Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 471/2017-T
Data da decisão: 2018-12-04  IRC  
Valor do pedido: € 2.733.888,22
Tema: IRC – Artigo 32.º EBF – Encargos financeiros – SGPS.
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Acordam os Árbitros António Carlos dos Santos (Árbitro Presidente), Ricardo Palma Borges e Manuel Pires designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral, no seguinte:

 

 

DECISÃO ARBITRAL

A ) RELATÓRIO

 

Pedido de Constituição do Tribunal Arbitral

1.  Em  18.05.2017, a Requerente  A..., SGPS, SA, pessoa coletiva n.º..., sociedade dominante do Grupo fiscal B..., sujeita ao regime especial de tributação dos grupos de sociedades (art.º 69.º e ss. CIRC), com sede na ..., n.º..., Lisboa e com o capital social de €  534.000.000,00, veio, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, al. a) e art.º 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20.01 (doravante RJAT), requerer a constituição de Tribunal Arbitral.[1]

 

2. O pedido de pronúncia arbitral tem por objeto tanto a declaração de ilegalidade e anulação do indeferimento tácito (presumido em 14.05.2017) de um recurso hierárquico e do indeferimento expresso, em 10.02.2017, do pedido de revisão oficiosa apresentado em 28.05.2014, tendo em vista, em ambos os casos, a declaração de ilegalidade (parcial) do ato de autoliquidação de IRC (e acessórios) relativo ao exercício de 2009 (no montante de € 2.733.888,22) e sua consequente anulação, como o reembolso daquele montante, acrescido de juros indemnizatórios, contados desde 01.09.2010, pelo pagamento de imposto que considera indevidamente liquidado.

 

3. O pedido de constituição de Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e notificado às Partes. Dentro dos prazos previstos no RJAT, foram por estas designados os árbitros acima referidos e por estes escolhido o árbitro-presidente, tendo tal facto sido comunicado ao CAAD que informou subsequentemente as Partes.

 

4. Em conformidade com o disposto no n.º 7 do art.º 11.º do RJAT, o Tribunal foi regularmente constituído em 14.12.2017, podendo assim apreciar e decidir o objeto do processo.

 

Especificação dos Fundamentos do Pedido da Requerente

5.  A Requerente, na qualidade de sociedade dominante do grupo, procedeu à autoliquidação de IRC, derrama estadual e derrama municipal relativos ao exercício de 2009 do referido grupo, mediante apresentação da declaração Modelo 22, autoliquidação essa que, no entanto, considera ilegal, como, aliás, foi já decidido, a seu favor, por um outro tribunal arbitral em pedido relativamente idêntico efetuado relativamente ao exercício de 2011 (acórdão arbitral de 25.05.2016, proferido no processo n.º 663/2015-T). [2]

 

6. Em 10.02.2017, por despacho do Diretor da Unidade dos Grandes Contribuintes, foi indeferido o pedido de revisão oficiosa da referida autoliquidação apresentado em 28.05.2014, tendo esse indeferimento sido notificado à Requerente em 13.02.2017. 

 

7. Em 15.03.2017, a Requerente apresentou recurso hierárquico deste indeferimento, o qual nunca chegou a ser objeto de decisão, pelo que, segundo a Requerente, se verificou o indeferimento tácito desse pedido em 14.05.2017 (por aplicação das disposições previstas nos artigos 66.º, n.º 5 do CPPT e 57.º, n.ºs 1 e 5 da LGT).

 

8. Na base do pedido de constituição de Tribunal Arbitral, que a Requerente considera legítimo e tempestivo, está o facto da referida autoliquidação não refletir a dedução fiscal de encargos financeiros no montante de € 10.935.552,86 que, na leitura da Requerente, decorria do art.º 32.º do EBF então em vigor. Daí terá derivado, no exercício de 2009, um montante de imposto indevidamente liquidado no valor de € 2.733.88,22, cuja devolução com juros indemnizatórios contados, ao abrigo do art. 43.º da LGT, é, como se disse, agora requerida.

 

9. Esta discrepância resulta, segundo a Requerente, do facto dela ter seguido (por precaução), no ato de autoliquidação relativa a 2009, as instruções da AT constantes da Circular da Direção de Serviços do IRC n.º 7/2004 de 30.03.2004 (doravante, Circular), designadamente as contidas nos seus n.ºs 6 e 7. Esta Circular visava interpretar o art.º 32.º do EBF então em vigor, sendo, em sua opinião, ilegal e mesmo inconstitucional. Daí terá decorrido o facto de a Requerente não ter procedido à dedução dos referidos encargos financeiros no valor de € 10.935.552,86, a que, em seu entender, teria direito, caso fosse aplicado o disposto no referido art.º 32.º, n.º 2 do EBF e não a Circular.

 

Os Factos descritos pela Requerente

10. Em 28.05.2010, a C... SGPS procedeu à entrega da declaração de rendimentos Modelo 22 com referência ao exercício de 2009 do Grupo de sociedades sujeito ao RETGS de que era sociedade dominante (Doc. n.º 2), tendo, para o que aqui releva, afastado nesta sua autoliquidação de IRC e consequente derrama municipal, a dedução fiscal de encargos financeiros num montante que ascendeu a € 10.935.552,86.

 

11. Assim, na sua declaração modelo 22 individual[3] relativa a esse exercício, a Requerente acresceu, para efeitos de apuramento do seu lucro tributável/resultado fiscal, o montante de € 10.935.552,86 a título de encargos financeiros que, de acordo com a interpretação da AT, seriam supostamente não dedutíveis fiscalmente ao abrigo do (então) art.º 32.º, n.º 2, do EBF[4].

 

12. Este afastamento, no exercício de 2009, da dedução fiscal de encargos financeiros no montante de € 10.935.552,86 teve por base o disposto na já referida Circular (Doc. n.º 9)[5]. A imputação desta verba pelas participações sociais (ou partes de capital) detidas pela C... SGPS, efetuada com base na metodologia da Circular, apresenta os seguintes resultados (cfr. Doc. n.º 10):

 

 

2009

D...

5.316.265,75

F...

3.668.833,04

G...

692.087,00

H...

452.421,55

I...

391.363,57

J...

295.187,53

Ações Próprias

97.196,49

L...

20.385,88

M...

906,04

N...

453,02

O...

453,02

Total

10.935.552,86

 

13. Segundo a Requerente, "nenhum financiamento obtido pela C... SGPS foi contratualmente destinado à aquisição das referidas participações sociais". As participações sociais de maior relevo detidas pela Requerente não foram sequer objeto de aquisição geradora de qualquer consumo ou de financiamento ou mobilização de recursos, próprios ou alheios.

 

     (a) É o caso da participação detida na D..., representando cerca de 49% (€ 5.316.265,75) do valor total (€ 10.935.552,86) dos encargos financeiros acrescidos ao lucro tributável no referido Modelo 22 (i.e., não deduzidos fiscalmente).

        

            (i) De facto, a Requerente (então com a designação social de D..., S.A [6]) foi constituída em 1994 na sequência de um processo de cisão da (então) E..., S.A., imposto pelo Decreto-Lei n.º 131/94, de de 19.05.1994, tendo o seu capital social sido realizado em espécie e pelos valores patrimoniais resultantes de avaliação legalmente prevista (cfr. Docs. n.ºs 11 a 16);              [7]

 

     (ii) Em 2006, como se disse, com a reestruturação do sector energético       decorrente da Resolução do Conselho de Ministros n.º 169/2005, de 24.09            (doravante RCM 2005, Doc. n.º 18), que deu origem ao grupo B...     propriamente dito, a Requerente  juntou as infraestruturas de transporte de gás     natural (através da aquisição de ativos de gás natural detidos pelo Grupo P... e da celebração de um contrato de concessão com o Estado português,     por um período de 40 anos, para o exercício de atividades reguladas no sector do gás, incluindo o seu transporte, armazenamento e receção) às infraestruturas de transporte de eletricidade que já detinha (por cisão da E... em 1994);

 

  (iii) A fim de manter separada a atividade da eletricidade da do gás natural, a      Requerente (que à data não era ainda uma SGPS), procedeu no final do exercício         de 2006, conforme determinado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º         85/2006, de 30.06 (doravante, RCM 2006, Doc. n.º 19), à constituição da Q..., S.A., atual  D... (Docs.  n.º 20 e n.º 21);

 

            (iv) No início de 2007, a Requerente procedeu a um aumento de capital desta      sociedade que subscreveu, dando como entrada em espécie os ativos da Rede de             Transporte Nacional de Energia Elétrica[8], conforme determinado no ponto 3,           alínea c), da citada RCM[9] (cfr. Doc. n.º 22);

 

(v) Assim, não existe, nem poderia existir nas circunstâncias do caso, qualquer   financiamento associado à (pretensa) “aquisição” da participação da Requerente na D...: num primeiro momento (1994), os ativos da “Rede de Transporte Nacional de Energia Elétrica” afluíram à Requerente via cisão da E... (sem mobilização, portanto, de qualquer financiamento); num     segundo momento (início de 2007), estes mesmos ativos foram usados para      subscrever, em aumento de capital, a esmagadora maioria do capital social da participada D... (o capital social inicial desta sociedade foi de uns simbólicos € 50.000 – Doc. n.º 21 –, enquanto o capital social resultante da supra descrita entrada em espécie foi de € 519.572.718 – Doc. n.º 22), portanto e por definição, sem mobilização de qualquer financiamento.

 

 (b)  Seria esse também o caso da participação da Requerente na F... e na G..., cujos encargos financeiros     acrescidos ao lucro   tributável na Modelo 22, em aplicação da metodologia da Circular, representam cerca de 40% do valor total de encargos financeiros globais não deduzidos fiscalmente no ano fiscal de 2009  [respetivamente, de € 3.668.833,04 e € 692.087,00, num total de € 4.360.920,04 - ver Doc. n.º 10] que resultaram igualmente de uma operação de entrada de ativos (Docs. n.ºs 23, 24 e 25), em ambos os casos ativos afetos às concessões relacionadas com o negócio do gás, conforme determinado pela referida RCM 2006, designadamente na alínea a) do seu ponto 3 (Doc. n.º 19).

 

    (i) Como resulta da escritura de constituição da F... (Docs. n.ºs 23 e 24), a Requerente tornou-se detentora das suas ações via entrega para realização do capital social da F... dos ativos afetos à rede nacional de transporte de gás em alta pressão;

 

          (ii) Como decorre também da escritura de constituição da G... (Doc. n.º 25), a Requerente tornou-se detentora das suas ações via entrega para realização do capital social da G... de ativos afetos ao armazenamento subterrâneo de gás natural;

 

          (iii) Portanto, também no que se refere a estas participações sociais, não houve,     por definição, qualquer financiamento associado: houve sim uma troca de ativos             dados como entrada em espécie, ficando, deste modo, a Requerente na sua    titularidade.

 

14. Concluindo: em relação a cerca de 89% do total dos encargos, não houve nenhum financiamento obtido pela Requerente que tenha sido contratualmente destinado à aquisição das participações sociais das empresas. Em rigor, não se pode falar sequer, neste caso, de verdadeira aquisição.

 

15. Quanto aos restantes 11% dos encargos totais não deduzidos fiscalmente, correspondentes a € 1.409.660,03, a Requerente sustenta, de forma genérica, a tese da inexistência de qualquer financiamento contratualmente destinado a aquisição das participações sociais (cfr. art.º 21.º da petição inicial) e invoca inaplicabilidade da  Circular e do método de afetação proporcional (adotado por ela própria) por estar ferida dos vícios de ilegalidade e de inconstitucionalidade.

 

Fundamentos jurídicos invocados na pretensão da Requerente

 

16. Segundo a Requerente, esta teria direito à dedução dos encargos financeiros acima enunciados, pois, de acordo com o disposto no art.º 32.º do EBF (então em vigor) apenas "(...) os encargos financeiros suportados com a sua aquisição (...) não concorrem para a formação do lucro tributável destas sociedades (das SGPS, entre outras)".

 

17. Ou seja: uma vez que apenas os encargos financeiros que estivessem conexionados com a aquisição de participações sociais seriam abrangidos pela indedutibilidade estabelecida naquele dispositivo legal e, sendo certo que os encargos referidos nos presentes autos não decorriam de qualquer aquisição de partes de capital (de participações sociais), estes seriam suscetíveis de dedução e, portanto, de concorrer para a formação do lucro tributável.

 

18. O elemento literal desta interpretação ver-se-ia confortado pelo elemento histórico extraído do Relatório do OE para 2003. Aqui expressamente se esclarece que a redação do art.º 32.º do EBF, introduzida com o objetivo de alargar a base tributável e moralizar e tornar mais neutro o sistema, implicou "a desconsideração da dedutibilidade, para efeitos de determinação do lucro tributável, dos encargos de natureza financeira diretamente associados à aquisição de partes sociais por parte das SGPS".

 

19. Deste modo, para determinar a indedutibilidade de encargos financeiros tornar-se-ia necessário demonstrar a existência de uma relação direta entre os encargos financeiros suportados em concreto e a aquisição de determinadas prestações sociais. O corolário desta interpretação seria a irrelevância, para efeitos do normativo do EBF, dos casos em que haja participações que tenham sido obtidas sem recurso a passivos geradores de encargos financeiros (como, por exemplo, no caso sub judice, em que apenas terá havido meras entradas de ativos).

 

20. A Requerente, porém, aplicou (segundo alega, por precaução)  a metodologia da Circular em relação à totalidade dos encargos não deduzidos, apesar de entender que a referida Circular, ao impor um critério de afetação proporcional e nocional para efeitos de aplicação da indedutibilidade de certos encargos financeiros (uma espécie de afetação pro rata, liminar e prioritária, dos passivos remunerados aos ativos refletidos no balanço de uma SGPS), contraria frontalmente o disposto no art.º 32.º, n.º 2 do EBF, sofrendo, por conseguinte, de vício de ilegalidade.

 

21. No plano jurídico, as circulares contêm orientações genéricas de decisão que não prevalecem sobre os preceitos legais (art.º 112.º, n.º 5 da CRP). Elas vinculam, é certo, os funcionários da AT (e daí, no plano dos factos, serem dotadas de provisória eficácia)[10], mas não vinculam nem os particulares nem os Tribunais (artigos 55.º, n.º 3 do CPPT e 68.º-A da LGT), sendo inválidas quando contrárias à lei. 

 

22. O método imposto pela Circular (ao contrário do método da afetação real ou de imputação direta dos encargos financeiros, que deveria ser o método natural) é um método indireto (logo, presuntivo) de avaliação da matéria tributável. Embora a AT justifique, de forma genérica, a sua eleição por razões de dificuldade prática de utilização de um método de afetação direta, ele só poderia ser taxativamente autorizado por lei, nos termos dos artigos 85.º e 87.º a 90.º da LGT.

 

23. O método da Circular seria, quando muito, um método supletivo que, por interferir com a própria incidência tributária, nos seus pressupostos ou nos seus resultados concretos, deveria sempre admitir prova em contrário (art.º 73.º da LGT). E, no caso em análise, caso se entendesse ser eventualmente possível, sempre competiria à AT o ónus da prova da verificação em concreto dos pressupostos da aplicação desse método indireto de avaliação (art.º 74.º, n.º 3 da LGT). Em qualquer situação, estaríamos perante uma violação dos princípios da legalidade tributária e do procedimento tributário, constantes dos artigos 8.º e 55.º da LGT.

 

24. Mais ainda: esse método iria para além da mera interpretação e aplicação da lei, criando uma norma jurídica inovatória e constituindo, assim, uma usurpação de funções legislativas que, em sede de regras de incidência e de determinação do quantum tributável, competiriam a lei da Assembleia da República ou ao Governo, com autorização daquela.

 

25. Haveria assim um problema de inconstitucionalidade formal e orgânica, com violação do princípio da legalidade (artigos 103.º, nºs 2 e 3 da CRP) e da reserva de lei  (art.º 165.º, n.º 1, al. i) da CRP), bem como dos princípios materiais da igualdade tributária, da capacidade contributiva e da tributação do rendimento real.

 

26. A Requerente invoca igualmente a favor da ilegalidade da Circular as seguintes decisões jurisprudenciais proferidas noutros processos, as quais constituiriam uma jurisprudência constante largamente dominante (Docs. juntos aos autos):[11]

            - Acórdão do STA de 31.5.2017, proferido no processo 1229/15;

            - Acórdão arbitral de 2.5.2017, proferido no processo n.º 710/2016-T;

            - Acórdão arbitral de 26.4.2017, proferido no processo n.º 581/2016-T;

            - Acórdão do STA de 8.3.2017, proferido no processo 227/16;

            - Acórdão arbitral de 24.1.2017, proferido no processo n.º 277/2016-T;

            - Acórdão arbitral de 9.6.2016, proferido no processo n.º 581/2015-T; [12]

            - Acórdão arbitral de 5.1.2015-T, proferido no processo n.º 269/2015-T;

            - Acórdão arbitral de 11.11.2015, proferido no processo n.º 292/2015-T;

            - Acórdão arbitral de 21.5.2015, proferido no processo n.º 738/2014-T;

            -Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte de 15.1.2015,            proferido no processo 946/09.0BEPRT5;

            - Acórdão arbitral de 21.12.2012, proferido no processo n.º 24/2012-T;

            - Acórdão arbitral de 4.10.2013, proferido no processo n.º 24/2013-T.

 

 

A Resposta da Requerida: uma defesa por exceção

 

27. Na sua Resposta, a Requerida procede à sua defesa por exceção e por impugnação. Há, antes de tudo, que decidir a questão prévia da procedência ou improcedência dos três tipos de defesa por via de exceção suscitados pela Requerida, uma vez que da sua resolução depende a competência e legitimidade deste Tribunal para apreciar ou não a matéria de facto e de direito em disputa no presente caso[13].  São elas as seguintes:

           

             27.1) A questão da incompetência do Tribunal Arbitral para anular uma       parte   da autoliquidação do IRC (no montante de € 3.056.662,62,             respeitante a imposto pago pelo Grupo) e condenar a Requerida ao    reembolso de € 2.733.888,22, acrescido de juros indemnizatórios à taxa             legal (contados desde 1.09.2010 até integral reembolso).

Segundo ela, a devolução de eventual imposto a pagar, a existir, não poderia ser conhecida por este Tribunal, pois extravasaria materialmente a competência dos tribunais arbitrais que se encontra circunscrita às matérias indicadas no n.º 1 do art.º 2.º do RJAT. A quantificação das consequências de uma apreciação de legalidade de liquidação sempre deveria ser cometida à AT, pois a esta compete, em primeira linha, a definição dos atos em que se deve concretizar a execução de julgados. Essa seria, segundo refere a Requerida, a posição defendida na jurisprudência invocada nos arts. 23.º e 24.º da sua resposta[14];

             

            27.2) A questão da incompetência material do Tribunal Arbitral em função     do        valor subjacente, pois a Requerente pediria a totalidade dos encargos em    causa num montante de € 10.935.552,86: sendo este, segundo a AT, o valor             efetivo do pedido arbitral, ele superaria o limite de € 10.000.000 a que,          segundo o n.º 1 do art.º 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, os             serviços e organismos tributários estão vinculados;

 

   27.3) A questão da incompetência material do Tribunal Arbitral para apreciar decisões de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa, por entender que a AT apenas está vinculada à jurisdição dos tribunais arbitrais se e quando o pedido de declaração de ilegalidade tiver sido precedido de recurso à via administrativa por meio de reclamação graciosa nos estritos termos dos artigos 131.º a 133.º do CPPT, os quais não contemplam o pedido de       revisão          oficiosa. Segundo a Requerida, um entendimento contrário violaria diversos princípios constitucionais, como os do Estado de direito e da separação de poderes, do direito de acesso à justiça, da legalidade ("no seu   corolário do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários").

 

Contestação pela Requerente das exceções invocadas pela Requerida

28. Em alegações escritas, apresentadas 11.05.2018, a Requerente defendeu a improcedência das exceções invocadas pela AT, com base na argumentação a seguir sintetizada, tendo em conta a ordem pela qual as exceções foram acima expostas:

 

            28.1) A competência deste tribunal para anular parcialmente a           ilegalidade do ato de autoliquidação resulta da divisibilidade do ato    tributário, hoje matéria consolidada na jurisprudência. A divisibilidade está             em conformidade com o princípio da proporcionalidade e permite apurar o             quantum de imposto implicado num litígio, sem necessidade de diferimento para execução de julgados. Deste modo. ela protege o credor, pois é assim            possível manter intacta a parte não anulável (ou anulada) da liquidação. O    tribunal em casos em que o quantum está já determinado (como é o dos            autos) limita-se a anular com precisão uma parte do todo pré-existente. Por outro lado, a AT reconhece que o tribunal tem poderes para condenar a      parte em juros. É irreconciliável com este reconhecimento a negação do         poder, logicamente prévio, de condenação no reembolso do montante de        imposto pago e depois anulado. Este poder seria, aliás, uma exigência do       princípio da tutela             jurisdicional efetiva, bem como do princípio da economia       processual, que se impõem ambos também na justiça    arbitral. Por fim, a   Requerente contesta a interpretação dada pela AT aos acórdãos        (minoritários) por esta invocadas nos artigos 23.º e 24.º da sua resposta;

 

            28.2) A Requerente sublinha a confusão existente na Resposta da Requerida            entre   pedido e causa de pedir e invoca a seu favor o sentido da           generalidade das decisões jurisdicionais, citando a título de exemplo o            acórdão arbitral de 16.12.2015, proferido no processo n.º 30/2015-PT;

 

            28.3) A Requerente revê-se expressamente na decisão do Tribunal Central Administrativo do Sul que, em acórdão de 27.04.2017, no processo n.º 08599/15, largamente transcrito, que, ele próprio, se apoia em diversas outras decisões jurisdicionais favoráveis à sua posição  (ver artigos 57º e 67º das alegações). Em síntese, é aí defendido que o regime dos tribunais arbitrais deve ser o mesmo dos tribunais judiciais, pois a arbitragem tributária, constituindo um regime legal de resolução alternativa de conflitos, não tem natureza voluntária e convencional, mas sim legal e, como tal, fica sujeito aos critérios legais de interpretação das normas jurídicas tributárias. Ora, desde há muito que, nos tribunais judiciais, é aceite a tese segundo a qual o recurso à via administrativa, nos termos do art.º 131.º do CPPT, pode ser preenchido não apenas pela reclamação graciosa prévia (obrigatória), como também pelo procedimento administrativo de revisão oficiosa desencadeado no prazo legal de 4 anos (cfr. art.º 78.º da LGT). E assim é, uma vez que, nos             casos de autoliquidação (equiparados às liquidações administrativas), o que importa é dar oportunidade à AT para se pronunciar antes da impugnação judicial, pois trata-se de casos, em que a AT, pelo menos formalmente, não   interveio. A ratio legis é a mesma num e noutro caso. A coerência e unidade do sistema jurídico implicam que seja a mesma a solução nos dois tipos de jurisdição.

 

B ) SANEAMENTO

 

As Partes

 

29. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (art.º 4.º e nº 2 do RJAT e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22.03, doravante Portaria de Vinculação).

 

30. O pedido foi efetuado dentro dos prazos previstos pela lei, questão que não é, aliás, suscitada pela Requerida. Há, assim, que decidir sobre a questão da competência ou incompetência deste tribunal arbitral para apreciar o mérito da causa.

 

Competência do Tribunal

 

31. Tendo por base a ponderação dos argumentos apresentados pelas Partes e a análise das diversas decisões judiciais invocadas relativas à interpretação dos dispositivos legais em questão, o Tribunal decide que nenhuma das três exceções defendidas pela Requerida procede.

Em termos genéricos, o ponto de partida desta pronúncia é a fundamentação constante da decisão arbitral proferida a 10.04.2018 no processo n.º 333/2017- T, num caso similar ocorrido com a Requerente relativamente ao exercício de 2010, bem como as razões explanadas nos diversos acórdãos em que aquela decisão se baseia, por serem igualmente pertinentes para a resolução do presente caso e para as quais genericamente se remete. 

 

32. De forma mais específica, o Tribunal pronuncia-se do seguinte modo:

   

   32.1 Quanto à primeira exceção, é, desde a entrada em vigor dos códigos da Reforma fiscal de 1958-65, entendimento jurisprudencial pacífico que, nos processos de impugnação judicial que correm nos tribunais tributários, possam ser proferidas condenações da AT a pagar juros indemnizatórios, bem como indemnizações por garantia indevida, conquanto não haja necessidade de ser concretizado o montante da liquidação cuja legalidade se discute. Este mesmo entendimento tem sido logicamente  estendido aos tribunais arbitrais, a quem uma jurisprudência constante tem reconhecido competência para decidir sobre o pedido de reembolso, por este ainda se compreender nos poderes de anulação, sempre que  não haja divergência quanto ao montante a reembolsar. Ora seria contraditório que o Tribunal pudesse condenar a Parte quanto aos juros indemnizatórios e não o pudesse fazer em relação ao reembolso de quantia efetivamente paga, mas que se revelaria ilegalmente paga. O poder de condenar no reembolso é um prius que, em última instância, decorre do princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva e do princípio da economia processual. Recorde-se que, no presente processo, a AT não pôs em causa a quantificação do montante do eventual reembolso;

 

    32.2 Quanto à segunda exceção, há, da parte da Requerida, uma reiterada confusão entre o valor da causa (subjacente ao pedido) e a causa de pedir. Aquele, único que importa para este efeito, cinge-se ao montante de € 2.733.888,22, muito inferior ao valor estipulado pela mencionada Portaria de Vinculação que estabelece como limite à jurisdição dos tribunais arbitrais um valor não superior a € 10.000.000;

 

    32.3 A terceira exceção é de análise mais complexa, pelo que importa explanar, antes de mais, os pressupostos jurídicos da decisão.

 

a ) Quem assume uma perspetiva mais próxima do liberalismo clássico - que não é a perspetiva da autoconfiguração do Estado português - tende a privilegiar o princípio da certeza e segurança (inerente ao Estado de direito formal) sobre outros princípios que também norteiam hoje o Direito Fiscal. O corolário dessa perspetiva é a defesa de uma tipicidade fechada, a proibição tendencialmente absoluta da analogia (e mesmo, segundo alguns, da interpretação extensiva), a negação de qualquer função ativa da jurisprudência e, daí, um maior relevo dado ao elemento literal (gramatical) da interpretação. Pelo contrário, a consideração do princípio constitucional de Estado social e democrático de direito tende a contrabalançar aquela perspetiva, procurando compatibilizá-la (concordância prática) com outros princípios constitucionais, desde logo, o da igualdade. A tendência é hoje no sentido de o Direito Fiscal aceitar uma tipicidade aberta, conceitos indeterminados, uma interpretação da lei que põe o acento tónico na ratio legis, nos elementos sistemático e teleológico da interpretação, de aceitar, não apenas a interpretação extensiva, mas mesmo  a analogia em certos casos (entre nós, em tudo o que não diga respeito aos elementos essenciais do imposto), bem como a definição de princípios jurídicos nem sempre derivados direta e exclusivamente da lei (como, v.g., o da praticabilidade).  As leis contêm enunciados linguísticos com vocação para serem de natureza prescritiva. A rigidez da lei é frequentemente confrontada com a mutação da realidade fática, por vezes imprevisível no momento da sua entrada em vigor e com a própria evolução semântica dos termos usados no seu enunciado. Daí a necessidade que todos os textos legais têm  de interpretação, de forma a extrair-se a norma em vigor para a decisão de um caso concreto e de, nessa decisão, o intérprete não ficar preso à vontade histórica e subjetiva do legislador (a busca  do que o legislador pretendeu dizer) mas olhar para aquilo que o texto legal hoje nos diz (interpretação objetiva e atualista). Acresce, aliás, que,  perante o disposto no art.º 11.º da LGT (a que se soma a  crescente influência do direito contabilístico em sede fiscal), importante parte da doutrina tem vindo a defender que, na aplicação das normas fiscais, devem ser considerados não apenas as regras e critérios normais de interpretação constantes do art.  9.º do Código Civil (CC), mas também motivos de natureza económica e financeira. De tudo isto resulta que é sobretudo à jurisprudência que modernamente tem sido cometida a tarefa de adaptar o direito legislado aos factos e de assegurar a praticabilidade dos enunciados legislativos. Deste modo, é difícil negar uma função ativa, embora supletiva ou complementar, por parte dos tribunais que há muito deixaram de ser "a boca da lei".  Acresce que as decisões, mormente em matérias económicas e sociais, tendem igualmente a ponderar o resultado da aplicação das leis.  Por fim, há que ter em conta, por razões de economia processual e de redução da complexidade do sistema, a crescente importância que tem a consolidação de decisões judiciais de tribunais superiores na prevenção e resolução de litígios, como indiretamente decorre  hoje, quanto à AT, do n.º 4 do art.º 68.º-A da LGT, aditado pela LOE para 2014,[15] e, quanto ao julgador, desde há muito, do art.º 8.º n.º 2 do CC. [16]

Neste contexto, há que recordar que a técnica legislativa de proceder a remissões de preceitos fiscais para outros preceitos fiscais, embora ganhe em flexibilidade, contém, em si mesma, doses acrescidas de incerteza. No caso presente, por força do art.º 4.º, n.º 1 do RJAT[17], a lei remete a definição do âmbito de vinculação da AT à jurisdição arbitral para uma portaria governamental. É a já referida Portaria de Vinculação quem procura definir esse âmbito[18]. E esta Portaria levanta várias questões de interpretação, em parte decorrentes do facto de ela própria recorrer também à técnica da remissão (dupla remissão).

 

b) A questão suscitada nos presentes autos é a seguinte: Nos casos em que  o sujeito passivo, numa das situações previstas nos artigos 131.º a 133.º do CPPT, não apresentou reclamação graciosa necessária, mas sim, nos termos do art.º 78.º da LGT, um pedido de revisão oficiosa do ato tributário que comporta a apreciação da legalidade de atos de liquidação, pedido esse que veio a ser objeto de decisão de indeferimento, verificam-se, ou não,  as condições previstas na Portaria de Vinculação para dar como competentes os tribunais tributários nesta matéria? 

Quem entende que não (como ocorre com as Decisões Arbitrais proferidas nos Processos n.º 51/2012-T e  n.º 236/2013-T) parte do pressuposto que estamos perante uma "declaração de vinculação unilateral com caráter restritivo a interpretar nos seus estritos termos". Partindo da consideração da natureza voluntária da arbitragem, esta posição entende que a interpretação da vinculação da AT “não poderá, em caso algum, traduzir-se numa restrição da esfera de liberdade da AT, enquanto parte, de estabelecer os limites da sua vinculação".

Este pressuposto não tem, porém, em consideração a natureza jurídica da arbitragem tributária. Há que distinguir a esfera da normação jurídica, onde se inclui a emissão da Portaria de Vinculação pelo poder político-administrativo, da esfera da relação processual tributária em que a AT surge como parte numa posição de igualdade com o contribuinte. A arbitragem tributária é, no quadro do regime em vigor, uma opção do contribuinte (um direito potestativo), mas não uma opção da Administração[19]. Para esta, nos casos sub judice, não existe liberdade de escolha, nem uma esfera de liberdade, antes vinculação a um normativo de origem jurídico-política, no caso, a Portaria de Vinculação, por remissão de um Decreto-Lei (o que contém o RJAT),  emanado ao abrigo de uma autorização legislativa da Assembleia da República.[20] A emissão da Portaria é juridicamente obrigatória. O conteúdo da Portaria pode estabelecer limites ou restrições à vinculação da AT, mas tais limites ou restrições apenas podem operar no espaço delimitado pelo regime legal constante do RJAT no seu conjunto e da lei de autorização deste regime, tendo em conta, como exigem os cânones da hermenêutica jurídica, a coerência do sistema jurídico no seu conjunto.[21]

A interpretação da Portaria deve, pois, seguir as regras gerais de interpretação decorrentes do art.º 9.º do CC[22] e do art.º 11.º da LGT, não podendo, de forma apriorística, cingir-se a uma interpretação declarativa nem, por maioria de razão, a uma interpretação restritiva.

 

c) Que sentido tem haver recurso obrigatório para a via administrativa e (no caso concreto) uma remissão para o art.º 131.º do CPPT? É o de cingir tal via à reclamação graciosa propriamente dita, privilegiando os estritos termos em que foi formulada a remissão ou deverá igualmente a expressão "recurso à via administrativa" abranger, em alternativa à reclamação, o pedido de revisão oficiosa, interpretando a remissão efetuada pela Portaria, não apenas para o art. 131.º do CPPT, mas  para a articulação deste com o sistema jurídico no seu conjunto (coerência do sistema)?

De acordo com jurisprudência largamente dominante, foi neste último sentido que o Governo, na Portaria de Vinculação, interpretou as competências dos tribunais arbitrais, quando afastou do seu âmbito, não apenas os processos cujo valor exceda  € 10.000.000, mas as «pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário».

 

d) Vejamos o que dizem os enunciados legais.

Quanto à reclamação graciosa, estabelecem os arts. 68.º e 70.º, nº 1 do CPPT:

            "Artigo 68.º (Procedimento de reclamação graciosa)

            1- O procedimento de reclamação graciosa visa a anulação total ou parcial   dos atos tributários             por iniciativa do contribuinte, incluindo, nos termos da            lei, os substitutos e responsáveis.

            2 - Não pode ser deduzida reclamação graciosa quando tiver sido       apresentada impugnação             judicial com o mesmo fundamento."

           

            "Artigo 70.º (Apresentação, fundamentos e prazo da reclamação graciosa)

            1 - A reclamação graciosa pode ser deduzida com os mesmos fundamentos   previstos para a impugnação judicial e será apresentada no prazo de 120           dias contados a partir dos factos previstos no n.º 1 do artigo 102.º." 

 

Quanto à revisão, estipula, por sua vez, o art.º 78.º da LGT:

            1 - A revisão dos atos tributários pela entidade que os praticou pode ser        efetuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação        administrativa e com fundamento em qualquer             ilegalidade, ou, por iniciativa          da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a          todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em      erro imputável aos serviços. 

            2 - Sem prejuízo dos ónus legais de reclamação ou impugnação pelo   contribuinte, considera-se             imputável aos serviços, para efeitos do n.º            anterior, o erro na autoliquidação[23].  

            3 - A revisão dos atos tributários nos termos do n.º 1, independentemente de            se tratar de erro material ou de direito, implica o respetivo reconhecimento          devidamente fundamentado nos             termos do n.º 1 do artigo anterior. [24]

            4 - O dirigente máximo do serviço pode autorizar, excecionalmente, nos três            anos posteriores ao do ato tributário a revisão da matéria tributável           apurada         com fundamento em injustiça grave ou notória, desde que o erro não seja      imputável a comportamento negligente do contribuinte[25]

            5 - Para efeitos do número anterior, apenas se considera notória a injustiça ostensiva e inequívoca e grave a resultante de tributação manifestamente exagerada e   desproporcionada com a realidade ou de que tenha resultado          elevado prejuízo para a Fazenda Nacional[26]

            6 - A revisão do ato tributário por motivo de duplicação de coleta pode         efetuar-se, seja qual for o fundamento, no prazo de quatro anos[27]

            7 - Interrompe o prazo da revisão oficiosa do ato tributário ou da matéria    tributável o pedido             do contribuinte dirigido ao órgão competente da            administração tributária para a sua realização[28].

 

e) A revisão oficiosa e a reclamação graciosa são, por certo, institutos diferentes, mas têm fundamentos similares, pelo que integram um mesmo género: ambos constituem um recurso à via administrativa para dirimir um litígio tributário e, neste sentido, são vias alternativas que se equiparam para efeitos de aplicação da Portarias de Vinculação.  Embora seja distinto o órgão competente para a decisão da reclamação e da revisão, esse facto, por si só, não impede essa equiparação para efeitos de declaração da ilegalidade dos atos de autoliquidação, tanto mais que o regime da revisão é, neste particular, mais garantístico. A razão de ser do recurso à via administrativa ser prévio e obrigatório (deve ser interposto antes do recurso judicial de impugnação)  é a mesma nos casos de reclamação graciosa e nos de revisão oficiosa, como defende a generalidade da doutrina: consiste em dar à AT a possibilidade de se pronunciar em concreto nos casos de autoliquidação[29].

Nos termos do RJAT, os Tribunais Arbitrais têm competência para apreciar a ilegalidade de um ato de segundo grau. Por extensão, e tendo em conta a coerência do sistema, nada obsta a que essa competência também se manifeste  nos casos em que o ato de segundo grau seja um ato de indeferimento do pedido de revisão do ato tributário, "ato que sendo efetuado no prazo da reclamação graciosa, deve ser equiparado a uma reclamação graciosa"[30]. Esta interpretação extensiva, decorrente da ratio legis e da coerência do sistema jurídico, tem um mínimo de correspondência na letra da lei, observa os limites definidos pela articulação entre o disposto no RJAT e no diploma de autorização legislativa, sendo, por conseguinte consentânea com os cânones interpretativos do art.º 9.º do CC e 11.º da LGT. Ela tem sido a interpretação dominante nos tribunais tributários e nos tribunais arbitrais. Ora o legislador, ao utilizar a técnica da remissão para os artigos 131.º a 133.º do CPPT, não se limita a remeter para o enunciado destes artigos, mas tem também em conta o modo como a jurisprudência tem vindo a efetuar a sua interpretação e aplicação, ou seja, como a lei nos livros se transforma na lei em ação. 

 

f) Resta assinalar que, ao contrário do entendimento da Requerida, esta interpretação nada tem de inconstitucional, como foi, aliás, esclarecido pelo Tribunal Constitucional no seu acórdão n.º 244/2018, proferido, em 11.05.2018, no proc. 636/17, em que eram partes a AT (como recorrente) e a A... (como recorrida). Com efeito, aí foi decidido "Não julgar inconstitucional a norma que considera os pedidos de revisão equivalentes às situações em que existiu «recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário» para efeito da interpretação da alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, encontrando-se tais situações, por isso, abrangidas pela jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD".

 

g) Em conclusão: A lei permite que os sujeitos passivos apresentem, alternativamente, procedimentos de revisão de atos tributários, nos termos do art.º 78.º da LGT, ou reclamações graciosas, nos termos do art.º 68º e ss. do CPPT, pelo que não se pode retirar que, no momento da impugnação, os contribuintes estejam limitados a apenas um meio impugnatório. Assim, é de excluir a posição segundo a qual a AT não está vinculada à jurisdição dos Tribunais Arbitrais em pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos estritos  termos do art.º 131.º do CPPT, mas tenham sido objeto de pedido de revisão do ato tributário nos termos do art.º 78.º da LGT.

 

C) DO MÉRITO

 

Matéria de facto com relevo para a apreciação e decisão das questões suscitadas

 

34. O Tribunal não tem de se pronunciar sobre todos os factos alegados pelas partes. Deve, sim, selecionar aqueles que relevam para a decisão da causa, distinguindo a matéria provada da não provada[31]. Os factos pertinentes para a decisão são escolhidos e recortados em função da sua importância jurídica, tendo em conta as diversas soluções plausíveis da questão ou das questões de direito que sejam suscitadas[32].

 

35. Dos documentos juntos aos autos pela Requerente apenas os nºs 10 e 27 foram objeto de impugnação pela Requerida. Há, porém, que notar que estas declarações consistem, conforme se pode ler na Decisão arbitral proferida no processo 333/2017-T, numa mera explicação da contabilidade subjacente ao preenchimento da Declaração Modelo 22 individual. Ora, de acordo com o disposto no artigo 75.º, n.º 1, da LGT, "presumem-se verdadeiras e de boa-fé quer as declarações dos contribuintes, quer os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade e escrita, sendo certo que não se verifica qualquer das situações previstas no n.º 2 do mesmo artigo." Acresce que, embora a Requerida defenda que a contabilidade não obedece ao princípio da separação, ela não pôs em causa a veracidade dos valores apresentados pela Requerente relativos aos encargos tidos como dedutíveis, nem invocou quaisquer indícios que abalassem tal presunção de veracidade, limitando-se a impugnar o valor probatório das mencionadas declarações[33]. Consequentemente, os Documentos n.ºs 10 e 27, juntos ao pedido de pronúncia arbitral, foram admitidos por este Tribunal Arbitral.

 

Factos provados

36. Dá-se como provado que:

 

a) A Requerente era, à data dos factos, a sociedade dominante do Grupo de sociedades B... sujeito ao RETGS, tendo em 28.05.2010, procedido à entrega da declaração de rendimentos Modelo 22 referente ao exercício de 2009 do mencionado grupo (Docs. n.º 1 e 2 junto ao pedido de pronúncia arbitral). Nessa autoliquidação de IRC (incluindo derrama estadual e derrama municipal consequente), afastou a dedução fiscal de encargos por ela considerados como financeiros, no montante de € 10.935.552,86. A Requerente apresentou ainda o Modelo 22 de substituição sem alterações no que aqui se discute (cfr. Doc. n.º 3);

 

b) A Requerente, na sua declaração modelo 22 individual relativa ao mesmo  exercício, fez acrescer, para efeitos de apuramento do seu lucro tributável, o montante acima referido, a título de encargos financeiros supostamente não dedutíveis fiscalmente ao abrigo do (então) artigo 32.º do EBF (Docs. n.ºs 8 e 10);

 

c) A suposição de não dedução dos mencionados encargos teve por base a aplicação pela Requerente do disposto na Circular n.º 7/2004, de 30.03.2004, da DSIRC, nomeadamente da metodologia definida nos seus artigos 6.º e 7.º;

 

d) Daí resultou a imputação de diversos custos (qualificados pela Requerente como "encargos financeiros") pelas participações ou partes sociais detidas pela Requerente  em diversas empresas do grupo com que se relaciona nocionalmente, no referido montante global de € 10.935.552,86, tal como vem explicitado no Quadro 1 desta decisão retirado do artigo 19º da petição inicial. (Docs. n.º s 10 e 27);

 

e) Em 28.05.2014, a Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa da referida autoliquidação respeitante ao exercício de 2009 (Doc. n.º 4), pedido esse indeferido por despacho de 10.02.2017 do Diretor da Unidade dos Grandes Contribuintes, notificado em 13.02.2017 (Docs. n.º 5 e 6);

f)  As razões aduzidas pela Requerida para o indeferimento do pedido de revisão oficiosa prendem-se com a obrigatoriedade de os funcionários aplicarem a doutrina da Circular, embora reconheça que os contribuintes não são obrigados a segui-la;[34]

g) Em reação a este indeferimento, a Requerente apresentou recurso hierárquico em 15.02.2017 (Doc. n.º 7);

 

h) Não havendo até à data qualquer decisão do recurso hierárquico, a Requerente apresentou, em 09.08.2017, pedido de constituição deste tribunal arbitral.

           

37. Dá-se como documentalmente provado que a maioria das  participações sociais detidas pela             Requerente (isto é, aquelas cujos "encargos financeiros" inscritos em registos contabilísticos decorrentes da aplicação voluntária da Circular n.º 7/2004  representam  cerca de 89% do valor total dos "encargos financeiros" totais elencados pela Requerente) foi objeto de entradas de ativos (cfr. art.º 73.º, n.º 3 do CIRC), sem mobilização de recursos próprios ou alheios (sem auto ou hétero-financiamento). É o que se passa com as seguintes participações, cujo valor global totaliza € 9.677.185,79, ao qual corresponde um valor de imposto liquidado em 2009 de € 2.419.296,45:     

      

     a) D..., S.A.- conforme decorre  dos docs. n.º 18 (RCM de 2005), n.º 19 (RCM de 2006), n.º 20 (certidão permanente do registo comercial), n.º 21 (escritura de constituição) e n.º 22 (aumento de capital / entrada de ativos)[35]  em que foi imputado um "encargo financeiro" não dedutível no valor de € 5.316.265,75;

     b) F...- como decorre dos docs. n.º 19 (a referida RCM de 2006), n.º 23 (escritura de constituição) e n. º 24 (adenda à escritura),- apenas existiu uma entrega de ativos afetos à rede nacional de transporte de gás em alta pressão e não um qualquer contrato de aquisição (entrega essa qualificada pela Requerente como "encargo financeiro") no valor de € 3.668.833,04;

     c) G...- como resulta dos docs. n.º 19 (RCM 2006) e  n.º 25  (escritura de constituição),- existiu igualmente uma simples entrega de ativos afetos ao armazenamento subterrâneo de gás natural (qualificada também pela Requerente como "encargos financeiros") no valor de € 692.087,00.

 

Factos não provados

38. A Requerente não provou como foram adquiridas as restantes participações sociais por ela detidas na H..., I..., J..., L..., M..., N... e O... ou em Ações próprias, nem a existência ou não de "encargos financeiros" representativos de cerca de 11% do valor total dos encargos, ou seja, € 1.258.367,07.  Da exposição da Requerente apenas se pode deduzir não terem resultado de entrada de ativos, desconhecendo-se, porém, se houve ou não reais encargos financeiros.

 

39. A Requerente limitou-se contudo (sem avançar nenhuma prova específica) a declarar que não existiu qualquer financiamento contratualmente destinado à aquisição dessas participações sociais (art.º 21.º da petição inicial) para, em seguida,  afirmar que se sentiu vinculada de facto a aplicar a Circular n.º 7/2004, apesar de a considerar ilegal, dado esta orientação administrativa se basear em métodos indiretos de determinação da matéria tributável (cfr., entre outros, o art. 19.º da referida petição) [36].

 

40.Não existem outros factos com relevo para a apreciação do mérito da causa que não tenham sido provados. [37]

 

Matéria de Direito

A interpretação do n.º 2 do art.º 32.º do EBF (em vigor em 2009)

 

41. No presente caso, está em causa, antes de mais, a interpretação efetuada pela Requerente da norma contida no n.º 2 do art.º 32.º do EBF na versão em vigor em 2009 (entretanto revogado pela Lei n.º 83-C/2013, de 31.12).

Era a seguinte a redação daquele dispositivo do EBF relativo a sociedades gestoras de participações sociais (SGPS), sociedades de capital de risco (SCR) e investidores de capital de risco (ICR)[38]:

            "2 - As mais-valias e as menos-valias realizadas pelas SGPS, pelas SCR e      pelos   ICR de partes de capital de que sejam titulares, desde que detidas       por período   não inferior a um ano, e, bem assim, os encargos financeiros         suportados com a sua aquisição não concorrem para a formação do lucro   tributável destas sociedades. [39]" (itálico e sublinhado nosso)

 

42. Na parte aqui relevante, o enunciado da lei aponta, em princípio, no sentido de apenas os encargos financeiros suportados com a aquisição de partes de capital detidas por um ano ou mais concorrerem para a formação do lucro tributável[40]A contrario, deduz-se que, não existindo qualquer aquisição, não haverá encargos financeiros a deduzir. A lei não define o que entende nem por "encargos financeiros", nem por "aquisição".  Note-se, porém, que tampouco a Circular vem definir estes conceitos, uma vez que apenas se preocupa com a fórmula de atribuição (alocação) dos encargos financeiros existentes pelas diversas partes de capital.

 

43. Para compreender melhor o alcance do regime especial constante do art. 32.º do EBF, convém analisar o que é que ele trouxe de novo em relação à situação anterior. Para esse efeito, socorremo-nos da Decisão arbitral n.º 258/2015-T, de 25.11.2016, cujo teor transcrevemos de seguida no que toca à evolução histórica do regime fiscal das SGPS[41]:


            "O regime fiscal das SGPS, desde a sua criação pelo Decreto-Lei n.º 495/88 e até 31 de dezembro de 2000, encontrava-se regulamentado no art.º 7.º do referido diploma, que determinava que "às mais-valias e menos-valias obtidas pelas SGPS, mediante a venda ou troca das quotas ou ações de que sejam             titulares, é aplicável o disposto no artigo 44º do Código do IRC, sempre que o respetivo valor de realização seja reinvestido, total ou parcialmente, na aquisição de outras quotas, ações ou títulos emitidos pelo Estado, no prazo aí fixado" (redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 318/94).  Ou seja, a diferença positiva entre as mais e as menos-valias não concorria para o lucro tributável, sempre que o valor de realização fosse reinvestido até ao fim do segundo exercício seguinte ao da sua realização.

A partir de 2001, com a aprovação da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado (OE) para 2001, este regime passou a estar regulamentado no art. 31º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), que      determinava que "às mais e menos-valias obtidas pelas SGPS e SCR, mediante a venda ou troca das quotas ou ações de que sejam titulares, é aplicável o    disposto no artigo 45.º do CIRC, sempre que o respetivo valor de realização            seja reinvestido, total ou parcialmente, na aquisição de outras quotas, ações ou títulos emitidos pelo Estado, no prazo aí fixado".

Esta norma mais não é do que a transposição das normas previstas no art.º 45.º do Código do IRC, relativo a "encargos não-dedutíveis para efeitos fiscais". Assim,         passou a adotar-se um regime fiscal de diferimento da diferença positiva entre as            mais e as menos-valias para os cinco anos seguintes, sempre que fosse manifestada a intenção de reinvestir, e esse reinvestimento ocorresse posteriormente.

As SGPS, por seu lado, passaram a beneficiar de um regime de diferimento da tributação das mais-valias obtidas mediante a venda ou troca das participações societárias por si detidas, tendo que reinvestir o valor de realização até ao fim do terceiro exercício seguinte ao da realização.

A entrada em vigor da Lei n.º 109-B/2001, de 27 de dezembro, que aprovou o     OE para 2002, veio determinar a aplicação às SGPS dos n.º 1 e 4 do art.º 45º do CIRC (na redação em vigor à época), por remissão do art.º 31º do EBF. Por conseguinte, a nova norma dispunha que, se a participação tivesse sido detida             durante um ano à data de alienação, e se no exercício anterior ao da realização, no próprio exercício ou até ao fim do segundo exercício seguinte, fosse reinvestido o valor de realização, proceder-se-ia a uma tributação de 50% da mais-valia líquida (conforme n.º 1 do art.º 45º do CIRC).

Com a publicação da Lei n.º 32-B/2002, de 20 de dezembro, que aprovou o OE para 2003, o regime de tributação das mais e menos-valias para as SGPS foi    novamente modificado, através de alterações introduzidas nos n.º 2 e 3 do art.º 31º do EBF, sendo este o regime que passou a vigorar, embora com posterior renumeração do artigo (que passou de 31º para 32º).

A nova redação passou a dispor que as mais e menos-valias realizadas na transmissão onerosa de partes de capital, e os encargos financeiros suportados com a sua aquisição, não concorreriam para a formação do lucro tributável, desde que essas partes de capital fossem detidas por período não inferior a um ano (itálico nosso). A partir de 1 de janeiro de 2003 (por força da Lei n.º 32-B/2002) passou, pois, a vigorar em pleno esse regime específico das SGPS: a aplicação do nº 2 do art.º. 31º do EBF (depois, art. 32º) excecionava ao regime geral previsto nos arts. 23.º, 42.º e 45.º do CIRC[42], que voltavam a aplicar-se às           menos-valias apuradas na transmissão de partes de capital caso a transmissão consubstanciasse os n.ºs 5, 6 e 7 do art. 23.º do CIRC mas não se encontrassem preenchidos os pressupostos   de aplicação da norma do EBF.

Como regra geral resultará da aplicação do art.º 31.º (depois 32.º) do EBF que as menos-valias e os encargos financeiros suportados com o financiamento de partes de capital não concorrem para a formação do lucro tributável (uma desconsideração que só não ocorreria se se verificasse alguma das exceções previstas no n.º 3 desse mesmo art. 31.º). 

Para o que nos interessa mais especificamente, no período em consideração a redação do n.º 2 do art. 32.º do EBF manteve-se praticamente inalterada até à sua revogação:

            -        Até março de 2010 vigorou a redação introduzida pela Lei n.º 10/2009, de             10        de março:

            "As mais-valias e as menos-valias realizadas pelas SGPS, pelas SCR e pelos       ICR de partes de capital de que sejam titulares, desde que detidas por período         não inferior a um ano, e, bem assim, os encargos financeiros suportados com a        sua aquisição não concorrem para a formação do lucro tributável destas sociedades."

            -         A mesma redação manteve-se até dezembro de 2010, não obstante as         alterações introduzidas no diploma pela Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril.

            -         E o mesmo sucedeu até dezembro de 2011, não obstante as alterações       introduzidas pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro.

            -         Só com a Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, foi introduzida uma          ligeira modificação do preceito, que não alterou o seu sentido e somente          eliminou          a referência às SCR e aos ICR:

            "As mais-valias e as menos-valias realizadas pelas SGPS de partes de capital de            que sejam titulares, desde que detidas por período não inferior a um ano, e, bem      assim, os encargos financeiros suportados com a sua aquisição não concorrem      para a formação do lucro tributável destas sociedades."

            -         E foi esta redação que permaneceu até dezembro de 2013, altura em que ocorreu a sua revogação pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro."

 

44. Recorde-se que, ao tempo, existia a regra geral da dedutibilidade dos custos prevista no art.º 23.º, n.º 1 do CIRC (na redação então em vigor[43]), segundo a qual seriam considerados "custos ou perdas os que comprovadamente forem indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora"[44]. E, dentre estes, a al. c) do mesmo dispositivo legal, ao enumerar, a título exemplificativo, os "encargos de natureza financeira", permite(ia) dar conta de quais estes sejam: encargos com "juros de capitais alheios aplicados na exploração, descontos, ágios, transferências, diferenças de câmbio, gastos com operações de crédito, cobrança de dívidas e emissão de ações, obrigações e outros títulos e prémios de reembolso". [45]

 

45. Com a introdução do novo regime especial constante do referido art. 32.º do EBF (no Capítulo III com a epígrafe "Benefícios fiscais ao sistema financeiro e mercado de capitais"), a situação passou então a ser a seguinte:

 

            - é aplicável às SGPS, às SCR e aos ICR o disposto nos n.ºs 1 e 5 do artigo 46.º   do        Código do IRC, sem dependência dos requisitos aí exigidos quanto à percentagem ou ao valor da   participação" (n.º 1);

 

            - não concorrem para a formação do lucro tributável as mais-valias e as menos-   valias realizadas por SGPS, SRC e IRC quando não detidas por período não       inferior a um ano, ou seja, apenas concorrem para tal quando detidas por            período           igual ou superior a um ano[46]. A regra da dedutibilidade dos custos ou perdas        comprovadamente indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos        (na redação então vigente do art. 23.º do CIRC) ficou, pois, limitada pela         necessidade de decurso de um certo período de tempo, tendo em    vista evitar a   proliferação de movimentos especulativos[47];

           

  - são excluídos da regra da dedutibilidade os "encargos financeiros" suportados com a aquisição das referidas participações ou partes de capital (detidas por um período não inferior a um ano). O enunciado da lei, como    atrás se referiu, aponta no sentido de que apenas não concorrem para a formação             do lucro tributável, isto é, não gozam de dedução, os encargos financeiros           suportados com a referida aquisição. A contrario, existindo encargos financeiros sem conexão com esta aquisição, eles acrescerão, por via de regra, ao lucro tributável. O mesmo ocorrerá quando não tenha decorrido o mencionado período de um ano.

 

46. Estamos assim perante um "benefício fiscal" com uma estrutura sui generis que consiste num desagravamento fiscal no quadro de um prévio agravamento. A regra geral da dedutibilidade, justificada pelos princípios da tributação do lucro real e da capacidade contributiva, é perturbada pela não consideração de certos custos[48]. Cria-se assim uma exceção que, na prática, equivale a um agravamento da tributação e que, como tal, deve ser interpretada restritivamente. Ao mesmo tempo, desenha-se, como desagravamento fiscal, uma exceção à exceção que possibilita a dedução de certos encargos (os financeiros), após um certo decurso do tempo (detenção de participações sociais pelo período mínimo de um ano), apenas por parte de um pequeno e heterogéneo grupo de instituições financeiras (SGPS, SCR e IRC)[49].

 

48. O objetivo deste regime (objetivo manifesto) é o de beneficiar certas instituições do sistema financeiro (não todas), ainda que, mesmo neste grupo formalmente em pé de igualdade, possa, na prática, beneficiar mais umas que outras. Tal facto é, porém, explicável por este regime ter vocação para ser utilizado para favorecer políticas económicas de privatização de grupos estatais que têm como cabeça de direção uma sociedade holding (objetivo latente). A lei pretendeu possibilitar a dedução de certos encargos financeiros (e, a fortiori, das entradas de ativos em que tais encargos por definição não existem), evitando  um agravamento fiscal decorrente da não aplicação da regra da dedutibilidade geral dos encargos financeiros a situações como as do presente processo, justificadas pela adoção  de uma política energética, europeia e nacional, que fosse favorável à liberalização e privatização do setor.

 

49. No que respeita ao desagravamento relativo aos encargos financeiros, há que clarificar o sentido do termo aquisição, pois essa clarificação é decisiva para a definição do âmbito de aplicação da exclusão tributária prevista neste artigo. Ora, neste contexto, aquisição não designa todo e qualquer ato ou processo que tenha como efeito o adquirente tomar posse de alguma coisa, mas apenas um ato ou processo de onde deverão resultar efetivos encargos financeiros, o que exclui, v.g., a aquisição a título não oneroso. O caso típico será assim o de um empréstimo bancário, um ato a título oneroso que comporta uma contraprestação financeira (pagamento de juros) da parte do adquirente para a obtenção da coisa adquirida.

 

50. Posta assim a questão, trata-se agora de saber se a referida exceção à exceção inserta no art.º 32.º de EBF se aplica ou não diretamente no caso sub judice. Que assim ocorria em 2003 e 2004, isto é, depois da entrada em vigor do referido art.º 32.º e antes da publicação em 30.03, da Circular n.º 7/2004, da DSIRC[50], não oferece dúvidas.

 

50. Põe-se, porém, a questão de saber se o mesmo se passa depois da entrada em vigor da referida Circular. A resposta deve ser igualmente no sentido da aplicação direta do art.º 32.º do EBF (isto é, sem necessidade de qualquer intermediação da Circular n.º 7/2004), sempre que fique provado não existirem com a "aquisição" quaisquer "encargos financeiros". Na verdade, o campo de aplicação da mencionada Circular apenas diz respeito a efetivos encargos financeiros suportados com a aquisição (necessariamente onerosa) de partes de capital ou de participações sociais. Não de cessões / receções de bens a título gratuito, como é o caso de uma operação de entrada de ativos, a qual não implica reais e efetivos encargos financeiros, facto que ocorre com a grande maioria das participações ou partes sociais comprovadamente obtidas pela Requerente. Em relação a estes casos tudo se passa como antes da emissão da Circular, isto é, aplicação direta do disposto no art.º 32.º do EBF.  Por isso, na medida em que não haja encargos financeiros reais, não tem sentido ficcionar a existência virtual de quaisquer encargos financeiros, como se passaria com a aplicação da mencionada Circular[51]. Se houvesse reais encargos financeiros com a aquisição (o que, segundo a própria Recorrente, não é o caso[52]), só então se deveria verificar a conformidade ou não da Circular com a lei e a CRP, para, em caso de desconformidade, se aplicar o método o de cálculo da afetação real dos encargos financeiros (ou seja, aquele que se aplicaria ab initio).

 

51. A posição da Requerente foi, porém, a de não aplicar diretamente o disposto no art.º 32.º do EBF, mas a de considerar, segundo afirma, por antecipação da provável posição da AT, o método de cálculo previsto na mencionada Circular n.º 7/2004, nomeadamente nos seus n.ºs 6 e 7 [53].

É doutrina pacífica a que defende que, tendo em conta o enquadramento conferido pelos artigos 86.º-A da LGT e 55.º do CPPT, as circulares, enquanto orientações administrativas genéricas, têm por função esclarecer e, dentro das competências dos serviços, densificar o conteúdo de normas legais, sendo apenas juridicamente vinculativas para os funcionários dos serviços integrados na administração tributária (os seus exclusivos destinatários) e não os particulares e, menos ainda, os tribunais[54]. É certo que muitas vezes os contribuintes (por precaução ou por outros motivos) aplicam a casos concretos a doutrina das circulares, mas tal ocorre, em regra, quando estas se limitam a operacionalizar o conteúdo da lei. Em qualquer caso, uma  circular apenas pode ser invocada quando está em consonância com  o âmbito de aplicação da lei e não quando o extravasa. O que não é manifestamente o que se passou nos presentes autos.

 

52. A questão é então a de saber se, independentemente do caráter ilegal ou não da Circular 7/2004, questão, quanto a nós, irrelevante para este efeito[55], a sua aplicação teria cabimento no caso sub judice. E, quanto a isso, a resposta só pode ser negativa: o campo de aplicação da Circular apenas diz respeito a encargos financeiros suportados com a aquisição de partes de capital e não a uma qualquer entrada de ativos obtida sem contrapartida financeira[56].  É igualmente irrelevante para a decisão a questão de saber o motivo pelo qual a Requerente resolveu aplicar a mencionada Circular (precaução, convicção de obrigatoriedade, erro, estratégia jurídica ou cálculo financeiro, etc.)[57].  

É o que decorre, em primeiro lugar, da letra da lei que, como se sabe, delimita o campo das interpretações possíveis. Ora, no que toca ao art. 32.º do EBF, uma lei de natureza especial, a letra daquele dispositivo aponta para que os encargos financeiros não dedutíveis sejam apenas aqueles suportados com a aquisição de partes de capital, pelo que, a contrario e seguindo a regra geral, todos os restantes encargos seriam dedutíveis.

 

53. Dir-se-á que, por si só, o argumento literal não será decisivo, pois, de acordo com o art. 10.º do EBF as normas que estabelecem benefícios fiscais admitem interpretação extensiva. Só que, neste caso, o argumento literal é corroborado por outros elementos, desde logo pelo elemento histórico.

Com efeito, o Relatório do OE para 2003 esclarece que a introdução do art. 32.º do EBF, que, como se disse, desconsidera a dedutibilidade dos encargos financeiros "diretamente associados à aquisição de partes sociais por parte das SGPS", tinha em vista o "alargamento da base tributável e medidas de moralização e neutralidade". A simples titularidade de participações sociais não basta, pois, para determinar a indedutibilidade dos encargos, sendo necessário verificar a questão de saber se houve ou não aquisição.

 

54. Assim mesmo, num outro processo relativo a foi reconhecido pela Direção de Finanças de Lisboa com despacho concordante da DSIRC - e bem - que o art. 32.º do EBF "só abarca as situações em que as partes de capital resultaram de transações comerciais, não estando aqui incluídas as quotas / ações recebidas em contrapartida da entrada de ações em espécie para a realização do capital social". De facto, "o termo aquisição parece pressupor a existência de um ato translativo, passando a propriedade das partes de capital de uma entidade para outra".[58] Ora numa operação de entrada de ativos, não há, em rigor, verdadeira aquisição, nem existem quaisquer encargos financeiros, uma vez que não há endividamento gerador de juros[59]. Esta posição da AT consta igualmente da Ficha Doutrinária referente ao processo n.º 2799/2009, com despacho de 19.11.2011 (Doc. n.º 29).

 

55. A posição da Requerida é distinta desta. Depreende-se da Informação n.º 14-AIR2/2016 que sustenta o despacho de indeferimento do pedido de revisão oficiosa (doc. n.º 1) que não existiria contradição entre a posição oficial da AT e a expressa na "controversa decisão proferida pela SDF de Lisboa" e na ficha doutrinária supracitadas, uma vez que estas diriam respeito ao n.º 3 do art. 32.º do EBF e aquela ao n.º 2 do mesmo artigo. Quanto a este n.º 2, " a aquisição de partes de capital não abrange apenas as «situações em que as partes de capital result(em) de transações comerciais», incluindo-se aqui as operações de entradas de ativos como as preconizadas pelas sociedades D..., na G...e na F...". E acrescenta a mesma Informação que "é irrelevante o argumento segundo o qual o capital destas sociedades ter sido realizado com entradas em espécie, já que contabilisticamente a estes tem sempre de ser dado um valor quantificável", concluindo assim que, "nos termos do n.º 2 do art. 32.º do EBF, os encargos financeiros suportados com aquisição de partes de capital, mesmo que obtidas através de operações de entradas de ativos, não concorrem para a formação do lucro tributável". Fica, porém por explicar quais são os "encargos financeiros suportados" (e não ficcionados) quando efetivamente nenhuns existem. Fica igualmente por esclarecer qual é a coerência sistémica de se pretender que o mesmo conceito ("aquisição") tenha distintos sentidos no interior do mesmo dispositivo legal, sem que a lei expressamente o admita.  O que é, sim, irrelevante é o facto da existência de um valor atribuído para efeitos contabilísticos que, por si só, não desqualifica a natureza jurídica de uma operação, a de entrada de ativos, em que não houve reais encargos financeiros.

 

56. Recorde-se, por fim, que, no caso sub judice, as entradas de ativos têm por base determinações políticas, sob a forma de  Resolução  do Conselho de Ministros, emanadas no âmbito da reformulação da política energética nacional e europeia, e não da mera esfera do mercado.  Este facto permite, como vimos, fazer luz sobre um dos objetivos que o poder político pretendia alcançar com a atribuição dos desagravamentos fiscais consagrados no art.º 32.º do EBF[60].

 

57. Do exposto resulta que, em relação às entradas de ativos relativas aos processos da A..., SGPS, SA (requerente), da D..., S.A., da F... e da  G..., totalizando  € 9.677.185,79 (que originou uma liquidação de imposto em 2009 de € 2.419.296,45), por não haver "encargos financeiros" nem real "aquisição" de partes sociais, não sejam aplicáveis as restrições previstas no art. 32.º n.º 2 (nem, por consequência, a Circular n.º 7/2004).

 

58.  No art. 238.º da sua resposta, a Requerida invoca ainda a inconstitucionalidade do art. 32.º, n.º 2 do EBF "quando interpretado no sentido de que a exclusão da dedução dos encargos financeiros se circunscreve aos suportados com a obtenção de financiamento especificamente relacionado com a aquisição de partes de capital". Segundo ela, esta interpretação violaria os princípios da igualdade tributária e da capacidade contributiva (ínsitos nos artigos 13.º, 103.º e 104.ª, n.º 2 da CRP), pois traduzir-se-ia num benefício fiscal não justificado a favor das sociedades holding impuras [61]. Mas sem razão, como a ratio legis do dispositivo em causa o demonstra. Em rigor, estamos perante uma definição do sistema regra de tributação, que optou pela exclusão tributária (isto é, pela não incidência) de imposto em relação a uma certa realidade (a inexistência de aquisição de partes sociais e a inexistência de encargos financeiros). O legislador, ao direcionar o desagravamento fiscal para certas instituições financeiras e ao possibilitar o seu uso de forma desigual, optou por afirmar outros valores a salvaguardar que considerou mais importantes do que os decorrentes da generalidade e igualdade tributária[62]. Pretendeu, nomeadamente, como se disse, facilitar, no plano fiscal, certas privatizações, evitando estender a tributação a aquisições por entradas de ativos[63].

 

59. Quanto aos 11% de partes sociais detidas pela Requerente, não existe qualquer prova nos autos de qual seja a sua proveniência e de qual o período por que foram detidas. O valor global dessas partes declarado pela Requerente é de € 9.677.185,79, de onde resultou uma liquidação e o pagamento de € 2.419.296,45, a título de IRC e tributos adicionais. Em princípio, a aplicação (quanto a nós, indevida) da Circular não altera o montante global dos encargos financeiros declarados, apenas interferindo na forma como são distribuídos pelas diversas empresas que integram o grupo. A Requerente pretende aplicar aos 11% a mesma solução dos restantes 89%, invocando a Circular, mas, como se disse, esta não se aplica à entrada de ativos em que não há real aquisição e, portanto, não há encargos financeiros. Em relação a estes 11%, competiria assim à Requerente demonstrar se houve ou não aquisição com encargos financeiros e indicar se foi cumprida a regra relativa ao período de detenção. Demonstração que não deveria ser complicada, uma vez que defende a aplicação do método de afetação real, mas que manifestamente não fez. 

 

A questão dos juros indemnizatórios

 

60. Sob a epígrafe "Pagamento indevido da prestação tributária", o art. 43.º da LGT, nos seus nºs 1 e 2, estabelece o seguinte:

            "1 - São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em        reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que   resulte pagamento da dívida tributária em montante       superior ao legalmente devido.

            2 - Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em      que, apesar de a liquidação ser efetuada com base na declaração do        contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações        genéricas        da administração tributária, devidamente publicadas."

A questão gira assim em torno da questão de saber o que se entende, neste contexto, por "erro imputável aos serviços", mormente em casos de autoliquidação. Duas posições têm sido avançadas a este propósito: uma, a defendida pela Requerente, outra que podemos encontrar formulada em diversos arestos (v.g., a Decisão Arbitral proferida em 25.09.2015, no processo n.º 208/2015-T) e que é bem sintetizada pelo acórdão arbitral de 10.04.2018, no processo n.º 333/2017-T.

 

61. A primeira posição parte da conjugação entre o art.º 43.º, n.º 1 da LGT e o n.º 2 do art. 78.º do mesmo diploma (em vigor à data da apresentação do pedido de revisão e entretanto revogado pela Lei n.º 7-A/2016, de 30.03) que estatuía que, para efeitos de revisão dos atos tributários, é considerado "imputável aos serviços (...) o erro na autoliquidação". Com base nela, a Requerente reclama juros indemnizatórios (sobre o montante global de 2.733.888,22 e não apenas sobre os 89%), contados desde 01.09.2010 (termo da data para o reembolso oficioso do imposto, segundo o art. 104.º, n.º 6 do CIRC), até ao integral reembolso do referido montante.

 

62. A segunda posição, embora reconheça que a AT pode não ter qualquer intervenção na prática do ato de autoliquidação em que se baseou o pagamento (sendo assim à própria Requerente que seria imputável a sua prática), fundamenta a imputabilidade do erro à AT no facto de esta  não acolher, no momento da decisão da reclamação graciosa, as pretensões da Requerente quanto à ilegalidade da autoliquidação, ou seja, quando a AT se pronuncia pela manutenção de uma situação de ilegalidade em vez de a corrigir. De acordo com o mencionado Acórdão arbitral n.º 333/2017-T, esta situação "deverá ser enquadrada, por mera interpretação declarativa, no n.º 1 do artigo 43.º da LGT, pois trata-se de uma situação em que há nexo de causalidade adequada entre um erro imputável aos serviços e a manutenção de um pagamento indevido e a omissão de reposição da legalidade quando se deveria praticar a ação que a reporia deve ser equiparada à ação.” Daqui decorre, em conformidade com a Decisão Arbitral de 08.09.2017, proferida no processo n.º 748/2016-T, que a contagem dos juros deverá processar-se a partir do momento em que se completou o prazo de decisão das reclamações graciosas[64]. Esta jurisprudência deve ser observada na resolução do presente caso.

 

63. Assim, no caso sub judice, a Requerente procedeu à autoliquidação de IRC (e adicionais) relativa a 2009, tendo, em seguida, apresentado, primeiro, um pedido de revisão oficiosa (indeferido em 10.02.2017) e, depois, um recurso hierárquico, tacitamente indeferido em 14.05.2017. A Requerida teve assim oportunidade de repor a legalidade e acolher parcialmente a pretensão da Requerente. Como não o fez, são devidos juros indemnizatórios sobre o excesso indevido de imposto, ou seja, sobre € 2.419.896,45, calculados à taxa legal, a partir do prazo de um ano após o pedido de revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte em 28.05.2014 [65]. Esta é a solução que decorre do art. 43.º, n.º 3, al. c), da LGT, segundo o qual São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias: (…) c) Quando a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.”[66]

 

64. Em relação aos restantes 11%, não havendo qualquer prestação a reembolsar, como atrás foi defendido, não há direito a juros indemnizatórios.

 

D) DECISÃO

 

Pelo exposto, este Tribunal Arbitral decide:

 

a) julgar improcedentes as exceções de incompetência material e quanto ao valor suscitadas pela Requerente;

 

b) julgar parcialmente procedente o pedido de pronúncia arbitral, referente à declaração de ilegalidade do indeferimento tácito do recurso hierárquico verificado em 14.05.2017, bem como do indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa apresentado em 28.05.2014, na parte relativa à aplicação da Circular 7/2004 às participações detidas pela Requerente na D..., na F... e na G..., e consequente anulação desses indeferimentos;

 

c) julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade parcial da autoliquidação de IRC (e tributos adicionais) relativos ao exercício de 2009, e consequente anulação da mesma, na parte correspondente ao montante de € 2.419.296,45;

 

d) julgar procedente o pedido de reembolso de € 2.419.296,45, pagos pela Requerente relativamente a esse mesmo exercício, acrescido de juros indemnizatórios, à taxa legal, contados a partir do prazo de um ano após o mencionado pedido de revisão, ou seja, desde 29.05.2015.

 

e) julgar improcedente o pedido de declaração de ilegalidade da restante liquidação relativa ao exercício de 2009 e, consequentemente, o pedido de reembolso do respetivo imposto pago, bem como a atribuição de juros indemnizatórios.

 

 

E) VALOR DA CAUSA

 

De acordo com o disposto no art.º 97.º-A, n.º 1, al. a) do CPPT e no art.º 3.º, n,º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor da causa em € 2.733.888,22.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 4 de dezembro de 2018,

 

 

António Carlos dos Santos

 

 

 

Ricardo da Palma Borges

(com declaração de voto)

 

 

 

Manuel Pires

(com declaração de voto)

 

Declaração de voto

 

1. Concordo, no essencial, com a decisão formada no presente acórdão arbitral – ainda que não acompanhe integralmente a fundamentação –, excepto quanto ao respectivo ponto 59., a respeito do pedido da Requerente quanto à aplicação aos 11% de partes sociais detidas pela Requerente da mesma solução de anulação de liquidação que foi determinada quanto aos restantes 89%, e aos pontos 60 a 64, no que concerne aos juros indemnizatórios a atribuir à Requerente.

 

2. O presente acórdão arbitral defende, no dito ponto 59., que: “A Requerente pretende aplicar aos 11% a mesma solução dos restantes 89%, invocando a Circular, mas, como se disse, esta não se aplica à entrada de ativos em que não há real aquisição e, portanto, não há encargos financeiros. Em relação a estes 11%, competiria assim à Requerente demonstrar se houve ou não aquisição com encargos financeiros e indicar se foi cumprida a regra relativa ao período de detenção. Demonstração que não deveria ser complicada, uma vez que defende a aplicação do método de afetação real, mas que manifestamente não fez.

Salvo o muito e devido respeito, não acompanho esta fundamentação, porquanto entendo que o ónus da prova deveria ser atribuído à Requerida. Com a devida vénia, e por economia de esforços, transcrevo do acórdão arbitral de 10.04.2018, no processo n.º 333/2017-T, diversas vezes mencionado no presente, em que no essencial me revejo:

[III.2.3. Ónus da Prova] Resulta assim do supra-exposto que o ónus da prova de que os encargos foram suportados com aquisição de participações sociais incumbia à Requerida. Não pode por isso proceder a alegação da Requerida de que o ónus da prova se encontra acometido à Requerente, não tendo a mesma provado que nenhum financiamento obtido pela A…SGPS foi contratualmente destinado à aquisição das referidas participações sociais. Muito menos poderá proceder a argumentação da Requerida de que a Requerente apenas alega que 89% (40% + 49%) dos encargos financeiros acrescidos se referem a participações em que alegadamente não existe qualquer financiamento associado vindo, no entanto, peticionar, a final, a anulação de 100% dos encargos acrescidos, sem que avance qualquer outra justificação para a pretensa invalidade deste acréscimo dos 11% (100% - 89%), que não seja a (in)aplicabilidade da Circular.

A este propósito, importa relembrar o acórdão do STA, em decisão proferida a 24 de Janeiro de 2018, no âmbito do processo n.º 0745/15:

Portanto, a recorrente ao seguir as orientações genéricas da AT, a que não estava obrigada, lançou mão de um método indirecto, presuntivo, de afectação de encargos financeiros, mas como bem refere a própria AT na decisão do recurso hierárquico, de nada lhe valeria (à recorrente) fazer de modo diferente porque, caso o fizesse, seria sempre corrigida a sua liquidação nos precisos termos daquelas orientações genéricas existentes, cfr. pág. 39 dos autos, parágrafo 2º. (…)

Contudo, não vindo expressamente invocado pela AT que no caso concreto da recorrente se imponha o recurso a um método de avaliação indirecto, o que lhe competia nos termos do disposto no artigo 74º, n.º 3 da LGT, em caso de determinação da matéria tributável por métodos indirectos, compete à administração tributária o ónus da prova da verificação dos pressupostos da sua aplicação, cabendo ao sujeito passivo o ónus da prova do excesso na respectiva quantificação-, não se pode valer da dita “norma administrativa” da Circular em análise para manter a autoliquidação efectuada de acordo com a mesma. (…)

De resto, o facto de a própria recorrente ter procedido à autoliquidação do imposto, segundo as regras estabelecidas pela AT, não implica que tal seja admissível ou lhe seja oponível, desde logo porque aos contribuintes não assiste o direito de apresentar as suas declarações de rendimentos lançando mão de métodos indirectos que não tenham uma correspondência directa e imediata com a sua realidade contabilística, o que se impõe por força dos princípios da tributação das empresas pelo rendimento real e da igualdade, segundo os quais, todos, e cada um, contribuirão coactivamente para a receita do Estado segundo as suas possibilidades e na medida do esforço que lhes possa ser exigido, cfr. artigo 103º, n.º 1, da CRP.”

Conclui-se assim que, quanto aos restantes 11% de encargos cuja dedutibilidade a Requerente alega, atendendo a que o ónus da prova da impossibilidade de recurso a método directo não foi satisfeito pela Requerida (aliás, nem foi alegado pela AT, que considerou que nada tinha a provar por considerar que o ónus da prova pertencia ao contribuinte), também quanto a estes se deve considerar que não há lugar à aplicação do artigo 32.º, n.º 2, do EBF, devendo tais encargos de financiamento ser considerados totalmente dedutíveis.

Verificando-se que o ónus da prova incumbia à Requerida e não foi por ela satisfeito (acrescido ao facto de que a Requerente fez prova, ainda que não lhe incumbisse tal ónus, quanto a 89% do montante de encargos financeiros aqui em causa), deverá concluir-se que o acto impugnado enferma de vício de violação de lei, por não ter observado o regime do artigo 32.º, n.º 2, do EBF. Desta forma, o pedido de pronúncia arbitral procede também nesta parte.”.

 

Discordo ainda do ponto 52. Quando aí se afirma que “É igualmente irrelevante para a decisão a questão de saber o motivo pelo qual a Requerente resolveu aplicar a mencionada Circular (precaução, convicção de obrigatoriedade, erro, estratégia jurídica ou cálculo financeiro, etc.).” Ora, conforme resulta do primeiro parágrafo supra-citado do acórdão do STA, em decisão proferida a 24 de Janeiro de 2018, no âmbito do processo n.º 0745/15, a Requerente viu-se obrigada a recorrer ao método da Circular n.º 7/2004, pois “de nada lhe serviria aplicar outro método”, o que inclui os 11% de encargos financeiros aqui em causa. Logo, também por isso deverá ser a liquidação anulada no que respeita aos referidos 11%.

Por último, salvo o devido respeito, penso é intrinsecamente incongruente anular parcialmente a liquidação em 89%, por o método indirecto utilizado (a metodologia da Circular n.º 7/2004) de afectação pro rata dos passivos remunerados aos activos da Requerente ser inaplicável, e não anular os restantes 11%, afectando de forma forfetária 11% dos passivos remunerados a 11% dos activos da Requerente. Não se trata aqui de o acessório seguir o principal (e 11% sempre seriam acessórios em relação a 89%...). Se se recusa a afectação proporcional de 89% dos passivos remunerados a 89% dos activos, por ausência de verificação dos pressupostos previstos no artigo 32.º, n.º 2, do EBF, quanto a encargos financeiros suportados com a aquisição de partes de capital, afectar proporcionalmente os restantes 11% dos passivos remunerados a activos da Requerente é ainda aplicar a Circular, sem cuidar de discutir a sua legalidade, e caso esta se verificasse – que não verifica –, sem verdadeiramente aferir da verificação dos pressupostos da sua aplicação, a despeito de se dizer, no citado ponto 59., “a aplicação (quanto a nós indevida) da Circular”.

3. Quanto aos juros indemnizatórios entendo que a Requerente tinha direito aos mesmos, contados desde 1 de Setembro de 2010, termo da data para o correspondente reembolso oficioso do IRC, até ao integral reembolso. Por economia de esforços remeto para os fundamentos das minhas declarações noutros processos arbitrais tributários: votos de 5 de Abril de 2017, no Processo n.º 553/2016-T, e de 10 de Abril de 2018, no Processo n.º 333/2017-T.  É óbvio, no entanto, que a atribuição de juros feita pelo presente acórdão arbitral está contida naquela, mais vasta, que eu próprio consideraria a mais adequada, pelo que não pode oferecer dúvidas que, na parte em que foram atribuídos juros desde 28 de Maio de 2015, se formou maioria de decisão.

 

 

(Ricardo da Palma Borges)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

1.Votei vencido por entender verificar-se a incompetência material do tribunal arbitral. O art. 1º do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, estabeleceu “a arbitragem como meio alternativo de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária”. No entanto,” A vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos” (art. 4° n° 1 do citado Decreto-Lei). Daí, diferentemente do pretendido, não corresponder à lei a adesão genérica, abstracta, incondicional e irrestrita à arbitragem. Uma igualdade com a impugnação, mas sim a adesão à arbitragem com limitações admissíveis legalmente, limitações estabelecidas antes da opção do contribuinte e só depois existindo a igualdade de posições, isto é, as opções são duas mas a da Portaria é anterior à do sujeito passivo, este tem de se conformar com o quadro legal pré-existente. Nestes termos, não existe contradição com o regime global da arbitragem, visto este regime ser integrado também pela mencionada Portaria, tornada necessária pelo RJAT. Ou a Portaria é ilegal? A Portaria n° 112-A/2013, de 22 de Maio, estabeleceu a vinculação da agora AT à jurisdição dos tribunais arbitrais (artigos 1º e 2º proémios) “com excepção das (….) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamentos por conta, que não tenham sido precedidos de recurso de via administrativa nos termos dos artigos 131º a 133º do Código de Procedimento e de Processo Tributário” [citado artigo 2º alínea a)]. A adesão, pois, “a este mecanismo de resolução alternativa de litígios “foi “nos termos e condições aqui [na citada portaria] estabelecidos, atendendo à especificidade e valor das matérias em causa”, não se podendo, assim, repete-se, invocar a plenitude do carácter alternativo da arbitragem com a impugnacão, visto terem sido permitidas legal e expressamente e estabelecidas limitações a que se tem necessariamente de atender, qualquer que seja a natureza atribuída à portaria, até pela relevância redobrada, no caso, por, não obstante ser, em geral, excepção a apreciação do tipo agora em causa, operar-se o retorno à possibilidade da competência, no caso de se cumprir algo que, sem ele, repete-se, estaria fora do campo da arbitragem, isto é, está-se perante uma excepção à excepção. A limitação, no caso sob julgamento, é a precedência da reclamação graciosa e não “o recurso à via administrativa” em geral referido, mas imediatamente limitado. De outro modo porque se acrescentou algo ao recurso a tal via? Seria uma inutilidade. Como é possível entender-se que a norma correspondente permite a afirmação de obediência ao preceito segundo o qual “Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”( artigo 9º nº.2 do CC)? De outro modo, considerando unicamente o prius ilimitado, qual o efeito do posterius, constituído pela restrição? E é porque existe especificidade e não generalidade que não é aceitável a ideia de que o desejado foi qualquer tipo de apreciação prévia pela Administração de algo por ela ainda não considerado, a ser submetido a entidade fora do seu âmbito, e não é aceitável porque houve especificação estabelecida pela norma, houve limitação da via a utilizar. Aliás, a limitação é ainda mais ostensiva quando o artigo 124º da Lei nº 3-B/2020, de 28 de Abril, a lei de autorização da arbitragem, refere, no âmbito das possibilidades do objecto do processo, os actos” de indeferimento total ou parcial de reclamações graciosas ou de pedidos de revisão de actos tributários, os actos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação”, redacção muito mais ampla do que a acolhida finalmente. Uma eventual diferente vontade do legislador não foi de modo algum explicitada, pelo contrário, a limitação ostensivamente acrescentada é reveladora da falta daquela vontade, não sendo de recepcionar a presunção de um julgador sem perícia ou distraído (artigo 9º nº. 3 do CC). É certo estarem ultrapassados desde há muito os brocardos in claris non fit interpretatio ou ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus, mas a extensão da letra da lei, o que ocorreria com a interpretação pretendida, só é admissível por razões claras e determinantes, o que não ocorre, visto nem sequer haver quaisquer razões, atento a reclamação graciosa e a revisão (oficiosa) constituírem procedimentos diversos quer pela iniciativa ( artigos 68º do CPPT e 78º da LGT), quer pelos objectivos (idem), quer pelos prazos (artigos 70º do CPPT e 78º da LGT) quer pelo decisor (artigos 75º do CPPT, 78º da LGT e 6º n. 4 do Decreto-lei nº 433/99), quer pelos efeitos (artigos 68º do CPPT e 79º da LGT ), sendo relevantes, no caso em apreciação, os prazos e o decisor, sendo, portanto, totalmente forçada a respectiva equiparação que não pode ser ditada por uma mera identidade entre a revisão e a reclamação por ambas proporcionarem a possibilidade de apreciação prévia por parte da AT, visto as diferenças assinaladas com interesse no presente âmbito, interpretação não abrangente, todavia, que não elimina essa possibilidade de apreciação.

Portanto, não é indiferente o recurso a qualquer das duas vias, mormente no relativo à diferença concernente à entidade de grau hierárquico distinto que proferirá a decisão, não se tratando obviamente de se exigir a correspondente cumulação, visto o legislador ter optado apenas por uma: a reclamação graciosa. Como resultado do que se escreveu, não é admissível, seria mesmo incongruente, que a lei, depois de explicitar a limitação após a menção genérica do “recurso à via administrativa”, incluísse implicitamente a perfeita equiparação, tendo em mente a interpretação da disposição relevante conforme a jurisprudência no âmbito da impugnação judicial - artigo 131º do CPPT. Portanto, não basta, para sustentar a opinião contrária, a mera remissão para o artigo.131º do CPPT. Não existe, pois, razão para se desconhecer a reserva formulada, ferindo, com esse desconhecimento, a liberdade e a opção feita, repete-se, anteriormente à do sujeito passivo, liberdade e opção que legal e claramente conduziram a uma restrição do processo arbitral face à impugnação, ao seu carácter alternativo, liberdade reconhecida pelo decreto- lei e concretizada pela portaria, daí não se poder imputar a esta ilegalidade de qualquer grau. O contrário seria a ampliação da vinculação limitada da arbitragem que claramente foi permitida e estabelecida, vinculação não existente no caso da impugnação, limitação que poderia até ter sido mais ampla, dado o disposto no decreto-lei sob referência, convindo bem sublinhar que, com o carácter acolhido, não é impossibilitada “a arbitragem como meio alternativo da resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária”, visto ser possível a arbitragem, o que antes não sucedia, não sendo igualmente invocável a negação do princípio do acesso ao direito e do direito do contribuinte à tutela jurisdicional efectiva, unicamente porque não lhe foi concedida a escolha que pode existir noutros domínios mas não neste, pelos motivos aqui amplamente referenciados. De outro modo é situar incompreensivelmente o raciocínio num momento anterior ao das limitações, obnibulando-as totalmente contra legem. Não existe, pois, ratio legis impondo interpretação contrária e a coerência do sistema também não: está-se perante algo novo construído com restriçōes admitidas hierarquicamte e de modo a não serem disruptivas do pensamento concretizado em sucessivos diplomas consagrando o pensamento legislativo. Também não pode, pois, ser considerado violado o artigo 78º da LGT, por apenas não se ter admitido, no caso, a via nele estabelecida, tendo, porém, sido admitida legalmente outra, não existindo algo que tivesse impedido a via seguida, sendo, pelo contrário, admitida. Ainda invocar uma não concordância do género de palavra (“precedidos” em vez de” precedidas”, porque referida a pretensões) como algo probatório da falta de rigor na redacção do preceito sob análise, conduzindo a outra “deficiência” que seria a aposição da reclamação à via administrativa em geral, aposição que, segundo a mesma opinião, seria desnecessária, é algo que, pela comparação feita, não envolve comentário prolongado, atento os dois casos serem qualitativamente bem díspares. A exigência é clara, não existe qualquer imperfeição, não esquecendo que “na fixação do sentido e do alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador considerou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” (artigo 9º n°3 do CC). De tudo resulta não se estar face à uma mera interpretação literal, visto o circunstancialismo que rodeou a criação da norma e a sua ratio

demonstrarem bem o afirmado. No sentido sustentado, afigura-se o que o Conselheiro Jorge Lopes de Sousa ensinou em 2011:” De harmonia com o disposto na no art. 2º, alínea

a), da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de março, relativamente a atos de autoliquidação, a Administração Tributária apenas se vinculou a jurisdição dos tribunais arbitrais se o pedido

de declaração da ilegalidade tiver sido precedido de recurso à via administrativa, isto de é,

de reclamação graciosa. Por isso, se o sujeito passivo pretender apresentar um pedido de declaração de ilegalidade perante um tribunal arbitral, a reclamação graciosa será sempre necessária “(Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, 6ª edição, 2011, II volume, pág. 409; cfr., para outros tipos de casos, págs.430 e 428). E não se diga também, por reflectir pensamento outrora em voga e não o pensamento esclarecido

actual, que a solução objecto de nosso dissenso tem uma função garantística (aliás, a garantia é uma das características da orientação interpretativa que é considerada substituída por nova orientação sustentada no acórdão) visto a liquidação de impostos ter natureza agressiva ou mesmo fortemente agressiva e para apoio da nossa divergência não é necessário recorrer a Murphy e Nagel com o seu The Myth of Ownership - the taxes and justice ou a Richard Murphy com o seu The Joy of Tax. Nestes termos, deveria ser decidida a incompetência material deste tribunal arbitral para apreciar o presente caso, julgando procedente a invocada excepção, não devendo, pois, ser conhecido o mérito do pedido. E não se diga ser pacífica a opinião contrária ou, utilizando o sentido usual, não se diga estar-se perante vox clamantis in deserto. (cfr. acórdãos nos Processos nºs 51/2012-T,

236/20113-T e 603/2014-T).

Quanto às orientações da interpretação seguirei, na parte aplicável, as minhas declarações de voto nos processos nºs 351/2016-T e 353/2016-T. É certo ter o intérprete instrumentos ao seu dispor que, não ultrapassando as fronteiras da sua correcta actuação, lhe permitem mais do que ser a já recordada “boca que pronuncia a palavra da lei” . No entanto, não lhe é, porém, disponibilizado o imperium legibus solutum. Deixar a interpretação ser invadida, ainda que como mero perigo, pelo subjectivismo do intérprete é algo que constitui atitude assaz perigosa e inaceitável. O legislador apreciará e resolverá face às circunstâncias, cabendo ao intérprete a devida interpretação, sendo imperioso evitar-se que se converta no judge-made law ou acolher-se a interpretação que se poderia chamar normativista. ou o mero pragmatismo, embora a margem de apreciação seja de maior dimensão face a noções-quadro ou standards, não rígidos, que fornecem indicações gerais, o que não ocorre no caso sub judice. Deve a regra ser obedecida, guardada e não ser o intérprete a regra (sobre a regra e nós e como foi lembrado: Notre Règle n’est pas un refuge. Ce n’est pas la Règle qui nous garde (…), c’est nous qui gardons la Règle - Bernanos, Diálogo das Carmelitas, 2º quadro e 1ª cena). E também não se diga que se está a impossibilitar enriquecer a lei através da interpretação, extraindo todas as suas virtualidades, porque, pelo contrário, assim desconsiderar-se-iam dificuldades na interpretação que constituem limite inultrapassável. Face à imperfeição legística e à dificuldade de determinar o sentido da lei, o que ocorre não bastas vezes, aliado à vertiginosa vida actual criando até realidades imprevisíveis e não só, até de difícil conformação, o que pode conduzir ou conduz a intensificar imperfeições, como a imprecisão ou a injustiça das soluções, a tudo isto se contrapõe a necessidade de segurança, de certeza legal que implica a protecção da confiança, protecção que exige saber-se, não ex post, os respectivos direitos e deveres, não esquecendo a satisfação da igualdade em todas as suas vertentes: na, face a e pela lei. Com esta posição não se defende a fossilização da lei nem a sua cristalização, mas a completa e perfeita obediência aos cânones da hermenêutica, evitando-se decisões que consagrem regras para além do estabelecido.

E tudo o que se escreveu, em que não foi invocada qualquer inconstitucionalidade, não é prejudicado pelo acórdão nº244|2018, de 11 de Maio, do Tribunal Constitucional em que se escreve: “Não cabe na jurisdição do Tribunal Constitucional dirimir o confronto entre duas interpretações possíveis dos preceitos que regulam a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD. Efetivamente, o Tribunal Constitucional está impedido de dirimir conflitos interpretativos relativos ao direito infraconstitucional. Neste âmbito, não cabe ao Tribunal Constitucional emitir juízos sobre a correção do processo interpretativo dos preceitos legais ou regulamentares aplicáveis a que o tribunal a quo recorreu, mas apenas da constitucionalidade da norma resultante desse processo”

2. Também votei vencido por entender, mesmo que a excepção anterior não fosse procedente, o que não se concede, ser o tribunal incompetente quanto à matéria de reembolso. Considerando inegável proceder a este, quando tal resulte da decisão de mérito, é matéria, porém, já estabelecida em disposição legal disciplinadora dos “efeitos da decisão arbitral de que não caiba recurso ou impugnação,” com vinculação da administração tributária ( artigo 24º nº 1 do RJAT, nos termos também a contrario do artigo 2º nº 1 do citado RJAT e artigo 2º da Portaria nº 112-A, de 22 de Março, nos termos do artigo 4º nº1 do RJAT). Assim, procedendo à devida interpretação do dispositivo legal, o acórdão do tribunal arbitral nº. 244/2013.

3. Acrescenta-se que, se o Tribunal fosse competente, o que mais uma vez não se concede, a decisão proferida sobre a matéria substancial relativa aos 89% do pedido não mereceria também a nossa concordância, com todas as consequências legais,visto a prova produzida pela Requerente não ter sido totalmente concludente, porque não foi exaustiva, como deveria ter sido, devendo ter ocorrido com observância da discriminação contabilística [ ( artigo 17º nº. 3 alínea b) do CIRC]. Também não foi analisada a questão assaz importante de o artigo 32º nº. 2 do EBF, então em vigor, se limitar ou não à afectação

directa do passivo e de a interpretação limitativa possibilitar actuações disruptivas face à letra e ao espírito do normativo legal.

4.Atento que o Tribunal Arbitral concluiu, por maioria, pela respectiva competência e visto o carácter imperante da obediência ao princípio da tutela jurisdicional efectiva, na sua dimensão da não denegação de justiça (artigo 20º da Constituição da República Portuguesa), considero apropriada e merecedora, pois, da minha concordância, segundo o que tenho subscrito (Processos nºs 663/2015-T e 333|2017-T). a decisão de mérito relativa aos 11% do pedido, bem como concordo com a decisão, consequência da anterior, referente ao pedido dos respectivos juros indemnizatórios e ainda com a decisão sobre a contagem dos juros atinentes aos 89%.

 

 

(Manuel Pires)

 



[1] A Requerente, hoje denominada de C... SGPS, foi constituída em 18.08.1994, então sob a designação social de D..., S.A., por imposição do Decreto‑Lei n.º 131/94, de 19.05, na sequência de um processo de cisão da (então assim denominada) E..., S.A. (E...). Em 2006 deu-se a reestruturação do sector energético de acordo com as linhas orientadoras estabelecidas na Resolução do Conselho de Ministros (RCM) n.º 169/2005, de 24.09 (Doc. n.º 18 em anexo), tendo sido então que se iniciou a constituição do Grupo B... propriamente dito.

 

[2] Com voto de vencido do Professor Doutor Manuel Pires.

[3] Que, juntamente com as declarações individuais das outras sociedades do grupo fiscal, está na base da declaração fiscal de grupo. Cfr. o campo 225 do quadro 07 da referida declaração modelo 22 individual, inicial e de substituição que, no que toca ao objeto do pedido, em nada altera a primeira. Cfr Doc. n.º 8 e Doc. n.º 10, ambos juntos aos autos.

[4] Que anteriormente à renumeração operada pelo Decreto-Lei n.º 108/2008, de 26.06.2008, era o art. 31.º do EBF.

[5] A qual prevê, no essencial, uma afetação pro-rata dos passivos remunerados aos ativos refletidos no balanço de uma Sociedade Gestora de Participações Sociais (SGPS). Sobre o tema, cfr. TORMENTA, Júlio (2011), As Sociedades Gestoras de Participações Sociais como Instrumento de Planeamento Fiscal e os seus Limites, Coimbra Editora, p. 145 e ss.

[6] Recorde-se que a Requerente tinha, nessa altura, uma diferente denominação e não era ainda uma SGPS.

[7] O acervo patrimonial transferido então (1994) por cisão da E... para a C... SGPS correspondia aos ativos respeitantes à Rede de Transporte Nacional de Energia Elétrica, de que falava o Decreto-Lei n.º 99/91, de 02.03 (cfr. o Doc. n.º 17, o art. 6.º do Decreto-Lei n.º 131/94 - Doc. n.º 13 - e, ainda, o objeto social, atual e anterior, da agora denominada C..., constante da certidão permanente - Doc. n.º 14).

[8] Que em 1994 a C... havia, por sua vez, recebido, por cisão, da E..., conforme supra referido.

[9] Foi no âmbito deste processo de constituição de empresas subsidiárias, após ter ficado esvaziada de todos os seus ativos operacionais (entre os quais os ativos da Rede de Transporte Nacional de Energia Elétrica), que a Requerente passou a ser uma SGPS (em conformidade com o ponto 5 da RCM 2006 – cfr. Doc. n.º 17).

[10] Por isso, afirma a Requerente, tendo por referente a posição da AT num outro processo, de nada valeria que ela não tivesse, na situação concreta, aplicado a Circular, pois, em tal caso, a sua liquidação seria sempre  corrigida pela AT, nos termos  das orientações genéricas delas constantes.

[11] A estes acórdãos acresce um outro mais recente (certamente, por isso, não invocado pela Requerente), relativo ao exercício de 2010, o Acórdão arbitral de 10.04.2018, proferido no processo n.º 333/2017-T, com voto de vencido do Professor Doutor Manuel Pires.  

[12] Com voto de vencido do Professor Doutor Manuel Pires.

[13] Nas suas (contra)alegações, a AT nada de novo acrescentou, limitando-se a remeter na íntegra para o teor da sua Resposta.

[14] Acórdão arbitral de 15.01.2015 (proc. n.º 587/2014-T), acórdão arbitral de 11.12.2015 (proc. n.º 30/2015-T) e acórdão do Tribunal Central Administrativo do SUL de 28.04.2016 (proc. n.º 09289/16).

[15]  Cuja redação é a seguinte: "A administração tributária deve rever as orientações genéricas (...) atendendo, nomeadamente, à jurisprudência dos tribunais superiores".

[16] Conforme o seguinte enunciado: "Nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito".

[17] Cujo teor é o seguinte: "1 - A vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos."

[18] Aqui interessa considerar a redação da al. a) do art. desta Portaria: "Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objeto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com exceção das seguintes: a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos arts. 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;". Por sua vez, dispõe o art.º 131.º do CPPT que respeita à impugnação em caso de autoliquidação: "1 – Em caso de erro na autoliquidação, a impugnação será obrigatoriamente precedida de reclamação graciosa dirigida ao dirigente do órgão periférico regional da administração tributária, no prazo de dois anos após a apresentação da declaração. 3 – Quando estiver exclusivamente em causa matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efetuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária, não há lugar à reclamação necessária prevista no n.º 1. Por sua vez, o nº 2 - revogado pela Lei do OE para 2015 (Lei n.º 82-E/2014, de 31.12) - estabelecia o seguinte: " 2 - Em caso de indeferimento expresso ou tácito da reclamação, o contribuinte poderá impugnar, no prazo de 30 dias, a liquidação que efetuou, contados, respetivamente, a partir da notificação do indeferimento ou da formação da presunção do indeferimento tácito." Enfim, a redação do n.º 3, anterior à alteração introduzida  pela LO para 2015, estipulava:  "3 -Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, quando o seu fundamento for exclusivamente matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efetuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária, o prazo para a impugnação não depende de reclamação prévia, devendo a impugnação ser apresentada no prazo do n.º 1 do artigo 102.º".

 

[19] Veja-se, contudo, a crítica de Casalta Nabais ("Reflexões sobre a introdução da arbitragem tributária", Estudos de Direito Fiscal IV, Coimbra: Almedina, pp. 28-29) a esta solução.  

[20] A possibilidade de criação de tribunais arbitrais decorre da CRP (art.º 209.º, n.º 2). Em matéria de arbitragem tributária, a Lei de autorização legislativa (art.º 124.º, n.º 2 da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril, LOE para 2010) estipula que o processo arbitral tributário "deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial" e esclarece que a " arbitragem tributária visa reforçar a tutela eficaz e efetiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos contribuintes, devendo ser instituída de modo a constituir um direito potestativo dos contribuintes" e não propriamente  o reforço da esfera de liberdade da AT.

[21] A Lei de autorização legislativa previa que os Tribunais Arbitrais deveriam ter competência para apreciar os “pedidos de revisão de atos tributários” e “os atos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de atos de liquidação”. Esta redação foi transposta para o já referido art. 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.

[22] Cujo teor se recorda: " 1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. 2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. 3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados".

[23] Redação em vigor à data dos factos. Este nº 2 foi revogado pela alínea h) do n.º 1 do art. 215.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março.

[24] É a seguinte a redação do n.º 1 do art.º 77.º da LGT: "1 - A decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária".

[25] Redação do n.º 1 do art.º 57.º da Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro.

[26] Redação da  Lei n.º 55-B/2004, de 30 de Dezembro (Anterior n.º 4).

[27] Redação da Lei n.º 55-B/2004, de 30 de Dezembro.

[28] Redação da  Lei n.º 55-B/2004, de 30 de Dezembro (Anterior n.º6.).

[29] Recorde-se que o próprio regime dos artigos 131.º e 132.º do CPPT dispõe que a reclamação graciosa seja meramente facultativa quando o seu fundamento for exclusivamente matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efetuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela AT.

[30] Cfr. o Acórdão 617/2015-T do CAAD, de 22.02.2016, cuja doutrina é retomada no já citado Acórdão 333/2017- T, de 10.04.2018.

[31] Cfr. os arts. 123.º, n.º 2 do CPPT e 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis por força do art.º 29.º, n.º 1, al. a) e e) do RJAT.

[32] Cfr. o atual art.º 596.º do CPC (anterior 511.º, n.º 1), aplicável ex vi art. 29.º, n. 1, al. e) do RJAT.

[33] E a referida Decisão arbitral avança ainda com um outro pertinente argumento: "Não se pode igualmente deixar de considerar que nos termos do artigo 2.º do Código Deontológico da Ordem dos Contabilistas Certificados, “No exercício da profissão, os contabilistas certificados devem respeitar as normas legais e os princípios contabilísticos em vigor, adaptando a sua aplicação à situação concreta das entidades a quem prestam serviços, pugnando pela verdade contabilística e fiscal, evitando qualquer situação que ponha em causa a independência e a dignidade do exercício da profissão”. Ora, a Requerida não apresentou qualquer indício de que a TOC atuou em desrespeito pelo Código Deontológico que lhe é aplicável, demonstrando indícios de falsidade das declarações por esta feita no exercício da sua profissão."

[34] Cfr. a Informação n.º 15-AIR2/2016, em especial os seus nºs 19, a 25, 29, 30 e a respetiva conclusão. Segundo a AT (n.º 28), "a referida Circular limita-se a estabelecer a metodologia a observar no cálculo dos encargos financeiros imputáveis às partes de capital para, por essa via, operacionalizar a aplicação do estatuído no n.º 2 do art.º 32.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais". Ou, igualmente nas palavras da Requerida, "aos encargos suportados com financiamentos obtidos para a sua aquisição sempre estará vedada a dedutibilidade fiscal, devendo proceder-se ao seu acréscimo para efeitos de apuramento do lucro tributável" (cfr., respetivamente, os artigos 133.º e 184.º da Resposta da Requerida). Ou ainda: "se o método sugerido pela Circular não se adequa à concreta situação de um contribuinte. cabe a este naturalmente adotar outro método que não desvirtue o propósito da norma do n.º 2 do art.º 32.º do EBF" (ver n.º 188.º da Resposta da AT). De facto,  neste processo, em lado algum a Requerida afirma a obrigatoriedade de a Requerente seguir a metodologia da Circular relativa ao método para alocação dos encargos financeiros, o qual opera em dois momentos: no primeiro, os passivos remunerados são afetos aos empréstimos realizados e, no segundo, os passivos remanescentes são objeto de repartição proporcional em função do peso das partes de capital no total dos ativos. Note-se ainda que a Circular não define o que se entende por "encargos financeiros" nem por "aquisição", embora a sua aplicação pressuponha a existência de "encargos financeiros" suportados na "aquisição" das partes sociais. Ou seja: a aplicação do referido método pressupõe a existência de passivos remunerados e o montante global dos passivos a alocar não é afetado com a aplicação da Circular.

[35] A Requerente sintetiza a situação da D... decorrente dos documentos acima referidos do seguinte modo (artigos 24.º e 25.ºda petição inicial): "não existe nem poderia existir nas circunstâncias do caso, qualquer financiamento associado à "aquisição" da participação da requerente na D...: num primeiro momento (1994) os ativos da "Rede de Transporte Nacional de Energia Elétrica" afluíram à requerente via cisão da E...(sem mobilização, portanto, e por definição, de qualquer financiamento, e foram estes ativos que por sua vez foram  num segundo momento (início de 2007) usados para subscrever, em aumento de capital, a esmagadora maioria do capital social da participada D..." (Docs. n.º 21 e  22).

[36] A prova desses factos incumbiria à Requerente segundo a regra geral relativa ao ónus da prova, como decorre do art.º 74.º, n.º 1 da LGT, cuja redação, na sua globalidade, é a seguinte (Ónus da prova): "1 - O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque. 2 - Quando os elementos de prova dos factos estiverem em poder da administração tributária, o ónus previsto no número anterior considera-se satisfeito caso o interessado tenha procedido à sua correta identificação junto da administração tributária. 3 - Em caso de determinação da matéria tributável por métodos indiretos, compete à administração tributária o ónus da prova da verificação dos pressupostos da sua aplicação, cabendo ao sujeito passivo o ónus da prova do excesso na respetiva quantificação. Veja-se no sentido de, neste tipo de casos, a prova recair sobre o contribuinte o Acórdão do STA de 27.06.2012, proferido no processo 0982/11 (disponível em www.dgsi.pt). Aliás, o contribuinte, "por ser quem contrai os gastos com encargos financeiros e quem lhes dá destino, é quem poderá demonstrar, melhor que ninguém, se, e quais de tais gastos tiveram por finalidade a aquisição de partes de capital detidas por período não inferior a um ano" (Cfr. Decisão arbitral de 09.12.2016, proferida no processo n.º 199.º/2016-T, p. 19). Não o fazendo, gera-se uma situação de ausência de prova, ou, eventualmente, de insuficiência de prova, pelo menos de fundada dúvida, "que tem de ser resolvida contra a parte onerada com o ónus da prova" (ibidem). Ora a aplicação direta da Circular não substitui a existência da prova de um pressuposto da aplicação da própria Circular.

[37] Note-se ainda que a Requerente não fez, em devido tempo, uso da faculdade de ser esclarecida sobre esta matéria por meio de informação prévia vinculativa (artºs. 85.º da LGT e 55.º do CPPT), de forma a salvaguardar a correção do seu entendimento.

[38] O n.º 1 do referido art.º 32.º estatuía: "1 - Às SGPS, às SCR e aos ICR é aplicável o disposto nos n.ºs 1 e 5 do artigo 46.º do Código do IRC, sem dependência dos requisitos aí exigidos quanto à percentagem ou ao valor da participação".

[39] Corresponde ao artigo 31.º, na redação do EBF que se encontrava em vigor previamente à republicação do mesmo pelo Decreto-Lei n.º 108/2008, de 26 de junho. Os restantes nºs do artigo 32.º dispunham o seguinte: "1- Às SGPS, às SCR e aos ICR é aplicável o disposto nos n.ºs 1 e 5 do artigo 46.º do Código do IRC, sem dependência dos requisitos aí exigidos quanto à percentagem ou ao valor da participação.  3 - O disposto no número anterior não é aplicável relativamente às mais-valias realizadas e aos encargos financeiros suportados quando as partes de capital tenham sido adquiridas a entidades com as quais existam relações especiais, nos termos do n.º 4 do artigo 58.º do Código do IRC, ou a entidades com domicílio, sede ou direção efetiva em território sujeito a um regime fiscal mais favorável, constante de lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças, ou residentes em território português sujeitas a um regime especial de tributação, e desde que tenham sido detidas, pela alienante, por período inferior a três anos e, bem assim, quando a alienante tenha resultado de transformação de sociedade à qual não fosse aplicável o regime previsto naquele número, relativamente às mais-valias das partes de capital objeto de transmissão, desde que, neste último caso, tenham decorrido menos de três anos entre a data da transformação e a data da transmissão." 

[40] Para efeitos de apuramento do lucro tributável, este dispositivo não toma em consideração a diferença positiva entre as mais-valias e as menos-valias realizadas desde que detidas por um ano ou mais.

[41] Cfr. igualmente, MELO, Miguel Luís, A Tributação das Mais-Valias Realizadas na Transmissão Onerosa de Partes de Capital pelas SGPS, Coimbra: Almedina, pp. 49 e ss.

[42] Os arts. 23.º, 42.º e 45.º dizem respeito, respetivamente, a custos ou perdas, ao conceito de mais-valias e de menos-valias e à eliminação da dupla tributação económica de lucros distribuídos.

[43] O regime do art.º 23.º sofreu entretanto importantes alterações com a Lei n.º 2/2014, de 16.01.2014.

[44] Sobre o tema, foram produzidos por FERNANDES, F. Pinto & FERNANDES, N. Pinto (1996), (Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas - I.R.C. - Anotado e Comentado, 5ª ed. Lisboa: Rei dos Livros, pp. 206-7) os seguintes comentários: "Os custos ou perdas da empresa são os elementos negativos da conta de resultados, os quais são dedutíveis do ponto de vista fiscal quando, devidamente comprovados, forem indispensáveis para a realização dos proveitos ou para a manutenção da fonte produtora. Abandonou-se o critério da razoabilidade que constituía um poder discricionário da Administração no regime anterior e que foi fonte de muitas injustiças e arbitrariedades, concorrendo para o clima de desconfiança gerado entre o contribuinte e o Fisco. Hoje serão, assim, considerados todos os custos desde que devidamente documentados". E os mesmos autores esclarecem que, segundo o CIRC, serão encargos de natureza financeira os seguintes : "juros suportados provenientes de capitais mutuados aplicados na exploração, descontos pronto pagamento concedidos, encargos resultantes da transferência de valores, diferenças cambiais, encargos resultantes de operações de crédito e cobrança de dívidas, despesas relacionadas com a emissão de ações, obrigações e outros títulos, juros suportados com a aquisição de equipamento, juros de mora no pagamento de contribuições e impostos".

[45] Os mesmos autores (ibidem) concretizam que serão encargos de natureza financeira os seguintes: "juros suportados provenientes de capitais mutuados aplicados na exploração, descontos pronto pagamento concedidos, encargos resultantes da transferência de valores, diferenças cambiais, encargos resultantes de operações de crédito e cobrança de dívidas, despesas relacionadas com a emissão de ações, obrigações e outros títulos, juros suportados com a aquisição de equipamento, juros de mora no pagamento de contribuições e impostos".

[46] Esta condição parece inspirar-se na noção de "participação não ocasional" constante do n.º 3 do art.º 1.º do Decreto-Lei n.º 495/88, de 30.12.1988, relativo ao regime jurídico das SGPS.

[47] Recorde-se que, como afirma MELO, M. L., op. cit., p. 55, que até 2000, "o regime de tributação das mais-valias nas SGPS seguiu o regime geral, dispensado de obedecer a certos requisitos, nomeadamente, relativos aos elementos temporal e limite mínimo de participação". A partir de 2003, "as menos-valias deixam de concorrer para a formação do lucro tributável, exceto nas situações de detenção de participações sociais inferiores a 1 ano, caso em que se aplica o regime geral previsto no CIRC" (ibidem, p. 65).

[48] Recorde-se que o art.º 104.º, n.º 2 da CRP, ao estatuir que "A tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real", admite exceções desde que devidamente justificadas por outros valores de índole constitucional.

[49] O que significa que a chamada "lógica da simetria", por si só, não explica o regime do art.º 32.º então em vigor, pois ela concentra a atenção na desconsideração da diferença entre mais e menos-valias fiscais para efeitos de tributação e na simétrica desconsideração dos encargos financeiros para efeitos de dedução nos rendimentos, mas omite estarmos perante uma prévia exceção introduzida pelo art.º 32.º do EBF à plena dedutibilidade de encargos financeiros prevista no art.º 23 do CIRC.

[50] Como, segundo os Serviços da AT,  a redação do art.º 32.º, n.º 2 do EBF (na versão em vigor em 2009) era omissa quer na indicação do exercício em que deverão ser feitas as correções fiscais, quer quanto ao  método a utilizar para efeitos de afetação dos encargos financeiros às participações sociais, os serviços tributários procuraram esclarecer estes pontos mediante a emissão da referida Circular n.º 7/2004, cujos nºs 6 e 7 dispõem, respetivamente, o seguinte: "6. Relativamente ao exercício em que deverão ser desconsiderados como custos, para efeitos fiscais, os encargos financeiros, dever-se-á proceder, no exercício a que os mesmos disserem respeito, à correção fiscal dos que tiverem sido suportados com a aquisição de participações que sejam suscetíveis de virem a beneficiar do regime especial estabelecido no n.º 2 do art. 32 (ex-31) do EBF, independentemente de se encontrarem já reunidas todas as condições para a aplicação do regime especial de tributação das mais-valias. Caso se conclua, no momento da alienação das participações, que não se verificam todos os requisitos para aplicação daquele regime, proceder-se-á, nesse exercício, à consideração como custo fiscal dos encargos financeiros que não foram considerados como custo em exercícios anteriores”. 7. Quanto ao método a utilizar para efeitos de afetação dos encargos financeiros suportados à aquisição de participações sociais, dada a extrema dificuldade de utilização, nesta matéria, de um método de afetação direta ou específica e à possibilidade de manipulação que o mesmo permitiria, deverá essa imputação ser efetuada com base numa fórmula que atenda ao seguinte: os passivos remunerados das SGPS e SCR deverão ser imputados, em primeiro lugar, aos empréstimos remunerados por estas concedidos às empresas participadas e aos outros investimentos geradores de juros, afetando-se o remanescente aos restantes ativos, nomeadamente participações sociais, proporcionalmente ao respetivo custo de aquisição”.

[51] Recorde-se que a jurisprudência invocada pela Requerente parte de um pressuposto distinto (e, quanto a nós, questionável), a da aplicação direta da Circular n.º 7/2004 e, consequentemente, a da imposição por parte desta de uma metodologia do tipo pro rata a todos os tipos de aquisições, onerosas ou não.

[52] Como refere a Recorrente na petição inicial (PI), citando, em seu apoio uma decisão arbitral de 2016, relativa ao exercício de 2011, relativamente a 89% das suas participações, "estão em causa aquisições por destaque do património em entradas de ativos, por exemplo, que nenhuma contraprestação implicaram" (art. 66.º PI). 

[53] Invoca para o efeito, a decisão do STA proferida no acórdão de 24.01.2018, no processo n.º 0745/15, onde se pode ler: "Portanto, a recorrente ao seguir as orientações genéricas da AT, a que não estava obrigada, lançou mão de um método indireto, presuntivo, de afetação de encargos financeiros, mas como bem refere a própria AT na decisão do recurso hierárquico, de nada lhe valeria (à recorrente) fazer de modo diferente porque, caso o fizesse, seria sempre corrigida a sua liquidação nos precisos termos daquelas orientações genéricas existentes, cfr. pág. 39 dos autos, parágrafo 2.º"(...)". Note-se que, como se refere na nota 34 da presente decisão, no caso agora em análise é bem distinta a posição da AT. 

[54] As orientações administrativas devem ser conformes à lei. Se houver discrepância entre tais orientações e a lei, competirá ao intérprete, de modo a salvaguardar na medida do possível o ato administrativo ilegal, efetuar uma interpretação conforme da circular à lei.

[55]  Segundo a  Requerente a questão que se põe é de saber se a Circular 7/2004 se limitou a interpretar a lei tributária ou se, indo para além desta, desvirtuou, material e formalmente, o disposto no n.º 2 do 32.º do EBF,  criando uma nova norma de incidência fiscal, em violação dos artigos 103.º, n.º 2 e n.º 3 e 165.º n.º 1 alínea i) da Constituição. Esta questão, que pode ser pertinente quando estão em jogo encargos financeiros reais decorrentes de uma verdadeira aquisição, não se põe, porém, quando tal não sucede. Em caso de dúvida, o contribuinte (diligente) pode (deve) sempre solicitar esclarecimento ou informação vinculativa.

[56] No quadro do regime especial das fusões, cisões, entradas de ativos e permutas de partes sociais, o CIRC considera entrada de ativos "a operação pela qual uma sociedade (sociedade contribuidora) transfere, sem que seja dissolvida, o conjunto ou um ou mais ramos da sua atividade para outra sociedade (sociedade beneficiária), tendo como contrapartida partes do capital social da sociedade beneficiária" (art. 73.º, n.º 3). 

[57] Tal como ocorre na citada Decisão arbitral de 09.12.2016, emitida no processo n.º 199.º/2016-T, "as alegações relativas à ilegalidade/ inconstitucionalidade da Circular 7/2004, integrarão questão que se reputa de irrelevante, na medida em que a referida Circular não vincula, por qualquer forma, a Requerente, e, se, como está provado, seguiu os seus critérios, fê-lo no âmbito do seu livre poder de decisão, e não por qualquer obrigação que, para si, resultasse daquela mesma Circular" (p. 18). Ou, neste processo, como é referido no art.º 112 da petição inicial: "está-se perante entrada de ativos, está-se perante subscrição de capital (aquisição de partes de capital) por entradas de ativos em espécie, sem endividamento associado, sem encargos financeiros associados. Não houve que pagar um preço que fosse necessário financiar".

[58]  Cfr. o Doc. n.º 30 junto à petição inicial. Em nome de um princípio de coerência, não faz sentido que o termo "aquisição" seja usado com significados diversos no citado art.º 32.º do EBF.

[59] Os encargos financeiros de que fala a Requerente só existem ficcionalmente, pois decorrem não de qualquer transação, mas de registos levados a cabo por errada interpretação do art. 32.º do EBF e da voluntária (mas desnecessária) aplicação da Circular n.º 7/2004.

[60] Por definição, os benefícios fiscais representam uma exceção a princípios como o da generalidade da tributação ou da neutralidade fiscal. Como explicita, ainda que numa redação não muito perfeita, o n.º 1 do art.º 2.º do EBF, ao considerar como "benefícios fiscais as medidas de carácter excecional instituídas para tutela de interesses próprios públicos extrafiscais relevantes que sejam superiores aos da própria tributação que impedem". 

[61] Recorde-se que a Administração pública está sujeita ao princípio da legalidade, daí decorrendo, como  princípio básico a recusa à administração em geral e aos agentes administrativos em particular de qualquer poder de controlo da constitucionalidade das leis (Cf. CANOTILHO, J. G., Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra Editora, 2003, p. 443).  Não tem sentido que a AT afaste determinadas interpretações da lei como inconstitucionais, elegendo a sua interpretação (a constante da Circular 7/2004), como a única conforme à CRP.

[62] Valores consagrados, nomeadamente, no art.º 81.º, al. m) da CRP, em articulação com o Direito Europeu da Energia, constituído maioritariamente por diretivas que desde 1996 têm promovido e regulado o mercado energético europeu, um mercado assente na liberalização dos mercados da eletricidade, do gás e dos combustíveis [sobre o tema, cfr. SILVA, Suzana Tavares da (2011), Direito da Energia, Coimbra Editora, pp. 32 e ss.].   

[63] Ver igualmente a Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 750/2017 que recaiu no já citado acórdão do CAAD no processo n.º 663/2015-T.

[64] O referido acórdão arbitral cita ainda em seu apoio, SOUSA, Jorge Lopes, in Código de Procedimento e de Processo Tributário, Vol. I, 6.ª edição, Áreas Editora, Lisboa, p. 537, o qual escreve: “Nas situações em que a prática do ato que define a dívida tributária cabe ao contribuinte (como sucede, nomeadamente, nos referidos casos de autoliquidação (…)) (…) o erro passará a ser imputável à Administração Tributária após o eventual indeferimento da pretensão apresentada pelo contribuinte, isto é, a partir do momento em que, pela primeira vez, a Administração Tributária toma posição sobre a situação do contribuinte, dispondo dos elementos necessários para proferir uma decisão com pressupostos corretos. Será indiferente, para este efeito de imputabilidade do erro, gerador de dívida de juros indemnizatórios, que se trate de caso de impugnação administrativa necessária ou facultativa, pois, em qualquer dos casos, a decisão da impugnação (reclamação graciosa ou recurso hierárquico) é um ato da autoria da Administração Tributária, pelo que o eventual erro ser-lhe-á imputável, a partir do momento em que o praticou". Recorde-se ainda que, de acordo com o acórdão do STA de 03.05.2006, proferido no recurso n.º 350/06, as expressões "reclamação graciosa" e "impugnação judicial" contidas no art. 43.º, n.º 1 da LGT, não devem ser interpretadas literalmente, mas sim extensivamente, por forma a que abranjam outros meios processuais (administrativos e contenciosos) que os contribuintes têm ao seu dispor para impugnação dos atos de liquidação.

[65] Nestes casos, como bem refere o Acórdão arbitral n.º 333/2017-T, são devidos juros indemnizatórios "calculados à taxa legal e pagos nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1, e 35.º, n.º 10 da LGT, do artigo 24.º, n.º 1, do RJAT, do artigo 61.º, n.ºs 3 e 4, do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril (ou outra ou outras que alterem a taxa legal).”

[66] Como afirmou o STA no Acórdão de 06.12.2017, proferido no Processo 0926/17, "a demora de mais de um ano é imputável à administração e deriva da prática de ato ilegal: ou porque tardou a dar razão ao contribuinte ou porque não lha deu e veio a revelar-se que o devia ter feito.