Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 171/2013-T
Data da decisão: 2014-06-12  IVA  
Valor do pedido: € 76.451,11
Tema: Taxa a aplicar aos acessórios e peças de cadeiras de rodas e de “scooters” de mobilidade de uso exclusivo por deficientes motores
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Processo arbitral n.º 171/2013-T

Requerente: A.., LDA.

Requerida: Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”)

 

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

 

       Os árbitros, Dra. Alexandra Coelho Martins (árbitro presidente), Dr. Henrique Nogueira Nunes e Dr. Armindo Fernandes Costa (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 18 de Setembro de 2013, acordam no seguinte:

 

 

1.    RELATÓRIO

 

1.1.  A sociedade A…, LDA., com o número de identificação de pessoa colectiva … e sede na …, doravante designada por “Requerente”, requereu a constituição do Tribunal Arbitral ao abrigo do artigo 2.º, n.º 1, alínea a) e do artigo 10.º, ambos do Decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”).

 

1.2.  O pedido de pronúncia arbitral tem por objecto a ilegalidade e consequente anulação dos actos de liquidação[1] de IVA e respectivos juros compensatórios, referentes aos anos 2009, 2010, 2011 e 2012, no valor total de € 88.178,12 (respeitando € 82.032,17 a imposto e € 6.145,95 a juros compensatórios), com base em alegado vício de violação de Lei por erro nos pressupostos na aplicação das verbas 2.6 e 2.9 da Lista I anexa ao Código do IVA. A Requerente peticiona adicionalmente a restituição das quantias já pagas a título dos documentos de cobrança juntos com o pedido de pronúncia arbitral e, bem assim, a fixação pelo Tribunal de uma indemnização correspondente aos juros indemnizatórios contados desde a data em que os pagamentos foram efectuados.

 

1.3.  No dia 6 de Janeiro de 2014, realizou-se a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT.  A Requerente foi convidada a aperfeiçoar a petição arbitral, tendo sido concedido o correspondente prazo de resposta (de 30 dias) à Requerida. Foi ainda agendada a reunião de inquirição das testemunhas arroladas pela Requerente, para o que se definiu o dia 10 de Março de 2014. Desta reunião foi lavrada acta que se encontra junta aos autos.

 

       1.4.  A fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, o seguinte:

 

  1. A AT não considerou abrangidas pelas verbas 2.6 e 2.9 da Lista I anexa ao Código do IVA as transmissões dos seguintes bens destinados unicamente a pessoas com deficiência[2]:

 

  1. Acessórios de Scooters (…), em concreto, porta bagagens, bolsas de assento, mala dianteira, cobertura para armazenamento e suporte para copos;
  2. Acessórios de Cadeiras … (…), em concreto, bolsas laterais e porta bagagens;
  3. Acessórios de Cadeiras de Rodas Manuais (…), em concreto, mesas e respectivos kits de montagem;
  4. Peças, componentes, acessórios e partes de produtos (…) vendidas a revendedores para aplicação em artigos já vendidos, no âmbito da respectiva manutenção e substituição, designadamente baterias, aros das rodas, punhos e pistões, faróis, eixos recuados, protectores de pernas ou de roupa e jantes;

 

(b)   O entendimento restritivo da AT assenta numa errada interpretação das verbas 2.6 e 2.9 da Lista I anexa ao Código do IVA, pois ignora a finalidade da tributação (à taxa) reduzida que é concedida no âmbito do Estado Social de Direito aos portadores de deficiência como instrumento para alcançar e reforçar a igualdade e plena participação destes. Assim, a razão extrafiscal que presidiu à consagração de uma taxa reduzida para os aparelhos e demais produtos indicados nas mencionadas verbas não se modifica quanto aos acessórios e peças sobressalentes utilizáveis em exclusivo em cadeiras de rodas e que fazem parte integrante das mesmas. Estes acessórios e peças, para além de não poderem ter aplicação alternativa ou diferente daquela para a qual foram construídas e concebidas), são essenciais ao funcionamento das cadeiras de rodas e “scooters” e prolongam as suas funções, ou asseguram a sua manutenção e preservação, pelo que devem ser abrangidos pela tributação à taxa reduzida;

 

(c)   Neste sentido acrescenta a Requerente, no que se refere aos acessórios, que os mesmos só fazem sentido serem usados em conjunto, i.e. com a cadeira de rodas, completando a função desta e integrando a própria cadeira sendo parte da “unidade de produto”. Tal função não se resume a transporte, sendo a cadeira de rodas o centro de vida do deficiente, o local onde ele desenvolve as acções e tarefas do dia a dia, como comer e beber (vejam-se, por exemplo, as mesas de suporte, ou os suportes para ter consigo uma garrafa de água ou a bolsa de assento onde pode transportar o seu telemóvel, as chaves de casa ou a carteira);

 

(d)   Relativamente às peças separadas (baterias, motores, entre outros) são vendidas pelas Requerente aos seus revendedores autorizados para aplicação em produtos já vendidos, no âmbito da sua manutenção, reparação, substituição ou actualização e não podem ser usadas noutros produtos que não sejam os da Requerente;

 

(e)   O simples facto de ocorrer facturação segregada (com códigos separados) ou autónoma (em facturas separadas) dos acessórios e das peças por razões organizativas ou temporais não pode afectar o enquadramento e qualificação para efeitos de IVA;

 

(f)   A Directiva IVA (Directiva 2006/112/CE, do Conselho, de 28 de Novembro de 2006, publicada no JO L 347, de 11 de Dezembro de 2006), foi incorrectamente transposta pelo legislador nacional pois a previsão normativa da taxa reduzida é mais extensa do que a que consta do Código do IVA, compreendendo as peças e acessórios, sob a designação de material auxiliar;

 

(g)   A omissão do legislador nacional na transposição da Directiva gerou uma lacuna parcialmente colmatada pelo Despacho conjunto n.º 26026/2006, de 22 de Dezembro, porém, tal não sana o vício da incorrecta transposição e a lista de bens constante desse Despacho conjunto deve tida como meramente indicativa;

 

(h)   Acresce que se a Directiva IVA considerou que as cadeiras de rodas usadas por deficientes podiam ser tributadas a uma taxa mais reduzida, com toda a certeza que as razões que fundamentaram a redução da receita do imposto para o bem principal não podem deixar de ser aplicadas aos seus componentes que, em conjunto, formam um todo único, ao contrário do afirmado e defendido pela AT;

 

(i)    Nas sucessivas inspecções de que foi alvo nunca a Requerente foi questionada pela aplicação da taxa reduzida, pelo que a posição da AT é violadora dos princípios da confiança, da segurança e da certeza jurídica;

 

(j)    A Requerente é a única contribuinte do mesmo ramo de actividade a quem foi aplicado tal entendimento, o que consubstancia uma violação dos princípios da igualdade e da equidade, por tratamento desigual entre iguais;

 

(k)   Os actos de liquidação em causa enfermam de vício de violação de Lei, por desconformidade entre os seus pressupostos e o conteúdo e a previsão das normas nacionais e comunitárias aplicáveis, o que acarreta a sua anulabilidade, devendo a tributação ocorrer à taxa reduzida de IVA e não à taxa normal como pretende a AT;

 

(l)    Dada a invalidade das liquidações de IVA são, de igual modo, inválidos os juros compensatórios inerentes, e indevidos os pagamentos efectuados, devendo ser tais quantias restituídas à Requerente, acrescidas de juros indemnizatórios.

 

1.5.  A Requerida (AT) apresentou resposta, na qual invoca que:

 

  1. Pelo facto de as peças e acessórios de cadeiras de rodas serem vendidos em separado, não fazendo parte da própria cadeira de rodas, a correspondente transmissão devia ter sido sujeita à taxa normal, por falta de enquadramento nas verbas 2.6 e 2.9 da Lista I anexa ao Código do IVA;

 

  1. Em concreto, os acessórios de scooters (…) designados por porta bagagens, bolsas de assento, mala dianteira, cobertura para armazenamento, suporte para copos, não são essenciais ao funcionamento de uma scooter de mobilidade e não estão previstos nas verbas 2.6 e 2.9 da Lista I anexa ao Código do IVA e na lista aprovada por despacho conjunto dos Ministros das Finanças, da Solidariedade e Segurança Social e da Saúde, pelo que a sua venda é sujeita a IVA à taxa normal, ao abrigo da alínea c) do n.º 1 do artigo 18.º do Código deste imposto;

 

  1. De igual modo, os acessórios das Cadeiras … (…), designados por porta bagagens e bolsas laterais, e as mesas e kits de montagem das Cadeiras de Rodas Manuais (…) não estão previstos nas verbas 2.6 e 2.9 da Lista I anexa ao Código do IVA, nem no mencionado despacho conjunto;

 

  1. Relativamente às peças, componentes, acessórios e partes de produtos (…) trata-se de um conjunto diversificado de produtos que quando sejam objecto de transmissão autónoma não estão incluídos nas mencionadas verbas 2.6 e 2.9 da Lista I anexa ao Código do IVA;

 

  1. A aplicação de taxas reduzidas deve ser interpretada restritivamente, de acordo com a jurisprudência comunitária do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”), pois estas configuram uma excepção ao princípio geral de aplicação da taxa normal, conforme Acórdãos de 18 de Janeiro de 2001, Comissão/Espanha, Processo C-83/99 e de 8 de Maio de 2003, Comissão/França, Processo C-384/01;

 

  1. As instituições comunitárias concedem aos Estados-Membros a liberdade necessária à delimitação do âmbito de aplicação das taxas reduzidas, ficando na sua disponibilidade a possibilidade de aplicarem a taxa reduzida a uma categoria total ou limitarem a sua aplicação apenas a uma pequena parte dessas categorias indicadas no Anexo III da Directiva IVA, conforme prevê o seu artigo 98.º;

 

  1. O tratamento conferido pela Nomenclatura Combinada (que os Estados podem usar para delimitar a categoria de bens a que aplicam a taxa reduzida, nos termos do artigo 98.º, n.º 3 da Directiva IVA) às Cadeiras de Rodas e às partes e acessórios destas é distinto, daqui derivando que a verba 2.6 não inclui a transmissão autónoma de partes, peças e acessórios das cadeiras de rodas;

 

  1. De acordo com a Informação Vinculativa exarada no Processo n.º 1059, com despacho do Subdirector Geral dos Impostos, “as scooters de mobilidade, enquanto equipamento especificamente concebido para a utilização por pessoas com deficiência, pelas suas características técnicas de utilização podem ser considerados veículos semelhantes a cadeiras de rodas e como tal enquadradas na verba 2.6. da Lista I anexa ao Código do IVA e, consequentemente, as suas transmissões passíveis da taxa de 6%”.

 

       Em conclusão, a Requerida pugna pela improcedência da acção e pela absolvição do pedido.

 

       1.6.  Em 10 de Março de 2014, teve lugar na sede do CAAD a reunião do Tribunal Arbitral Colectivo, com vista à inquirição das testemunhas indicadas pela Requerente, que veio a prescindir da inquirição da segunda testemunha por si arrolada. O Tribunal aceitou a junção de documentos, foram notificadas as partes para alegações escritas e, atenta a complexidade na tramitação processual, foi prorrogado o prazo para a decisão para 18 de Maio de 2014, ao abrigo do artigo 21.º, n.º 2 do RJAT, tudo em conformidade com a acta da reunião junta aos autos.

 

       1.7.  Em 12 de Março de 2014, a Requerente apresentou um requerimento, admitido pelo Tribunal, (i) de junção de um Quadro-Síntese de informação segregada por anos e por famílias de produtos e (ii) contendo a referência a um conjunto de facturas constantes do Relatório de Inspecção Tributária que, em seu entender, evidenciam qualificação e quantificação contraditória da AT na determinação da taxa de IVA aplicável.

 

       1.8.  A Requerida, em resposta ao requerimento que antecede juntou, em 18 de Março de 2014, a Informação elaborada pela Divisão de Inspecção Tributária – IV da Direcção de Finanças do Porto. Justifica a sua posição sobre a matéria abordada pela Requerente, referindo que a AT se baseou nos mapas apresentados pelo próprio sujeito passivo (Requerente) e na individualização dos produtos por aquele efectuada, reconhecendo apenas um lapso na factura 636964, por não ter sido detectada a “existência de uma devolução destes artigos”. 

 

       1.9.  Requerente e Requerida apresentaram alegações escritas no prazo legal, tendo mantido a argumentação inicial e concluindo como nos respectivos articulados.

 

 

2.    SANEAMENTO

 

       2.1. O Tribunal é materialmente competente, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 30.º, n.º 1 do RJAT.

 

       2.2. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

       2.3. O processo não enferma de nulidades e não foram identificadas questões prévias, para além da suscitada pela Requerida e que foi suprida na sequência do convite ao aperfeiçoamento dirigido à Requerente por ocasião da realização da primeira reunião arbitral.

 

 

3.    QUESTÃO A DECIDIR

 

       Discute-se na presente acção o campo de aplicação da taxa reduzida de IVA, por referência às verbas 2.6 e 2.9 da Lista I anexa ao Código deste imposto, questionando-se especificamente se estas também abrangem a comercialização de acessórios e peças a serem incorporados em “scooters” e cadeiras de rodas destinadas a utilização exclusiva por pessoas portadoras de deficiência, quando os acessórios e peças sejam vendidos e/ou facturados em separado.

 

 

4. MATÉRIA DE FACTO

 

       4.1.  Com relevo para a apreciação e decisão do mérito, dão-se por provados os seguintes factos:

 

       A.  A A…, LDA., aqui Requerente, iniciou a sua actividade de “Agentes Espec. do Comércio por Grosso de Outros Produtos – CAE 46180” em 1 de Dezembro de 2004 e está enquadrada como sujeito passivo de IVA no regime normal, de periodicidade mensal, cumprindo regularmente as suas obrigações declarativas – cf. Relatório de Inspecção Tributária (“RIT”), pp.2 e 3, constante do Doc. n.º 138 junto pela Requerente com o pedido de pronúncia arbitral.

 

       B.  A Requerente pertence ao Grupo Multinacional A… e comercializa material ortopédico no mercado/território português destinado a pessoas com deficiência, nomeadamente:

 

  1. Cadeiras de rodas de vários tipos, accionadas manualmente ou por motor eléctrico;
  2. “Scooters” eléctricas, camas articuladas manuais e eléctricas, elevadores articulados para camas, guinchos destinados à transferência numa área específica de pessoas deficientes, trepadores de escadas, rampas portáteis para cadeiras de rodas, colchões e almofadas anti-escaras, compressores para colchões anti-escaras, bengalas, canadianas e andarilhos;
  3. Cadeiras para banho e duche, cadeiras-sanitários e elevadores de sanitas, entre outros
  4. Venda de peças e acessórios relativos aos produtos acima descritos; e
  5. Serviços de manutenção e reparação relativamente aos bens que comercializa,

cf. RIT, p.4 e catálogos da Requerente constantes do PA (ficheiros catalogo_geral_a…_1 e 2 e a…portugal_211 e 212).

 

       C.  Os produtos que a Requerente comercializa são classificados pelo INFARMED como “dispositivos médicos classe I” e estão obrigados a respeitar um conjunto de normas técnicas europeias, por forma a garantir a sua integridade e assegurar a segurança do utilizador deficiente a quem se destinam. Estão sujeitos, nomeadamente, a certificação CEE obrigatória e a certificação do TUV por produto – cf. Docs. n.ºs 143 e 145 juntos pela Requerente com o pedido de pronúncia arbitral.

 

       D.  Os referidos produtos destinam-se exclusivamente a pessoas com deficiência, seja ela transitória, permanente ou evolutiva/degenerativa – cf. catálogos da Requerente constantes do PA (ficheiros catalogo_geral_a…_1 e 2 e a…portugal_211 e 212) e depoimento da testemunha B….

 

       E.  Cada encomenda de cadeira de rodas é específica de acordo com as características da deficiência do utilizador, que pode evoluir, requerendo nomeadamente a adaptação futura da cadeira e/ou acessórios adicionais, no caso de deficiências degenerativas que se agravam com a progressão da doença – cf. catálogos da Requerente constantes do PA (ficheiros catalogo_geral_a…_1 e 2 e a…portugal_211 e 212) e depoimento da testemunha B….

 

       F.  Os acessórios das “Scooters”, a saber, porta bagagens, mala dianteira, cobertura para armazenamento e suporte para copos (incluídos na do sistema da Requerente) e as bolsas de assento, bolsas laterais e porta bagagens das Cadeiras de Rodas Adventure (estes incluídos na ), só podem ser aplicados e utilizados nos modelos específicos comercializados pela Requerente, não sendo passíveis de aplicação em produtos de outras marcas – cf. catálogos da Requerente constantes do PA (ficheiros catalogo_geral_a…_1 e 2 e a…portugal_211 e 212) e depoimento da testemunha B….

 

       G.  Estes acessórios destinam-se a que o deficiente que se desloca nas “Scooters” e nas Cadeiras de Rodas possa utilizar todas as funcionalidades ao seu alcance (que não é o mesmo em todas as situações), incluindo a possibilidade de ter consigo e transportar os seus haveres pessoais designadamente, uma garrafa de água, um telemóvel, as chaves de casa, a carteira, o computador, os medicamentos, entre outros. As coberturas de armazenamento são essenciais para a protecção e preservação dos equipamentos das condições atmosféricas quando ficam no exterior – cf. catálogos da Requerente constantes do PA e depoimento da testemunha B….

 

       H.  Relativamente às mesas e kits de montagem para aplicação em Cadeiras de Rodas Manuais () estes acessórios só podem ser usados nessas cadeiras de rodas, nas quais são integrados, e destinam-se exclusivamente a deficientes, sendo requisitadas mediante receita médica. Trata-se de uma placa que se fixa nos braços da cadeira de rodas e que se usa quando o utilizador não consegue chegar a uma mesa normal para as suas actividades diárias, permitindo-lhe efectuar com alguma autonomia tarefas como comer ou aceder a um teclado de computador – cf. Doc. n.º 147 junto pela Requerente com o pedido de pronúncia arbitral e depoimento da testemunha B….

 

       I.  Em regra a mesa é fornecida e facturada como parte integrante da cadeira de rodas, mas, por vezes, é também fornecida em factura separada, ainda que encomendada em simultâneo com a cadeira e com referência a esta, por se encontrar, por alguma razão, indisponível no momento da entrega. Pode ainda ocorrer que a mesa (com o kit correspondente) seja encomendada para uma cadeira já fornecida pela Requerente em momento anterior – cf. depoimento da testemunha B….

 

       J.  A utilização quer dos acessórios, quer das mesas só faz sentido em conjunto com as “Scooters” e Cadeiras de Rodas a que respeitam, não sendo passíveis de outro uso, completam as funções do produto base e este não cumpriria as suas especificações se não as contemplasse cf. catálogos da Requerente constantes do PA (ficheiros catalogo_geral_a…_1 e 2 e a…portugal_211 e 212) e depoimento da testemunha B….

 

       K.  As “peças separadas” (…), como as baterias, motores, carregadores de baterias, cabos de electrónica de cadeiras eléctricas, câmaras de ar, rodas, kit’s anti-volteio, aros das rodas, jantes, pneus, rodízios, punhos e pistões, faróis, eixos recuados e de extracção, protectores de pernas ou de roupa, entre outros, podem ser vendidas incorporadas nas Cadeiras de Rodas numa determinada configuração, ou, isoladamente, para reposição, substituição, manutenção ou actualização dessas cadeiras – cf. RIT pp. 27 a 29 e depoimento da testemunha B….

 

       L.  Quando da venda de cadeiras de rodas eléctricas são incluídas duas unidades de baterias sem qualquer facturação autónoma. A duração das baterias é de aproximadamente um ano e meio e, findo este período, é necessário substituí-las, sem o que a cadeira de rodas deixará de andar. O fornecimento das baterias nestas circunstâncias (pós-venda) é objecto de facturação pela Requerente – cf. depoimento da testemunha B….

 

       M.  Não existem baterias no mercado que possam substituir as baterias da Requerente, que são específicas para cada tipo/modelo de cadeira. De igual modo, as baterias da Requerente não são passíveis de outro uso, senão o da sua aplicação no modelo para o qual foram produzidas – cf. depoimento da testemunha B….

 

       N.  À semelhança das baterias, as demais peças (por exemplo, rodas e motores) são fornecidas de forma isolada quando ocorre o desgaste, avaria ou actualização de uma funcionalidade da cadeira de rodas. Estas peças não podem ser usadas noutros produtos que não sejam os comercializados pela própria Requerente e são, nestes casos, objecto de facturação autónoma e com referência à cadeira de rodas vendida – cf. depoimento da testemunha B….

 

       O.  A Requerente tem um sistema de representantes que lidam directamente com os clientes finais e que lhes facturam os produtos, pelo que as facturas da Requerente são sempre emitidas aos referidos representantes autorizados, aos quais é dada formação específica nos produtos da Requerente habilitando-os a realizar aplicações e substituições de peças nas cadeiras comercializadas, dentro das especificações próprias da Requerente – cf. depoimento da testemunha B….

 

       P.  Por determinação do grupo A… ao qual pertence, a Requerente segue a codificação e classificação dos produtos por grupos de famílias determinadas a nível global (mundial), com consequências nas referências/códigos a incluir nas facturas. De acordo com o sistema interno da Requerente, cada peça pode integrar uma família de produtos (por exemplo, uma cadeira de determinado tipo) e ter, em simultâneo, uma codificação própria a usar quando facturada isoladamente – cf. depoimento da testemunha B….

 

       Q.  Por força do sistema de facturação automático que a Requerente utiliza, assente na referida codificação interna, os acessórios podem ser facturados separadamente da factura respeitante ao “esqueleto” da cadeira de rodas ou da “scooter”, embora a encomenda mencione globalmente, quer a base (o dito “esqueleto”), quer os acessórios que são requeridos – cf. depoimento da testemunha B….

 

       R.  Na factura de venda de uma determinada cadeira de rodas ou “scooter” diversos componentes podem aparecer mencionados separadamente, como encosto ou assento ou porta-bagagens ou bolsas (entre outros), os quais são integrados na própria cadeira – cf. depoimento da testemunha B….

 

       S.  Na comercialização dos bens e serviços descritos nas alíneas F a K a Requerente liquida o IVA à taxa reduzida[3]cf. RIT, p.4., também provado por acordo. 

 

       T.  Em 2012, a Requerente foi sujeita um procedimento inspectivo externo, de âmbito parcial em sede de IVA, abrangendo os exercícios de 2009, 2010, 2011 e os períodos de Janeiro a Julho de 2012, em cumprimento da ordens de serviço externas credenciadas com os números OI2011… e OI2012…, emitidas pela Direcção de Finanças do …. O procedimento teve o seu início em 11 de Maio de 2012 e termo em 19 de Novembro de 2012 – cf. RIT, p.1.

 

       U.  Na sequência deste procedimento foram propostas correcções aritméticas na importância de € 312.005,77 para a totalidade dos períodos analisados, em conformidade com o Projecto de Relatório, derivadas da diferença entre a liquidação de IVA à taxa reduzida e a que seria devida, se fosse aplicada a taxa normal – cf. Projecto de Relatório de Inspecção Tributária constante do PA (ficheiro a…portugal_11) e RIT, p.12.

 

       V.  A Requerente exerceu o direito de audição, após o que foi notificada do Relatório de Inspecção Tributária que atendeu parcialmente aos argumentos da Requerente e reduziu as correcções propostas para o montante global de € 82.032,17 (oitenta e dois mil e trinta e dois euros e dezassete cêntimos), decomposto nos seguintes moldes:

 

  1. € 20.546,65 (vinte mil quinhentos e quarenta e seis euros e sessenta e cinco cêntimos) para o ano 2009;
  2. € 21.904,42 (vinte e um mil novecentos e quatro euros e quarenta e dois cêntimos) para o ano 2010;
  3. € 24.682,62 (vinte e quatro mil seiscentos e oitenta e dois euros e sessenta e dois cêntimos) para o ano 2011; e
  4. € 14.898,48 (catorze mil oitocentos e noventa e oito euros e quarenta e oito cêntimos) para os períodos de Janeiro a Julho de 2012

 – cf. PA (ficheiro a…portugal_17) e RIT, pp.1 e 29.

 

X.  Como fundamento do ajustamento ao IVA liquidado nos anos e períodos em referência refere o Relatório de Inspecção:

 

2. Scooters – … – Acessórios

(…)

Em nosso entender, atendendo a que os acessórios “porta bagagens, bolsas de assento, mala dianteira, cobertura para armazenamento, suporte para copos”, não estão previstos nas verbas 2.6 e 2.9 da Lista I anexa ao código do IVA, não sendo indispensáveis ao funcionamento de uma scooter de mobilidade, nem estando previstos na lista aprovada por despacho conjunto dos Ministros das Finanças, da Solidariedade e Segurança Social e da Saúde, a sua venda está sujeita à taxa normal.

(…)

3. Cadeiras … – …

(…)

Contudo, tal como descrito no ponto anterior, exceptuam-se as “bolsas laterais e porta bagagens” vendidas em 2009, que não estão previstas nas verbas 2.6 e 2.9 da Lista I anexa ao código do IVA, a sua venda está sujeita à taxa normal e manter-se-á a nossa correcção.

(…)

4. Cadeiras de rodas manuais – …

(…)

Contudo, constata-se a existência nessas mesmas facturas, do fornecimento de mesas e respectivos kits de montagem, que, constituindo um acessório não incluído nas verbas 2.6 e 2.9 da Lista I anexa ao código do IVA, a sua venda está sujeita à taxa normal (…).

(…)

6. Peças, componentes, acessórios e partes de produtos – …

(…)

>> item 6.5 –  (…) Contudo, considerando que, na transmissão de bens previstos nas verbas 2.6 e 2.9 da Lista I anexo ao Código do IVA, o legislador restringe a aplicação da taxa reduzida, não incluindo nessas verbas a transmissão autónoma das suas partes, peças e acessórios, será mantida a nossa proposta de correcção para as transmissões incluídas neste item 6.5. (…)”

cf. RIT, pp.26 e 27.

 

       Z.  Foram emitidas as correspondentes liquidações adicionais relativas a IVA (€ 82.032,17) e a juros compensatórios (€ 6.145,95), vertidas e notificadas à Requerente nos termos infra descritos:

 

  1. Por via dos Docs. n.ºs 1 a 68 e 139 e 141, com data limite para pagamento voluntário de 30 de Abril de 2013, como tal identificados pela Requerente no pedido de pronúncia arbitral, que, por razões de economia processual, aqui se dispensa de elencar individualmente, considerando que os mesmos constam dos autos;

 

  1. No que se refere aos meses de Novembro e Dezembro de 2011 e de Janeiro a Julho de 2012, no montante de € 18.714,78:

 

  1. Através da Demonstração de Acerto de Contas n.º 2013 …, que resultou num saldo a pagar de € 903,46 (novecentos e três euros e quarenta e seis cêntimos), cujo prazo limite de pagamento se fixou em 18 de Abril de 2013 (Doc. n.º 139 junto pela Requerente com o pedido de pronúncia arbitral); e

 

  1. Através da Demonstração de Acerto de Contas n.º 2013 …, que resultou num saldo a pagar de € 6.086,32 (seis mil e oitenta e seis euros e trinta e dois cêntimos), cujo prazo limite de pagamento se fixou em 18 de Abril de 2013 (Doc. n.º 141 junto pela Requerente com o pedido de pronúncia arbitral);

 

  1.  Sendo o remanescente pago por via da compensação com o excesso de IVA a reportar declarado nos períodos em causa, no montante de € 11.724,34.

 

       AA.  As liquidações adicionais de IVA em apreço respeitam às seguintes Famílias de produtos, nas percentagens correspondentes:

 

(a)   “Scooters” – … – Acessórios 0,4%

(b)  Cadeiras … – …                     0,1%

(c)   Cadeiras de rodas manuais – …       2,8%

(d)  Peças, componentes, acessórios e partes

       de produtos – …                                 96,7%

 

sendo que da última família (d) os itens mais expressivos são as “baterias e caixas” e “rodas, jantes, pneus, rodízios, eixos de extracção rápida” a que corresponde, respectivamente, 41,2% e 23,9% do valor total do IVA liquidado – cf. documento junto pela Requerente, na sequência da reunião de inquirição de testemunhas. 

 

       BB. A Requerente efectuou o pagamento das liquidações de IVA e de juros compensatórios impugnadas nos presentes autos, directamente ou mediante compensação – conforme se encontra evidenciado pelos Docs. n.ºs 69 a 137 e 139 a 142 apresentados pela Requerente com o pedido de pronúncia arbitral.

 

       CC.  Em 17 de Julho de 2013 a Requerente apresentou o requerimento de constituição do Tribunal Arbitral Colectivo – cf. requerimento electrónico no sistema do CAAD.

 

4.2. Factos não provados

 

Não existem factos com relevo para a decisão de mérito que não se tenham provado.

 

 

5.    FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO

 

       Quanto aos factos essenciais a convicção do Tribunal formou-se com base nos elementos documentais juntos e acima discriminados, cuja autenticidade e veracidade não foi questionada por nenhuma das partes no processo, e, bem assim, na prova testemunhal produzida.

 

       Neste âmbito, foi ouvida a Senhora Dra. B…, Directora Financeira da Requerente à data dos factos, que demonstrou razão de ciência directa quando aos procedimentos internos da Requerente e familiaridade relativamente aos produtos comercializados pela Requerente.

 

6.         DO DIREITO

 

       A AT defende uma interpretação das verbas 2.6 e 2.9 da Lista I anexa ao Código do IVA que exclui a aplicação da taxa reduzida aos acessórios e peças de cadeiras de rodas e de “scooters” de mobilidade de uso exclusivo por deficientes motores.

 

       Considera a AT que a redução de taxa apenas tem cabimento se se tratar da transmissão das próprias “scooters” e cadeiras de rodas, por não estar incluída (na verba 2.6) a transmissão autónoma das partes, peças e acessórios, excepto nos casos em que estes estejam expressamente contemplados na lista aprovada por despacho conjunto dos Ministros das Finanças, do Trabalho e da Solidariedade Social e da Saúde, conforme previsto na verba 2.9 da referida Lista I.

 

       Entende também a AT que os acessórios em causa não são indispensáveis ao funcionamento de uma “scooter” de mobilidade ou de uma cadeira de rodas.

 

       Em síntese, na perspectiva da Requerida a taxa reduzida apenas se poderá aplicar às “scooters” de mobilidade e cadeiras de rodas e não aos componentes que as integram quando transaccionados em separado.

 

       Este entendimento é contestado pela Requerente que, por seu turno, sustenta uma leitura das verbas 2.6 e 2.9 com maior amplitude, invocando erro na interpretação da AT.

 

       Está, pois, em causa, a determinação da extensão e sentido das verbas 2.6 e 2.9 da Lista I anexa ao Código do IVA, para o que importa analisar o regime vigente, quer no plano comunitário, quer nacional.

 

6.1. Enquadramento das taxas reduzidas na Directiva IVA

 

       Foi com a Directiva 92/77/CEE, do Conselho, de 19 de Outubro de 1992 (JOCE L 316, de 31 de Outubro de 1992) que se procedeu à harmonização comunitária das taxas de IVA, tendo em vista a entrada em funcionamento do mercado interno, que ocorreu em 1 de Janeiro de 2003. Até essa data, cada Estado-Membro dispunha de plena autonomia para fixar o número de taxas e o seu nível.

 

       Segundo esta Directiva, “a partir de 1 de Janeiro de 1993 os Estados-Membros aplicarão uma taxa normal que, até 31 de Dezembro de 1996, não pode ser inferior a 15%”. Em matéria de taxas reduzidas os Estados-Membros “podem também optar entre uma ou duas taxas reduzidas, aplicáveis apenas às categorias de bens e serviços especificados no anexo H [da Sexta Directiva] e que não podem ser inferiores a 5%”.

 

       Este regime foi introduzido no artigo 12.º da Sexta Directiva (Directiva 77/388/CEE, de 17 de Maio de 1977, JOCE L 145, de 13 de Junho de 1977), de que a actual Directiva IVA constitui uma reformulação, mantendo-se inalterado. 

 

       Dispõe presentemente a Directiva IVA no Capítulo 2 do Título VIII relativo à estrutura e níveis das taxas[4]:

 

“S e c ç ã o 1

T a x a  n o r m a l

 

Artigo 96.º

Os Estados-Membros aplicam uma taxa normal de IVA fixada por cada Estado-Membro numa percentagem do valor tributável que é idêntica para a entrega de bens e para a prestação de serviços.

 

Artigo 97.º

A partir de 1 de Janeiro de 2011 e até 31 de Dezembro de 2015, a taxa normal não pode ser inferior a 15 %.

 

Se c ç ã o 2

T a x a s  r e d u z i d a s

 

Artigo 98.º

1. Os Estados-Membros podem aplicar uma ou duas taxas reduzidas.

2. As taxas reduzidas aplicam-se apenas às entregas de bens e às prestações de serviços das categorias constantes do Anexo III.

As taxas reduzidas não se aplicam aos serviços prestados por via electrónica.

3. Ao aplicarem as taxas reduzidas previstas no n.º 1 às categorias relativas a bens, os Estados-Membros podem utilizar a Nomenclatura Combinada para delimitar com exactidão cada categoria. (realçado nosso)

 

Artigo 99.º

1. As taxas reduzidas são fixadas numa percentagem do valor tributável que não pode ser inferior a 5 %.

2. Cada taxa reduzida é fixada de modo a que o montante do IVA resultante da aplicação dessa taxa permita normalmente deduzir a totalidade do imposto relativamente ao qual é concedido o direito à dedução em conformidade com os artigos 167.º a 171.º e 173.º a 177.º. “

 

       O Anexo III da Directiva IVA contém o elenco das transmissões de bens e prestações de serviços a que se podem aplicar as taxas reduzidas previstas no artigo 98.º, e contempla no seu ponto 4: “Equipamento médico, material auxiliar e outros aparelhos normalmente utilizados para aliviar ou tratar deficiências, para uso pessoal exclusivo dos deficientes, incluindo a respectiva reparação, bem como assentos de automóvel para crianças”.

 

       Esta redacção é similar à do Anexo H da Sexta Directiva (entretanto revogada) que dispunha: “Equipamento médico e outros aparelhos, normalmente utilizados para aliviar ou tratar deficiências, para uso pessoal exclusivo dos deficientes, incluindo a respectiva reparação e assentos de automóvel para crianças”, sendo a principal diferença o alargamento posterior do seu escopo que passou a conter “material auxiliar”.

 

       De salientar também que nos seus considerandos a Directiva IVA refere que “um sistema de IVA atinge o maior grau de simplicidade e de neutralidade se o imposto for cobrado da forma mais geral possível” (considerando 5) e que “deverá, ainda que as taxas e isenções não sejam completamente harmonizadas, conduzir a uma neutralidade concorrencial, no sentido de que, no território de cada Estado-Membro, os bens e os serviços do mesmo tipo estejam sujeitos à mesma carga fiscal, independentemente da extensão do circuito de produção e de distribuição” (considerando 7).

 

6.2. Jurisprudência do TJUE

 

       Sobre a aplicação de taxas reduzidas por parte dos Estados-Membros, o TJUE tem, de forma reiterada, afirmado que se trata de uma “possibilidade reconhecida aos Estados-Membros por derrogação ao princípio segundo o qual é aplicável a taxa normal” e que “as taxas reduzidas de IVA [uma ou duas] podem unicamente ser aplicadas às entregas de bens e às prestações de serviço referidas no anexo H [actual Anexo III]”cf. Acórdão de 3 de Abril de 2008, Zweckverband zur Trinkwasserversorgung, processo n.º C-442/05 (ponto 39), e Acórdão de 18 de Janeiro de 2001, Comissão vs Espanha, processo n.º C-83/99 (ponto 18).

 

       Estamos, assim, face a uma opção ou faculdade dos Estados-Membros, naturalmente limitada ao elenco de operações constante do Anexo III da Directiva IVA, e não a uma vinculação destes na transposição de operações sujeitas à taxa reduzida.

 

       Acresce que os Estados-Membros podem fazer uma aplicação selectiva da taxa reduzida (a produtos ou serviços concretos e específicos), desde que a mesma não crie um risco de distorção de concorrência – cf. Acórdão de 8 de Maio de 2003, Comissão vs França, processo n.º C-384/01 (pontos 25 a 28).

 

       De acordo com o TJUE, a introdução e a manutenção de taxas reduzidas de IVA só são admissíveis se não violarem o princípio da neutralidade fiscal inerente ao sistema comum do IVA, “o qual se opõe a que mercadorias semelhantes, que estão, portanto, em concorrência entre si, sejam tratadas de maneira diferente do ponto de vista do IVA” – cf. Acórdão de 3 de Abril de 2008, Zweckverband zur Trinkwasserversorgung, processo n.º C-442/05 (ponto 42); Acórdão de 28 de Outubro de 2003, Comissão vs Alemanha, processo n.º C-109/02 (ponto 20); Acórdão de 8 de Maio de 2003, Comissão vs França, processo n.º C-384/01 (ponto 25), e Acórdão de 3 de Maio de 2001, Comissão vs França, processo n.º C-481/98 (pontos 21 e 22).

 

       É, por conseguinte, recorrente a afirmação do Tribunal de Justiça no sentido de que os Estados-Membros têm de respeitar o princípio da neutralidade fiscal quando aplicam taxas reduzidas.

 

       Além do mais, por configurar uma excepção ao princípio geral (que é o da aplicação de uma taxa normal), a aplicação de taxas reduzidas deve ser, de acordo com a jurisprudência comunitária, interpretada de forma estrita, conforme salientado nos Acórdãos proferidos nos processos n.ºs C-83/99 (ponto 19) e C-384/01 (ponto 28), acima citados[5].

 

       No entanto, a este respeito, deve esclarecer-se que interpretação estrita não é equivalente a interpretação restrita ou restritiva. A jurisprudência do TJUE utiliza a palavra “estrita” (em inglês, “strictly”, em francês “de manière stricte” e em castelhano “estrictamente”), cujo significado é “precisa”, “rigorosa” (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa, Verbo, I Volume, 2001). Assim, o que este Tribunal Europeu preconiza é uma interpretação literal, também denominada de declarativa, e não, como refere a AT, uma interpretação restritiva.

 

       Na realidade, a correspondência literal ou rigorosa com o texto da norma não implica uma restrição do sentido desta, típica da interpretação restritiva assente no pressuposto de que o texto disse mais do que aquilo que se pretendia dizer, mas sim a eleição de um sentido que o texto directa e claramente comporte, por ser esse [sentido] aquele que corresponde ao pensamento legislativo (cf. João Baptista Machado, “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, Almedina, 2010, 18.ª reimpressão, pp. 185 e 186).

 

       Na interpretação estrita ou declarativa, “o sentido literal, ou um dos sentidos literais, cobre aquilo que, definitivamente, se apura ser o que ela pretende exprimir” (cf. Oliveira Ascensão, O Direito. Introdução e teoria geral, Almedina, 10.ª ed., 1999, p. 418). Na interpretação restritiva (tal como na interpretação extensiva), pelo contrário, corrige-se, em certo sentido, o texto da lei, abandona-se o sentido ou sentidos literais possíveis (cf. idem, 419-421).

 

       Ora, a existir um qualquer princípio especial de interpretação no domínio da aplicação das taxas reduzidas de IVA, tal princípio só pode ser o de integral e rigoroso respeito pelo sentido (ou sentidos) verbal possível das expressões constantes da lei (princípio de interpretação estrita ou declarativa). Pelo contrário, afigura-se inadmissível a consideração de um princípio que tome como regra geral que o legislador foi traído pelas palavras que usou, revelou um mau uso da sua língua e exprimiu mais do que intentava (suposto princípio de interpretação restritiva).

   

       De notar que apenas no Acórdão C-384/01 (ponto 28) é empregue a locução “restritivamente”, embora tal se deva, por certo, a lapso, pois tal referência é realizada no quadro da invocação do princípio desenvolvido pela jurisprudência comunitária “segundo o qual as isenções ou derrogações devem ser interpretadas restritivamente” e ao compulsarmos a jurisprudência do TJUE constatamos que esta se refere de forma consistente a interpretação estrita (literal) e não restritiva.

 

       Por fim, e ainda em matéria de interpretação da Directiva IVA, o TJUE sustenta que esta deve atender “não apenas aos respectivos termos mas também ao seu contexto e aos objectivos prosseguidos pela regulamentação em que está integrada” – cf. Acórdão acima citado, Zweckverband zur Trinkwasserversorgung, processo n.º C-442/05 (ponto 30), num claro apelo aos elementos sistemático e racional ou teleológico.

 

       Neste aresto em concreto (C-442/05), discutia-se a aplicação da taxa reduzida prevista para o abastecimento de água à operação de instalação de um ramal de ligação individual às redes de distribuição de água[6] (ponto 11 do Acórdão).

 

       O TJUE concluiu que, apesar de a instalação do referido ramal de ligação ser distinta da distribuição de água (ponto 12), pelo facto de esse ramal ser indispensável à disponibilização da água ao público (ponto 34), pois sem o mesmo a água não seria distribuível ao consumidor, se devia considerar que a respectiva instalação (do ramal) se encontra igualmente abrangida pelo conceito de abastecimento de água mencionado na categoria 2 do anexo H da Sexta Directiva (ponto 40), reconhecendo o carácter acessório e instrumental daquela prestação no âmbito do fornecimento de água.

 

6.3. A legislação nacional

 

       O Código do IVA prevê no n.º 1 do seu artigo 18.º, sob a epígrafe “Taxas do imposto”, as seguintes taxas de imposto:

 

       “a) Para as importações, transmissões de bens e prestações de serviços constantes da lista I anexa a este diploma, a taxa de 6 %;

       b) Para as importações, transmissões de bens e prestações de serviços constantes da lista II anexa a este diploma, a taxa de 13 %;

       c) Para as restantes importações, transmissões de bens e prestações de serviços, a taxa de 23%[7].”  


       Na situação em análise estão em discussão as seguintes verbas da citada Lista I, através da qual o legislador português materializou (dentro dos limites das categorias enumeradas no Anexo III da Directiva IVA) a faculdade de aplicação de taxas reduzidas deste imposto:

 

       “2.6. Aparelhos ortopédicos, cintas médico-cirúrgicas e meias medicinais, cadeiras de rodas e veículos semelhantes, accionados manualmente ou por motor, para deficientes, aparelhos, artefactos e demais material de prótese ou compensação destinados a substituir, no todo ou em parte, qualquer membro ou órgão do corpo humano ou a tratamento de fracturas e as lentes para correcção de vista, bem como calçado ortopédico, desde que prescrito por receita médica, nos termos a regulamentar pelo Governo no prazo de 30 dias.

       (…)

       2.9.    Utensílios e quaisquer aparelhos ou objectos especificamente concebidos para utilização por pessoas com deficiência, desde que constem de uma lista aprovada por despacho conjunto dos Ministros das Finanças, da Solidariedade e Segurança Social e da Saúde.” (realçados nossos)

 

       A lista a que se refere a verba 2.9 foi aprovada pelo Despacho Conjunto n.º 26026/2006, publicado em 22 de Dezembro de 2006[8] e inclui, com pertinência para a matéria dos autos, os seguintes produtos: 

 

 “9) Assentos e apoios para a cabeça, costas, braços e pés, específicos para cadeiras de rodas;

10)  Auxiliares de elevação para colocar as pessoas com deficiência, ou as pessoas sentadas em cadeiras de rodas, dentro do carro;

       (…)

39)  Plataformas elevatórias e elevadores para cadeiras de rodas (não possuem cobertura e não trabalham dentro de um poço), elevadores para adaptar a escadas (dispositivos com assento ou plataforma fixada a um ou mais varões que seguem o contorno e ângulo da escadaria), trepadores de escadas e rampas portáteis para cadeiras de rodas;

       (…)

48) Sistemas para controlo dos movimentos, direcção de marcha e travagem de cadeiras de rodas;”

 

       Cabe referir que, de acordo com o preâmbulo do Despacho Conjunto n.º 26026/2006, o desenvolvimento técnico e científico, bem como a oportunidade em contemplar algumas das ajudas técnicas que constam do despacho n.º 19210/2001 (2.ª série), de 27 de Julho, e, bem assim, o tempo decorrido desde a aprovação do anterior despacho conjunto (n.º 37/99, de 10 de Setembro de 1998), constituem a razão justificativa da reformulação do elenco de bens susceptível de inclusão no âmbito da verba 2.6 da lista I anexa ao CIVA, “no sentido de o actualizar e de lhe aditar alguns utensílios, aparelhos e objectos para uso específico por pessoas com deficiências ou incapacidades”, tendo em conta o âmbito das novas políticas introduzidas pelo PAIPDI[9].

 

       6.4. Análise da concreta questão sub judice

 

       Importa aferir se o legislador português visou restringir a aplicação da taxa reduzida às cadeiras de rodas e veículos semelhantes (“scooters”), não incluindo na verba 2.6 da lista I anexa ao Código do IVA a transmissão autónoma dos acessórios ou componentes que fazem parte dessas cadeiras.

 

       Da análise do regime comunitário, em particular do artigo 98.º da Directiva IVA, constata-se que a aplicação de taxas reduzidas, dentro do âmbito das categorias constantes do Anexo III da Directiva IVA, se encontra na disponibilidade do legislador nacional que tanto pode optar por transpor essas categorias, total ou parcialmente, ou não as transpor de todo.

 

       Resulta também da leitura da categoria 4 do mencionado Anexo III da Directiva IVA que aquela abrange não só a transmissão de cadeiras de rodas como de qualquer equipamento e material normalmente utilizados para aliviar ou tratar deficiências, para uso pessoal exclusivo dos deficientes, incluindo a respectiva reparação.

 

       Assim, do ponto de vista da Directiva IVA, não se verifica qualquer impedimento à aplicação da taxa reduzida aos acessórios e componentes de cadeiras de rodas e veículos similares[10].

 

       O sentido e alcance da taxa reduzida aplicada neste domínio deve aquilatar-se na perspectiva interna, tendo em conta não só o elemento gramatical, como o respectivo contexto, razão de ser e finalidades prosseguidas pela verba 2.6[11], devendo resultar numa interpretação declarativa (e não restritiva, ao contrário do que sustenta a AT).

 

       Começando pela formulação literal, a verba 2.6 compreende “cadeiras de rodas e veículos semelhantes, accionados manualmente ou por motor”. Neste âmbito, fornece apoio para que se considerem abrangidas pela previsão normativa as transmissões dos acessórios ou componentes que se incorporem ou integrem no âmbito da comercialização das cadeiras de rodas e das scooters, independentemente de serem identificadas, item a item, nas facturas de venda das mesmas, e, bem assim, no âmbito do apoio pós-venda, de reparação ou substituição de peças e componentes, sem as quais as mencionadas cadeiras ficariam desprovidas de funcionalidade.

 

       Desde logo, pelo carácter de indispensabilidade, para o funcionamento dessas cadeiras de rodas, das respectivas componentes e peças, como sejam as baterias, os motores, as rodas, sem as quais as referidas cadeiras não andam e que, cabe relembrar, representam 96,7% dos ajustamentos efectuados ao IVA liquidado da Requerente.

 

       Quanto aos acessórios (cujo valor remanescente corresponde à proporção de 3,3% do total das correcções de IVA), é de igual modo de afirmar a sua indispensabilidade. Com efeito, não sendo essenciais à movimentação das cadeiras de rodas (ao contrário das peças que, sem dúvida, o são), revelam-se, todavia, indispensáveis para que os utilizadores deficientes possam beneficiar de forma cabal de todas as funcionalidades das cadeiras, usando-as como ponto central da sua vida diária, designadamente para comer (mesas e respectivos kits de montagem), beber (suportes para copos/garrafas), transportar os seus bens – telemóvel, carteira, chaves, computador (porta bagagens, bolsas de assento, mala dianteira) e protegê-las do desgaste e deterioração (coberturas para armazenamento).

 

       Acresce salientar que, como ficou acima demonstrado, quer os acessórios, quer as peças (motores, baterias, etc.) das cadeiras de rodas (e das “scooters” de mobilidade) produzidos e comercializados pela Requerente são especificamente concebidos para essa finalidade e insusceptíveis de utilização noutros equipamentos e de utilização autónoma (ou seja, são instrumentais às cadeiras de rodas para os quais são produzidos). Esses acessórios e em especial as peças são incorporados e fazem parte integrante da cadeira de rodas.

 

       Compulsada a jurisprudência do TJUE, constata-se que, sem prejuízo de estar consagrado o princípio da interpretação estrita no domínio de aplicação das taxas reduzidas de IVA, aquele Tribunal com competência para interpretar de modo uniforme o sistema comum do IVA harmonizado pela Directiva 2006/112/CE, considera que operações indispensáveis e instrumentais (acessórias) a fornecimentos abrangidos pela taxa reduzida também deviam, elas próprias, ser abrangidas pela taxa reduzida, nos termos do Acórdão proferido no processo n.º C-442/05 acima mencionado. 

 

       De igual modo, o princípio da neutralidade preconiza esse entendimento, pois, caso contrário, haveria uma diferença de tratamento entre a cadeira de rodas comercializada e facturada num só artigo e aquela em que, face às especificidades das patologias ou por razões que se prendem com o sistema de organização interna da Requerente, os diversos itens que compõem a cadeira são facturados separadamente. Em ambas as situações se trata da venda de uma cadeira de rodas, ainda que possa ter especificações diversas consoante o caso (deficiência).

 

       No que se refere às peças e componentes, como sejam as baterias e os motores, que são em regra comercializados separadamente no contexto da manutenção ou da reparação de uma cadeira de rodas ou “scooter”, não se vislumbra justificação atendível que favorecesse a aplicação de uma taxa reduzida a uma cadeira de rodas nova e uma taxa normal a uma parte dessa cadeira, por exemplo o motor, para integração numa cadeira usada. Ou, ainda, uma tributação à taxa normal da aplicação ulterior (à aquisição da cadeira de rodas) de uma parte que se tenha tornado necessária, em virtude da evolução de uma doença degenerativa.

 

       Acresce que, à face da formulação legal, nada indica que uma restrição desta natureza estivesse incluída no pensamento legislativo, de molde a afastar os acessórios e peças das cadeiras de rodas, quando facturados ou comercializados em separado, quando é sabido que o seu único destino possível é o da integração nas referidas cadeiras de rodas, inexistindo qualquer risco de desvio para outras finalidades que não as que a lei quis tutelar com a verba 2.6.

 

       Note-se que não estão em causa acessórios e peças que se incorporam num processo produtivo, mas sim acessórios e peças que, pelas suas características objectivas, se podem aplicar, sem ser objecto de qualquer transformação posterior, nas cadeiras de rodas fazendo parte das mesmas.

 

       No que se refere à finalidade do regime, a razão extrafiscal que presidiu à consagração da taxa reduzida na verba 2.6, que se consubstancia num benefício social de natureza financeira, está presente, quer na venda e comercialização das cadeiras de rodas sob um único artigo ou como um único produto, quer na sua transacção em componentes separados e peças sobressalentes essenciais ao seu funcionamento, manutenção e continuidade na evolução da deficiência. O que o legislador nacional pretendeu facilitar e proteger foi o acesso das pessoas com deficiência aos aparelhos e equipamentos especiais de que necessitam para se movimentarem. Ora, como se sabe, sem baterias e sem motores as cadeiras de rodas eléctricas não andam …

 

       Por outro lado, a invocação, por parte da AT, do argumento da Nomenclatura Combinada não procede, porquanto esta Nomenclatura foi criada para efeitos estatísticos e de aplicação da pauta aduaneira comum e não tem qualquer relevo em matéria de classificação de bens e serviços para efeitos de IVA em Portugal (com uma única excepção que, de seguida, se assinala).

 

       Se é verdade que de acordo com o artigo 98.º, n.º 3 da Directiva IVA os Estados-Membros podem utilizar a Nomenclatura Combinada para delimitar com exactidão cada categoria sujeita à taxa reduzida, certo é que o legislador português não seguiu esse caminho[12] (nem a tal era obrigado).

 

       Com efeito, a única situação em que o Código do IVA recorre à Nomenclatura Combinada para definir o alcance do regime tributário dos bens, para efeitos de IVA, é a prevista no artigo 14.º, n.º 1, alínea i), para efeitos de determinação do regime de isenção (completa ou taxa zero), segundo o qual são isentas as “transmissões de bens de abastecimento postos a bordo das embarcações de guerra classificadas pelo código 8906 00 10 da Nomenclatura Combinada, quando deixem o país com destino a um porto ou ancoradouro situado no estrangeiro” e que não tem qualquer aplicação no caso concreto em análise.

 

       É, pois, irrelevante, para efeitos de IVA, a classificação que as peças em causa tenham na Nomenclatura Combinada. A Lista I não recorre a essa Nomenclatura que não serve assim de guia interpretativo das normas definidoras dos bens sujeitos à taxa reduzida. 

 

       Salienta-se a este respeito que no projecto de relatório de inspecção a AT propunha a liquidação de IVA na comercialização dos veículos denominados “scooters” com base no citado argumento da Nomenclatura Combinada, em concreto por terem uma classificação diversa da das cadeiras de rodas.

 

       Esta correcção foi abandonada pela própria AT em conformidade com a posição constante da Informação Vinculativa, com Despacho do Subdirector Geral dos Impostos, exarada no Processo n.º 1059, onde foi definido o entendimento de que “as scooters de mobilidade, enquanto equipamento especificamente concebido para a utilização por pessoas com deficiência, pelas suas características técnicas de utilização podem ser considerados veículos semelhantes a cadeiras de rodas e como tal enquadradas na verba 2.6. da Lista I anexa ao Código do IVA e, consequentemente, as suas transmissões passíveis da taxa 6%”.

 

       Dito de outro modo, foi a própria AT que na referida Informação desvalorizou e abandonou (e bem) o critério da Nomenclatura Combinada no que se refere ao segmento das “scooters”. Desta forma, mal se compreende que tenha mantido essa fundamentação para as demais correcções.

 

       Em síntese, sem prejuízo da liberdade de que o legislador português goza na delimitação das transmissões de bens e prestações de serviços às quais são aplicáveis taxas reduzidas de IVA, dentro do catálogo fechado constante do Anexo III da Directiva IVA, afigura-se que a correcta interpretação da verba 2.6 da Lista I anexa ao Código do IVA, abrange as partes das cadeiras de rodas e das scooters de mobilidade que estão na origem dos actos de liquidação de IVA controvertidos.

 

       Porém, mesmo que assim não se entendesse, tais partes sempre estariam compreendidas na hipótese normativa da verba 2.9, pois configuram objectos especificamente concebidos para utilização por pessoas com deficiência.

 

       E não se diga que tais acessórios e partes não constam da lista aprovada pelo despacho conjunto a que acima se fez referência (Despacho Conjunto n.º 26026/2006), pois a mencionada lista não deve limitar a hipótese normativa constante da primeira parte da verba 2.9 que contempla: “Utensílios e quaisquer aparelhos ou objectos especificamente concebidos para utilização por pessoas com deficiência” (realçado nosso).

 

       Com efeito, a remissão ou reenvio da norma (legal) para um elenco taxativo a ser concretizado pela via de um instrumento regulamentar (“desde que constem de uma lista aprovada por despacho conjunto”) suscita problemas de conformidade constitucional porquanto se trata de matéria de incidência fiscal abrangida pelo princípio da legalidade e por reserva de lei (artigos 103.º, n.º 2 e 165.º, n.º 1, alínea i) da Constituição da República Portuguesa - “CRP”).

      

       Esta remissão para a tipificação administrativa (a ser concretizada por Despacho Conjunto) não se circunscreve a questões genéricas de interpretação (caso em que seria, em princípio, admissível[13]), respeita, segundo entendemos, à própria delimitação do objecto que constitui a base de incidência da taxa reduzida de IVA.

 

       Neste âmbito, J.J. Gomes Canotilho salienta que “Quando o acto de remissão tem a mesma hierarquia e emana da mesma entidade, a remissão dinâmica não levanta problemas de maior. Ela já levanta problemas constitucionais quando, por exemplo, uma lei remete para regulamentos ou actos pararegulamentares. Neste caso, a administração pode arrogar-se um poder paraconstitucional e apócrifo, convertendo-se o destinatário da remissão em sujeito da remissão. Perante o perigo desta inversão de competências, com violação do princípio democrático e do princípio do Estado de Direito, há que salientar: (1) uma remissão não pode ser feita em condições mais benévolas do que aquelas que vigoram para as próprias autorizações legislativas (cfr. art. 165.º/2); (2) a remissão não pode permitir a definição das relações entre o Estado e os cidadãos através de regulamentos e, muito menos, através de actos pararegulamentares (comandos administrativos, instruções, circulares, despachos interpretativos) administrativos transformando estes em fontes de normação primária (cfr. art. 165.º/2); (3) a remissão para actos pararegulamentares ou comandos administrativos só pode ter efeitos meramente internos.” – cf.Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, 2003, Almedina, 7.ª Edição, p. 736.

 

       Conclui J.J. Gomes Canotilho que o princípio de reserva de lei como dimensão ineliminável do princípio da legalidade significa reservar para a lei a regulamentação primária e essencial de determinadas matérias (reserva de lei em sentido estrito) que, desta forma, não podem ser objecto de regulamento administrativo (obra cit. p. 840).

 

       Em conclusão entendemos que a tipificação administrativa pelo mencionado Despacho Conjunto, ainda que assente numa norma de remissão ou reenvio, não pode restringir o alcance da hipótese normativa constante da verba 2.9, sob pena de inconstitucionalidade formal e orgânica, pelo que a enunciação dos utensílios, objectos e aparelhos ou é inválida (caso vise restringir o âmbito da verba 2.9 em apreço) ou ser-lhe-á apenas de reconhecer carácter exemplificativo.

 

       À face do exposto, é de reiterar o entendimento de que os acessórios e peças na origem dos actos de liquidação de IVA sempre seriam enquadráveis na verba 2.9 (caso não o fossem na verba 2.6) e tributados à taxa reduzida de IVA, atentas as características específicas desses acessórios e peças supra explicitadas.

 

       Por esta razão, as liquidações de IVA e dos juros compensatórios consequentes são inválidas por vício de violação de lei por erro nos pressupostos. 

 

       Relativamente aos alegados vícios de violação dos princípios da confiança, da segurança e certeza jurídicas e da igualdade, o conhecimento dos mesmos encontra-se prejudicado pela declaração de ilegalidade das liquidações de IVA, por vício substantivo que impede a respectiva reedição ou renovação.

 

       Nestes termos, face à interpretação material preconizada fica prejudicado o conhecimento e a apreciação dos demais vícios imputados aos actos de liquidação.

 

6.5.  Juros indemnizatórios

 

       A Requerente peticiona a restituição das importâncias pagas e o pagamento de juros indemnizatórios contados desde a data em que os pagamentos foram efectuados.

 

Conforme já decidido no Acórdão Arbitral proferido no processo n.º 14/2012-T, de 29 de Junho de 2012, compreendem-se nas competências dos tribunais arbitrais tributários as pronúncias condenatórias que em processo de impugnação judicial são admitidas aos tribunais tributários estaduais, sendo de igual forma admissível o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

 

       Em consequência da ilegalidade substantiva da liquidação de IVA e de juros compensatórios objecto da presente acção arbitral, a Requerente pagou (em dinheiro ou em virtude de compensação) imposto que não era devido, impondo-se não só o reembolso do mesmo, nos termos dos artigos 24.º, n.º 1, alínea b) do RJAT e 100.º da LGT, como o pagamento de juros indemnizatórios por se encontrarem reunidas as respectivas condições constitutivas, de acordo com o preceituado nos artigos 43.º da LGT e 61.º do CPPT, calculados sobre a quantia paga em excesso e contados desde as datas dos pagamentos parcelares efectuados até integral restituição.

 

 

7.  DISPOSITIVO

 

Nestes termos, acorda o colectivo de árbitros em julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade das liquidações de IVA e de juros compensatórios objecto desta acção e em consequência:

 

  1. Anular os actos de liquidação de IVA e de juros compensatórios, no montante global peticionado de € 88.178,12;
  2.  Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a reembolsar a Requerente do montante pago de € 88.178,12, acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal, contados desde as datas em que foram realizados os pagamentos parciais – por via de compensação – até integral reembolso dessas quantias.

 

* * *

 

     Fixa-se o valor do processo em € 88.178,12, de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.

 

     O montante das custas é fixado em € 2.754,00 a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira, de acordo com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 do RJAT e 4.º, n.º 4 do RCPAT.

Notifique.

Lisboa, 12 de Junho de 2014

 

Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5 do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, com versos em branco e revisto pelo Colectivo de Árbitros.

 

A redacção do presente Acórdão arbitral rege-se pela ortografia antiga.

 

Os árbitros,

 

Alexandra Coelho Martins

 

Henrique Nogueira Nunes

 

Armindo Fernandes Costa

 

 



[1] Incluindo os actos subjacentes aos documentos de cobrança juntos com o pedido de pronúncia arbitral.

 

[2] Deficiência que pode revestir diversos graus e ser transitória, permanente, ou evolutiva/degenerativa.

 

[3] De 5% entre 1 de Janeiro de 2009 a 30 de Junho de 2010 e de 6% a partir de 1 de Julho de 2010.

 

[4] A Directiva IVA prevê outras normas específicas relativas a taxas reduzidas que por não terem aplicação à situação concreta não são aqui escrutinadas.

 

[5] De modo semelhante, em matéria de isenções, o TJUE também tem sufragado o princípio da interpretação estrita. Vejam-se a título de exemplo os Acórdãos de 7 de Setembro de 1999, Jennifer Gregg, processo n.º C-216/97 (ponto 12); de 29 de Outubro de 2009, SKF, processo n.º C-29/08 (ponto 46), e de 10 de Março de 2011, Skatteverket, n.º C-540/09 (ponto 20).

[6] Que consiste na instalação de uma canalização que permite a ligação da instalação hidráulica de um imóvel às referidas redes de distribuição e abastecimento de água (ponto 33 do Acórdão C-442/05).

 

[7] Note-se que estas taxas resultam das alterações operadas pela Lei n.º 12-A/2010, de 30 de Junho, que aumentou num ponto percentual as taxas reduzida e intermédia (passaram de 5% e de 12% para 6% e 13%, respectivamente), com efeitos a 1 de Julho de 2010, e pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, que incrementou a taxa normal de 21% para 23%, com efeitos a 1 de Janeiro de 2011.

[8] No Diário da República, 2ª série, sendo datado de 21 de Novembro de 2006. O referido despacho sucedeu ao (e revogou o) Despacho Conjunto n.º 37/99, de 10 de Setembro de 1998.

[9] Acrónimo de Plano de Acção Para a Integração das Pessoas com Deficiência ou Incapacidade, aprovado através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 120/2006, de 21 de Setembro, que pretende levar à prática uma nova geração de políticas promotoras da inclusão social das pessoas com deficiências e da sua plena participação na sociedade.

[10] Não existe, contudo, qualquer obrigação de o legislador nacional transpor a “letra da Directiva”, ao contrário do que afirma a Requerente.

[11] Critérios que afinal não se afastam significativamente dos cânones interpretativos do artigo 9.º do Código Civil, também acolhido pela da lei tributária – cf. artigo 11.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária (“LGT”).

 

[12] Por razões compreensíveis, uma vez que se trata de um imposto autoliquidado, pois a aplicação da Nomenclatura Combinada iria pressupor o respectivo conhecimento por parte dos sujeitos passivos e traduzir-se-ia em acrescida complexidade na aplicação do IVA.

 

[13] Neste sentido veja-se Ana Paula Dourado, “O Princípio da Legalidade Fiscal”, Almedina, 2007, em particular pp. 622 e segs.