à colecta das tributações autónomas;

iv.           o n.º 2 do artigo 88.º do Código do IRC, jamais poderia ser aplicável ao exercício fiscal de 2015, sob pena de violação de princípios constitucionalmente tutelados, designadamente, o princípio da confiança.

 

3.            No dia 05-04-2019, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

4.            A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

5.            Em 29-05-2019, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

6.            Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 19-06-2019.

 

7.            No dia 02-09-2019, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.

 

8.            Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.

 

9.            Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, abstiveram-se as partes de o fazer.

 

10.          Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT.

 

11.          O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

1-            Em 31-12-2015, a Requerente era a sociedade dominante de um grupo de sociedades abrangido pelo Regime Especial de Tributação de Grupos de Sociedades.

2-            O referido grupo era constituído, para além da Requerente, pelas seguintes entidades:

             B..., S.A. – NIF ...;

             C..., Lda. – NIF ...;

3-            A Requerente, na qualidade de sociedade dominante do grupo de sociedades a que pertence, procedeu à submissão da declaração modelo 22, referente ao exercício de 2015.

4-            No âmbito da referida liquidação, foram apurados prejuízos fiscais dedutíveis no montante de €478.122,16 e um montante de tributações autónomas de €80.751,56, correspondente à soma das tributações autónomas devidas por cada uma das sociedades do grupo.

5-            O grupo de sociedades dominado pela Requerente, abrangido pelo RETGS, detinha benefícios fiscais disponíveis para dedução à coleta de IRC.

6-            No exercício de 2015, a Requerente detinha créditos de SIFIDE disponível para utilização no valor de €2.696.007,11.

7-            A Requerente foi previamente notificada do valor final de SIFIDE respeitante ao exercício de 2015, o qual ascendeu a €707.067,97.

8-            A Requerente não conseguiu, no exercício de 2015, deduzir os montantes de crédito de SIFIDE que detinha, à colecta de IRC relativas às tributações autónomas, tendo tais valores transitado integralmente para os períodos seguintes.

9-            Por entender que a liquidação deveria refletir a dedução dos benefícios fiscais à coleta da tributação autónoma, em 30-05-2018, a Requerente apresentou reclamação graciosa, tendo por objecto o acto de autoliquidação de IRC, relativo ao exercício de 2015.

10-         Em 04-01-2019, a Requerente foi notificada do despacho do Chefe da Direção de Finanças datado de 28-12-2018, que indeferiu a reclamação graciosa apresentada.

 

A.2. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 511.º, n.º 1, do anterior CPC, correspondente ao artigo 596.º do actual CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

B. DO DIREITO

A questão principal a decidir nos presentes autos, sendo, sem dúvida, de alguma complexidade na sua resolução, é, todavia, simples na sua formulação, e prende-se com a questão de saber se o montante das tributações autónomas é apurado nos termos do artigo 90.º do Código do IRC, uma vez que se assim for, concluir-se-á, que, para determinar o limite da dedução do crédito fiscal de SIFIDE, deverá atender-se à coleta de IRC, incluindo as referidas tributações autónomas que a integram. Dito de outro modo, a questão a decidir passa por determinar se tem ou não a Requerente o direito de proceder à dedução, também à colecta de IRC produzida pela aplicação das taxas de tributação autónoma, dos referidos créditos relativos ao SIFIDE disponíveis na esfera daquela.

                A problemática subjacente às tributações autónomas, tem sido, nesta como noutras matérias, objecto de acirrado contencioso entre os contribuintes e a Autoridade Tributária, situação a que não será, de todo, estranha, a natureza própria, anti-sistémica até, de que aquelas se revestem, no quadro dos impostos sobre o rendimento, onde germinaram.

Relacionadas com a problemática, poderão, por exemplo, ser vistas as decisões dos processos arbitrais n.º 174/2016-T, 122/2016-T, 34/2016-T, 567/2016-T, 60/2017-T, 61/2017-T, 65/2017-T, 99/2017- T, 433/2017-T, 474/2017-T e 45/2018-T, entre muitas outras .

                Efectivamente, a discussão que deflagrou com as novas taxas de tributação autónoma introduzidas pela Lei n.º 64/2008, de 5 de Dezembro, e incidiu inicialmente sobre a natureza do facto tributário subjacente àquele tipo de tributação, abriu um percurso exploratório profundo sobre a natureza das tributações autónomas e da sua relação com os impostos sobre o rendimento, em especial o IRC, que passou pelas problemáticas da dedutibilidade do valor das tributações autónomas à colecta de IRC, e pela natureza, presuntiva, ou não, das tributações autónomas sobre despesas dedutíveis, sem que até à data tenha havido uma intervenção legislativa definitiva, doutrinalmente sustentada e coerente, no sentido de clarificar o devido enquadramento das tributações em causa no edifício do imposto sobre rendimento de onde emergem, sucedendo-se, antes, intervenções legislativas desconexas e conjunturais, que em nada contribuem, pelo contrário, para a clarificação da natureza e função de tais tributações.

                Neste quadro, decisões jurisprudenciais casuísticas sucedem-se a intervenções legislativas igualmente casuísticas, gerando um quadro de incerteza e instabilidade onde, contribuintes e Autoridade Tributária não têm outra via de procurar o Direito aplicável, que não a litigiosidade perpetuada, resvalando para o intérprete judicativo a ingrata tarefa de, no emaranhado normativo gerado, servir a Justiça possível.

Vejamos, então.

 

*

Quando se fala em tributações autónomas, como é o caso, é conveniente desde logo ter presente que está em causa um conjunto de situações díspares, que abrangerão, pelo menos, três tipos distintos, a saber:

o             Tributação autónoma de determinados rendimentos (ex.: artigo 72.º do actual CIRS, e, crê-se, a prevista no actual n.º 11 do artigo 88.º do CIRC);

o             Tributação autónoma de determinados encargos dedutíveis (ex.: n.ºs 7 e 9 do artigo 88.º do actual CIRC);

o             Tributação autónoma de outros encargos independentemente da respectiva dedutibilidade (ex.: números 1 e 2 do artigo 88.º do actual CIRC).

Sob um ponto de vista da funcionalidade/finalidade/fundamento das tributações autónomas sobre gastos (excluindo, portanto a tributação autónoma de rendimentos), têm, também sido surpreendidos vários tipos, como sejam:

o             o desincentivar de determinados comportamentos do contribuinte tendentes a estar associados a situações de fraude ou evasão fiscal, como acontece, por exemplo, com as tributações autónomas incidentes sobre despesas não documentadas, ou pagamentos a entidades sujeitas a regimes fiscais privilegiados;

o             o combate à erosão da base tributável, como acontece, em geral, com as tributações autónomas incidentes sobre despesas dedutíveis;

o             o desincentivar de determinados gastos de causação presumidamente não empresarial, como acontece com as tributações autónomas incidentes sobre gastos com viaturas, ajudas de custo, ou despesas de representação;

o             a tributação de distribuição encapotada de rendimentos a terceiros, não tributados na esfera destes (fringe benefits), como acontece com as tributações autónomas incidentes sobre gastos com viaturas, ajudas de custo, ou despesas de representação;

o             a penalização pela realização de determinadas despesas, que não afectam a base tributável, nem têm subjacente qualquer distribuição não tributada de rendimentos a terceiros, ou potencial fraudulento ou evasivo, mas que o legislador, porventura, terá considerado luxuosas ou sumptuárias, como acontece com as tributações autónomas sobre determinados pagamentos a gestores, administradores ou gerentes (actual artigo 88.º/13 do CIRC), bem como a tributação autónoma sobre encargos com viaturas na medida em que exceda a taxa normal IRC.

Estes dados tornam-se importantes porque por si mesmos evidenciam a disparidade e heterogeneidade das situações sujeitas a tributações autónomas, e a inutilidade de, em sede jurisprudencial, sintetizar e procurar uma natureza jurídica própria e unitária, comum a todas as situações.

Deste modo, dever-se-á centrar a discussão na concreta questão colocada pela Requerente e procurar uma resposta, devidamente fundada, para os termos restritos daquilo que está em causa nos autos, que será então saber se é, ou não, possível a dedução à parte da colecta do IRC produzida pelas taxas de tributação autónoma, de benefícios fiscais, em sede de IRC, disponíveis.

Devidamente equacionada, nestes termos, a questão a solucionar nos autos, cumprirá ainda ter presente que o referente fundamental da resposta a dar àquela, será o formulado no artigo 9.º do Código Civil, segundo o qual deverá ser reconstituído, a partir dos textos, o pensamento legislativo, que tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

Neste quadro, o desiderato da presente decisão será, não o de teorizar sobre a natureza jurídica das tributações autónomas em geral, ou de qualquer dos seus vários tipos, mas antes o de apurar se o pensamento legislativo, com um mínimo de correspondência verbal na letra da lei, ainda que imperfeitamente expresso, era ou não, à data do facto tributário em questão nos autos, no sentido de ser possível utilizar a dedução à parte da colecta do IRC produzida pelas taxas de tributação autónoma, de incentivos fiscais, em sede de IRC, disponíveis.

Inútil será, julga-se, procurar uma base conceptualista, assente numa definição dogmática de conceitos monolíticos de IRC e de Tributações Autónomas, retirados de normação estranha à matéria decidenda, professando um “ontologismo escolástico” que procure “deduzir de forma puramente lógica, a partir de conceitos abstractos superiores, outros, cada vez mais concretos e plenos de conteúdo” , metodologicamente ultrapassado.

Almejar-se-á, deste modo, apenas averiguar qual a solução que, face ao direito constituído, devidamente interpretado, se afigura caber ao caso concreto, não se tomando a resposta dada à questão decidenda como uma evidência acabada, exacta e com um grau extremo de rigor e exactidão, mas, meramente, como aquela que, reflexivamente, se apresentou aos seus subscritores como a, juridicamente, melhor .

 

*

                A base da pretensão da Requerente é literalmente simples e linear e resulta da constatação de que, fazendo-se a liquidação das tributações autónomas nos termos do artigo 90.º, n.º 1 do CIRC, a tal liquidação aplicar-se-ão as deduções previstas no seu n.º 2, bem como, no caso e especificamente, no art.º 4.º da Lei n.º 55-A/2010.

                É o seguinte, o teor dos normativos em causa:

- Art.º 90.º do CIRC:

“1 - A liquidação do IRC processa-se nos seguintes termos:

a) Quando a liquidação deva ser feita pelo sujeito passivo nas declarações a que se referem os artigos 120.º e 122.º, tem por base a matéria colectável que delas conste;

b) Na falta de apresentação da declaração a que se refere o artigo 120.º, a liquidação é efectuada até 30 de novembro do ano seguinte àquele a que respeita ou, no caso previsto no n.º 2 do referido artigo, até ao fim do 6.º mês seguinte ao do termo do prazo para apresentação da declaração aí mencionada e tem por base o valor anual da retribuição mínima mensal ou, quando superior, a totalidade da matéria colectável do exercício mais próximo que se encontre determinada;

c) Na falta de liquidação nos termos das alíneas anteriores, a mesma tem por base os elementos de que a administração fiscal disponha.

2 - Ao montante apurado nos termos do número anterior são efetuadas as seguintes deduções, pela ordem indicada:

a) A correspondente à dupla tributação internacional;

b) A relativa a benefícios fiscais;

c) A relativa ao pagamento especial por conta a que se refere o artigo 106.º;

d) A relativa a retenções na fonte não suscetíveis de compensação ou reembolso nos termos da legislação aplicável.”.

- Art.º 4.º da Lei n.º 55-A/2010:

“1 - Os sujeitos passivos de IRC residentes em território português que exerçam, a título principal ou não, uma actividade de natureza agrícola, industrial, comercial e de serviços e os não residentes com estabelecimento estável nesse território podem deduzir ao montante apurado nos termos do artigo 90.º do Código do IRC, e até à sua concorrência, o valor correspondente às despesas com investigação e desenvolvimento, na parte que não tenha sido objecto de comparticipação financeira do Estado a fundo perdido, realizadas nos períodos de tributação de 1 de Janeiro de 2011 a 31 de Dezembro de 2015, numa dupla percentagem:

a) Taxa de base - 32,5 % das despesas realizadas naquele período;

b) Taxa incremental - 50 % do acréscimo das despesas realizadas naquele período em relação à média aritmética simples dos dois exercícios anteriores, até ao limite de (euro) 1 500 000.

2 - Para os sujeitos passivos de IRC que sejam PME de acordo com a definição constante do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de Novembro, que ainda não completaram dois exercícios e que não beneficiaram da taxa incremental fixada na alínea b) do número anterior, aplica-se uma majoração de 10 % à taxa base fixada na alínea a) do número anterior.

3 - A dedução é feita, nos termos do artigo 90.º do Código do IRC, na liquidação respeitante ao período de tributação mencionado no número anterior.”.

Sob um ponto de vista semântico-literal, aceite o pressuposto – que ora se aceita – de que a liquidação das tributações autónomas se faz nos termos do n.º 1 do artigo 90.º do CIRC transcrito, nenhum outro sentido é possível retirar da letra da lei, que não o apresentado pela Requerente, e por toda a jurisprudência arbitral em que se abona, sendo, nessa restrita perspectiva, irrefutável a conclusão condensada no seu pedido arbitral principal.

                Daí que a Requerente e as posições convergentes com a sustentada pela mesma, de um ponto de vista geral, não encetem qualquer esforço relevante no sentido de sistemático-axiologicamente validarem o seu entendimento (sendo que, quando tal ocorre, verifica-se sob um ponto de vista casuístico, ancorando-se, sobretudo, no tipo concreto de dedução à tributação autónoma que se pretende validar, ou em determinados tipos daquela).

                Antes, tais posições dedicam-se, essencialmente, a refutar a argumentação que vai sendo apresentada em sentido oposto, fechando-se no linear entendimento que pode ser sintetizado no seguinte silogismo:

a)            O crédito do SIFIDE pode ser deduzido à colecta de IRC;

b)           A tributação autónoma é IRC;

c)            Então o crédito do SIFIDE pode ser abatido à colecta do IRC gerada pelas tributações autónomas.

                Sucede que a leitura jurídica, por impositivo legal (e também lógico-racional) não se cinge, nem se deve cingir, ao texto das normas enquanto realidade semântico-gramatical, devendo antes colocar-se num plano axiológico-racional, ancorado em todos os elementos da interpretação jurídica.

                Daí que, em ordem a obter aquilo que seja a leitura juridicamente mais correcta do texto, seja necessário realizar determinados testes ao nível do edifício sistemático onde a norma interpretanda se enquadra, de modo a validar, face ao mesmo, e à luz dos critérios de racionalidade, congruência e razoabilidade que necessariamente norteiam aquela estrutura normativa, a interpretação literalmente sugerida.

                Assim, e desde logo, a montante, não se pode descurar um primeiro dado relevante, que é o de que nos artigos 89.º e 90.º, n.º 1 do CIRC, converge a liquidação de duas formas de imposição, relativas ao mesmo imposto mas radicalmente distintas, a saber, o IRC tradicional, ou stricto sensu, e as tributações autónomas.

                A natureza das tributações autónomas, como se referiu já, tem sido objecto de ampla discussão na doutrina e jurisprudência recentes.

                Uma corrente tem olhado para as mesmas como um imposto sobre a despesa, que tributaria determinados tipos de gastos, de uma forma totalmente desligada do rendimento, em termos de haver mesmo quem sustente que as mesmas constituem um tributo próprio, que apenas casualmente estaria integrado nos códigos do IRS e IRC.

                Não obstante, tem obtido acolhimento recorrente na jurisprudência do CAAD , o entendimento de que as tributações autónomas sobre encargos dedutíveis, integram, ainda, o regime dos impostos regulados pelos códigos onde se integram, visando, mesmo que de uma forma enrevesada, o rendimento tributado por aqueles.

                Com efeito, e como se teve oportunidade de escrever noutra sede , “a complexidade gerada pelas sucessivas alterações na arquitetura do CIRC conduziram (...) a um edifício normativo atípico, no qual se poderá discernir um core correspondente ao que se poderá chamar IRC tout court (ou em sentido estrito), que a Requerente pretende que esgote tudo o que seja designado por IRC, e uma periferia que integra regulamentações “marginais”, subtraídas, em grande parte, à lógica, natureza e princípios do IRC tout court, mas que, não obstante, ainda se situam no “campo gravitacional” daquele.

                E é no processo de concretização desta zona de difícil definição que todas as decisões analisadas (...) operam, não podendo as mesmas ser devidamente compreendidas sem que se compreenda também que, de facto, o que todas as decisões em questão estão a fazer é apurar quais as consequências que a “gravitação” em torno do core do IRC aportam para as matérias em cada uma delas abordadas.”.

Nesse sentido, “dentro do quadro hermenêutico acima desenhado, (...) por força da evolução histórica do respetivo regime legal, se constituiu um tipo de IRC que integra um núcleo duro (...) e um grupo de normações adjacente, que comunga de parte da lógica e do regime daquele, mas que em muitos aspectos diverge dos mesmos.”. E, mais adiante, “da consideração do texto legislativo, estaticamente e na sua evolução histórica, resulta que o legislador entendia, e continua a entender, que as tributações autónomas integram o IRC, senão enquanto imposto stricto sensu, pelo menos em termos de fazerem parte do mesmo regime fiscal unitário”.

Isto porque “o regime legal das tributações autónomas em questão nos autos apenas faz sentido no contexto da tributação em sede de IRC. Ou seja, desligado do regime legal deste imposto, carecerão aquelas do seu principal referente de sentido. A sua existência, o seu propósito, a sua explicação, no fundo, a sua juridicidade, apenas é devidamente compreensível e aceitável no quadro do regime legal do IRC.”.

Daí que não “se entenda que “a definição de IRC constante dos artigos 1.º e 3.º do CIRC” esteja “realmente ultrapassada por uma nova definição de aplicação transversal/geral”, sendo essa uma postura epistemológica própria de um conceptualismo que, liminarmente, se repudiou.

Pelo contrário: trata-se do reconhecimento daquilo que, face ao quadro legal vigente, se impõe como o mais razoável: o abandono definitivo de qualquer definição de aplicação transversal/geral de IRC, e o reconhecimento do regime deste como uma realidade complexa e multifacetada, irredutível a uma definição daquela índole, que apenas um conceptualismo fundamentalisticamente abstracionista poderá pressupor.”.

                Por isso, “Tudo aquilo que se tem vindo a dizer evidencia que a evolução do regime legal do IRC transmutou-o numa realidade complexa e multifacetada, aos mais diversos níveis, que se reflete, na matéria que nos ocupa nestes autos, na tal “natureza dual” de que falava o Prof. Saldanha Sanches na passagem citada no Acórdão 617/2012 do TC.

O reconhecimento desta dualidade de natureza não prejudica, contudo, como se entende estar subjacente quer à citação em causa quer à jurisprudência que a cita, que se considere que o sistema, apesar de dual, seja o mesmo . Dito de outro modo, apenas faz sentido falar-se de um sistema dual, se o sistema em questão, globalmente considerado, for, ainda, o mesmo. Caso contrário falar-se-ia não de um sistema de natureza dual, mas de dois sistemas distintos, o que, por tudo o que se vem dizendo, não será o que ocorre. E, in casu, o sistema será o regime do IRC, que operando ora pelo lucro, ora pelos gastos, visa e prossegue as finalidades próprias daquele imposto, incluindo, evidentemente, a arrecadação de receita para o Estado.”.

                Por fim, “Em jeito de conclusão, face a tudo o que se vem de expor, e em favor de um rigor conceptual, dir-se-á ainda que se pende para o entendimento de que as tributações autónomas, tal como existem actualmente, se poderão configurar como um imposto “híbrido” , incidindo sobre o rendimento das pessoas singulares e das pessoas colectivas, e não sobre o consumo ou a despesa, pois não apresentarão as principais características desta forma de tributação”.

                O quanto vem de se dizer, ecoa, de alguma forma, na jurisprudência que vem sendo produzida pelo Tribunal Constitucional (TC), como acontece com o Acórdão 197/2016, de 13-04-2016 .

                Com efeito, reconhecendo o TC que a matéria das tributações autónomas é “regulada normativamente em sede de imposto sobre o rendimento”, confirma o mesmo Tribunal que a mesma “é materialmente distinta da tributação em IRC”, e que “estamos (...) perante factos tributários distintos e que são objeto de um tratamento fiscal diferenciado”, indo mesmo ao ponto de afirmar que “o IRC e a tributação autónoma são impostos distintos” e que aquela tributação “nada tem a ver com a tributação do rendimento e os lucros”, afirmações que terão de ser lidas, julga-se, cum grano salis, enquadrando-as nas limitações que as contextualizam, reportando-as à existência de uma “base de incidência” consistente em “certas despesas que constituem factos tributários autónomos”, e na “sujeição a taxas específicas”, compreendendo-se assim que a tributação autónoma “nada tem a ver com a tributação do rendimento e os lucros imputáveis ao exercício económico da empresa” (o que não quer dizer que seja alheia ao rendimento e lucros em geral), e que a distinção entre a tributação autónoma e o IRC, sendo profunda e vincada, se deve cingir ao necessário para salvaguardar a especificidade daquela ao nível da respectiva teleologia, base de incidência e taxas específicas, sem prejudicar a integração no mesmo edifício normativo.

                Efectivamente, crê-se, não estará o TC a defender que a tributação autónoma constitui um imposto sobre a despesa stricto sensu, completamente alheio e distinto do IRC, sob pena de, não só ser desmentido pela sistemática da lei fiscal  e, expressamente, pelo próprio legislador , como também de condenar irremediavelmente as tributações autónomas a uma inconstitucionalidade formal, por violação do disposto na al. i) do artigo 165.º, n.º 1 da CRP , na medida em que as leis autorizativas da criação daquelas não licenciaram a criação de um novo imposto sobre a despesa .

                Terá presente o TC que a tributação autónoma será, pelo menos, uma tributação compensatória de IRC que, por o ser, é IRC (sem sentido amplo) também.

                O próprio STA, discordando, de um ponto de vista de princípio, com a qualificação, reconheceu já também que “o legislador (bem ou mal e, a nosso ver, mal) sempre as considerou como IRC, incluindo o seu regime legal no âmbito do respectivo código (pelo menos desde a referida Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro)” .

                Não obstante, e sem prejuízo do que vem de se expor, não se poderá, na apreciação da matéria em causa, desprezar a (enfaticamente afirmada pelo TC) profunda distinção formal e teleológica entre a tributação autónoma em IRC e a tributação geral neste imposto (IRC stricto sensu).

                Em suma: já anteriormente se detectou, por um lado, a futilidade de procurar um conceito unitário de IRC que acomode, coerentemente, o regime das tributações autónomas, e que, por outro, a via metodologicamente mais profícua de gerar soluções juridicamente adequadas para a problemática em causa passa por compreender o regime do IRC actual como produto de uma evolução historicamente explicada que conduziu à edificação de uma estrutura de natureza dual ou híbrida, compreendendo um núcleo principal correspondente ao IRC tradicional, e uma parte adjacente, conexionada com aquele e fazendo parte da mesma realidade normativa global, com especificidades próprias das quais resulta um afastamento, em vários e substanciais aspectos, do regime principal, em termos de os princípios e soluções gerais, não obstante, por vezes, se aplicarem, por outras vezes, serem contraditórios, e como tal, inaplicáveis, com a natureza própria dessa tal “normação adjacente” que se consubstancia nas designadas tributações autónomas.

                Sendo que, como é já consabido, essa natureza própria, ou específica, assente numa lógica estranha ao edifício principal do IRC tradicional, se caracterizará, essencialmente, pelas notas sobejamente reconhecidas como próprias às tributações autónomas, designadamente, quer quanto à sua forma de imposição (o carácter instantâneo do respectivo facto tributário e a circunstância de este consistir num gasto), quer quanto à sua ratio anti-sistemática (o facto de algumas das tributações autónomas em IRC terem uma vertente dirigida directamente para o rendimento de pessoas singulares e/ou uma vertente sancionatória, bem como uma finalidade antiabuso).

                Aqui se chega, crê-se, à percepção da deficiência lógica que se encerra no silogismo atrás exposto, em que assenta a posição pugnada pela Requerente e aquelas que a sustentam.

                Com efeito, será verdade que:

a)            O crédito do SIFIDE pode ser deduzido à colecta de IRC; e que

b)           A tributação autónoma é IRC.

Contudo, como se vem de expor, considera-se  que a integração das tributações autónomas no IRC (ou seja, enquanto fazendo materialmente parte do regime jurídico do IRC) apenas é viável num contexto que reconheça naquele um sistema com uma natureza dual, que se poderá por comodidade designar por IRC em sentido amplo, integrando um sistema base correspondente ao IRC tradicional, ou stricto sensu, e um sistema periférico, autónomo, que fazendo ainda parte do mesmo sistema global, tem especificidades funcionais e axiológicas próprias, das quais decorre o afastamento da aplicação das normas próprias daquele sistema base, sempre que tal se justifique à luz da coerência do próprio sistema (das razões que justificam a sua autonomia).

Como sintetiza a Requerida, “a integração das tributações autónomas, no CIRC (e no Código do IRS), conferiu uma natureza dualista, em determinados aspectos, ao sistema normativo deste imposto, que se corporizou, nomeadamente, no quadro da alínea a) do n.º 1 do art.º 90.º do CIRC, em apuramentos separados das respectivas colectas, por força de obedecerem a regras diferentes. E isso, pois, num caso, trata-se da aplicação da(s) taxa(s) do art.º 87.º do CIRC à matéria colectável determinada segundo as regras contidas no capítulo III do Código e, noutro caso, trata-se da aplicação das taxas aos valores das matérias colectáveis relativas às diferentes realidades contempladas no art.º 88.º do CIRC.”.

Este entendimento, de resto, já teve algum acolhimento jurisprudencial, tendo-se considerado ser a “tributação autónoma apurada de forma independente do I.R.C. que é devido em cada exercício, por não estar diretamente relacionada com a obtenção de um resultado positivo, e por isso, passível de tributação.” .

Daí que o silogismo formulado, à luz do entendimento que se expôs, tem a sua coerência lógica minada pela desconsideração do que vem de se apontar já que o conceito de IRC, utilizado nas respectivas premissas, não é o mesmo.

Dito de outro modo, sim, a tributação autónoma é IRC, mas apenas em sentido lato, constituindo um sistema periférico da tributação do rendimento das pessoas colectivas, com teleologia e mecânicas próprias, que justificam, em determinadas situações, a sua autonomia, em relação ao referido sistema de IRC stricto sensu.

Daí que não sendo – repete-se, à luz do entendimento que se expôs – o conceito de IRC o mesmo em ambas as premissas (a primeira premissa valida-se no sistema de IRC stricto sensu, e a segundo no sistema de IRC em sentido lato) fica comprometida a validade lógica do silogismo apresentado, não decorrendo daí, necessariamente, a falsidade da conclusão mas, unicamente, a inaptidão das premissas em causa para sustentar a sua validade.

                Assim, e concluindo aqui, não se poderá, crê-se, na senda da solução a obter para a questão decidenda, obliterar que, não obstante convergirem, efectivamente, na forma de liquidação regulada nos artigos 89.º e 90.º, n.º 1 do CIRC aplicável, as tributações autónomas e o IRC stricto sensu (ou tradicional), provêm as mesmas, a montante, de geografias profundamente distintas, facto que não poderá deixar de ser devidamente ponderado e tido em conta, nas soluções a encontrar a jusante, designadamente, e para o que ao caso interessa, no que diz respeito à leitura a fazer da norma do artigo 90.º, n.º 2 do referido Código, bem como da norma, paralela, do art.º 4.º da Lei n.º 55-A/2010.

 

*

                Prosseguindo a senda interpretativa em curso para jusante, passar-se-á a aferir das decorrências da limitação daquele processo hermenêutico à camada literal do objecto interpretativo em análise.

                Como acertadamente aponta a entidade Requerida na sua resposta, o entendimento segundo o qual da falta de distinção, ao nível do texto do n.º 1 do artigo 90.º do CIRC aplicável decorre que, a nível de tal norma, não se deverá fazer qualquer distinção tendo em conta as diferenças, a montante, do imposto que naqueles termos, é liquidado, implicaria que na base de cálculo dos pagamentos por conta devidos em IRC, se incluíssem, também, os valores relativos às tributações autónomas, e não apenas os relativos ao IRC stricto sensu.

                Com efeito, dispõe o n.º 1 do art.º 105.º do Código do IRC, que: “Os pagamentos por conta são calculados com base no imposto liquidado nos termos do n.º 1 do art.º 90.º (…)”.

                Ora, entendendo-se que o teor normativo do artigo 90.º, n.º 1 do CIRC em questão veda qualquer distinção, para efeitos de outras normas que para o mesmo remetam, entre o imposto liquidado a título de tributação autónoma e o imposto liquidado a título de IRC stricto sensu, ter-se-ia, coerentemente e nos mesmos termos, de concluir que os pagamentos por conta seriam devidos em função da soma de ambos os valores, sendo que tal solução não poderá – crê-se – ter-se por conforme ao espírito de um legislador razoável.

                Efectivamente – e não sendo os pagamentos por conta thema decidendum do presente processo – sem que se justifique grande profundidade nesta análise, sempre se dirá que aquele tipo de pagamentos, conforme é doutrinal e jurisprudencialmente reconhecido, têm por base uma intenção de adiantamento da tributação que será devida a final, atendendo ao lucro tributável do ano anterior.

                Neste sentido, por exemplo, escreveu-se no Ac. do STA de 07-03-2007, proferido no processo 0877/06 , que (sublinhado nosso):

“Da definição legal de “pagamento por conta” retira-se uma imbricação inevitável, necessária e essencial entre “pagamento por conta” e “imposto devido a final”.

Por modo tal que o “título” (palavra da lei) do “pagamento por conta” é o “imposto devido a final”.

O que significa que o “pagamento por conta” é, nos próprios termos da lei, uma entrega pecuniária antecipada, feita, por conta do imposto devido a final, no período de formação do facto tributário.

O que significa, ainda, que o “pagamento por conta” tem de ser aferido com referência à situação contabilística da empresa no fim do período a que se refere o pagamento por conta.

O que decididamente quer dizer que, se nenhuma quantia pecuniária houver de ser (antecipadamente) entregue por conta do imposto devido a final, no concernente período de formação do facto tributário (a que se refere o “pagamento por conta”) – mormente por inexistência de lucro tributável revelado pela contabilidade, a esse tempo –, aquele “pagamento por conta” não tem fundamento substantivo.(...)

E, assim, se não houver lucro tributável, não há imposto devido.”.

                Ora, (pelo menos algumas) das tributações autónomas, conforme também noutra sede se indicou já , não incidem directamente sobre o rendimento, fazendo-o de uma forma meramente mediata ou indirecta, sendo essa a justificação para, não obstante as mesmas integrarem o regime do IRC lato sensu, operarem pela via da despesa e, consequentemente, serem devidas ainda que o sujeito passivo não apresente lucro tributável.

                Assim sendo, como se crê que é, será destituído de sentido que aos contribuintes que não apresentem lucro tributável, se exija pagamento por conta com base em imposto liquidado sobre despesas que realizou e que foram objecto de tributação autónoma.

Isto mesmo é corroborado pela natureza distinta do facto tributário subjacente ao IRC stricto sensu e às tributações autónomas. Com efeito, sendo o primeiro um facto tributário de natureza continuada e o segundo um facto tributário de natureza instantânea, apenas relativamente ao primeiro poderá fazer sentido divisar um adiantamento de imposto (pagamento por conta), e já não quanto ao segundo cuja prática gera, imediatamente, uma obrigação de imposto.

Todavia, e voltando agora ao caso concreto, a mesma leitura literal em que assenta, essencialmente, a pretensão da Requerente, conduziria, crê-se, inelutavelmente, a que, por identidade de razão, se houvesse de considerar que, para efeitos do n.º 1 do art.º 105.º do Código do IRC, a colecta da IRC a considerar incluísse a colecta das tributações autónomas, já que aquela norma dispõe (tão lapidarmente como o artigo 90.º/2 do CIRC ou o art.º 4.º da Lei n.º 55-A/2010) que: “Os pagamentos por conta são calculados com base no imposto liquidado nos termos do n.º 1 do art.º 90.º (…)”.

                Ora, não estando tal em causa no caso sub iudice, pode-se especular que, seguramente, se, em coerência, a Requerente tivesse considerado que para efeitos do referido artigo 105.º/1 do CIRC aplicável se incluía a colecta das tributações autónomas, não deixaria de chamar a atenção para o facto de o ter feito, ou seja, de ter calculado pagamentos por conta que possa ter suportado com base, também, naquela colecta, salientando a consequente injustiça que seria ter estado a suportar tais pagamentos, considerando que o artigo 105.º/1 do CIRC abrangia a colecta de tributações autónomas, e não se interpretasse, paralelamente, o artigo 90.º/2 do mesmo diploma e o art.º 4.º da Lei n.º 55-A/2010, da mesma forma.

                Sendo – evidentemente – este um argumento inultrapassavelmente especulativo, e, como tal insusceptível de servir de base, de per si, a soluções juridicamente fundadas, tal não obsta a que seja um factor de ponderação, evidenciador, por um lado, da instabilidade estrutural da inserção das tributações autónomas em IRC, tal como foi operada, e, por outro, da interligação normativa e da abrangência de perspectiva sistemática imprescindível à valoração das soluções propostas para o problema jurídico a decidir.

                Com efeito, entende-se que sob uma perspectiva sistemática, a posição que se adopte relativamente à matéria decidenda, pelo menos se no sentido pugnado pela Requerente, e adoptado pela jurisprudência que sustenta aquela, não pode deixar de ter reflexo na posição que se adopte relativamente à interpretação do referido artigo 105.º/1 do CIRC, já que, como atrás se apontou, a literalidade dos regimes é, precisamente, a mesma.

                Assim, deste ponto de vista haverá que ponderar, independentemente do que tenha sido a prática quer da AT quer da Requerente, não só se faz sentido que a norma do artigo 105.º/1 do CIRC imponha que a colecta das tributações autónomas entre no cômputo do cálculo dos pagamentos por conta, como a circunstância, atrás apontada, de o STA se ter já pronunciado no sentido de que perante a “inexistência de lucro tributável (...[o]...) “pagamento por conta” não tem fundamento substantivo”.

 

*

                No percurso hermenêutico em curso, haverá igualmente que considerar a norma do n.º 5 do artigo 90.º do CIRC aplicável em questão, que dispõe que:

“As deduções referidas no n.º 2 respeitantes a entidades a que seja aplicável o regime de transparência fiscal estabelecido no artigo 6.º são imputadas aos respectivos sócios ou membros nos termos estabelecidos no n.º 3 desse artigo e deduzidas ao montante apurado com base na matéria colectável que tenha tido em consideração a imputação prevista no mesmo artigo”.

                Esta norma remete directamente para o artigo 6.º do mesmo Código, que prescreve, no que para o caso releva, que:

“1 - É imputada aos sócios, integrando-se, nos termos da legislação que for aplicável, no seu rendimento tributável para efeitos de IRS ou IRC, consoante o caso, a matéria colectável, determinada nos termos deste Código, das sociedades a seguir indicadas, com sede ou direcção efectiva em território português, ainda que não tenha havido distribuição de lucros:

a) Sociedades civis não constituídas sob forma comercial;

b) Sociedades de profissionais;

c) Sociedades de simples administração de bens, cuja maioria do capital social pertença, directa ou indirectamente, durante mais de 183 dias do exercício social, a um grupo familiar, ou cujo capital social pertença, em qualquer dia do exercício social, a um número de sócios não superior a cinco e nenhum deles seja pessoa colectiva de direito público.(...)

3 - A imputação a que se referem os números anteriores é feita aos sócios ou membros nos termos que resultarem do acto constitutivo das entidades aí mencionadas ou, na falta de elementos, em partes iguais.”

                Fundamental no enquadramento desta questão é ainda o teor do artigo 12.º do mesmo Código, que refere que:

“As sociedades e outras entidades a que, nos termos do artigo 6.º, seja aplicável o regime de transparência fiscal não são tributadas em IRC, salvo quanto às tributações autónomas.”.

                Não sendo, também, o tema das entidades sujeitas a regime de transparência fiscal objecto da presente causa, sinteticamente sempre se dirá, desde logo, que da leitura literal em que assenta a pretensão da Requerente, ou seja, de que as tributações autónomas integram, sem limitações e para todos os efeitos, a colecta de IRC, sempre resultaria uma de duas situações, igualmente inaceitáveis, a saber:

-              que as entidades a que se refere o art.º 6.º, n.º 1 do CIRC, se vissem obrigadas a suportar duplamente os encargos com tributações autónomas: (i) uma vez na esfera da sociedade, nos termos do artigo 12.º do CIRC, que expressamente o prevê, e (ii) outra vez nos termos conjugados dos n.ºs 1 e 3 do artigo 6.º do CIRC, que impõe que a “a matéria coletável, determinada nos termos deste Código” relativamente a tais entidades é imputada aos sócios;

-              ou que, assim não sendo, ou seja, se por via de algum tipo de interpretação se restringisse a expressão “matéria coletável, determinada nos termos deste Código”, dela expurgando as tributações autónomas, da conjugação das supra transcritas normas do n.º 5 do artigo 90.º, do artigo 6.º e do artigo 12.º, com a interpretação sustentada pela Requerente para o n.º 1 do artigo 90.º, resultaria que os sujeitos passivos de IRC sujeitos ao regime de transparência fiscal estariam impedidos, por via do referido artigo 90.º, n.º 5, de deduzir aos montantes liquidados a título de tributação autónoma, as deduções previstas no n.º 2 do mesmo artigo, uma vez que estes últimos montantes seriam suportados pela sociedade, enquanto as deduções seriam apenas facultadas aos sócios, discriminando-se assim injustificadamente os sujeitos passivos de IRC sujeitos ao regime de transparência fiscal, dos restantes, que, na tese da Requerente, teriam a faculdade de fazer operar as deduções previstas no n.º 2 do artigo 90.º, aos montantes liquidados, nos termos do n.º 1 do mesmo artigo, a título de tributação autónoma.

Sendo certo que, as sociedades fiscalmente transparentes são uma situação atípica em sede de IRC, são sociedades justamente não sujeitas a IRC sobre o lucro/rendimento, mas sujeitas a IRC em sede de tributações autónomas, não se pode deixar de notar não só que, por um lado, as tributações autónomas são, elas próprias também, uma situação atípica em sede de impostos sobre o rendimento (incluindo o IRC), como que, por outro, é evidente a supra-referida e desenvolvida dualidade do IRC (são sociedades justamente não sujeitas a IRC sobre o lucro/rendimento [IRC stricto sensu], mas sujeitas a IRC em sede de tributações autónomas [IRC lato sensu]).

Uma vez mais, estamos aqui numa perspectiva de ponderação das implicações no edifício normativo do IRC, das interpretações propostas para a(s) norma(s) aplicáveis à situação sub iudice, não se tratando, evidentemente, de um argumento estruturante, mas antes acessório, da solução que se venha a desenhar.

 

*

                Aqui chegados, cumpre explorar um pouco mais os limites da literalidade das normas no epicentro do presente litígio – o artigo 90.º, n.ºs 1 e 2 do CIRC aplicável – e das repercussões da mesma no quadro mais amplo da relação entre o IRC tradicional, e as tributações autónomas nesse imposto.

                Conforme acima se expôs já, no conjunto das tributações autónomas, ainda que restrito às que integram o regime do IRC em sentido amplo, convergem várias situações de origem e teleologia díspares.

                Assim, sinteticamente e a título de exemplo, encontram-se tributações autónomas que visam, isolada ou concomitantemente, desincentivar determinados comportamentos economicamente desvaliosos (ex.: remunerações excessivas a gestores), tributar os chamados fringe benefits (ajudas de custo; despesas com viaturas), mitigar a repercussão fiscal de despesas de empresarialidade integral duvidosa (idem), desincentivar comportamentos com elevado potencial de fraude (pagamentos a entidades sujeitas a regime fiscal claramente mais favorável) ou penalizar comportamentos que fomentam a chamada economia paralela (tributação das despesas confidenciais), ou que são tidos pelo legislador como sumptuários.

                A literalidade da interpretação proposta pela Requerente miscigena, nas estreitas vistas da letra da lei, todas aquelas situações – porquanto todas elas se liquidarão nos termos do artigo 90.º, n.º 1 do CIRC aplicável, daí decorrendo, necessariamente, que à colecta de todas elas, se aplicará a solução propugnada pela Requerente, ou seja, a todas elas – sem excepção perceptível nem, muito menos justificada ou, sequer, tanto quanto se concebe, justificável – seriam aplicáveis todas as deduções previstas no art.º 4.º da Lei n.º 55-A/2010, bem como no n.º 2 do artigo 90.º do CIRC em questão.

                Ora, já atrás, e em outras ocasiões, se apontou a vã glória de fechar, num conceito substantivo unitário, todas as tributações autónomas, mesmo as que apenas ocorrem no âmbito do IRC, atenta a sua disparidade teleológica e funcional. E, aqui, emerge uma das principais fragilidades do edifício argumentativo onde se aloja a posição da Requerente, subjacente também à jurisprudência arbitral por si citada: a de assentar num postulado de unicidade de IRC e de tributações autónomas, tomando o todo pela parte que, concretamente, integra a matéria decidenda, por um lado, e numa valoração exclusiva do tipo de dedução prevista no n.º 2 do artigo 90.º do CIRC aplicável, que concretamente está em causa no caso sub iudice.

                Ou seja: a posição sustentada pela Requerente, bem como aquelas que a corroboram, não cuidam em momento algum de enquadrar as valorações por si efectuadas e de validar a aplicação da interpretação por si proposta à integralidade das tributações autónomas e das deduções previstas no art.º 4.º da Lei n.º 55-A/2010 e no n.º 2 do artigo 90.º aplicável, bem como de valorar as implicações da aplicação da tese em questão, a todas as deduções possíveis a todas as colectas de todas as tributações autónomas abstractamente abrangidas por tal tese, para além de como se apontou já, se absterem de apreciar, numa perspectiva mais ampla, as consequências sistemáticas do acolhimento da leitura essencialmente literal que propõem para a conjugação das normas dos n.ºs 1 e 2 do artigo 90.º do CIRC.

                A fenda no edifício fundamentador da posição da Requerente, bem como daquelas que a sustentam, abre-se assim, face a esta constatação, em duas direcções distintas: (i) por um lado, a leitura proposta pela Requerente para a norma do artigo 90.º, n.º 2 do CIRC aplicável, não distingue, nem permite distinguir, entre tributações autónomas relativas a encargos dedutíveis e outros tipos de tributação autónoma; (ii) por outro lado, da matéria de facto provada não resulta que as tributações autónomas em causa nos presentes autos não respeitem a tipos distintos de tributações autónomas, como por exemplo, tributações autónomas relativas a despesas não documentadas, a bónus e outras remunerações variáveis de gestores, administradores ou gerentes, ou a pagamentos a entidades sujeitas a um regime fiscal claramente mais favorável.

                Toda a argumentação relativa à natureza das tributações autónomas, enquanto tributadoras ainda de rendimento das entidades sujeitas àquela, é insuficiente para a decisão da matéria sub iudice, porquanto, não se demonstra sequer que estejam exclusivamente em causa tributações autónomas onde se reconheçam as características em que aquela argumentação assenta.

                O edifício argumentativo apresentado pela Requerente em abono da sua pretensão, abriga em si, assim, o potencial de acoitar pretensões, em que se vise proceder a deduções nos termos do art.º 4.º  da Lei n.º 55-A/2010 e do n.º 2 do artigo 90.º do CIRC aplicável, a tributações autónomas relativamente às quais não é válida a consideração da natureza das tributações autónomas, enquanto tributadoras ainda de rendimento das entidades sujeitas àquela, como as referidas, relativas a despesas confidenciais, pagamentos a entidades sujeitas a regimes fiscais privilegiados ou relativas a compensações por gestão.

                Ora, este tipo de resultado não se poderá ter como querido por um legislador razoável, face a toda a sistemática do IRC em sentido amplo, incluindo as tributações autónomas. Efectivamente, crê-se que não será sustentável que, tendo ido onde, juridicamente, o legislador do CIRC foi, visando, por exemplo, o combate à economia paralela ou as transacções com os chamados (incorrectamente ) “paraísos fiscais”, fosse sua intenção que a respectiva carga de tributação autónoma, pudesse ser aligeirada por meio das deduções previstas quer no art.º 4.º da Lei n.º 55-A/2010, quer no n.º 2 do artigo 90.º do CIRC.

 

*

                Não se quedará por aqui, contudo, a entropia sistemática gerada pela posição que a Requerente pretende fazer valer nos autos.

                Efectivamente, e mesmo restringindo a questão às tributações autónomas sobre encargos dedutíveis em IRC, tal posição redundaria numa directa violação do princípio da igualdade.

                Com efeito, como é referido por diversa jurisprudência, as tributações autónomas relativas a encargos dedutíveis tem subjacente uma presunção de “empresarialidade parcial” ou não integral, conforme, de resto, foi recentemente reconhecido pelo TCA-Sul, no Acórdão de 03-03-2018, proferido no processo 1294/14.0BELRS. Ou seja, tais despesas conterão, presumivelmente, uma finalidade empresarial, que consente a sua dedução, mas com tal finalidade concorrerão outras, que, se fossem exclusivas, arredariam a sua dedutibilidade .

                Tal carácter presuntivo, justificará que quando o contribuinte logre ilidir a referida presunção, as despesas mantenham o seu carácter dedutível, sem sujeição a tributação autónoma .

                Ora, neste campo restrito das tributações autónomas sobre despesas dedutíveis, a posição sustentada pela Requerente redundaria numa desigualdade qualificada (na medida em que mais que tratar como igual o desigual, ou o desigual como igual, trataria o desigual como desigual, na medida inversa da desigualdade), já que numa situação em que um contribuinte declarasse encargos dedutíveis que normalmente seriam sujeitos a tributação autónoma, mas que, em concreto, não o fossem por não se verificarem os pressupostos materiais desta (ou seja, por elisão da presunção subjacente), como foi o caso, por exemplo, da situação em causa no processo arbitral 628/2014-T , e em que esse mesmo contribuinte apresentasse prejuízo fiscal, não poderia proceder a qualquer dedução, nos termos do artigo 90.º, n.º 2 do CIRC, ao passo  que um outro contribuinte, na mesma situação (prejuízo fiscal), mas que assumisse (implícita ou explicitamente), o carácter parcialmente empresarial do mesmo tipo de encargos, ficando, por isso, onerado com a correspondente tributação autónoma, poderia, na tese subjacente à posição da Requerente, lançar mão das deduções previstas naquele mesmo artigo.

                Ou seja, e em suma: entre dois contribuintes em situação distinta perante o sistema fiscal de IRC, um que incorresse em gastos de índole integralmente empresarial, e outro que incorresse nos mesmos gastos mas para fins (real ou presumidamente) parcialmente estranhos à empresarialidade, o segundo obteria do sistema fiscal, na matéria que nos ocupa, um tratamento mais benévolo, por via de um comportamento menos conforme à teleologia daquele.

Sendo verdade que o princípio da igualdade jurídica e fiscal não é um princípio absoluto, pois admite situações de discrímen, também é verdade que estas situações devem corresponder a discriminações fundadas em valores institucionalizados, genericamente aceites e acolhidos na ordem de valores instituída.

Ora, no caso, em que duas empresas na situação supra descrita se encontram objectivamente em situação diferenciada e que deviam, por isso, merecer um tratamento fiscal diferenciado, no sentido da diferença, ocorre, face à tese subjacente à posição da Requerente, justamente o contrário.

 

*

                Dentro dos tópicos decisórios a considerar, caberá também fazer uma menção à entrada em vigor da redacção do n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, introduzido pela Lei que aprovou o Orçamento do Estado para 2016 (Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março), que veio dizer que:

“A liquidação das tributações autónomas em IRC é efetuada nos termos previstos do artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado.”

                Esta norma é objecto do artigo 135.º da referida Lei que aprovou o OE de 2016, que refere que:

“A redação dada pela presente lei ao n.º 6 do artigo 51.º, ao n.º 15 do artigo 83.º, ao n.º 1 do artigo 84.º, aos n.ºs 20 e 21 do artigo 88.º e ao n.º 8 do artigo 117.º do Código do IRC tem natureza interpretativa.”.

                Como é consabido, colocou-se a questão sobre se o n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, introduzido pelo OE 2016, tem (como a própria lei o diz), ou não, natureza interpretativa, bem como da constitucionalidade de tal natureza, sendo que tais questões ficaram ultrapassadas pelo Acórdão do Tribunal Constitucional que julgou inconstitucional o referido artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março.

                Não obstante, o próprio TC reconhece, no seu Acórdão n.º 107/2018 , que:

“O Tribunal Constitucional não «sufragou» qualquer interpretação da lei em matéria de deduções dos pagamentos especiais por conta aos montantes das tributações autónomas que integram a colecta do IRC. Não o fez, desde logo, por não lhe compete determinar o sentido da lei, mas apenas apreciar a constitucionalidade da lei com o sentido que lhe foi fixado pelas instâncias. Daí decorre que o facto de certa interpretação da lei ser inconstitucional, no juízo do Tribunal Constitucional, não implica a adesão a qualquer interpretação alternativa da lei, nem sequer o juízo de que tal interpretação, a vir a ocorrer, não é inconstitucional; significa apenas que a interpretação que constitui o objeto do recurso ─ e apenas essa ─ é inconstitucional. Em todo o caso, no Acórdão n.º 267/2017, o Tribunal Constitucional não julgou inconstitucional a norma do n.º 21 do artigo 88.º do Código do IRC ─ nos termos da qual os pagamentos especiais por conta não podem ser deduzidos aos montantes das tributações autónomas ─, mas a norma do artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, que lhe atribui natureza interpretativa (e, por essa via, nos termos das regras gerais, efeito retroativo). A constitucionalidade da solução consagrada no n.º 21 do artigo 88.º não esteve, nesse ou no presente recurso, em causa. Mais: o que o Tribunal julgou inconstitucional foi a imposição legal de determinado sentido, o que em nada impede que o mesmo sentido seja alcançado através da interpretação jurisdicional da lei, ou seja, não porque o legislador a impôs, mas porque entente o tribunal do caso que essa é a interpretação correta da lei”.

Por outro lado, a alteração legislativa em questão, continua a ter interesse para a matéria ora em causa, já que o legislador em sede de LOE 2016 optou por afastar a aplicação de parte do disposto no artigo 90.º do Código do IRC para a colecta do IRC, à colecta da tributação autónoma em IRC, confirmando que não existe qualquer obstáculo conceptual ou de princípio a que, por via interpretativa, se chegue a esse mesmo resultado.

                De resto, do próprio Código do IRC, na redacção vigente à data dos factos tributários, resultava já que o regime desse imposto pressupunha tal diferenciação ao nível do referido artigo 90.º, no sentido de que à colecta de tributações autónomas não era admissível, por princípio, qualquer dedução, resultando tal do disposto do n.º 12 do artigo 88.º, introduzido pelo Decreto-Lei n.º 192/2005, de 7/11, que dispõe que:

“Ao montante do imposto determinado, de acordo com o disposto no número anterior, é deduzido o imposto que eventualmente tenha sido retido na fonte, não podendo nesse caso o imposto retido ser deduzido ao abrigo do n.º 2 do artigo 90.º.”.

                A tributação autónoma em questão, salvo melhor opinião, deverá entender-se como sendo devida pela entidade que aufere os lucros, já que caso estivesse em causa a tributação autónoma da entidade que distribui lucros, nunca se colocaria a questão da dedução da retenção na fonte à colecta da tributação autónoma em causa, uma vez que as retenções na fonte a que se reporta o art.º 90.º/2 do CIRC deverão ser consideradas retenções sobre rendimentos auferidos pela entidade devedora de IRC, e não de rendimentos pagos e retenções efectuadas por esta, e, em todo caso, nunca se poria a questão da retenção na fonte sobre os lucros distribuídos ser deduzida à colecta (quer de IRC, quer de tributações autónomas), porquanto tal valor é retido à entidade isenta, não sendo, consequentemente, suportado pela entidade que distribui os lucros e não sendo dessa forma, sempre salvo melhor opinião, a retenção na fonte susceptível de constituir qualquer penalização para a entidade que distribui os lucros.

Tal circunstância de a tributação autónoma ora em apreço se dever considerar devida pela entidade que aufere os lucros, e não pela que os distribui , não prejudicará a sua natureza de tributação autónoma, e será a tal colecta de tributação autónoma, liquidada e paga pela entidade isenta que não manteve as participações sociais por um ano, e que auferiu dividendos daquelas, que pode ser deduzida - excepcionalmente - o imposto retido na fonte, sendo, justamente, o sentido da previsão de que, nesse caso, o imposto retido não pode ser deduzido nos termos do artigo 90.º/2, a evidência de que as deduções previstas neste artigo não se aplicam à colecta de tributações autónomas, uma vez que se assim não fosse, a previsão do artigo 88.º/12 seria uma inutilidade num duplo sentido, dado que:

a.            a dedução do imposto retido na fonte à colecta da tributação autónoma em causa, já decorria do referido art.º 90.º/2, pelo que não faria sentido afirmá-la no art.º 88.º/12;

b.            se o imposto retido na fonte fosse deduzido à colecta da tributação autónoma, ao abrigo do art.º 90.º/2, nunca poderia ser deduzido duas vezes (pela mesma razão que não pode ser deduzido duas vezes à colecta de IRC), pelo que também a previsão do art.º 88.º/12 de que, deduzindo-se o imposto retido na fonte à colecta de tributação autónoma não se pode deduzir o mesmo ao abrigo do art.º 90.º/2 seria, também ela, uma inutilidade.

                Assim, a referida norma, ao dispor que ao montante de imposto resultante da tributação autónoma, nas situações previstas no n.º 11, de 25% sobre os lucros distribuídos por entidades sujeitas a IRC a sujeitos passivos que beneficiam de isenção, pode ser deduzido o imposto que eventualmente tenha sido retido na fonte, terá implícito o entendimento que, por regra, à colecta de tributações autónomas, não eram admissíveis deduções, designadamente as previstas no artigo 90.º/2 do CIRC, que previa já a possibilidade da dedução das retenções na fonte à colecta de IRC a que se referia o n.º 1 da mesma norma.

                Ou seja: se, como defende certa jurisprudência já resultasse da conjugação dos n.ºs 1 e 2 do artigo 90.º do CIRC que as retenções na fonte eram dedutíveis à colecta de tributações autónomas, incluindo a prevista no n.º 11, a norma do referido n.º 12 do artigo 88.º, na parte em que permitia justamente tal dedução, era uma norma inútil, nada mais fazendo do que reafirmar, sem qualquer sentido, a regra geral.

                Mais: a norma em questão, do n.º 12 do artigo 88.º, introduzido pelo Decreto-Lei n.º 192/2005, de 7/11, faz questão de afirmar que, caso seja operada a dedução das retenções na fonte ali em causa à tributação autónoma, não poderá “o imposto retido ser deduzido ao abrigo do n.º 2 do artigo 90.º”, evidenciando, crê-se, de forma suficientemente perceptível, que as deduções possíveis ao abrigo daquele referido artigo 90.º/2 não eram já aplicáveis à colecta resultante das tributações autónomas.

                Efectivamente, a 2.ª parte da norma do n.º 12 do artigo 88.º em análise visa evitar uma duplicação de dedução das retenções na fonte por ela abrangidas, o que só faz sentido se se perspectivar, como se verá infra, que da aplicação da norma do artigo 90.º/1 do CIRC não resulta uma colecta monolítica de IRC, mas que a referida cisão entre a colecta das tributações autónomas em IRC e a colecta geral do IRC se mantinha naquela norma, e que o artigo 90.º/2 apenas se aplicava a esta última, e não àquela.

                A não ser assim, também esta segunda parte do artigo 88.º/12 do CIRC careceria por completo de sentido, já que se, no âmbito do artigo 90.º/1 do CIRC, a colecta das tributações autónomas em IRC se fundisse numa só colecta de IRC, como pretende a Requerente e defende a jurisprudência em que se louva, seria evidente que nunca poderia haver dupla dedução de retenções na fonte a uma mesma, e única, colecta.

                Ou seja, e em suma, a opção do legislador de em sede de LOE 2016 afastar a aplicação de parte do disposto no artigo 90.º do Código do IRC para a colecta do IRC, à colecta da tributação autónoma em IRC, estava já implícita no Código de tal imposto, ao nível do artigo 88.º/12, do qual resultava já, nos termos expostos que:

-              por norma, a colecta das tributações autónomas não admitia deduções; e

-              o artigo 90.º/2 do CIRC (e, consequentemente, o art.º 4.º da Lei n.º 55-A/2010) não era aplicável à colecta das tributações autónomas.

 

*

                Sumariando o quanto atrás se veio dizendo, verifica-se, desde logo, que a interpretação sustentada pela Requerente assenta, essencialmente, no teor literal das normas dos n.ºs 1 e 2 do artigo 90.º do CIRC aplicável, não se descortinando nenhum fundamento substancial que justifique a solução em causa, tanto mais que os argumentos em que assenta tal posição restringem-se, essencialmente, às tributações autónomas de encargos dedutíveis e às deduções concretamente em causa (benefício SIFIDE) sendo que, por um lado, nada se prova a respeito de, no caso concreto, estarem em causa apenas tributações autónomas daquele tipo (e não de outros), e, por outro, da interpretação proposta sempre decorreria que todas as deduções previstas no art.º 4.º da Lei n.º 55-A/2010 e no artigo 90.º, n.º 2 do CIRC em causa se fariam a todos os tipos de tributação autónomas, incluindo, por exemplo, as relativas a pagamentos a entidades sujeitas a regimes de tributação claramente mais favoráveis, as relativas a despesas confidenciais ou as compensações a gerentes, e nenhum dos argumentos substanciais em que assenta a posição da Requerente permite justificar que tal aconteça.

                Por outro lado, como se viu, se é certo que o artigo 90.º, n.º 1 do CIRC em questão não distingue entre a liquidação de tributações autónomas e a liquidação de IRC tradicional ou stricto sensu (sobre o lucro tributável), a verdade é que, a montante, o procedimento e a natureza dos dois tipos de imposição tributária é substancialmente distinto, como se viu e conforme a jurisprudência constitucional na matéria dá abundante conta, situação à qual não se poderá, julga-se, deixar de atender na matéria sub iudice.

                Acresce que, como também se viu, a ratificação da interpretação que sustenta o petitório da Requerente, seria, a jusante, geradora de assinalável turbulência no edifício normativo do IRC, designadamente no que diz respeito aos regimes do pagamento especial por conta, e das sociedades sujeitas ao regime de transparência fiscal.

                Acresce ainda que, como se analisou também, a atinência à literalidade dos preceitos do artigo 90.º, n.º 1 e 2, propugnada pela Requerente, redundaria – crê-se – num atropelo ao princípio da igualdade tributária, para além do mais, constitucionalmente imposto.

                Por fim, e como se acabou atrás de ver, ao nível do artigo 88.º/12 do CIRC aplicável, resultava já, nos termos expostos, que:

-              por regra, a colecta das tributações autónomas não admitia deduções; e

-              o artigo 90.º/2 do CIRC, e consequentemente o art.º 4.º da Lei n.º 55-A/2010, não era aplicável à colecta das tributações autónomas.

                Por tudo isto, julga-se que na estrita conjugação do texto das duas normas, o legislador disse mais do que aquilo que queria, situação que, de resto, resultou não de descuido coevo da redacção de tais normas, mas, antes, da evolução histórica do regime normativo do IRC e, concretamente, da paulatina introdução naquele do regime relativo às tributações autónomas, sem que o mesmo se reflectisse, coerentemente, no teor do artigo 90.º, n.º 2 do mesmo Código.

                Este desacerto, aliás, é patente na norma do n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, introduzido pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, que dispondo que não são “efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado” de tributações autónomas, não ressalva sequer o n.º 12 do mesmo artigo que prevê, precisamente, a possibilidade de deduções à tributação autónoma a que se refere.

                Estamos, assim, perante uma situação descrita pelo Ilustre Mestre Prof. Doutor Baptista Machado, em que: “Por vezes, embora raramente, será preciso ir mais além e sacrificar, em obediência ainda ao pensamento legislativo, parte de uma fórmula normativa, ou até a totalidade da norma. Trata-se de fórmulas legislativas abortadas ou de verdadeiros lapsos. Quando a fórmula normativa é tão mal inspirada que nem sequer alude com clareza mínima às hipóteses que pretende abranger e, tomada à letra, abrange outras que decididamente não estão no espírito da lei, poderá falar-se de interpretação correctiva. O intérprete recorrerá a tal forma de interpretação, é claro, apenas quando só por essa via seja possível alcançar o fim visado pelo legislador.” .

                Com efeito, a fórmula normativa do artigo 90.º, n.º 2 do CIRC aplicável, tomada à letra, como faz a Requerente, abrange hipóteses, como se viu, que decididamente não estão no espírito da lei nem são conformes às especificidades e natureza próprias das diversas tributações autónomas. No caso, como se referiu já, não por má inspiração da própria norma, mas das sucessivas reformas que historicamente foram introduzindo as tributações autónomas em IRC, sem que as mesmas se reflectissem, correspondentemente, na redacção do artigo 90.º, n.º 2 de tal Código.

                Por outro lado, sistematicamente encarada, tal fórmula, reduzida à sua literalidade, é geradora de graves e inultrapassáveis incoerências, como se viu, para além de, como também se viu, o CIRC aplicável ter já, na norma do n.º 12 do artigo 88.º, evidências literais de que a norma do artigo 90.º/2 do mesmo Código não seria, por regra, aplicável à colecta de tributações autónomas, realizada no n.º 1 do artigo.

                Deste modo, tendo em conta a compreensão racional, histórica e sistemática da norma em questão, torna-se forçoso interpretar correctivamente a norma do artigo 90.º, n.º 2 do CIRC aplicável, de modo a restringir a remissão que faz para o n.º 1 da mesma norma, na referência que faz “Ao montante apurado nos termos do número anterior”, limitando-a ao montante da colecta de IRC calculada mediante a aplicação das taxas do artigo 87.º à matéria colectável apurada de acordo com as regras do capítulo III do Código, e já não aos montantes apurados a título de tributações autónomas, assim se devolvendo à norma o seu sentido original, que era o que correspondia à sua redacção textual antes da introdução das tributações autónomas no CIRC.

                Compreendido desta forma o art.º 90.º/2 do CIRC, adquire, igualmente, um sentido distinto do sustentado pela Requerente o regime do art.º 4.º da Lei n.º 55-A/2010.

                Efectivamente, nos termos de tal regime, “A dedução é feita, nos termos do artigo 90.º do Código do IRC”, de onde resulta, desde logo, que, ao contrário do que parece assumir a Requerente, a dedução operará nos termos em que as deduções previstas no art.º 90.º operam.

                Assim, interpretando-se, da maneira que vem de se expor, o art.º 90.º do CIRC no sentido de a colecta de tributações autónomas efectuada nos termos dessa norma não admitir deduções (para lá da especialmente prevista no art.º 88.º/12 do CIRC), tal restrição aplicar-se-á, igualmente, por via do referido n.º 3 do art.º 4.º da Lei n.º 55-A/2010, às deduções a que se refere esse mesmo artigo 4.º.

                Não está, por outro lado, em causa uma interpretação correctiva (ou restrititva) do regime do benefício fiscal – SIFIDE – mas do art.º 90.º, como se viu, para o qual aquele remete. Dito de outro modo, não se está a corrigir ou restringir o texto normativo do art.º 4.º da Lei n.º 55-A/2010, mas o do art.º 90.º do CIRC (nos termos previamente expostos), cujos termos aquele primeiro impõe que sejam observados.

Admite-se que se possa questionar a bondade da opção legislativa referida, implícita até à introdução do n.º 21 do artigo 88.º do CIRC pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, e a partir daí explícita, no que diz respeito à inadmissibilidade de outros tipos de dedução, para além da prevista no n.º 12 do mesmo artigo 88.º, à colecta de outros tipos de tributação autónoma. Não obstante, julga-se que tal opção, agora expressa no referido artigo 88.º/21 do CIRC, se contém ainda dentro do espaço de discricionariedade legislativa, não ofendendo o conteúdo fundamental de qualquer preceito constitucional ao caso convocável.

                Face ao exposto, e julgando-se que, face ao direito aplicável ao facto tributário em questão na presente acção arbitral, não era admissível a dedução nos termos do n.º 2 do artigo 90.º do CIRC à colecta de tributações autónomas efectuada nos termos do n.º 1 do mesmo artigo, deverá o pedido arbitral principal, e pedidos consequentes, improceder.

 

*

 

C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar integralmente improcedentes os pedidos arbitrais formulados e, em consequência, absolver a Requerida do pedido e manter os actos tributários objecto da presente acção arbitral.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 80.751,56, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 2.754,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerente, uma vez que o pedido foi totalmente improcedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.

 

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 19 de Dezembro de 2019

 

O Árbitro Presidente

(José Pedro Carvalho)

 

O Árbitro Vogal

(Elisabete Flora Louro Martins)

 

O Árbitro Vogal

(Augusto Vieira – vencido conforme declaração de voto)

 

 

 

 

 

 

 

Declaração de voto

Não perfilhamos o douto entendimento que logrou vencimento na decisão arbitral adoptada. Defendemos uma outra leitura da lei aplicável, conforme consta nas decisões arbitrais adoptadas, nomeadamente, nos processos CAAD 474/2017-T, 576/2017-T e sobretudo nos processos 319/2018-T e 407/2018-T (que tratam situações em tudo idênticas à deste processo), entre outras, disponíveis em https://caad.org.pt/tributario/decisoes/ e por essa razão, aqui não se reproduzem integralmente. Em suma, defendemos que o pedido de pronúncia arbitral deveria proceder.

Tendo em conta que a actividade jurisdicional visa dirimir um concreto conflito entre as partes e não visa, no imediato, uma análise mais vasta do que poderia ser a literalidade das normas a aplicar, face a eventuais incoerências, discordamos, desde logo, da formulação de que o litígio aqui submetido a julgamento se prende apenas em saber se o montante das tributações autónomas é apurado nos termos do artigo 90º do Código do IRC, sem ter em conta que o que verdadeiramente nos parece estar aqui em causa, é imediatamente, a dedutibilidade de despesas com investigação e desenvolvimento previstas no SIFIDE à colecta derivada das tributações autónomas, enquanto benefício fiscal automático e irrenunciável (artigos 2º nºs 1 e 2, 5º nº 2 e 14º nº 8, todos do EBF).

A colecta de IRC resultante da aplicação das diversas “taxas de tributação autónoma” estabelecidas no artigo 88º do Código do IRC, sobre determinadas realidades que constituem a matéria colectável, não sofre qualquer distinção nos artigos 89º e 90º do Código do IRC. Tanto é colecta de IRC o resultado da aplicação das taxas do artigo 87º do CIRC a uma determinada matéria colectável, como o é o resultado da aplicação das taxas do artigo 88º do CIRC sobre as respectivas matérias colectáveis. O procedimento de liquidação é o mesmo (ou pelo sujeito passivo ou pela Autoridade Tributária).

Que o nº 2 do artigo 90º abrange a colecta de IRC resultante da aplicação das taxas do artigo 88º do CIRC, é inquestionável, face ao elemento literal da lei que não deixa margem para dúvidas.

O elemento literal da norma é sempre o mais relevante, por ser delimitador da actividade interpretativa.

No pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

A letra é um elemento irremovível da interpretação, ou um “limite da busca do espírito”.

“Uma interpretação que não se situe já no âmbito do sentido literal possível, já não é interpretação, mas modificação de sentido” (Larenz). “(...) Há-de ser um sentido (uma motivação, um conjunto de objectivos) que caiba razoavelmente no sentido literal da declaração do legislador, sob pena de, se isto não acontecer, se estar a criar uma nova norma, em vez de interpretar uma norma já existente” (Hespanha)

No confronto entre uma norma isentiva (medida de carácter excepcional para tutela de interesses públicos extrafiscais relevantes que são superiores aos da própria tributação que impedem) e uma norma que visa a tributação em termos gerais (interesse público que subjaz à tributação para obter uma maior receita fiscal possível), terá que prevalecer o interesse público mais relevante, que é o titulado pela norma isentiva.

Está, pois em causa, neste caso, a aplicação de “lei especial” (a que regula o SIFIDE) a que se alude no nº 21 do artigo 88º do Código do IRC.

Assim sendo, a interpretação restritiva (partindo do princípio que o legislador disse mais do que queria) adoptada na decisão que obteve vencimento, quanto à aplicação dos nºs 1 e 2 do artigo 90º do Código do IRC, não se configurará legalmente admissível, porque, como defendemos. o que aqui está em causa é a aplicação do conjunto de normas que integram o SIFIDE.

 

A este propósito, expressa-se na decisão arbitral colegial adoptada no processo CAAD nº 407/2018-T (que, como atrás se referiu, versa sobre IRC de 2015 e a um casa idêntico ao deste processo) a que aderimos:

 «...em face da proibição constitucional da aplicação retroactiva do afastamento global da dedutibilidade a situações anteriores à Lei n.º- 7-A/2016, serão de aplicar as deduções quando elas resultam da legislação especial a que se refere a redacção do n.º 21 do artigo 88.º introduzida pela Lei n.º 114/2017.

Na verdade, pelo menos nestes casos em que as deduções resultam de lei especial, estará afastada necessariamente a possibilidade de as afastar por via de uma interpretação restritiva do n.º 2 do artigo 90.º, pois é essa lei especial, precisamente por o ser, que impõe a sua aplicação, já que as leis especiais se sobrepõem às leis gerais nos seus específicos domínios de aplicação.»

 

Diz-se ainda na decisão arbitral colegial adoptada no processo CAAD nº 407/2018-T:

 “...  o artigo 90.º do CIRC reporta-se também à liquidação das tributações autónomas.

...

Os  ... diplomas que aprovaram o SIFIDE e o SIFIDE II não referem que os créditos aí previstos são dedutíveis a toda e qualquer colecta de IRC, antes definem o âmbito da dedução aludindo, nos n.ºs 1 dos seus artigos 4.º, «ao montante apurado nos termos do artigo 83.º do Código do IRC, e até à sua concorrência»  e «ao montante apurado nos termos do artigo 90.º do Código do IRC, e até à sua concorrência».

O n.º 2 do artigo 4.º daquele primeiro diploma e o n.º 3 do mesmo artigo 4.º do segundo diploma confirmam que é ao montante que for apurado nos termos do artigo 90.º do CIRC que releva para concretizar a dedução ao dizerem, com a actualização resultante da referida renumeração, que «a dedução é feita, nos termos do artigo 90.º do Código do IRC, na liquidação respeitante ao período de tributação mencionado no número anterior».

Assim, por mera interpretação declarativa, conclui-se que o artigo 4.º, n.º 1, do SIFIDE II, ao estabelecer a dedução «ao montante apurado nos termos do artigo 90.º do Código do IRC, e até à sua concorrência», implica a dedução ao montante das tributações autónomas que são apuradas nos termos desse artigo 90º.”

 

Acrescenta-se na decisão arbitral colegial adoptada no processo CAAD nº 407/2018-T:

“... a natureza das tributações autónomas e as soluções legislativamente adoptadas, em geral, em relação a elas, não têm qualquer relevância para a apreciação desta questão, pois esta tem de ser apreciada à face dos específicos interesses que na sua ponderação se entrechocam.

Na verdade, o que está em causa é, exclusivamente, determinar o alcance do SIFIDE I e do SIFIDE II, que estabelecem um regime de natureza excepcional, que visou prosseguir determinados interesses públicos, e não contribuir para a decisão de qualquer questão conceitual sobre a natureza das tributações autónomas, matéria sobre a qual não se vislumbra quer no texto da lei, quer nos trabalhos preparatórios, a menor preocupação legislativa.

Pela mesma razão de que o que está em causa é interpretar o alcance do diploma de natureza especial que é o SIFIDE I e o SIFIDE II, não pode ser atribuída relevância, para este efeito, à norma do n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, aditado pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, na parte em que se refere que não são «efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado», apesar da pretensa natureza interpretativa que lhe foi atribuída (que implica a sua inconstitucionalidade, por retroactividade prejudicial aos contribuintes, como entendeu o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 267/2017, de 31-05-2017).

Com efeito, não há qualquer sinal, nem na Lei n.º 7-A/2016, nem no Relatório do Orçamento para 2016, nem na sua discussão, de que com o aditamento no artigo 88.º do CIRC de uma norma geral proibindo deduções ao montante global apurado de tributações autónomas, se pretendesse interpretar restritivamente a expressão «deduzir ao montante apurado nos termos do artigo 90.º do Código do IRC» que consta de normas especiais de diplomas avulsos, como são o SIFIDE I e o SIFIDE II.

E, na falta de uma intenção inequívoca em sentido contrário, vale a regra de que a lei geral não altera lei especial (artigo 7.º, n.º 3, do Código Civil), que tem a justificação o facto de que «o regime geral não inclui a consideração das condições particulares que justificaram justamente a emissão da lei especial».

De resto, foi o próprio legislador que, recentemente, através da Lei n.º 114/2017, de 29 de Dezembro, veio reconhecer expressa e inequivocamente, com explícita intenção interpretativa declarada no seu artigo 233.º (constitucionalmente admissível na medida em que não for desfavorável aos contribuintes), que existem normas especiais de que resulta que deveriam ser feitas deduções ao montante apurado com as tributações autónomas, ao dar nova redacção ao n.º 21 do artigo 88.º do CIRC com o seguinte teor:

«21. A liquidação das tributações autónomas em IRC é efetuada nos termos previstos no artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado, ainda que essas deduções resultem de legislação especial.»

Assim, se é certo que esta norma esclarece que é intenção legislativa que não sejam feitas deduções ao montante global apurado com as tributações autónomas, também o é que nela se reconhece que resultava de legislação especial que fossem feitas deduções, sendo esse, precisamente, o caso das normas que preveem benefícios fiscais por dedução à colecta de IRC.

Mas, se dessas normas especiais resultava que fossem feitas deduções ao montante global apurado das tributações autónomas, é manifesto que não é compaginável com o princípio constitucional da proibição da retroactividade das normas que criem impostos (artigo 103.º, n.º 3, da CRP) o afastamento desse resultado por uma lei posterior, a todos os que, ao abrigo dessas leis especiais em que confiaram, criaram as condições para obter as deduções anunciadas legislativamente como resultado para os seus investimentos.»

 

Não vemos, pelo descrito, que estando aqui em causa a aplicação de uma lei especial (a norma isentiva citada) seja impeditivo da assertividade do raciocínio atrás referido, a observação de que o mesmo terá que aplicar-se a casos em que estejam sempre em causa as situações dos nºs 1 e 2, 8 e 13 do artigo 88º do CIRC.

Em primeiro lugar, o que aqui está em causa é o caso concreto das tributações autónomas dos nºs 3 alíneas a) e c), nº 9 e 11, todos do artigo 88º do CIRC.

Em segundo lugar o paralelismo do raciocínio só se poderá colocar em todos os casos em que esteja em causa a dedutibilidade deste concreto benefício fiscal (SIFIDE), que dada a sua natureza irrenunciável, visa exactamente afastar qualquer tributação em IRC, até à concorrência do que tenha sido liquidado nos termos do artigo 90º do Código do IRC (nº 1 do artigo 4º da Lei 55-A/2010, de 31.12.).

Quando o legislador, neste caso a Assembleia da República, aprovou o benefício fiscal aqui em causa, nos termos em que o fez, ponderou os interesses públicos em presença e optou por atribuir uma gradação de máximo interesse público, à medida de carácter excepcional, que é superior à própria tributação em IRC que impede, nos seus precisos termos (nº 1 do artigo 2º do EBF).

Não vislumbramos, por outro lado, que a leitura da lei que propugnamos e a ponderação de valores em presença, cause turbulência relevante ao nível do regime do pagamento especial por conta (PEC) e ao nível das sociedades de transparência fiscal.

Quanto ao regime dos pagamentos especiais por conta (PEC) cremos que o seu regime resulta da letra da lei, mas a sua literalidade não é a mesma do artigo 90º do CIRC.

Em primeiro lugar, ao indicar-se no nº 1 do artigo 105º do CIRC, que o imposto que serve de referência é líquido das retenções na fonte, estará a querer dizer-se que o “imposto” equivale à colecta do IRC calculada nos termos do artigo 87º do CIRC, porque só essa matéria colectável dá origem a essa liquidação sujeita a retenções na fonte. Depois nos nºs 2 e 3 do artigo 105º do CIRC, alude-se a “volume de negócios” inculcando a ideia de actividade em volume de facturação (vendas).

Mas mesmo que se calcule os PEC com base no raciocínio aqui adoptado, para a interpretação do artigo 90º-1-2 do CIRC que aqui se defende, não resultará pagamento efectivo a mais de IRC, porquanto os PEC são dedutíveis à colecta do IRC que vier a ser apurado na declaração de rendimentos. 

Relativamente às sociedades de transparência fiscal, se alguma incongruência existe efectivamente no seu regime, só restará afastá-la, ou por via legislativa ou exactamente através de interpretação correctiva, face à irremovível literalidade do nºs 1 e 2 do artigo 90º do CIRC.

 

Por último, a leitura do artigo 90º-1-2 do CIRC que preconizamos, não nos parece que possa conduzir a qualquer atropelo do princípio da igualdade tributária, na sequência do alegado pela Autoridade Tributária no artigo 140º da Resposta ao pedido de pronúncia arbitral (PPA). A Requerente nos artigos 78º a 80º do PPA também invoca uma inconstitucionalidade (violação do princípio da confiança).

A este propósito citamos ainda a decisão arbitral colegial adoptada no processo CAAD nº 407/2018-T a que aderimos:

 «A Autoridade Tributária e Aduaneira faz algumas referências a princípios constitucionais que entende que seriam violados com as deduções à colecta de IRC derivada de tributações autónomas, com os princípios da igualdade tributária, da justa distribuição dos rendimentos e da riqueza e da separação dos poderes.

...

As normas que preveem benefícios fiscais implicam sempre um tratamento diferenciado para aqueles que deles beneficiam, mas isso não implica violação do princípio da igualdade, pois, quanto aos benefícios fiscais que dependem de um comportamento do sujeito passivo, quem cria as condições para obter benefícios fiscais não está em situação idêntica a quem não os efectua.

Pelo contrário, o que se reconduzira a violação do princípio da igualdade, para além do princípio da confiança, seria não reconhecer o benefício fiscal a quem adoptou o comportamento previsto na lei para dele usufruir.

No que concerne à avaliação legislativa dos interesses conflituantes subjacente à criação de benefícios fiscais, designadamente saber se se justifica sacrificar o interesse da tributação para atingir outros interesses públicos que se sobrepõem ao interesse da tributação e se o benefício é adequado ao comportamento, ou se deveria ser exigido outro requisito para o conceder (a ideia do prémio a quem obtém lucros que a Autoridade Tributária e Aduaneira propugna e não tem qualquer suporte legal) trata-se de matéria inserida no âmbito da discricionariedade legislativa, em que qualquer intromissão da Autoridade Tributária e Aduaneira (ou dos Tribunais) envolveria violação do princípio da separação dos poderes.

Por isso, nesta matéria, num Estado de Direito (artigo 2.º da CRP), em que a Administração Tributária está subordinada ao princípio da legalidade na globalidade da sua actuação (artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT), o comportamento constitucionalmente imposto à Autoridade Tributária e Aduaneira é acatar a opção legislativa, em vez de a discutir e procurar sobrepor ao critério legislativo a ponderação de interesses que faria a Autoridade Tributária e Aduaneira se fosse a ela que a Constituição atribuísse o poder legislativo.

O mesmo sucede com os Tribunais, que estão sujeitos à Lei (artigo 203.º da CRP), pelo que quem exerce o poder jurisdicional tem de acatar os ditames legislativos que não colidam com qualquer norma de hierarquia superior, não podendo sobrepor ao entendimento legislativo manifestado na lei os critérios classificativos pessoais que ele próprio adoptaria se, em vez de ser intérprete, fosse o legislador.

Por outro lado, quanto ao princípio da separação dos poderes, a presente decisão é proferida por um Tribunal, pelo que tem carácter jurisdicional, e, no exercício do poder jurisdicional, é aos Tribunais que incumbe interpretar e aplicar as leis, sem qualquer sujeição às interpretações adoptadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira (artigo 204-º da CRP).

No caso, este Tribunal interpretou todas as normas em causa, inclusivamente o n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, com o sentido que referiu e não com outro. Por isso, a presente decisão arbitral é uma concretização do princípio da separação de poderes.

De resto, não se vê qualquer razão para duvidar que, legislativamente, se permite que empresas que realizam despesas confidenciais, práticas remuneratórias evasivas ou operações com territórios offshore se furtem por inteiro às consequências que a lei lhes associa, desde que a sua actividade envolva despesas relevantes de investigação e desenvolvimento (I&D).

Na verdade, nunca se questionou que as empresas que têm comportamentos desses tipos podem deduzir os benefícios fiscais do SIFIDE.

A divergência entre a Autoridade Tributária e Aduaneira e a Requerente é apenas sobre a possibilidade de os benefícios fiscais poderem ser usufruídos quando não há lucro tributável do grupo.

Mas, nunca se defendeu que, pelo facto de adoptarem comportamentos que justificam tributações autónomas, as empresas possam ficar privadas de benefícios fiscais, mesmo aquelas que têm relações com territórios ou países de tributação privilegiada, como, por exemplo, o Luxemburgo, a Irlanda, a Holanda, a Bulgária ou a Zona Franca da Madeira, todos integrados na União Europeia.

Nem se vislumbra qualquer razão para discriminar negativamente as empresas que têm de pagar tributações autónomas, pois estas são uma forma de tributação legalmente prevista, sendo mesmo uma excelente fonte de receita do Estado que lhe permite assegurar receitas fiscais em sede de IRC apesar de o sujeito passivo ter prejuízos.

Ainda no que concerne ao princípio da igualdade, não pode deixar de ter-se presente que as tributações autónomas não têm por base a capacidade contributiva das empresas, pois a sua autonomia tributária concretiza-se, precisamente, na imposição de tributação com indiferença pela existência de rendimentos, sendo excepções ao princípio da tributação das empresas com incidência «fundamentalmente sobre o seu rendimento real» (artigo 104.º, n.º 2, da CRP). Por isso, não se vê como seja violado o princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º, n.º 2, da CRP, e muito menos o artigo 103.º, n.º 2, da CRP, que se reporta aos requisitos formais das leis tributárias.

Por isso, a interpretação da Requerente no sentido de que há legislação especial de que resulta a aplicabilidade de deduções à colecta derivada de tributações autónomas, que foi confirmada pela Lei n.º 114/2017, não é incompaginável com o princípio da igualdade e seria incompatível com o princípio da separação de poderes (artigo 2.º da CRP) não acatar a opção legislativa ínsita no SIFIDE quanto a esta dedutibilidade.

Pelo exposto, não ocorre violação dos princípios invocados.»

 

Nesta linha de pensamento, afigura-se-nos ainda, que a decisão que aqui logrou obter vencimento, não poderia deixar de apreciar as invocadas desconformidades com o texto constitucional, concluindo, pelos menos, dada a orientação defendida, pela desaplicação das normas do artigo 90º-1-2 do CIRC, na leitura que se propugna nesta declaração de voto, que corresponde à leitura da lei propugnada pela Requerente no PPA, originando uma decisão sujeita a recurso obrigatório do MP para o Tribunal Constitucional, pelo que, nessa medida, poderá afirmar-se que padece de omissão de pronúncia.