Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 382/2019-T
Data da decisão: 2020-02-18  IRC  
Valor do pedido: € 27.192,45
Tema: IRC – Revisão Oficiosa – Competência do tribunal arbitral.
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DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

1. A...– S.G.P.S., LDA.”,  pessoa coletiva n.º..., com sede na ... (...), ...-..., Porto, apresentou, em 03-06-2019, pedido de constituição do tribunal arbitral, nos termos dos artigos 2º e 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em conjugação com o artigo 102º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada apenas por Requerida, ou ATA).

 

2. A Requerente pretende, com o seu pedido, a declaração de ilegalidade do ato de indeferimento do pedido de revisão oficiosa n.º ...2019... e a consequente correção da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) relativa ao período de tributação de 2010.

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 04-06-2019.

 

3.1. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou o signatário como árbitro do tribunal arbitral, o qual comunicou a aceitação da designação dentro do respectivo prazo.

 

3.2. Em 30-07-2019 as partes foram notificadas da designação do árbitro, não tendo sido arguido qualquer impedimento.

 

3.3. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11º do RJAT, o tribunal arbitral foi constituído em 20-08-2020.

 

3.4. Nestes termos, o Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objeto do processo.

 

4. Com o pedido de pronúncia arbitral pretende a Requerente seja declarada a ilegalidade do indeferimento expresso a pedido de revisão oficiosa que apresentou, para o que argumenta:

- Ser uma sociedade comercial, residente em Portugal, que actualmente se dedica à gestão de participações sociais.

- À data dos factos (i.e., no exercício de 2010), integrava, para efeitos de tributação, o Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (“RETGS”), enquanto sociedade dominante do grupo fiscal A... .

- Aquele grupo é constituído pelas sociedades “B..., S.A.” (NIF...) e “C..., S.A.” (NIF...).

- Tendo apresentado, no prazo legal, declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC veio apresentar, em 04.07.2013, declaração de substituição daquela declaração, do que não resultou a alteração do lucro tributável inicialmente apurado, no valor de € 4.478.554,84.

- Todavia, a autoliquidação de IRC do exercício de 2010 padece de erros no tratamento fiscal conferido às perdas decorrentes da aplicação do modelo do justo valor em B... e da C..., produziram os seus efeitos na autoliquidação de IRC efetuada pela Requerente, enquanto sociedade dominante do grupo fiscal A....

- Com a aprovação do SNC, a B... e a C... alteraram o procedimento sobredito, tendo adotado o método contabilístico de mensuração das participações financeiras detidas no D... ao justo valor através de resultados, em conformidade com a Norma Contabilística e de Relato Financeiro (“NCRF”) 27.

- A conversão do POC para o SNC foi efetuada através de dois ajustamentos de conversão que, em conjunto, deveriam ter um impacto nulo nos capitais próprios.

- Na transição do POC para o SNC, em 2010, as participações detidas pela B... e pela C... no D... sofreram uma variação negativa de cotação face ao seu valor em 31.12.2009, na medida em que tais participações sofreram, durante o exercício de 2010, uma variação negativa de cotação face ao seu valor em 31.12.2009, diminuição essa mensurada pelo método do justo valor, conforme resulta das demonstrações financeiras individuais da B... e da C... relativas ao exercício de 2010.

- A Requerente considerou como fiscalmente dedutíveis somente 50% do ajustamento de justo valor ocorrido na transição do POC para o SNC (na convicção de que tal era o entendimento da AT – convicção essa fundamentada, maxime, na Informação Vinculativa emitida no âmbito do processo n.º 39/2011, com despacho concordante do Diretor-Geral de 24.02.2011).

- Em 13.03.2015, a Requerente, apercebendo-se do equívoco manifesto da declaração entregue, apresentou pedido de revisão oficiosa com vista à revisão e correção da liquidação de IRC relativa ao período de 2010.

- Entende a Requerente que as perdas decorrentes da aplicação do modelo do justo valor em instrumentos financeiros devem ser subsumidas à alínea a) do n.º 9 do artigo 18.º, bem como à alínea i) do artigo 23.º, ambas as disposições do Código do IRC, devendo, por conseguinte, serem deduzidos, na sua totalidade, os ajustamentos decorrentes do justo valor.

- As variações patrimoniais negativas, têm que ser entendidas como variações que não são refletidas nos resultados líquido do exercício, tal como definidas no artigo 24.º do Código do IRC.

- Daí que dúvidas não poderão restar que a situação ora em análise se enquadra na alínea i) do n.º 1 do artigo 23.º do Código do IRC, em conjugação com o n.º 9 do artigo 18.º do mesmo diploma, nunca podendo estar abrangida pelo n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC.

- O conteúdo da norma do artigo 45.º do Código do IRC, em vigor à data dos factos, foi introduzido pela Lei n.º 32-B/2002 (sob o artigo 42.º), resultando de duas prioridades: o combate à fraude e evasão fiscais e o alargamento da base tributável. Todavia, será forçoso concluir que as razões antiabuso que levaram à adoção da referida norma não encontram qualquer justificação no caso em concreto.

- Conclui pela inequívoca aplicação do disposto na alínea i) do n.º 1 do artigo 23.º do Código do IRC, na redação em vigor à data dos factos, em conjugação com o n.º 9 do artigo 18.º do Código do IRC, dado o enquadramento da situação sub judice na especificidade da sua previsão legal.

- Pretende, assim, que, declarando-se a ilegalidade do acto de indeferimento impugnado se corrija a autoliquidação de IRC, reconhecendo-se que o lucro tributável apurado pelo grupo fiscal B... no período de tributação de 2010, ascende, apenas, a € 4.383.730,70.

 

5. A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, por excepção e por impugnação.

                Por excepção, arguindo a incompetência material do Tribunal Arbitral para apreciação dos pedidos de declaração de ilegalidade da decisão da revisão oficiosa.

                Como fundamento invoca o facto de a Requerente não ter recorrido, em tempo, à reclamação graciosa prevista no nº 1 do art. 131º do CPPT, deixando, desse modo, precludir o prazo de 2 anos aí previsto.

                Tal procedimento administrativo não pode substituir a reclamação graciosa prevista no art. 131º do CPPT, ainda para mais quando o recurso ao mesmo é feito para além do prazo de 2 anos previsto no nº 1 de tal artigo.

                Atenta a natureza voluntária e convencional da arbitragem, o intérprete não pode ampliar o objecto fixado pelo legislador no que concerne à vinculação da AT aos tribunais arbitrais.

                Da simples leitura do art. 2º, al. a) da Portaria nº 112/2011, de 22/03 resulta que a via arbitral para a apreciação do litígio só pode ser aberta, em casos de autoliquidação, após a prévia apresentação de reclamação graciosa, o que não se verifica nos presentes autos, onde se pretende a apreciação de um pedido de revisão oficiosa.

                Por impugnação, alega em suma que:

                - Por força do artigo 18º, n.º 9, do CIRC, os ajustamentos que ocorram por aplicação do justo valor concorrem para a formação do lucro tributável, sempre que respeitando a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados, i) tenham um preço formado em mercado regulamentado e, ii) o sujeito passivo não detenha, directa ou indirectamente, uma participação de capital superior a 5% do respectivo capital social.

                - Cabe esclarecer que, quer o regime de imputação temporal associado à adopção do justo valor como critério de mensuração não surgiu, no contexto do IRC, com a criação do art.º 18.º, n.º 9, alínea a), pelo que, de modo algum, pode considerar-se esta norma como uma inovação (o qual tem como antecedente o art.º 57.º, n.º 2, alínea a), da Lei n.º 53.-A/2006, de 29 de Dezembro).

                - A desaplicação do artigo 45.º, n.º 3 do CIRC às situações particulares previstas no artigo 18.º, n.º 9, alínea a) do CIRC redundaria numa situação de injustiça, dado que conferiria um tratamento mais desfavorável às situações em que não se aplicasse tal norma, ainda que se tratasse de participações sociais mensuradas ao justo valor nos termos das respectivas normas contabilísticas.

                - É que a menos-valia verificada nessa alienação efectiva será relevada para efeitos de tributação em apenas metade, ao passo que a perda verificada nas participações sociais mensuradas ao justo valor, mas contempladas na previsão do artigo 18.º, n.º 9, alínea a) do CIRC, de acordo com a tese da Requerente, não sofreria qualquer limitação, sendo totalmente considerada para efeitos de apuramento da matéria colectável.

                - Se o legislador não estabeleceu qualquer diferença entre operações realizadas em mercados regulamentados ou em mercados não regulamentados, com que legitimidade se pode construir uma interpretação do art.º 45.º, n.º 3 que exclua do respectivo âmbito, as menos-valias, bem como outras perdas e variações patrimoniais negativas apuradas em operações com instrumentos de capital próprio, realizadas em mercados regulamentados?

                - O legislador, ao ter dado uma redacção abrangente e genérica ao art.º 45.º, n.º 3, optou por não incluir, na sua previsão, qualquer ponderação de circunstâncias particulares das operações concretas que originam as menos-valias, bem como outras perdas e variações patrimoniais negativas. Não consentindo, pois, que o intérprete se arrogue o direito de subtrair do seu âmbito quaisquer menos-valias ou outras perdas ou variações patrimoniais negativas, em função do modo e local de realização das operações concretas que lhe tenham dado origem, como, de resto, para que dúvidas não subsistam se explicita na secção infra do presente articulado, como de resto, para que dúvidas não subsistam se explicita na secção infra do presente articulado.

                - Resulta da leitura do artigo 45.º n.º 3 do CIRC que o que concorre para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor serão exactamente as perdas ou variações patrimoniais negativas em causa.

                - As participações financeiras aqui em causa enquadram-se, no artigo 18.º, nº 9, alínea a) do CIRC, concorrendo as alterações do seu justo valor para a formação do lucro tributável, como gastos, por força do disposto também do artigo 23.º, nº 1, al. i) do CIRC, à semelhança do que sucede ao nível contabilístico.

                - Os rendimentos/ganhos e gastos/perdas a que se refere o art.º 18.º, n.º 9, alínea a) têm inevitavelmente de ser confrontados com o tratamento que lhes é concedido pelo disposto nos artigos 20.º, 23.º e 45.º, respectivamente.

                - O legislador fez uma clara opção no que se refere às perdas verificadas nas partes de capital previstas na alínea a), do n.º 9, do artigo 18.º do CIRC, a qual consistiu na atribuição de relevância fiscal, independentemente da sua realização efectiva, consubstanciando tal opção, no que a este assunto diz respeito, um claro afastamento do princípio da realização.

                - Seja contabilisticamente, seja fiscalmente, os ajustamentos resultantes da aplicação do justo valor são considerados ganhos por aumentos de justo valor, ou perdas por redução de justo valor, o que se encontra reflectido, respetivamente, na então alínea f) do nº 1 do artigo 20º do CIRC e na então alínea i) [actual alínea j)] do artigo 23º do mesmo diploma].

                - Em virtude da adopção pela primeira vez das normas contabilísticas previstas no SNC, a Requerente apurou uma variação patrimonial negativa associada à mensuração da participação detida no D... de acordo com o justo valor, tendo considerado para efeitos fiscais, em apenas 50% a variação patrimonial negativa decorrente da transição para o novo referencial contabilístico em matéria de reconhecimento do justo valor (de forma diferida por cinco períodos de tributação). No que concerne às “perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital”, a sua dedução para efeitos fiscais encontra-se limitada, nos termos preceituados no n.º 3 do artigo 45.º do CIRC, sendo apenas dedutível ao lucro tributável em metade do seu valor total.

                - No que se refere à revogação do art. 45º pela reforma do CIRC, através da Lei nº 2/2014, importa destacar que a mencionada Lei nº 2/2014 não se limitou a revogar o artigo 45º, nº 3 do CIRC, por o mesmo se ter tornado inútil em virtude de tal artigo ser aplicável “apenas no operar do sistema de realização”.

                - Não obstante o facto de a referida norma ter sido introduzida no contexto do POC e não do SNC - no âmbito do qual os ganhos ou perdas que decorressem da variação da cotação das partes de capital não tinham qualquer relevância, ocorrendo a tributação aquando da sua transmissão - o legislador deixou permanecer a referida norma, mesmo quando se operou uma alteração profunda ao CIRC por força da aplicação do SNC.

Conclui a requerida pela legalidade do acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa contestado pela Requerente que deverá, assim, ser mantido.

 

6. A Requerente respondeu à excepção arguida pela Requerida pugnando pela sua improcedência.

                Com esse objectivo, sustenta que a apresentação tempestiva de um pedido de revisão oficiosa, posterior à autoliquidação – como no caso -, se revela claramente susceptível de, per si, permitir o recurso à via arbitral.

                O que fundamenta com o facto de, a par da reclamação graciosa, o pedido de revisão oficiosa cumprir de forma plena esse objectivo de dar conhecimento do erro na autoliquidação à AT, uma vez que consubstancia um meio de recurso puramente administrativo.

 

7. Por despacho de 04-10-2019, foi dispensada a reunião do artigo 18º do RJAT, bem como, com a anuência das partes, a apresentação de alegações.

 

II – SANEAMENTO

 

7.1. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (artigos 4º e 10º, n.º 2, do RJAT e artigo 1º da Portaria n.º 112-

7.2. O processo não enferma de nulidades.

7.3. A Requerida suscitou a excepção de incompetência material do Tribunal Arbitral para apreciação dos pedidos de declaração de ilegalidade da decisão da revisão oficiosa.

 

Apreciando tal excepção:

 

Antes de mais há a referir que é hoje jurisprudência consolidada que, podendo a AT, por sua iniciativa, proceder à revisão oficiosa do acto tributário, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços (art. 78.º, n.º1, da Lei Geral Tributária), também o contribuinte pode, naquele prazo da revisão oficiosa, pedir esta mesma revisão com aquele fundamento.

A competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é, em primeira linha, balizada pelas matérias indicadas no art. 2.º, n.º 1, do RJAT. Numa segunda linha, a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é também limitada pelos termos em que AT foi vinculada àquela jurisdição pela Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, já que o art. 4.º do RJAT estabelece que “a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos”.

Donde se conclui que “em face desta segunda limitação da competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, a resolução da questão da competência depende essencialmente dos termos e da natureza desta vinculação, pois, mesmo que se esteja perante uma situação enquadrável naquele art. 2.º do RJAT, se ela não estiver abrangida pela vinculação, estará afastada a possibilidade de o litígio ser jurisdicionalmente decidido por este Tribunal Arbitral Ou seja, «o âmbito (…) dos processos arbitrais restringe-se às questões da legalidade dos atos dos tipos referidos no artigo 2.º do RJAT que são abrangidos pela vinculação que foi feita na Portaria n.º 112-A/2011», cfr. Ac. TCAS de 28/4/2016 (proc. 09286/16)” (Acórdão n.º 473/2017-T, de 8-4-2018).

Ora, “a «fórmula declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta», utilizada na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT não restringe, numa mera interpretação declarativa, o âmbito da jurisdição arbitral aos casos em que é impugnado directamente um acto de um daqueles tipos. Na verdade, a ilegalidade de actos de liquidação pode ser declarada jurisdicionalmente como corolário da ilegalidade de um acto de segundo grau, que confirme um acto de liquidação, incorporando a sua ilegalidade” (Ac. 620/2017-T de 30-04-2018).

Mais se diz na mesma decisão arbitral que “a inclusão nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD dos casos em que a declaração de ilegalidade dos actos aí indicados é efectuada através da declaração de ilegalidade de actos de segundo grau, que são o objecto imediato da pretensão impugnatória, resulta com segurança da referência que naquela norma é feita aos actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta, que expressamente se referem como incluídos entre as competências dos tribunais arbitrais (…) a referência que na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT se faz ao n.º 2 do art. 102.º do CPPT, em que se prevê a impugnação de actos de indeferimento de reclamações graciosas, desfaz quaisquer dúvidas de que se abrangem nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD os casos em que a declaração de ilegalidade dos actos referidos na alínea a) daquele artigo 2.º do RJAT tem de ser obtida na sequência da declaração da ilegalidade de actos de segundo grau”.

Por absolutamente claro se transcreve de modo mais extenso o que se refere no Ac. 617/2015-T de 22-02-2016:

- “No art. 2.º do RJAT, em que se define a «Competência dos tribunais arbitrais», não se inclui expressamente a apreciação de pretensões de declaração de ilegalidade de actos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa de actos tributários, pois, na redacção introduzida pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, apenas se indica a competência dos tribunais arbitrais para «a declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta» e «a declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais».

Porém, o facto de a alínea a) do n.º 1 do art. 10.º do RJAT fazer referência aos n.ºs 1 e 2 do art. 102.º do CPPT, em que se indicam os vários tipos de actos que dão origem ao prazo de impugnação judicial, inclusivamente a reclamação graciosa, deixa perceber que serão abrangidos no âmbito da jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD todos os tipos de actos passíveis de serem impugnados através processo de impugnação judicial, abrangidos por aqueles n.ºs 1 e 2, desde que tenham por objecto um acto de um dos tipos indicados naquele art. 2.º do RJAT.

Aliás, esta interpretação no sentido da identidade dos campos de aplicação do processo de impugnação judicial e do processo arbitral é a que está em sintonia com a referida autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, concedida pelo art. 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, em que se revela a intenção de que o processo arbitral tributário constitua «um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária» (n.º 2).

Mas, este mesmo argumento que se extrai da autorização legislativa conduz à conclusão de que estará afastada a possibilidade de utilização do processo arbitral quando, no processo judicial tributário, não for utilizável a impugnação judicial ou a acção para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo.

Na verdade, sendo este o sentido da referida lei de autorização legislativa e inserindo-se na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República legislar sobre o «sistema fiscal», inclusivamente as «garantias dos contribuintes» [arts. 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP] , e sobre a «organização e competência dos tribunais» [art. 165.º, n.º 1, alínea p), da CRP], não pode o referido art. 2.º do RJAT, sob pena de inconstitucionalidade, por falta de cobertura na lei de autorização legislativa que limita o poder do Governo (art. 112.º, n.º 2, da CRP), ser interpretado como atribuindo aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD competência para a apreciação da legalidade de outros tipos de actos, para cuja impugnação não são adequados o processo de impugnação judicial e a acção para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo.

Os actos de indeferimento de um pedido de revisão oficiosa do acto tributário e de indeferimento de recurso hierárquico constituem actos administrativos, à face das definições fornecidas pelos artigos 120.º do Código do Procedimento Administrativo de 1991 e 148.º do Código do Procedimento Administrativo de 2015, [subsidiariamente aplicáveis em matéria tributária, por força do disposto no art. 2.º, alínea c), da LGT, 2.º, alínea d), do CPPT, e 29.º, n.º 1, alínea d), do RJAT], pois constituem decisão de órgãos da Administração que ao abrigo de poderes públicos visaram produzir efeitos jurídicos externos numa situação individual e concreta.

Por outro lado, é também inquestionável que se trata de actos em matéria tributária pois é neles feita aplicação de normas de direito tributário.

Assim, os actos de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e de indeferimento do recurso hierárquico constituem actos administrativos em matéria tributária.

Das alíneas d) e p) do n.º 1 e do n.º 2 do art. 97.º do CPPT infere-se a regra de a impugnação de actos administrativos em matéria tributária ser feita, no processo judicial tributário, através de impugnação judicial ou acção administrativa especial (que sucedeu ao recurso contencioso, nos termos do art. 191.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos) conforme esses actos comportem ou não comportem a apreciação da legalidade de actos administrativos de liquidação.

Na mesma linha, na Decisão Arbitral n.º 346/2017-T, de 06-02-2018, se diz que: “os actos que decidem reclamações graciosas, recursos hierárquicos ou pedidos de revisão de acto tributário constituem actos de segundo e terceiro grau na medida em que comportam a apreciação de legalidade de actos de primeiro grau, ou seja, actos de liquidação e, como tal, entende-se que cabe no escopo da competência dos tribunais arbitrais a apreciação daqueles actos. Apenas nos casos em que o acto de segundo ou terceiro grau apreciou apenas e somente uma questão prévia cuja solução obstou à apreciação da legalidade do acto primário – como, por exemplo, intempestividade, ilegitimidade ou incompetência – estariam fora do âmbito material de competência dos tribunais arbitrais que funcionam junto do CAAD”.

Posto isto, temos por assente que a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março não exclui do âmbito da competência material dos tribunais arbitrais a apreciação de indeferimentos de pedidos de revisão oficiosa.

Todavia, que dizer daquelas pretensões em que se exige o recurso prévio à via administrativa?

É o que sucede, designadamente, no caso de actos de autoliquidação. Dispõe o art. 131º do CPPT:

“1 – Em caso de erro na autoliquidação, a impugnação será obrigatoriamente precedida de reclamação graciosa dirigida ao dirigente do órgão periférico regional da administração tributária, no prazo de dois anos após a apresentação da declaração.

2 – Em caso de indeferimento expresso ou tácito da reclamação, o contribuinte poderá impugnar no prazo de 30 dias a liquidação que efectuou, contados, respectivamente, a partir da notificação do indeferimento ou da formação da presunção do indeferimento tácito.

3 – Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, quando o seu fundamento for exclusivamente matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efectuada de acordo com orientações emitidas pela administração tributária, o prazo para a impugnação não depende de reclamação prévia, devendo a impugnação ser apresentada no prazo do n.º 1 do artigo 102º”.

Não olvidamos existir divergência de entendimentos no âmbito dos tribunais arbitrais a este propósito, havendo decisões que perfilham entendimentos opostos e que são, aliás, identificadas pelas partes nos seus articulados (no caso da Requerente na resposta à excepção).

O RJAT contém uma previsão ampla de arbitragem em matéria tributária que, todavia, não tem operacionalidade imediata, uma vez que fica condicionada à vinculação da AT.

Tal vinculação traduz-se numa reserva da Administração – representada pelos Ministros das Finanças e da Justiça – e que é objecto de uma limitação concreta, por via de excepções expressamente identificadas. Entre elas, as pretensões tendentes à declaração de ilegalidade de actos de liquidação, de retenção na fonte ou de pagamento por conta, que não tenham sido precedidas de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131º a 133º do CPPT.

Entendemos que o texto normativo da alínea a) do art. 2º da Portaria 112-A/2011, de 22 de Março não permite que nele se encontre um mínimo de correspondência verbal no sentido em que nas situações aí previstas se possa prescindir do recurso à reclamação graciosa, nos termos dos art. 131º a 133º do CPPT, para recurso à arbitragem tributária.

A tanto não obsta o facto de sobre ela ter havido prévia apreciação do acto tributário pela AT, designadamente por via do pedido de revisão oficiosa.

Aliás, nada nos legitima a concluir – como algumas das decisões que defendem a equiparação para efeitos de recurso à arbitragem entre a reclamação graciosa e a revisão oficiosa – que o legislador se exprimiu incorrectamente. Caso se tivesse pretendido que assim fosse, bastaria ter terminado a alínea a) do art. 2º em via administrativa. Pelo contrário, pretendeu-se expressamente identificar e delimitar a via administrativa nos termos do art. 131ºa 133º do CPPT (assim se excluindo, para este efeito, o art. 78º do mesmo diploma).

Como se disse no Ac. Arbitral de 09-11-2012 – Proc. 51/2012: “considerando a natureza voluntária da arbitragem … a interpretação da vinculação da AT não poderá, em caso algum, traduzir-se numa restrição da esfera de liberdade da AT, enquanto parte, de estabelecer os limites da sua vinculação. Só não seria assim, se a sua posição implicasse a frustração total do objectivo pretendido com a instituição da arbitragem tributária, o que não é o caso”.

Acrescentando que “o Tribunal não se pronuncia sobre a construção doutrinária em que assenta a equiparação do procedimento de revisão oficiosa, por iniciativa do contribuinte, ao procedimento de reclamação graciosa, para efeitos de impugnação judicial. Simplesmente entende que do princípio da consagração do procedimento arbitral enquanto meio de resolução de litígios fiscais alternativo ao processo de impugnação judicial, não decorre automaticamente a extensão da vinculação da AT a todas as situações em que, doutrinaria e/ou jurisprudencialmente for considerada admissível essa impugnação. Em suma, o âmbito da vinculação da AT circunscreve-se aos termos em que se encontra expressa na Portaria n.º 112-A/2011, que, no caso sub juditio, é o regime previsto no artigo 132º CPPT, que exige reclamação graciosa prévia, ainda que, para efeitos da impugnabilidade do acto, a doutrina prevalente e determinada corrente dos tribunais judiciais tributários possa admitir em alternativa a revisão oficiosa prévia. Com efeito, a equiparação dos tribunais arbitrais tributários àqueles está limitada pela natureza voluntária da adesão da AT à jurisdição arbitral”.

Aderindo ao que refere a mesma decisão: “pode o pedido de revisão ser alternativo à reclamação, pode ser complementar, pode até no procedimento de revisão ter-se apreciado a pretensão do contribuinte, mas considerando a natureza voluntária da arbitragem, a interpretação adoptada não poderá, em caso algum, traduzir-se numa restrição da esfera de liberdade da AT, enquanto parte, de estabelecer os limites da sua vinculação. Só não seria assim se a sua posição implicasse a frustração total do objectivo pretendido com a instituição da arbitragem tributária, o que não é o caso”.

Em suma, o âmbito da vinculação da AT circunscreve-se aos termos em que se encontra expressa na Portaria n.º 112-A/2011, que, no caso em apreço, é o regime previsto no artigo 131º do CPPT, que exige reclamação graciosa prévia, ainda que, para efeitos da impugnabilidade do acto, a doutrina prevalente e determinada corrente dos tribunais judiciais tributários possa admitir em alternativa a revisão oficiosa prévia.

Termos em que procede a invocada excepção, declarando-se o tribunal arbitral material incompetente para apreciar e decidir o pedido.

 

IV. DECISÃO

 

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

 

a)            Julgar procedente a excepção de incompetência material do tribunal arbitral para apreciar e decidir o pedido objecto deste litígio, absolvendo da instância a Autoridade Tributária e Aduaneira.

b)           Considerar prejudicada a apreciação do mérito do pedido.

c)            Condenar a Requerente nas custas do processo.

 

V. VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em 27.192,45 €, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

VI. CUSTAS

 

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 1.530,00 €, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

Lisboa, 18 de Fevereiro de 2020

 

O Árbitro

 

(António Alberto Franco)