Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 218/2013-T
Data da decisão: 2014-02-24  Selo  
Valor do pedido: € 6.176,00
Tema: Verba 28 da TGIS; Inconstitucionalidade
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SENTENÇA

 

1.    RELATÓRIO

 

       A…, residente na …, contribuinte fiscal número … vem, ao abrigo do artigo 2.º, n.º 1, alínea a) e artigo 10º n.º 1, alínea a) e n.º 2 da alínea do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro  (doravante referido por “RJAT”)[1], requerer a constituição de Tribunal Arbitral Singular para pronúncia sobre a ilegalidade e consequente anulação parcial da liquidação de imposto de selo [documento nº …], invocando violação de lei, com reconhecimento de direito a juros indemnizatório, contados à taxa legal desde a data do pagamento do imposto até à data do seu integral reembolso.

 

       A fundamentar o seu pedido alega a Requerente, no essencial, o seguinte:

 

       a) O Requerente é proprietário do imóvel sito no Concelho de …, freguesia de …, identificado na matriz predial urbana com o nº ...

       b)Ao referido imóvel foi fixado um Valor Patrimonial Tributário (VPT) de € 1.235.200,00 (um milhão, duzentos e trinta e cinco mil e duzentos euro), VPT em vigor no ano de 2012.

       c)A Lei nº 55-A/2012, de 29 de Outubro, veio, entre outras alterações a leis tributárias, aditar uma nova verba – nº 28 – à Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS), nos seguintes termos:

“(…)28 - Propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), seja igual ou superior a € 1. 000.000 - sobre o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI:

            28.1 - Por prédio com afectação habitacional - 1 %;

            (….)

d) De acordo com o artº 6º do mesmo diploma, e no que respeitava ao ano de 2012:

  1. O facto tributário verifica-se no dia 31 de Outubro de 2012;

b) (…)

  1. O valor patrimonial tributário a utilizar na liquidação do imposto corresponde ao que resulta das regras previstas no Código do Imposto Municipal sobre Imóveis por referência ao ano de 2011;
  1. A liquidação do imposto pela Autoridade Tributária e Aduaneira deve ser efectuada até ao final do mês de Novembro de 2012;
  1.  O imposto deverá ser pago, numa única prestação, pelos sujeitos passivos até ao dia 20 de Dezembro de 2012;
  1. As taxas aplicáveis são as seguintes:

(…)

  1. Prédios com afectação habitacional avaliados nos termos do Código do IMI: 0,5 %;
  2. Prédios com afectação habitacional ainda não avaliados nos termos do Código do IMI: 0,8 %;
  3. Prédios urbanos quando os sujeitos passivos que não sejam pessoas singulares sejam residentes em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável, constante (…)

e) No caso em apreciação, a liquidação foi efectuada em prazo, à taxa de 0,5% (cf. Documento nº 1), e o imposto pago igualmente em prazo (cf. Comprovativo de pagamento cuja cópia se junta como Documento nº 4).

            Questões de direito objecto do pedido de pronúncio arbitral

  • Na supra referida reclamação graciosa deste acto de liquidação, o ora Requerente requereu que fosse declarada a sua ilegalidade e inconstitucionalidade, com base nos fundamentos que seguidamente se enunciam de forma abreviada.
  • Entendia que a circunstância de estarmos perante um imposto cujo facto tributário se verificou dois dias após o lançamento do imposto, violava manifestamente o princípio da segurança jurídica e da protecção da confiança dos cidadãos – um princípio basilar do Estado de Direito e expressamente consagrado no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
  • Com efeito, conforme questionou na reclamação graciosa, como falar-se em protecção da confiança dos cidadãos, quando o legislador lança impostos inesperados (e elevados) cuja relação jurídico-tributária se constitui dois dias após a publicação da norma/do lançamento do imposto?
  • Entendia também que esta liquidação viola o princípio da irretroactividade da lei fiscal, expressamente acolhido no artigo 103.º, n.º 3, da CRP, porquanto o sujeito passivo não podia contar com um imposto que ainda não tinha sido criado no momento da tomada de decisão da compra do imóvel.
  • O ora Requerente entendeu ainda que a liquidação do imposto violou outros princípios enformadores do Estado de Direito e do nosso sistema fiscal, como sejam os da igualdade, proporcionalidade e capacidade contributiva.
  • A iniquidade e desproporcionalidade evidenciada na liquidação em apreciação, foi bem demonstrada com um exemplo muito simples: de um lado, o Requerente, que possui um imóvel cujo VPT ultrapassa, ainda que por pouco, €1.000.000; de outro, hipotético “contribuinte Alberto” que, por um acaso, possui dez (10) imóveis cujo VPT é de € 990.000.
  • O Requerente, que possui um património no valor de cerca de 1.5 milhões de euros suporta o Imposto do Selo; o hipotético “contribuinte Bernardo”, que possui património no valor de 9 milhões e 900 mil euros, não suporta um cêntimo que seja deste imposto.
  • Acrescentou ainda o Requerente que a norma ao abrigo da qual foi feita a liquidação de imposto, manifesta-se também de aplicação desigual ao não sujeitar a imposto prédios urbanos sem afectação para habitação (por exemplo, os afectos a actividades de comércio ou de serviços) que possuam um VPT significativamente superior.
  • Perante as evidências que sustentavam a fundamentação jurídica apresentada pelo ora Requerente na reclamação graciosa, o mínimo que este esperava é que a Administração Tributária (AT) fundamentasse, também juridicamente, as razões pelas quais não assistia razão ao Requerente, fundamentando assim, com a lei impõe, a decisão da referida reclamação.
  • A expectativa do ora Requerente era fundamentada numa evidência, reconhecida pelo artigo 55º da Lei Geral Tributária (LGT), onde se afirma que “a administração tributária exerce as suas atribuições na prossecução do interesse público, de acordo com os princípios da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da celeridade, no respeito pelas garantias dos contribuintes e demais obrigados tributários”
  • Mas, para espanto do ora Requerente, não foi isso que aconteceu.
  • Os fundamentos do indeferimento da reclamação graciosa são os seguintes:

                        “Relativamente às alegações constantes na petição, poderemos exprimir o seguinte, a tudo o que o homem conhece, (o) homem dá um valor. Toda a actividade humana no decorrer da sua vida, selecciona ao escolher algo, seleccionamos as possibilidades que se nos apresentam mais convenientes, e afastamos as demais, não adequadas ao que queremos. Valoramos, positiva ou negativamente, mais ou menos, criamos escalas de valores, de acordo com interesses económicos, propostas politicas, preceitos religiosos, doutrinas éticas, que se conciliam e simultaneamente se opõe. Manifesto ainda, que embora não nos seja indiferente, pois, sendo estas manifestações naturais ao homem, prevalece sempre o de viver em sociedade, existindo valores básicos que todos devemos comungar, ao conjunto desses valores básicos chamamos a Constituição. Salientamos que não vamos tecer quaisquer considerações em relação às normas constitucionais, seja sobre o angulo sociológica, politico ou mesmo jurídica, no entanto, sumariamente, sempre se dirá, a inconstitucionalidade ou a constitucionalidade são aferidas sempre entre dois termos, a norma ou a ausência dela.”(transcrevemos “ipsi verbis” o singular Despacho da Direcção de Finanças de … que sustenta o indeferimento constante do Documento nº 3)

  • A AT não tece qualquer tipo de consideração, nem jurídica nem de qualquer outra espécie, sobre as questões de direito invocadas pelo ora Requerente, limitando-se a afirmar que “estando a Administração Pública subordinada primariamente à Lei, não pode recusar a aplicação de mornas com fundamento na sua inconstitucionalidade, a Administração Tributária este adstrita ao cumprimento do princípio da legalidade, enunciado no artigo 266.° n.° 2 da Constituição da República Portuguesa (CRP) e concretizado no artigos 55.° da Lei Garai Tributaria (LGT) e no artigo 3.° do Código do Procedimento Administrativo (CPA), dai que a Administração Tributaria só pode agir com fundamento na lei e respeitando as seus limites”, para logo concluir pelo indeferimento da Reclamação.
  • Esta última afirmação da AT, além de parecer indiciar um alheamento “contra legem” da sua actividade em relação aos princípios constitucionais supra enunciados, a começar pelo próprio princípio da legalidade, é contrariada pela generalidade da doutrina (cfr.. por todos, J. L. Saldanha Sanches / André Salgado de Matos “Pagamento especial por conta de IRC: questões de conformidade constitucional” in Fiscalidade nº 15 – Julho 2003 – págs. 5-28) e da jurisprudência (cfr., também por todos, o Acórdão Pleno da Secção de Contencioso Tributário do STA de 6 de Maio de 2009 - rec. n.º 356/08).
  • A generalidade da doutrina e da jurisprudência sustenta que, ao contrário do que foi afirmado no indeferimento da reclamação graciosa, a AT está obrigada a adoptar a interpretação mais conforme com a Constituição.
  • A interpretação conforme a Constituição é uma questão jurídica e não um elencar de considerações “sociológicas” ou “comportamentais” que foram abordadas pela AT no despacho que fundamenta o indeferimento da reclamação (considerações que, ainda por cima, foram mais ou menos “plagiadas” de um site brasileiro que a AT decidiu não mencionar(http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_19/artigos/PauloSerejo_rev19.htm)
  • Conclui-se assim estarmos perante uma dupla ilegalidade: a da liquidação e da fundamentação do indeferimento da reclamação.

 

Violação do princípio da igualdade fiscal

  • O princípio da igualdade fiscal tem por base o princípio geral da igualdade previsto no artigo 13º da CRP, dele resultando o princípio da capacidade contributiva que, por imperativo constitucional, é o pressuposto e o critério da tributação.
  • Conforme refere Casalta Nabais, o princípio da igualdade fiscal tem ínsita sobretudo “a ideia de generalidade ou universalidade, nos termos da qual todos os cidadãos se encontram adstritos ao cumprimento do dever de pagar impostos, e da uniformidade, a exigir que semelhante dever seja aferido por um mesmo critério — o critério da capacidade contributiva. Este implica assim igual imposto para os que dispõem de igual capacidade contributiva (igualdade horizontal) e diferente imposto (em termos qualitativos ou quantitativos) para os que dispõem de diferente capacidade contributiva na proporção desta diferença (igualdade vertical) ” (Casalta Nabais, Direito Fiscal, 5.ª edição, Coimbra, 2009, pág.. 151 -152).
  • Como pressuposto e critério da tributação, o princípio da capacidade contributiva “afasta o legislador fiscal do arbítrio, obrigando-o a que na selecção e articulação dos factos tributários, se atenha a revelações da capacidade contributiva, ou seja, erija em objecto e matéria colectável de cada imposto um determinado pressuposto económico que seja manifestação dessa capacidade e esteja presente nas diversas hipóteses legais do respectivo imposto” (ob. cit., pág. 154).
  • A manifesta violação do princípio da igualdade fiscal, quer da igualdade horizontal quer, sobretudo, da igualdade vertical é bem patente no exemplo que acima se referenciou; vejamos como.
  • Quanto à desigualdade vertical, o Requerente, que possui um património no valor de cerca de 1.5 milhões de euros, suporta o Imposto do Selo; um hipotético “contribuinte Bernardo”, que possui património no valor de 9 milhões e 900 mil euros, não suporta um cêntimo que seja deste imposto.
  • Quanto à desigualdade horizontal, o Requerente, que possui um imóvel cujo VPT ultrapassa, ainda que por pouco, €1.000.000, paga Imposto do Selo; outro, hipotético “contribuinte Alberto” que, por um acaso, possui dez (10) imóveis cujo VPT é de € 990.000, não paga um cêntimo de imposto.
  • Pode dizer-se que o “contribuinte Alberto” (que detém um património imobiliário cujo valor tributário ultrapassa os 9 milhões de euros) demonstra menos capacidade contributiva que o Requerente? É evidente que não!
  • Tal como não se pode afirmar que o hipotético “contribuinte Bernardo” (que possui património no valor de 9 milhões e 900 mil euros) demonstra uma capacidade contributiva assim tão inferior à do Requerente (que detém um imóvel com valor tributário ligeiramente superior a um milhão de euros).
  • São justamente estas soluções arbitrárias que são vedadas ao legislador fiscal pelos comando constitucionais supra referenciados (como bem sustenta Casalta Nabais, ob. e pág. citada)
  • Vejamos agora como é que o nosso Tribunal Constitucional (TC) tem interpretado o princípio da igualdade fiscal.
  • Bem se pode dizer que o TC tem vindo a seguir uma concepção bastante ampla do princípio da igualdade fiscal.
  • Recentemente, o TC tem analisado o princípio da igualdade fiscal sob o prisma da capacidade contributiva, como se pode constatar designadamente no Acórdão do TC n.º 142/04 onde se consigna que “o princípio da capacidade contributiva exprime e concretiza o princípio da igualdade fiscal ou tributária na sua vertente de ‘uniformidade’ – o dever de todos pagarem impostos segundo o mesmo critério – preenchendo a capacidade contributiva o critério unitário da tributação», entendendo-se esse critério como sendo aquele em que «a incidência e a repartição dos impostos – dos ‘impostos fiscais’ mais precisamente – se deverá fazer segundo a capacidade económica ou ‘capacidade de gastar’ (-) de cada um e não segundo o que cada um eventualmente receba em bens ou serviços públicos (critério do benefício)”.
  • O reconhecimento do princípio da capacidade contributiva como critério destinado a aferir da inadmissibilidade constitucional de certa ou certas soluções adoptadas pelo legislador fiscal tem conduzido igualmente à ideia, expressa por exemplo no Acórdão do TC n.º 348/97, de que a tributação conforme com o princípio da capacidade contributiva implicará “a existência e a manutenção de uma efectiva conexão entre a prestação tributária e o pressuposto económico seleccionado para objecto do imposto, exigindo-se, por isso, um mínimo de coerência lógica das diversas hipóteses concretas de imposto previstas na lei com o correspondente objecto do mesmo”.
  • É certo que o Tribunal tem também considerado que o princípio da capacidade contributiva tem de ser compatibilizado com outros princípios com dignidade constitucional, como o princípio do Estado Social, a liberdade de conformação do legislador, e certas exigências de praticabilidade e cognoscibilidade do facto tributário, indispensáveis também para o cumprimento das finalidades do sistema fiscal (cfr. Acórdão do TC n.º 142/04).
  • No entanto, o TC não deixa nunca de afirmar a proibição do arbítrio como um elemento adjuvante na verificação da validade constitucional das soluções normativas de âmbito fiscal.
  • Em suma, o princípio da igualdade tributária pode ser concretizado através de vertentes diversas: (i) na generalidade da lei de imposto, na sua aplicação a todos sem excepção; (ii) na uniformidade da lei fiscal, no tratar de modo igual os contribuintes que se encontrem em situações iguais e de modo diferente aqueles que se encontrem em situações diferentes, na medida da diferença, a aferir pela capacidade contributiva; (iii) por último, mas não menos relevante para o caso em apreço, o princípio da igualdade concretiza-se na proibição do arbítrio, no vedar a introdução de discriminações entre contribuintes que sejam desprovidas de fundamento racional.
  • Já no corrente ano de 2013, o TC veio reforçar, ainda mais, a relevância do princípio da igualdade na verificação da validade constitucional das soluções normativas.
  • Referimo-nos, evidentemente, ao Acórdão n.º 187/2013, que considerou inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, os artigos da Lei do Orçamento do Estado para 2013 respeitantes à suspensão do pagamento do subsídio de férias ou equivalente aos funcionários públicos, pensionistas e trabalhadores sujeitos ao regime dos contratos de docência e investigação e à contribuição sobre os subsídios de doença e de desemprego.
  • Em conclusão, a liquidação de Imposto do Selo ora em apreciação viola manifestamente o princípio da igualdade fiscal previsto no artigo 13º da CRP, porque: (i) é baseada numa norma que trata contribuintes que se encontrem em situações idênticas de forma bem diferente, não sendo a medida da diferença aferida pela sua real capacidade contributiva; (ii) é baseado numa solução legal arbitrária desprovida de qualquer fundamento racional.
  • Ora sendo a liquidação em apreço baseada numa solução legal constitucionalmente inadmissível não pode a mesma deixar de ser anulada, como se peticiona.

 

Violação do princípio da segurança jurídica e da proibição constitucional da retroactividade da lei fiscal

  • Caso o douto tribunal arbitral entenda que a liquidação em apreço não viola o princípio da igualdade fiscal, o que, face a todas as evidências supra apresentadas, apenas por mero dever de patrocínio se admite, sempre se dirá que viola o princípio da segurança jurídica previsto no artigo 2º da CRP como princípio estruturante do Estado de Direito.
  • Como nos recorda o nosso saudoso Mestre Saldanha Sanches, “O princípio da legalidade, os princípios materiais que constitucionalizam os pontos essenciais da lei fiscal e a necessidade de encontrar, na lei, o fundamento directo da decisão administrativa convergem para um único sentido: assegurar a racionalidade dos comportamentos privados. Tal tem como condição a previsibilidade da lei fiscal (…) e a calculabilidade dos encargos tributários.” (J.L. Saldanha Sanches, Manual de Direito Fiscal, 3º Edição, cujo título do § 5 da parte I se intitula, justamente, “A segurança jurídica na relação jurídica tributária como imperativo do Estado de Direito”).
  • As suas palavras não podiam ser mais certeiras no que respeita ao caso concreto, se bem que dificilmente poderia o do saudoso Professor antecipar uma medida legislativa tão imaginativa ou desesperada como aquela ora em apreciação.
  • Com efeito, estamos perante um imposto lançado em 29 de Outubro, cujo facto tributário se verifica dois dias após o lançamento do imposto, e que deve ser pago em cerca de 30 dias.
  • Como é possível realizar um negócio, por vezes tão relevante como a aquisição de uma habitação própria e permanente, com a serenidade e confiança no quadro legislativo e fiscal, segurança que é apanágio do Estado de Direito, quando o legislador lança impostos inesperados (e elevados) cuja relação jurídico-tributária se constitui dois dias após a publicação da norma/do lançamento do imposto?
  • Aliás, no caso vertente a violação do princípio da segurança jurídica é tanto mais evidente na medida em que este imposto viola mesmo um dos princípios dele decorrentes – o princípio da irretroactividade da lei fiscal.
  • Na verdade, e de acordo com a alínea b) do nº 1 do artº 6º do diploma em questão, o sujeito passivo do imposto, em 2012, era o proprietário, o usufrutuário ou o superficiário do imóvel dois dias após o lançamento do imposto!!!
  • Francamente, não se cogita como alguém possa prevenir a sujeição a este imposto alienando em dois dias um imóvel cujo VPT é de, pelo menos, um milhão de euros.
  • Pelo que, na prática, estamos perante um fenómeno de retroatividade material; basta atentar no caso de um qualquer agente económico que concretizou a aquisição de um imóvel que veio a ser sujeito a este imposto no mês de Setembro de 2012. Nessa data – tão próxima do lançamento do imposto – “(…) o titular do prédio não podia contar com a aplicação (do imposto), pela razão simples de que tal tributo não havia ainda sido criado” (cfr. Acordão TC 63/96, 24/01/2006, sobre uma questão de aplicação da Contribuição Especial)
  • E não há estado de necessidade financeira do Estado que justifique tamanho atropelo a um princípio constitucional tão estruturante do Estado de Direito como o é o da segurança jurídica, nem a violação directa de um princípio que o legislador Constitucional português entendeu plasmar de forma expressa e inequívoca no nº 3 do artigo 103.º da nossa lei fundamental – o de que a lei fiscal não pode ter eficácia retroactiva.

 Do direito a juros indemnizatórios

  • Resulta do disposto no n.º 1 do artigo 43.º da Lei Geral Tributária (LGT) o direito ao ressarcimento através de juros indemnizatórios, calculados sobre o montante do imposto e correspondentes juros compensatórios indevidamente pagos, e contados desde a data do pagamento indevido até ao integral reembolso do mesmo.
  • Nestes termos, o artigo 43.º da LGT, ao reconhecer o direito a juros indemnizatórios, vem apenas indicar os casos em que é de presumir que os contribuintes têm direito a ser indemnizados por actos da AT, considerando que este direito já preexiste (sendo que noutros casos o contribuinte pode ver reconhecido o seu direito a indemnização por prejuízos que lhe advenham da prática de qualquer acto da Administração, tendo apenas que propor a adequada acção para efectivação da responsabilidade civil e nela fazer prova dos prejuízos sofridos pela imputabilidade dos mesmos à actuação da Administração tributária).
  • Isto é, o artigo 43.º da LGT, ao reconhecer o direito a juros indemnizatórios, não vem reconhecer um direito novo em consequência de um acto da Administração tributária, antes vem permitir uma nova forma de concretização do direito indemnizatório constitucionalmente garantido (cfr. artigo 22º da CRP).
  • Aliás, cumpre referir que em orientação administrativa genérica recente (Ofício-Circulado n.º 60 052, de 03.10.2006, do SDG da Justiça Tributária) a própria AT veio reconhecer que a constituição do direito a juros indemnizatórios a favor do contribuinte nos termos do artigo 43.º da Lei Geral Tributária, é devida nos seguintes casos: “1.3.  Em  todas  as  situações  referidas  em  1.1.  (Juros  motivados  por  erro  imputável  aos serviços)  e  1.2.  (Juros  motivados  por  atraso  imputável  aos  serviços),  o  pagamento  dos correspondentes juros indemnizatórios não depende de solicitação do contribuinte, devendo ser satisfeito oficiosamente pelos Serviços, desde que verificado os respectivos pressupostos legais”.
  • Ou seja, a AT vem reconhecer que o pagamento de juros indemnizatórios não depende sequer do pedido expresso dos contribuintes, devendo, caso estejam verificados os pressupostos legais de qualquer das duas situações supra referidas, ser pagos oficiosamente juros indemnizatórios aos contribuintes.
  • Ora, o erro de que padece a liquidação ora impugnada resulta de erro dos serviços sobre os pressupostos de direito (ao efectuar uma liquidação de imposto constitucionalmente vedada), como supra bem se demonstrou.
  • Note-se ainda, a este propósito, que a jurisprudência tem defendido uma posição muito abrangente a respeito do erro imputável aos serviços, quando afirma que “em geral, pode afirmar-se que o erro imputável aos serviços, que operaram a liquidação, entendidos estes num sentido global, fica demonstrado quando procederem a reclamação graciosa ou impugnação dessa mesma liquidação” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 31 de Outubro de 2001, Processo n.º 26167).
  • Em suma, “a administração tributária está genericamente obrigada a actuar em conformidade com a lei (artigos 266.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e 55.º da Lei Geral Tributária), pelo que, independentemente da prova da culpa de qualquer das pessoas ou entidades que a integram, qualquer ilegalidade não resultante de uma actuação do sujeito passivo será imputável a culpa dos próprios serviços” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 12 de Dezembro de 2001, Processo n.º 26233).
  • Nestas circunstâncias o Requerente terá direito a que lhe sejam pagos juros indemnizatórios, no prazo e nas condições fixadas no artigo 61.º do CPPT, ou seja calculados até ao efectivo reembolso do imposto (e juros compensatórios correspondentes) que venha a ser indevidamente pago.

 

       Resposta da AT

       A Autoridade Tributária veio defender na resposta a manutenção do ato tributário sindicado, pedindo a absolvição do pedido, considerando, em síntese, o seguinte:

 

  • Reafirma a argumentação expressa no procedimento tributário de reclamação graciosa e que motivaram o respetivo indeferimento;

 

  • Que o prédio em questão, ao contrário do alegado, tem afetação habitacional, com o valor patrimonial tributário, em 31-12-2011, de € 1.325.200,00;

 

  •  Na ausência de qualquer definição sobre o que seja prédio urbano, terreno para construção e afetação habitacional), em sede de Imposto de Selo, há que recorrer ao CIMI na busca de uma definição (artº 67º-2, do CIS na redação da Lei nº 55-A/2012, de 29/10;

 

  • A noção de afetação do prédio urbano tem assento na parte relativa à avaliação de imóveis, conforme resulta da expressão “valor das edificações autorizadas” constante do artigo 45º-2, do CIMI, tendo o legislador optado  por uma metodologia de avaliação dos prédios em geral, com aplicação do coeficiente de afetação previsto no artigo 41º, do CIMI;

 

  • A “afetação habitacional” do prédio resulta da iniciativa do contribuinte, nos termos do artigo 37º, do CIMI ou da avaliação geral com base nos elementos fornecidos pela Câmara Municipal respetiva;

 

  • O CIMI é aplicável subsidiariamente – artigo 67º-2, do CIS;

 

  • O que está verdadeiramente em análise são as regras da avaliação feita em sede de IMI e não a liquidação do imposto de selo;

 

  • O requerente e reclamante conformou-se com a aplicação do coeficiente de afetação e com a avaliação efetuada pela AT, não tendo requerido segunda avaliação e apresentado impugnação,  nos prazos legais – cfr artigo 77º, do CIMI;

 

  • Ainda que assim não se entenda, no conceito de “prédios com afetação habitacional”  estão abrangidos – como é o caso dos autos -, prédios edificados;

 

  • Não ocorre qualquer violação dos princípios constitucionais invocados;

 

  • O artigo 104º-2, da Constituição reporta-se a rendimentos e não a património;

 

  • O facto de a Lei nº 55-A/2012, de 29 de outubro, determinar que o facto tributário se verifica a 31 de outubro, não representa qualquer violação dos princípios constitucionais da segurança jurídica, da protecção da confiança, da proporcionalidade e da capacidade contributiva e ainda muito menos da proibição da irretroatividade fiscal.

 

2.    SANEAMENTO

      

       Este Tribunal Arbitral singular foi regularmente constituído em 13-11-2013, tendo sido o árbitro designado pelo Conselho Deontológico do CAAD, cumpridas as respetivas formalidades legais e regulamentares (cfr artigos 11º-1/a) e b), do RJAT e 6º e 7º, do Código Deontológico do CAAD), e é competente em razão da matéria, em conformidade com o artigo 2.º do RJAT.

 

       Em 27-1-2013 foi realizada a reunião do Tribunal com as partes prevista no artigo 18º, do RJAT [Cfr ata nos autos].

 

       As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março). 

      

  Não foram identificadas nulidades no processo

 

3.    FUNDAMENTAÇÃO

 

  Discute-se na presente ação a liquidação de imposto de selo [documento nº...], sendo imputado ao respetivo ato tributário os vícios de ilegalidade e falta de fundamentação do indeferimento da reclamação graciosa.

 

As ilegalidades assacadas a esse ato pelo requerente são:

- violação do princípio da igualdade fiscal (arts 33º e segs., do requerimento para constituição do Tribunal Arbitral, que se designará também ulterior  e abreviadadamente por “PI”);

- violação dos princípios da segurança jurídica e da proibição constitucional da retroatividade da lei fiscal (arts 53º e segs., da PI);

 

 

3.1. Matéria de facto

 

       Para apreciação destas questões importa ter em conta os seguintes factos provados:

       3.1.1 O ora Requerente é proprietário de imóvel sito no Concelho de …, freguesia de ... (Av...), identificado na matriz predial urbana com o nº ...;

       3.1.2   Ao referido imóvel – um edifício destinado à habitação -  foi fixado, sem reclamação e reportado a 31-12-2011,  um Valor Patrimonial Tributário (VPT) de € 1.235.200,00 (um milhão, duzentos e trinta e cinco mil e duzentos euro)  [VPT em vigor no ano de 2012];

       3.1.3  Em 7.12.2012, a AT procedeu à liquidação de imposto de selo do ano de 2012, na importância de € 6.176,00 [taxa de 0,5%] relativo ao imóvel, nos termos do artigo 6º, da Lei 55-A/2012 e  verba 28, da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS);

       3.1.4 Em 19 de Abril de 2013, o Requerente deduziu, junto do serviço periférico local Serviço de Finanças de ... – 1, uma reclamação graciosa da supra referenciada liquidação de Imposto do Selo (cfr. reclamação graciosa Doc. nº 2 junto com a PI);        

       3.1.5 No dia 20 de Junho de 2013, foi o Requerente notificado do Ofício nº … da Direcção de Finanças de ... que propõe o indeferimento da supra referida reclamação (Cfr Ofício e fundamentação – Doc nº 3 junto com a PI);

       3.1.6   Em 4-9-2013, a Direção de Finanças de ... informou o reclamante de que tinha procedido ao envio nessa data de notificação da decisão da reclamação mencionada em 3.1.4 e que era do seguinte teor:

                                         

 

       3.1.7 O requerente procedeu ao pagamento no prazo respetivo do imposto de selo liquidado mencionado supra, em 3.1.3;

 

       3.1.8 Em 5-9-2013 foi apresentado neste Tribunal o presente pedido de pronúncia arbitral.

        

 

       3.2. Factos não provados

 

       Não se constataram factos essenciais, com relevo para a apreciação do mérito da causa, que não se tenham provado.

 

       3.3 Motivação

 

       O Tribunal fundou a sua convicção no processo administrativo anexo aos autos e nos elementos documentais juntos ao processo pelo requerente, designadamente os supra indicados, em conjugação com a inexistência de controvérsia das partes quanto aos factos essenciais considerados provados.

       Relativamente à única questão que poderia considerar-se controvertida – se o reclamante foi ou não notificado da decisão relativa à reclamação graciosa -, resulta evidenciado que o não tinha sido aquando da apresentação do pedido de pronúncia arbitral. Na verdade, este foi apresentado em 5-9-2013 e na véspera tinha seguido um informação para o ilustre mandatário do reclamante, informando-o de que havia seguido nessa data notificação da decisão.

       Esta foi enviada nessa data (4-9-2013), por via postal registada, para o mandatário forense do reclamante

       É assim absolutamente crível e lógico que em 5-9-2013 o reclamante não tivesse conhecimento da decisão expressa mencionada, presumindo-se que o tenha sido no terceiro dia contado da data do registo [cfr, v. g., artigo 40º, CPPT e 248º e ss., do CPC].

 

3.4 Fundamentação (cont)

       O Direito

 

       O ato tributário impugnado é a liquidação de imposto de selo no ano de 2012 e relativa ao prédio – um edifício destinado à habitação - , propriedade do requerente, efetuada pela AT nos termos da verba 28.1, da TGIS e  do artigo 6º, da Lei nº 55-A/2012, de 29 de outubro.

 

       Entende o requerente que tal liquidação foi efetuada com violação da lei na medida em que, segundo alega, para além de padecer de falta de fundamentação [quererá referir-se à  proposta de indeferimento da reclamação graciosa – Doc 3 junto com a PI – uma vez que, à data da entrada deste processo arbitral,  o requerente, como se viu supra, não tinha sido notificado da decisão definitiva e, tal como alega, tinha-se formado ato de indeferimento tácito], o ato enferma de ilegalidade decorrente da violação dos princípios constitucionais da igualdade fiscal, da proporcionalidade, da capacidade contributiva, da segurança jurídica e da proibição de retroatividade da lei fiscal.

 

       Aliás, não sendo sindicável pela Administração Fiscal, como melhor se verá adiante, a ilegalidade do ato tributário exclusivamente fundada em alegadas inconstitucionalidades, a decisão não podia nunca ser outra que não fosse o indeferimento.

      

       Vejamos então cada uma das questões suscitadas.

 

       A – Da falta de fundamentação do ato de indeferimento da reclamação graciosa.

 

      

                 A questão carece de objeto porquanto o ato impugnado é, por um lado, o ato de liquidação do imposto e, por outro, tratando-se de ato de indeferimento tácito da reclamação graciosa, este, por natureza, não é passível de ser inquinado pelo vício de falta de fundamentação.

 

                 “Não pode entender-se, por falta de fundamento legal, que os atos que ordenam a audição prévia sobre propostas de indeferimento se transformem em atos de indeferimento expresso se o interessado nada disser (…). O ato que determina a notificação para o exercício do direito de audição é um mero ato preparatório da decisão final que, mesmo quando contém projeto de decisão (artigo 60º-5, da LGT), não dispensa um ulterior ato final de decisão do procedimento que, mesmo quando concorda com o teor da proposta de decisão, é um ato distinto daquela, materializado numa declaração de concordância, como se estabelece no nº 1, do artigo 77º, da LGT (…)” [Cfr Jorge Lopes de Sousa, CPPT Anotado, Vol II – 6ª ed., pgs. 194-195].

 

                 No caso e por que à data, embora já proferida, não lhe tinha sido notificada a decisão da reclamação graciosa apresentada em 19-4-2013, sobre o pedido nesta tinha-se formado em 19-8-2013, para efeitos de impugnação judicial ou pedido de pronúncia arbitral, o chamado ato de indeferimento tácito (arts 106º, do CPPT e 57º-1, da LGT).

 

                 Assinale-se, por outro lado, que, como é o caso, tendo a reclamação graciosa como objeto um ato de liquidação de imposto, o objeto do processo de impugnação judicial ou de pronúncia arbitral, sendo formalmente o indeferimento tácito o ato sujeito a pronúncia do Tribunal, este, no entanto, apenas e exclusivamente sindica a legalidade da liquidação na medida que é  este o ato tributário que verdadeiramente se considera confirmado por esse indeferimento [cfr v.g., Acs. do STA de 22-2-2006 – Processo nº 1253/05; de 28-10-2009 – Processo nº 595/09 e  as anotações e citações feitas por Jorge Lopes de Sousa (Obra citada, Vol II, pgs. 192 a 201)].

 

                 No caso, tratando-se de reclamação exclusivamente fundamentada na violação de princípios constitucionais pela AT, esta não podia proferir decisão expressa diversa do indeferimento considerando que em matéria de apreciação de constitucionalidade, só os Tribunais são competentes para declarar a inconstitucionalidade e a consequente desaplicação da lei ordinária com esse fundamento.

 

                 Pelo exposto, Improcede o pedido de anulação fundado no vício formal de falta de fundamentação.

 

 

                 B – A liquidação e as normas essenciais aplicadas

        

       Por facilidade expositiva, segue-se a transcrição das disposições legais essenciais para, seguidamente, se apreciar o ato tributário à luz dos vícios invocados pelo requerente.

       Assim:

 

       - Lei nº 55-A/2012, de 29 de outubro [altera o Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, o Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, o Código do Imposto do Selo e a Lei Geral Tributária]:

 

Artigo 3.º

Alteração ao Código do Imposto do Selo

Os artigos 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 7.º, 22.º, 23.º, 44.º, 46.º, 49.º e 67.º do Código do Imposto do Selo, aprovado pela Lei n.º 150/99, de 11 de setembro, passam a ter a seguinte redação:

(…)

Artigo 2.º

[...]

1 - ...

2 - ...

3 - ...

4 - Nas situações previstas na verba n.º 28 da Tabela Geral, são sujeitos passivos do imposto os referidos no artigo 8.º do CIMI.

 

Artigo 23.º

[...]

1 - ...

2 - ...

3 - ...

4 - ...

5 - ...

6 - ...

7 - Tratando-se do imposto devido pelas situações previstas na verba n.º 28 da Tabela Geral, o imposto é liquidado anualmente, em relação a cada prédio urbano, pelos serviços centrais da Autoridade Tributária e Aduaneira, aplicando-se, com as necessárias adaptações, as regras contidas no CIMI.

 

Artigo 67.º

[...]

1 - (Anterior corpo do artigo.)

2 - Às matérias não reguladas no presente Código respeitantes à verba n.º 28 da Tabela Geral aplica-se, subsidiariamente, o disposto no CIMI.»

Artigo 4.º

Aditamento à Tabela Geral do Imposto do Selo

É aditada à Tabela Geral do Imposto do Selo, anexa ao Código do Imposto do Selo, aprovado pela Lei n.º 150/99, de 11 de setembro, a verba n.º 28, com a seguinte redação:

 «28 - Propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo

valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do

Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), seja igual ou superior a (euro) 1 000

000 - sobre o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI:

28.1 - Por prédio com afetação habitacional - 1 %;

28.2 - Por prédio, quando os sujeitos passivos que não sejam pessoas

singulares sejam residentes em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável.

 

Artigo 6.º

Disposições transitórias

1 - Em 2012, devem ser observadas as seguintes regras por referência à

liquidação do imposto do selo previsto na verba n.º 28 da respetiva Tabela

Geral:

a) O facto tributário verifica-se no dia 31 de outubro de 2012;

b) O sujeito passivo do imposto é o mencionado no n.º 4 do artigo 2.º do

Código do Imposto do Selo na data referida na alínea anterior;

c) O valor patrimonial tributário a utilizar na liquidação do imposto corresponde

ao que resulta das regras previstas no Código do Imposto Municipal sobre

Imóveis por referência ao ano de 2011;

d) A liquidação do imposto pela Autoridade Tributária e Aduaneira deve ser

efetuada até ao final do mês de novembro de 2012;

e) O imposto deverá ser pago, numa única prestação, pelos sujeitos passivos

até ao dia 20 de dezembro de 2012;

f) As taxas aplicáveis são as seguintes:

i) Prédios com afetação habitacional avaliados nos termos do Código do IMI:

0,5 %;

ii) Prédios com afetação habitacional ainda não avaliados nos termos do

Código do IMI: 0,8 %;

iii) Prédios urbanos quando os sujeitos passivos que não sejam pessoas

singulares sejam residentes em país, território ou região sujeito a um regime

fiscal claramente mais favorável, constante da lista aprovada por portaria do

Ministro das Finanças: 7,5 %.

2 - Em 2013, a liquidação do imposto do selo previsto na verba n.º 28 da

respetiva Tabela Geral deve incidir sobre o mesmo valor patrimonial tributário

utilizado para efeitos de liquidação de imposto municipal sobre imóveis a

efetuar nesse ano.

3 - A não entrega, total ou parcial, no prazo indicado, das quantias liquidadas a

título de imposto do selo constitui infração tributária, punida nos termos da lei.

Artigo 7.º

Entrada em vigor e produção de efeitos

1 - A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.

2 - As alterações ao artigo 72.º do Código do IRS e ao artigo 89.º-A da Lei

Geral Tributária produzem efeitos desde 1 de janeiro de 2012.

 

                       

                 Sendo, no caso dos autos, o ato de liquidação de IS (Imposto do Selo) relativo ao ano de 2012, é-lhe aplicável o regime previsto na TGIS, com a redação dada pela citada Lei nº 55-A/2012, de 29 de outubro e com observância das disposições transitória previstas no artigo e transcrito artigo 6º, da citada Lei.

                 E foram essas disposições que a AT aplicou para a liquidação objeto da impugnação.

                 E também, pela aplicação estrita dessas normas, dúvidas não existem de que o resultado está correto, ou seja, aplicada a taxa de 0,5% do VPT do imóvel habitacional em 2011, o valor da liquidação é claramente o que foi liquidado e pago [0,5%X€1.235.200,00 (VPT em 31.12.2011)= (IMI/2012) € 6.176,00].

 

                 A pretensão do requerente e denegada pela AT, foi o pedido de desaplicação do regime legal em que se fundamentou a liquidação, por aquele violar os princípios constitucionais atrás invocados.

 

                 O quadro factual esquemático é, no caso, o seguinte:

 

                 O requerente é proprietário (pelo menos desde 2011) de um edifício, afeto à habitação, sito na Av..., que havia sido avaliado pelos Serviços de Finanças em 1.235.200,00 (VPT de 2011), não sendo esta avaliação impugnada ou contestada pelo requerente; em 29 de outubro de 2012, é publicada a Lei nº 55-A/2012 que,  com alterações ao Código do Imposto de Selo, veio tributar, de forma inovadora, a propriedade de imóveis afetos à habitação,  de valor igual ou superior a € 1.000.000,00, sendo que, relativamente ao ano de 2012, era aplicável um regime transitório [cfr artigo 6º, da citada Lei] que, na parte que ora interessa, se poderá sintetizar deste modo:

                 - o facto tributário é reportado a 31-10-2012;

                 -  o sujeito passivo é o titular do imóvel em 31.10.2012;

                 - o valor patrimonial (VPT) é o relativo ao ano de 2011;

                 - a taxa aplicável em 2012 é, nos prédios afetos à habitação, 0,5%.

                 - a liquidação é efetuada até final de novembro de 2012, com pagamento, em prestação única, até 20-12-2012.

 

                 É este o enquadramento que o requerente considera pôr em causa princípios constitucionais, designadamente o princípio da igualdade fiscal (arts 33º e segs., do requerimento para constituição do Tribunal Arbitral) e o princípio da segurança jurídica e da proibição constitucional da retroatividade da lei fiscal (arts 53º e segs., da PI).

 

                 Preliminarmente dir-se-á que a AT não poderia nunca validamente deferir ou validar uma tal pretensão porquanto a declaração de inconstitucionalidade compete sempre, como se viu, aos Tribunais (e, em última instância, ao Tribunal Constitucional).

 

                 Na verdade, a AT está sujeita ao princípio da legalidade (cfr. art. 266.º, n.º 2, da CRP e art. 55.º da LGT) e “(…) não pode deixar de aplicar uma norma com fundamento em inconstitucionalidade, a menos que o TC já tenha declarado a inconstitucionalidade da mesma com força obrigatória geral (cfr. art. 281.º da CRP) ou se esteja perante o desrespeito por normas constitucionais directamente aplicáveis e vinculativas, como as que se referem a direitos, liberdades e garantias (cfr. art. 18.º, n.º 1, da CRP), o que não é o caso (…)” [Cfr Ac. do STA, de 12-10-2011, publicado em http://www.dgsi.pt/jsta.

 

                 É que, como diz VIEIRA DE ANDRADE, “(…)este conflito [entre a constitucionalidade e o princípio da legalidade] não pode resolver-se através da prevalência automática do direito constitucional sobre o direito legal. Não é disso que se trata, porque o que está em causa é não a constitucionalidade da lei, mas o juízo que sobre essa constitucionalidade possam fazer os órgãos administrativos. Por um lado, a Administração não é um órgão de fiscalização da constitucionalidade; por outro lado, a submissão da Administração à lei não visa apenas a protecção dos direitos dos particulares, mas também a defesa e prossecução de interesses públicos […]. A concessão ao poder administrativo de ilimitados poderes para controlo da inconstitucionalidade das leis a aplicar levaria a uma anarquia administrativa, inverteria a relação Lei-Administração e atentaria frontalmente contra o princípio da divisão dos poderes, tal como está consagrado na nossa Constituição (…)” (Direito Constitucional, Almedina, 1977, pág. 270.).

 

                 E, no mesmo sentido, JOÃO CAUPERS afirma que “(…)a Administração não tem, em princípio, competência para decidir a não aplicação de normas cuja constitucionalidade lhe ofereça dúvidas, contrariamente aos tribunais, a quem incumbe a fiscalização difusa e concreta da conformidade constitucional, demonstram-no as diferenças entre os artigos 207º [hoje, 204.º] e 266º, nº 2, da Constituição. Enquanto o primeiro impede os tribunais de aplicar normas inconstitucionais, o segundo estipula a subordinação dos órgãos e agentes administrativos à Constituição e à lei.

                 Afigura-se claro que a diferença essencial entre os dois preceitos decorre exactamente da circunstância de se não ter pretendido cometer à Administração a tarefa da fiscalização da constitucionalidade das leis. O desempenho de tal função, por parte daquela tem de ser visto como excepcional (…)” (Os Direitos Fundamentais dos Trabalhadores e a Constituição, Almedina, 1985, pág. 157.).

 

                 Concluímos assim, com a citada Doutrina e Jurisprudência, que no Direito Constitucional Português não existe a possibilidade de a Administração se recusar a obedecer a uma norma que considera inconstitucional, substituindo-se aos órgãos de fiscalização da constitucionalidade, a menos que esteja em causa a violação de direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados.

 

                 E por isso é que, apresentada a reclamação com fundamento na violação de princípios constitucionais que não pôem em causa direitos, liberdades e garantias, elencados nos artigos 24º e segs., da Constituição, o desfecho nunca poderia ser o deferimento.

 

                 C – Da violação do princípio da igualdade

 

                 A questão está, no essencial, em saber se o requerente, proprietário de um prédio – um edifício habitacional ou para fins habitacionais – com o VPT em 2011 de 1.235.200, tributado em imposto de selo à luz das citadas normas introduzidas pela Lei nº 55-A/2011 [designadamente artigo 6º, dessa Lei e verba 28, da TGIS], de que resultou a tributação do requerente em imposto de selo no ano de 2012 decorrente da titularidade do imóvel nesse ano, em €6.176,00, é ou não admissível à luz deste princípio.

 

                 Este princípio, basilar num Estado de direito, traduz a proibição de quaisquer discriminações  no tratamento de situações iguais (dimensão igualizadora) e admissão da desigualdade de tratamento de situações desiguais [dimensão diferenciadora).

 

                 Em matéria de fiscalidade, o princípio da igualdade[2] traduz-se na “[(…)ideia de generalidade ou universalidade, nos termos da qual todos os cidadãos se encontram adstritos ao cumprimento do dever de pagar impostos, e da uniformidade, a exigir que semelhante dever seja aferido por um mesmo critério — o critério da capacidade contributiva. Este implica assim igual imposto para os que dispõem de igual capacidade contributiva (igualdade horizontal) e diferente imposto (em termos qualitativos ou quantitativos) para os que dispõem de diferente capacidade contributiva na proporção desta diferença (igualdade vertical) (…)]” (Casalta Nabais, Direito Fiscal, 5.ª edição, Coimbra, 2009, pp. 151 -152).

 

                 Como pressuposto e critério da tributação, o princípio da capacidade contributiva “(…)afasta o legislador fiscal do arbítrio, obrigando-o a que na seleção e articulação dos factos tributários, se atenha a revelações da capacidade contributiva, ou seja, erija em objeto e matéria coletável de cada imposto um determinado pressuposto económico que seja manifestação dessa capacidade e esteja presente nas diversas hipóteses legais do respetivo imposto (…)” (Casalta Nabais, Obra Citada, pág. 154).

 

                 Ou seja e por outras palavras: está vedado constitucionalmente ao legislador ordinário determinar as suas normas de um modo “caprichoso”, antes devendo submete-las a sérios e rigorosos ditames de igualação e de discriminação positiva, conforme os casos.

 

                 O princípio da igualdade tem a sua consagração expressa na nossa Lei Fundamental [cfr artigo 13º, da Constituição].

 

                 Daqui resulta que este princípio também se pode expressar na obrigação de imposição de medidas diferenciadoras de modo a obter uma igualdade de oportunidades necessária à igualdade (tendencial real) entre cidadãos.

 

                 Ou seja: o princípio da igualdade só deverá considerar-se violado se for arbitrário o tratamento considerado como desigual ou, em termos menos incisivos, se o tratamento desigual não for justificado nem razoável.

 

                 Por outro lado, “(…)o princípio da capacidade contributiva exprime e concretiza o princípio da igualdade fiscal ou tributária na sua vertente de ‘uniformidade’ – o dever de todos pagarem impostos segundo o mesmo critério – preenchendo a capacidade contributiva o critério unitário da tributação», entendendo-se esse critério como sendo aquele em que «a incidência e a repartição dos impostos – dos ‘impostos fiscais’ mais precisamente – se deverá fazer segundo a capacidade económica ou ‘capacidade de gastar’ (-) de cada um e não segundo o que cada um eventualmente receba em bens ou serviços públicos (critério do benefício)” [Cfr Ac do Tribunal Constitucional nº 142/04[3]]

 

                 É neste contexto que se justificará a diferenciação de tratamento fiscal do património, designadamente, imobiliário, de molde a tributar, de forma agravada e proporcional, os titulares de prédios de maior valor ou criando mesmo uma tributação autónoma para aqueles prédios de valor excecionalmente elevado com base na presunção – que sabemos que nem sempre se concretiza -, de que quem tem património de valor elevado tem a correspondente capacidade contributiva.

 

                 Em matéria de igualdade fiscal, a capacidade contributiva é elemento essencial a ponderar porquanto só haverá verdadeira igualdade de tratamento fiscal dos contribuintes se houver tributação idêntica para capacidades contributivas igualmente idênticas. Como é bom de ver.

 

                 A tributação especial, em sede de imposto de selo, incidente sobre os prédios com afetação habitacional de valor superior a  € 1.000.000, foi introduzida no nosso sistema fiscal pela Lei nº 55-A/2012, de 29-10, com aditamento à Tabela Geral do Imposto de Selo (TGIS) da verba 28.1 [cfr artigo 4º, da citada Lei].

 

                  Relativamente ao ano de 2012, foi estabelecido pela citada Lei um regime transitório [cfr artigo 6º].

 

                 Vejamos então se a opção legislativa, traduzida na introdução deste novo regime de sujeição a imposto de selo viola, pela forma como foi formulado, o princípio constitucional da igualdade tributária, com o inerente corolário traduzido no princípio da capacidade contributiva.

 

                 Tem sido entendimento reiterado do Tribunal Constitucional o de que “(…)só podem ser censuradas, com fundamento em lesão do princípio da igualdade, as escolhas de regime feitas pelo legislador ordinário naqueles casos em que se prove que delas resultam diferenças de tratamento entre as pessoas que não encontrem justificação em fundamentos razoáveis, percetíveis ou inteligíveis, tendo em conta os fins constitucionais que, com a medida da diferença, se prosseguem” (Cfr Acórdão do Trib Constitucional nº 47/2010[4]).

 

                 É entendimento que voltou muito recentemente a ser reiterado no mediático acórdão do Plenário do Tribunal Constitucional relativo à apreciação sucessiva de normas do Orçamento de Estado para 2013  - Acórdão nº 187/2013, de 5 de abril de 2013.

 

                 Na base da aprovação da citada Lei nº 55-A/2012, esteve a “(…) prossecução do interesse público, em face da situação económica e financeira do País (…)” e a exigência de “(…) um esforço de consolidação que requererá, além de um permanente ativismo na redução da despesa pública, a introdução de medidas fiscais inseridas num conjunto mais vasto de medidas de combate ao défice orçamental (…)” medidas “(…) fundamentais para reforçar o princípio da equidade social na austeridade, garantindo uma efetiva repartição dos sacrifícios necessários ao cumprimento do programa de ajustamento (…) e em conformidade com este desiderato, este diploma alarga a tributação dos rendimentos do capital e da propriedade, abrangendo equitativamente um conjunto alargado de sectores da sociedade portuguesa (…)” – Cfr termos da “Exposição de Motivos” na  proposta de Lei nº 96/XII/2ª apresentada pelo Governo à Assembleia da República e que esteve na base da aprovação da mencionada Lei (Cfr Diário da Assembleia da República – Série A, de 21-9-2012, pp. 44-52).

 

                 Contraditoriamente, não parecem tais desideratos transparecer da ou estar totalmente evidenciados  na Lei nº 55-A/2012.

 

                 Desde logo porque não se compreende ou explica a razão da tributação apenas de imóveis afetos a fins habitacionais, com exclusão, por conseguinte, daqueles que, embora de valor superior a € 1.000.000, não estão afetos a essa finalidade.

 

                 Por outro lado, a tributação pelo verba 28.1, da TGIS, conduz a manifesta iniquidade na medida em que deixa fora dessa tributação, inexplicada e inexplicavelmente, bens imóveis do mesmo sujeito passivo que, embora todos afetos a fins habitacionais, têm, cada um, VPT inferior a 1.000.000 mas que no seu conjunto perfazem um VPT superior (e, por vezes, até bastante superior) a €1.000.000.

 

                 Ou seja: o princípio da capacidade contributiva traduzido no pagamento do imposto em função do índice dessa capacidade [o valor do património imobiliário do sujeito passivo], está posto em causa na medida em que o regime de tributação em  sede de imposto de selo [e que, no caso, se traduz em tributação do património] não assegura – bem pelo contrário – uma efetiva igualdade de tributação em função da capacidade contributiva dos cidadãos sujeitos a essa incidência.

 

                 Por isso é que não pode deixar de ser dada razão ao requerente quando conclui que “(…) a liquidação de Imposto do Selo ora em apreciação viola manifestamente o princípio da igualdade fiscal previsto no artigo 13º da CRP, porque: (i) é baseada numa norma que trata contribuintes que se encontrem em situações idênticas de forma bem diferente, não sendo a medida da diferença aferida pela sua real capacidade contributiva; (ii) é baseado numa solução legal arbitrária desprovida de qualquer fundamento racional (…)”.

 

                 Procederá assim, com fundamento na violação dos princípio da igualdade e da capacidade contributiva,  o pedido de anulação do ato tributário de liquidação de imposto de selo.

 

                 D – Da violação do princípio da não retroatividade da lei fiscal.

                      A proteção da confiança.

 

                 Preliminarmente dir-se-á que o fundamento constitucional da não retroatividade fiscal assenta num princípio, mais vasto e que é o princípio do Estado de Direito na vertente da proteção da confiança.

 

                 A proteção da confiança legítima surge como corolário subjetivo da segurança jurídica “(…) evidenciando-se o seu conteúdo pela certeza da legalidade tributária e do Sistema Constitucional Tributário, tendo por objeto reduzir a complexidade e indeterminações do “ambiente” e assegurar direitos e liberdades fundamentais, calibração da estabilidade sistémica, mediante princípios de correção implícitos, como os de proibição de excesso, proporcionalidade e razoabilidade (…)”  (Heleno Taveira Torres, Direito Constitucional Tributário e Segurança Jurídica – Metódica da Segurança Jurídica do Sistema Constitucional Tributário, Editora “Revista dos Tribunais”, 2011, pp. 187 e 188)

 

                 No início da década de 90, o Tribunal Constitucional [Ac. nº 287/90] densificou o princípio (proteção da confiança) adotando uma fórmula que seria depois sempre repetida.

 

                 De acordo com esta fórmula, o princípio da proteção da confiança será fundamento autónomo de censura constitucional de uma lei sempre que se perfizerem os seguintes requisitos: (i) a lei opera uma mudança da ordem jurídica que afeta em sentido desfavorável as expectativas dos seus destinatários; (ii) estes últimos não podiam razoavelmente contar com a alteração; (iii) a alteração não foi

ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes.

 

                 Perfeitos estes três requisitos, conclui o Tribunal, ocorre inconstitucionalidade da lei, com fundamento em violação do princípio da proteção da confiança, por ter a mesma lei afetado expetativas legitimamente fundadas dos cidadãos, sendo que a afetação é inadmissível, arbitrária e demasiado onerosa.

 

                 O artigo 103.º, n.º 3, da CRP, introduzido no texto constitucional na revisão de 1997, estabelece o seguinte:

                 "Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroativa ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei".

 

                 Antes dessa revisão constitucional, porém, a Comissão Constitucional (cfr. Parecer n.º 25/81, Acórdão n.º 444, Parecer n.º 14/82) e, posteriormente, o Tribunal Constitucional (cfr. Acórdão n.º 11/83 e Acórdãos n.º 66/84 e n.º 141/85) decidiram que, apesar de não se poder retirar da Constituição uma proibição radical de impostos retroativos, tal deveria considerar-se constitucionalmente vedado quando essa retroatividade fosse «arbitrária e opressiva» e violasse «de forma intolerável a segurança jurídica e a confiança que as pessoas têm obrigação (e também o direito) de depositar na ordem jurídica que as rege».

 

                  «A retroactividade tributária terá o beneplácito constitucional» se a confiança dos destinatários da norma for «materialmente injustificada» ou se ocorrerem «razões de interesse geral que a reclamem e o encargo para o contribuinte não se mostrar desproporcionado» (cfr. Parecer n.º 14/82).

 

                 A retroatividade, segundo Gomes Canotilho, consiste basicamente numa ficção: (…) decretar a validade e vigência duma norma a partir de um marco temporal (data) anterior à data da sua entrada em vigor [ Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 261].

 

                 Também na doutrina [J. M. Cardoso da Costa, O Enquadramento Constitucional do Direito dos Impostos em Portugal, in “Perspetivas Constitucionais nos 20 anos da Constituição”, Vol. II, Coimbra, 1997, p. 418] considerava que “[a] linha demarcadora do âmbito da retroatividade fiscal constitucionalmente admissível passará, desde logo, pela distinção entre situações tributárias «permanentes» e «periódicas» e «factos» cuja eficácia fiscal se esgota ou se firma «instantaneamente», para cada um deles «de per si» (maxime, pela distinção entre «impostos periódicos» e «impostos de obrigação única»), e passará provavelmente, depois, no que concerne àquele primeiro tipo de situações, pela distância temporal que já tiver mediado entre o período de produção dos rendimentos e a criação (ou modificação) do correspondente imposto. Isto, de todo o modo, sem prejuízo do relevo de outras circunstâncias, cujo possível peso não poderá ignorar-se.”

 

                 Recentemente, no acórdão n.º 128/2009, o Tribunal Constitucional considerou que a natureza necessariamente fluida dos critérios utilizados levou a que, “em diversos arestos, o Tribunal viesse dar como boas leis fiscais retroativas.

 

                 Foi o que sucedeu, por exemplo, nos Acórdãos n.º 11/83 e 66/84  e ainda nos Acórdãos n.ºs 67/91, 1006/96, 1204/96 e 416/02. Noutros casos, ao invés, o Tribunal entendeu que, por inexistirem razões de interesse público que prevalecessem sobre o valor da segurança jurídica, as normas retroativas seriam intoleráveis e, consequentemente, constitucionalmente ilegítimas [Cfr., por exemplo, os Acórdãos ns.º 409/89, 216/90, 410/95 e 185/2000].

 

                 Após a revisão constitucional de 1997, houve consagração expressa do princípio da proibição da retroatividade da lei fiscal, mas o seu sentido não é unívoco.

 

                 Como sustenta Alberto Xavier, não basta afirmar que a lei fiscal não pode ser retroativa, pois a concretização deste princípio envolve sérias dificuldades, atendendo a que se podem descortinar dentro dele diversos graus, sendo que, do ponto de vista constitucional, alguns são mais gravemente desvalorados do que outros (Alberto Xavier, Manual de Direito Fiscal, Lisboa 1974, p. 196 e segs; idem, "O problema da retroatividade das leis sobre imposto de renda", in Textos Seleccionados de Direito Tributário, coord. de Sampaio Dória, São Paulo, 1983, p. 77 e segs.  (Mais recentemente, cfr. Américo Fernando Brás Carlos, Impostos – Teoria Geral, 3ª ed., Coimbra, 2010, p. 142 e segs).

 

                 Assim, um caso em que o facto tributário que a lei nova pretende regular já tenha produzido todos os seus efeitos ao abrigo da lei antiga e um outro caso em que o facto tributário tenha ocorrido ao abrigo da lei antiga, mas os seus efeitos, designadamente os relativos à liquidação e pagamento, ainda não estejam totalmente esgotados não terão necessariamente o mesmo desvalor constitucional, uma vez que a primeira situação é do ponto de vista da eventual afetação da situação jurídica do contribuinte mais grave que a segunda. E estes dois casos diferenciam-se também de um terceiro em que o facto tributário que a lei nova pretende regular na sua totalidade não ocorreu totalmente ao abrigo da lei antiga, antes se continua formando na vigência da lei nova.

 

                 A qualificação que a doutrina atribui a cada uma destas situações não é de todo convergente, verificando-se, todavia, um certo consenso em considerar a primeira situação descrita como “retroatividade autêntica” (cfr. Casalta Nabais, Obra Citada, p. 147; Américo Fernando Brás Carlos, Impostos, p. 145 e segs.; Nuno Sá Gomes, Manual de Direito Fiscal, Vol. II, Lisboa, 1996, p. 414 e segs.).

 

                 Em relação aos segundo e terceiro casos enunciados, há quem considere que ambas as situações se enquadram na retroatividade inautêntica, enquanto outros apenas incluem a segunda situação nesta categoria, defendendo que o terceiro caso já não se integra em qualquer tipo de retroatividade, mas sim na retrospetividade (cfr. Américo Fernando Brás Carlos, Impostos, p. 145 e segs.; Nuno Sá Gomes, Manual de Direito Fiscal, Vol. II, Lisboa, 1996, p. 419 e 420).

 

                 Independentemente dos graus de “retroatividade” que a doutrina consagra, os trabalhos preparatórios da IV Revisão Constitucional elucidam-nos sobre o espírito do nº 3 do artº 103º citado. [Cfr discussão na reunião da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, de 9 de Outubro de 1996 (cfr. DAR, II Série, RC, n.º 36, de 10 de Outubro de 1996, p. 1081)].

 

                 Assim, de acordo com a proposta apresentada pelo PS: «A lei fiscal não pode ser aplicada retroativamente, sem prejuízo de as normas respeitantes a impostos diretos poderem incidir sobre os rendimentos do ano anterior».

 

                 Segundo a proposta apresentada pelo PCP: «A lei que criar ou aumentar impostos não pode ter efeito retroactivo, sendo vedada a tributação relativa a factos geradores ocorridos antes da respectiva lei».

 

                 Finalmente a proposta apresentada pelo PSD foi a seguinte «Ninguém poder ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroactiva ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei».

 

                 Parece então resultar daqui que o legislador apenas pretendeu incluir, no n.º 3 do artigo 103.º da CRP, a proibição da retroatividade autêntica, própria ou perfeita da lei fiscal, o que não é contrariado pela letra do preceito, uma vez que o texto constitucional apenas se refere à natureza retroativa tout court.

 

                 Por outro lado, resulta igualmente dos trabalhos preparatórios, de forma cristalina, que não se pretenderam integrar no preceito as situações em que o facto tributário que a lei nova pretende regular não ocorreu totalmente ao abrigo da lei antiga, antes continuando a formar-se na vigência da lei nova, pelo menos, quando estão em causa impostos diretos (como é claramente o caso dos presentes autos).

                

                 Também o Tribunal Constitucional, em relativamente  recente jurisprudência em matéria fiscal, designadamente nos acórdãos n.os 128/2009 e 85/2010, considerou que a retroatividade consagrada no artigo 103.º, n.º 3, CRP é somente a autêntica.

 

                 Disse-se no primeiro destes  acórdãos [128/2009]:

                 “Decorre deste preceito constitucional que qualquer norma fiscal desfavorável (não se entrando aqui na questão de saber se normas fiscais favoráveis podem, e em que medida, ser retroativas) será constitucionalmente censurada quando assuma natureza retroativa, sendo a expressão «retroatividade» usada, aqui, em sentido próprio ou autêntico: proíbe-se a aplicação de uma lei fiscal nova, desvantajosa, a um facto tributário ocorrido no âmbito da vigência da lei fiscal revogada (a lei antiga) e mais favorável.”

 

                 E mais adiante:

                 “A retroatividade proibida no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição é a retroatividade própria ou autêntica. Ou seja, proíbe-se a retroatividade que se traduz na aplicação de lei nova a factos (no caso, factos tributários) antigos (anteriores, portanto, à entrada em vigor da lei nova).” [Na doutrina, e defendendo a retroactividade autêntica e não a imprópria ou "inautêntica" cfr. Casalta Nabais, Direito Fiscal, p. 147; Rui Guerra da Fonseca, Comentário à Constituição Portuguesa, II volume, coordenação de Paulo Otero, pp. 872 e segs., Américo Fernando Brás Carlos, Impostos, p. 145 e segs.); em sentido contrário V. Paz Ferreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, org. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Tomo II, Coimbra, 2006, p. 223, seguindo a posição de Diogo e Mónica Leite de Campos e Jorge Bacelar Gouveia.

 

                 Aqui chegados importa então apurar se, no caso sub juditio, tem fundamento a invocação da violação do citado princípio da irretroatividade da lei fiscal ou, concretizando melhor, se o imposto de selo sobre o VPT dos prédios com fins habitacionais criado pela Lei nº 55-A/2012 (verba 28, da TGIS) tem eficácia retroativa.

 

                 Feita a necessária ponderação à luz das considerações supra, afigura-se negativa a resposta.

 

                 Na verdade, trata-se aqui de imposto de renovação anual (periódico) com incidência sobre património do sujeito passivo, em cada ano, com lançamento, liquidação e pagamento anuais, iniciados no ano de 2012, incidente sobre os imóveis habitacionais do sujeito passivo em cada um dos anos subsequentes ao início da vigência desse diploma [30 de outubro de 2012], sendo sujeito passivo, em 2012, o titular do interesse económico (proprietário, usufrutuário, etc) em 30-10-2012 [Cfr, em especial, os  arts 2º-4, 3º-3-u) 23º-7, do Cód do Imp. de Selo com as alterações introduzidas pela Lei nº 55-A/2012 e artigo 6º, deste último diploma] .

 

                 Os seja: o facto tributário (no caso, propriedade de prédio afeto a fins habitacionais) ocorre na vigência da Lei em causa na medida em que o requerente era proprietário do imóvel, objeto dessa  tributação,  em 30-10-2012 e não fica sujeito a tributação nessa sede (Imposto de Selo – verba 28.1) por facto tributário ocorrido em data anterior àquela.

 

                 Assim, e sem necessidade de outras considerações, conclui-se pela não violação desse princípio constitucional no caso em apreço e, consequentemente, improcede o pedido de anulação do ato tributário com esse fundamento.

 

                 Por outro lado, a sujeição a tributação em imposto de selo não era em si algo intolerável à luz do princípio da confiança na medida em que é legítimo ao Estado lançar impostos com obediência aos necessários e legais requisitos formais e substanciais sem que a tal possa ser oposto validamente o princípio da proteção da confiança traduzido na expetativa de que, no futuro, não fosse alterada a tributação vigente sobre o património à data da aquisição deste pelo sujeito passivo.

 

                 Ou seja: não tivesse ocorrido no caso sub juditio e como se viu, a violação dos princípios constitucionais da igualdade e capacidade tributárias, não seria à luz da violação dos princípios da confiança e da irretroatividade da lei fiscal que se albergariam os fundamentos de inconstitucionalidade.

                 Improcede, por isso, a invocada violação destes princípios constitucionais.

 

                 4. O pedido de juros indemnizatórios

 

                 Determinada a ilegalidade da liquidação e a sua consequente anulação, encontrando-se paga a dívida tributária indevida, o direito a juros indemnizatórios subsiste, sempre que tal decorra de erro imputável aos serviços da AT, conforme prevê o n.º 1 do artigo 43.º da Lei Geral Tributária (LGT).

 

                 As normas legais determinantes na análise desta questão são o artigo 43.º da LGT e o artigo 61.º do CPPT, sendo que o  artigo 43.º, da LGT define as situações que originam o pagamento de juros indemnizatórios e  o artigo 61.º, do CPPT define os prazos de pagamento e os termos inicial e final da contagem dos juros indemnizatórios. Estas duas normas têm de ser entendidas em consonância.

 

                 Quando por erro imputável aos serviços da administração fiscal o contribuinte paga indevidamente um tributo e o ato de liquidação foi impugnado através de reclamação graciosa ou de impugnação judicial [ou pedido de pronúncia arbitral] no respetivo prazo legal (artigo 43.º n.ºs 1 e 2 da LGT), os juros indemnizatórios são contados desde a data do pagamento do imposto indevido até

que seja emitida a respectiva nota de crédito (artigo 61.º n.º 5 do CPPT)

 

                 À luz da Jurisprudência uniforme do STA, em geral, pode afirmar-se que o erro imputável aos serviços, que operaram a liquidação, entendidos estes num sentido global, fica demonstrado quando procederem a reclamação graciosa ou impugnação dessa mesma liquidação” (cfr., v. g.,  Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 31 de Outubro de 2001, Processo n.º 26167).

 

                 Naturalmente que não é subtraído a este regime o caso de anulação da liquidação com fundamento em inconstitucionalidade da lei ordinária em que aquela (liquidação) se baseou

 

                 No caso destes autos, foi operada pela AT a liquidação de imposto de selo fundado num quadro normativo inconstitucional, por violação do princípio da igualdade e da capacidade contributiva.

 

                 Tanto basta para, com base nas disposições dos n.ºs 1 e 2 do artigo 43.º da LGT e artigo 61.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), serem devidos juros indemnizatórios sobre a importância indevidamente liquidada e paga, contados a partir do dia seguinte ao do pagamento indevido até à data da emissão da respetiva nota de crédito, à taxa legal.

 

5.    DISPOSITIVO

 

De harmonia com o exposto, este Tribunal Singular decide:

 

a)   Não aplicar, por violação dos princípios constitucionais da igualdade e da capacidade contributiva, o disposto nos artigos 4º e 6º, da Lei nº 55-A/2012, de 29 de outubro [que adita a verba nº 28 à Tabela Geral do Imposto do Selo (artigo 4º) e estabelece o regime transitório de aplicação no ano de 2012 (artigo 6º) e, em consequência, julgando procedente o pedido com esse fundamento, anular o ato de liquidação fundado nessa mesma norma ora julgada inconstitucional;

b)   Julgar procedente o pedido de indemnização formulado e

c) Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira no reembolso do pagamento do imposto, com juros indemnizatórios calculados à taxa e nos demais termos previstos nos artigos 43º, da LGT e 61º, do CPPT.

 

6. Valor do processo

De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 6.176,00.

 

7. Custas

Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em €612,00 (seiscentos e doze euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Lisboa, 24-2-2014

[Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, número 5 do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, com versos em branco e revisto pelo árbitro signatário].

 

O árbitro

 

 

(José Poças Falcão)

 

 

 

 

 

 



[1] Acrónimo de Regime Jurídico da Arbitragem Tributária.

[2]  Ao contrário de outras Constituições [v. g., italiana e alemã], não se encontra na Constituição qualquer disposição explícita que mencione o princípio da igualdade em matéria fiscal. Este princípio pode apenas ser expressamente surpreendido na Lei Geral Tributária (artigo 5º).

[3] Cfr infra, nota 4.

[4] Este acórdão  como os demais citados e proferidos pelo Tribunal Constitucional, encontram-se publicados no respetivo sítio da internet: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/