Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 135/2013-T
Data da decisão: 2014-01-18  IRS  
Valor do pedido: € 1.469.504,53
Tema: Mais-valias de ações; art.º 12.º, n.º 2, da LGT
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Decisão Arbitral CAAD – Arbitragem Tributária         
IRS (mais valias de ações); art.º 12.º, n.º 2, da LGT


Processo n.º 135/2013-T

Os árbitros Rui Duarte Morais, Tomás Cantista Tavares e João Menezes Leitão (que votou vencido a decisão principal, conforme declaração de voto junta), acordam no seguinte:

I – Relatório 

1.1 – A... e sua mulher B..., respetivamente NIF … e NIF …, apresentaram, nos termos legais, pedido de constituição de Tribunal Arbitral, sendo requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

1.2 – Os Requerentes pedem a anulação total da liquidação de IRS n.º 2011…, de 11/06/2011, processada em seu nome e relativa ao ano de 2010.

Pedem, ainda, a condenação da AT no pagamento de uma indemnização correspondente aos custos suportados com a constituição e manutenção da garantia prestada com vista à suspensão do processo de execução fiscal originado pela liquidação impugnada.

1.3 – Os Requerentes, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 2 do art.º 6º do RJAT, designaram como árbitro o Sr. Prof. Doutor Tomás Cantista Tavares. Nos termos do n.º 3 do art.º 11.º do RJAT, a AT designou como árbitro o Sr. Dr. João de Menezes Leitão.

Nos termos dos n.ºs 6 e 7 do art.º 11 do RJAT e da parte final da al. b) do n.º 2 do art.º 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, os árbitros designados pelas partes designaram o árbitro-presidente, Sr. Prof. Doutor Rui Duarte Morais.

1.4 – O Tribunal Arbitral ficou constituído em 26/08/2013.

1.5 – A Requerida apresentou resposta, propugnando a manutenção da liquidação impugnada, no que dela deva subsistir após a anulação parcial operada em sede de deferimento parcial da reclamação graciosa antes apresentada pelos ora Requerentes.

1.6 - Em 07/11/2013, teve lugar a reunião a que se refere o art.º 18.º da RJAT, conforme consta da respetiva ata.

1.7 – No dia 28/11/2013, conforme consta da ata da competente reunião do Tribunal Arbitral, foram ouvidas duas testemunhas arroladas pelos Requerentes (os quais prescindiram da audição das demais), cujos depoimentos ficaram gravados. De seguida, os representantes do Requerente e da Requerida produziram as respetivas alegações orais.

II – Questões processuais

2.1 – A AT, na sua resposta, suscitou a questão da inadmissibilidade do pedido com a extensão que os Requerentes o formularam, por não poder estar em causa a anulação total da liquidação impugnada, uma vez que a mesma já havia sido parcialmente anulada pela decisão da reclamação graciosa (reclamação n.º … – SF Lisboa …), apresentada previamente ao pedido de constituição do Tribunal Arbitral e nos presentes autos apenas se questiona a tributação de particulares rendimentos de mais–valias de valores mobiliários e não todos os demais rendimentos obtidos no ano em causa.

2.2 – No mesmo articulado, a AT insurgiu-se contra a eventual admissão de prova testemunhal relativamente ao previsto no n.º 2 do art.º 15º do DL n.º 442-A/ 88, de 30 de Novembro (prova da data da aquisição de valores mobiliários em data anterior à entrada em vigor do CIRS).

2.3 – Na reunião prevista no art.º 18º do RJAT resultaram ultrapassadas tais objeções processuais, porquanto, como consta da respetiva ata, – “ouvido o contribuinte – com a respetiva anuência –, fica esclarecido que o objeto do presente processo respeita à matéria na base da liquidação que não teve decisão favorável no âmbito da reclamação graciosa apresentada”.

A AT não se opôs à produção de prova testemunhal que os Requerentes, em concreto, declararam pretender produzir, por se referir apenas a factos que, também no seu entender, podem ser provados por tal meio.

Mais, ficou esclarecido pelos Requerentes, na sequência de pedido do Presidente do Tribunal Arbitral, que não fazem parte dos presentes autos os rendimentos de mais-valias auferidas pela Requerente Mulher que são mencionados no art.º13 da petição.

 

III – Saneamento

 

O Tribunal é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, 5.º, 6.º do RJAT. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º e 3.º, n.º 1 e n.º 2, al. b), da Portaria n.º 112-A/2011 de 22 de Março. O processo é o próprio, o requerimento inicial é tempestivo, não existem exceções ou questões prévias de que cumpra conhecer.

IV – Factos provados

Consideram-se provados os seguintes factos com relevância para a decisão:

  1. Os Requerentes são sócios da Sociedade C... –, SGPS, S.A., com NIPC…, que, anteriormente, teve também as denominações de D... – C..., S.A. e E... –, S.A., desde data anterior a 1987.

 

  1. A participação dos Requerentes em tal sociedade variou ao longo dos anos.

 

  1. Referindo apenas as aquisições e alienações de ações com relevo para a boa decisão da causa, temos que:

- Em 1987, os Requerentes eram titulares de 17.128 ações.

- Em 2004, os Requerentes alienaram à própria Sociedade 1.108 ações.

 

  1. Em 2007, foi deliberado o aumento de capital social da C..., S.A., realizado por incorporação de reservas disponíveis, na proporção de uma nova ação por cada uma já detida.

 

  1. Quando da realização deste aumento de capital, o Requerente era titular de 29.253 ações, pelo que, em consequência desta operação, passou a deter 58.506 ações.

 

  1. Os Requerentes não adquiriram nem alienaram, posteriormente, outras ações.

 

  1. Em 21/04/2010, o Requerente alienou 32.040 ações para subscrição de capital da Sociedade C..., SGPS, S.A.

 

  1. As ações que os Requerentes passaram a deter após o aumento de capital ocorrido em 2007, no referido total de 58.506, encontravam-se depositadas como se segue:

- 15.944 ações nos cofres da F..., S.A.,

- 6.254 no  G... ,

- 36.308 no H... .

 

  1. A Administração Tributária realizou uma ação inspetiva tendente à identificação dos concretos títulos (no referido total de 32.040) que foram objeto de alienação em 21/04/2010.

 

  1. Os títulos alienados, identificados pela respetiva numeração, foram os seguintes:

- 6.254 ações depositadas no G... ,

- 10.000 ações depositadas no H...,

- 15.786 ações depositadas nos cofres da C..., S.A.

 

  1. As ações alienadas que se encontravam depositadas no … e no … foram consideradas pela AT, em sede de decisão da Reclamação Graciosa, como tendo sido adquiridas pelos Requerentes em data anterior à entrada em vigor do CIRS.

 

  1. Os títulos físicos das ações ao portador que se encontravam depositados nos cofres da C... S.A foram adquiridos pelos Requerentes após a entrada em vigor do CIRS.

 

  1. Todas as ações detidas pelo Requerente no momento em que ocorreu a alienação em causa eram ações da mesma natureza e que conferiam idênticos direitos.

 

  1. Na sua declaração Modelo 3, relativa ao ano de 2010, apresentada em 31/05/2011, os Requerentes inscreveram, no quadro 8 do anexo G, a alienação de ações constante do quadro seguinte:

TITULAR

REALIZAÇÃO

AQUISIÇÃO

DESPESAS E ENCARGOS

 

Data

Valor

Data

Valor

 

A...

Abr.2010

15.598.353,60

Dez.1987

959.277,60

 

B...

 

Mar.2010

494,63

Ago.1981

0,00

14,14

TOTAIS

 

15.598.848,23

 

959.277,60

14,14

 

 

  1. Em 17/08/2011, os Requerentes entregaram uma nova declaração, para substituição da anteriormente apresentada, tendo retirado a alienação de ações feita em Abril de 2010, pelo valor de € 15.598.353.60.

 

  1. A primeira declaração deu origem à liquidação ora impugnada.

 

  1. A declaração de substituição não deu origem a qualquer liquidação, por ter sido convolada em procedimento de Reclamação Graciosa.

 

  1. Por não se mostrar pago o imposto liquidado, foi instaurado, em 24/10/2011, um processo de Execução Fiscal.

 

  1. Em 26/01/2012, os Requerentes prestaram uma garantia para lograr a suspensão de tal processo de Execução, garantia essa que revestiu a forma de garantia bancária, prestada pelo H..., SA, no valor de 3.727.649,38€.

 

  1. Em 8/10/2013, foi parcialmente deferida a reclamação graciosa, por a AT ter entendido, em suma, só ser tributável a mais-valia obtida com a alienação das 15.786 ações que se encontravam depositadas nos cofres da C..., S.A., por estas terem sido adquiridas posteriormente a 1989.

 

  1.  Entre outros fatores que concorreram para a decisão de transmissão das ações acima referida em 7, encontrava-se, fundamentalmente, a circunstância daquelas terem sido adquiridas anteriormente a 1989 e, por conseguinte, a mais-valia resultante daquela transmissão não se encontrar sujeita a IRS, por força do disposto no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro

 

  1.  Bem como a circunstância daquela mais-valia sempre se encontrar excluída de tributação atento o regime de exclusão de tributação em sede de IRS das mais-valias provenientes da alienação de ações detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses, previsto no artigo 10.º, n.º 2 do Código do IRS

 

  1. Não foi redigido qualquer acordo escrito relativo à transmissão daquelas ações (a referida em 7 dos factos provados).

 

  1. O Requerente era titular de 58.506 ações tituladas ao portador, representativas de 15,4% do capital social da “C...”, das quais, 33.616, representativas de 8,8% daquele capital social, haviam sido adquiridas em data anterior a 01.01.1989

 

  1. O Requerente e a “C... Investimentos” acordaram na transmissão de 32.040 representativas de 8,4% do capital social da “C...”

Os factos provados 21 e 22 resultam de prova testemunhal, sendo que as testemunham depuseram com isenção e conhecimento de causa. Todos os demais factos resultaram provados por prova documental junta aos autos, em especial, o relatório da inspeção tributária que é fundamento da liquidação impugnada. A veracidade destes últimos factos foi, aliás, consensualmente aceite pelas partes na primeira reunião do Tribunal Arbitral.

V – Questões (de Direito) a decidir

5.1 - Os Requerentes imputam à liquidação impugnada vários vícios de lei (que a inquinariam, na totalidade), a saber:

a) A declaração de substituição por si apresentada deveria ter dado lugar, de imediato, a nova liquidação, substitutiva da ora impugnada.

b) O entendimento da DSIRS quanto à prova da titularidade das ações, designadamente no que tange à exigibilidade de uma prova plena, é, por um lado, desprovido de suporte legal e, por outro, incompatível com a forma de representação das ações tituladas ao portador.

c) As ações representativas do capital social da C... são ações da mesma espécie e categoria e conferem idêntico acervo de direitos e obrigações, que obtêm natureza jurídica fungível, não podendo pois ser objeto da individualização propugnada pelos Serviços de Inspeção Tributária.

d) O apuramento da mais-valia a considerar para efeitos fiscais rege-se pelo critério FIFO (First in first out), previsto no artigo 43.º, n.º 6, alínea d), do CIRS, pelo que, na determinação da mais-valia em apreço, impõe-se considerar que as 32.040 ações transmitidas pelo Requerente à C... foram as adquiridas há mais tempo, isto é, em data anterior a 1989.

e) Os terceiros ao negócio celebrado entre o Requerente e a C... não podem concretizar obrigação genérica que o mesmo encerre e, ao fazerem-no, subvertem a real vontade das partes.

f) A situação reclamada e, bem assim, a decisão da Reclamação Graciosa são, manifestamente, violadoras do princípio da igualdade (cf. Artigos 13.º da CRP e 55.º da LGT), porquanto o ora Recorrente, pelo simples lapso em que incorreu, foi objeto de um tratamento diametralmente oposto ao dos demais contribuintes na mesma situação.

g) Mesmo improcedendo todo o exposto, tendo o Requerente detido as ações por período superior a 12 meses, impunha-se a aplicação do regime de exclusão de tributação (cf. Artigo 10.º, n.º 2, do CIRS) em vigor à data de transmissão (cf. Artigo 12.º da LGT).

 

5.2 - Por sua vez, a AT, na sua resposta, conclui pela improcedência total de cada um dos argumentos aduzidos pelos Requerentes: a declaração de substituição não pode ter o valor probatório que os requerentes entendem atribuir-lhe; a liquidação não viola o princípio da igualdade; as partes alienaram as ações que entenderam e devem submeter-se ao regime que decorre da lei; o art.º 5.º do Dec. Lei n.º 442-A/88, de 30/11 exige a necessidade da prova ser feita por documentos; os valores mobiliários não teriam natureza fungível, no sentido de poderem ser objeto de individualização; O FIFO constitui uma presunção, que pode ser ilidida pela realidade dos exatos valores mobiliários transacionados (o que teria sido efetuada no caso dos autos pela AT); a alteração ao CIRS introduzida pela Lei n.º 15/2010 de 26/7 (no sentido do fim da exclusão de imposto para as mais valias de ações detidas por 12 meses e sua tributação a uma taxa liberatória de 20%) aplica-se às alienações de ações efetuadas desde 1/1/2010, por efeito da regra da anualidade do IRS (o facto gerador ocorreu a 31/12/2010) e porque a incidência complexa do IRS (progressividade e deduções) exige uma visão unitária e global do imposto, sendo inviável uma qualquer autonomização ou cisão por períodos temporais dentro do mesmo exercício; o art.º 12.º da LGT consentiria a retroatividade de terceiro grau e não existiria por isso qualquer violação do princípio da não retroatividade da lei fiscal.

 

5.3 - A apreciação desses vícios é, em certa medida excludente, ou seja, a procedência de alguns deles torna desnecessária a apreciação dos demais.

Nesse sentido, o Tribunal Arbitral entendeu começar a sua análise pelo invocado vício de “violação do disposto no art.º 12º, n.º 2, da LGT.”

Isto porquanto, tendo ficado provado que todas as ações detidas pelo Requerente Marido, aquando da alienação em Abril de 2010 estavam na sua posse e titularidade há mais de 12 meses (pontos 3 a 7 dos factos provados), a eventual procedência de tal vicio determinaria, sem mais, a anulação da liquidação impugnada.

 

VI – O Direito (art. 12.º, n.º 2, da LGT)

Há que começar por considerar o seguinte:

6.1- Em 24/04/2010, data da alienação de ações em causa, estava em vigor o art.º 10º, n.º 2, do CIRS segundo o qual “excluem-se do disposto no número anterior [do n.º 1 do art.º 10º do CIRS, que prevê a sujeição a IRS dos ganhos (mais-valias) obtidos com a alienação onerosa de partes sociais] as mais – valias provenientes da alienação de:

  1. Ações detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses.

(…)

6.2- Esta norma (n.º 2, do art.º 10º do CIRS) foi revogada pelo artigo 2.º da Lei 15/2010, de 26 de julho.

6.3 – Segundo o art.º 5 de tal Lei, a mesma entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação, ou seja, em 27 de Julho.

6.4- A Lei n.º 15/2010 é omissa no estabelecimento de regras especiais quanto à sua aplicação no tempo, diferentemente do que aconteceu com várias outros diplomas legais relativos à tributação das mais-valias, os quais suscitavam idêntica problemática.

Omissão que não pode deixar de ser considerada significativa, porquanto o tema foi questionado no quadro do debate parlamentar que precedeu a aprovação de tal Lei.

6.5 – A questão que importa conhecer é, pois, a da lei aplicável aos ganhos obtidos com uma alienação onerosa de ações ocorrida em 21-04-2010 (e detidas pelo seu titular por mais de 12 meses).

6.6 - Nenhuma dúvida existirá quanto ao princípio básico que rege a aplicação da lei fiscal substantiva no tempo: a lei aplicável é a vigente no momento da ocorrência do facto gerador.

Também não oferecerá dúvida a afirmação de que obrigação de imposto, in casu, decorreria da referida alienação das ações.

Não obstante, seria defensável entender – como alguns fazem – que sendo o IRS um imposto periódico, cujo facto gerador é de formação sucessiva, o facto tributário, por abranger os rendimentos obtidos ao longo de um ano, apenas ocorreria no termo do mesmo.

6.7 – Seja qual for o melhor entendimento doutrinário, o certo é que existe lei expressa que nos dá a solução, do caso sub judice, o art.º 12.º, n.º 2, da LGT: se o facto tributário for de formação sucessiva, a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor.

E é este comando que este Tribunal é obrigado a respeitar, porquanto, como reafirma o art.º 4º, n.º 2, do RJAT, os tribunais arbitrais decidem de acordo com o direito constituído.

6.8 - Ou seja, o art.º 12.º, n.º 2, da LGT manda que, nos impostos periódicos (i. e., relativamente a factos tributários de formação sucessiva), o período de tributação seja cindido, aplicando-se a lei antiga aos factos geradores de imposto ocorridos antes da alteração legislativa e a lei nova aos posteriores.

Note-se que este normativo surgiu em momento muito posterior ao da entrada em vigor dos atuais impostos sobre o rendimento (seu principal campo de aplicação), sendo que o legislador da LGT não poderia ignorar as consequências que, nesses impostos, o novo normativo iria produzir.

6.9 - O afastamento desta norma legal, poderia, eventualmente, acontecer caso resultasse violadora de princípios ou normas constitucionais.

Ora, o preceito e causa é o que melhor dá expressão a princípios fundamentais do nosso ordenamento jurídico-constitucional, como sejam o princípio da segurança na tributação, dimensão essencial do princípio da confiança, ínsito na ideia de Estado de Direito.

As normas legais que regem a tributação devem assegurar que quem pratica um ato potencialmente gerador de obrigação de imposto possa a “ter a certeza” das consequências fiscais daí resultantes. Condição primeira para tal é, obviamente, que a lei que regerá tais obrigações seja conhecida, seja a que está em vigor naquele momento.

A tese de que o facto gerador do imposto, nos impostos periódicos, apenas ocorre no último dia do ano, tem como consequência implícita a aceitação de um certo grau de retroatividade da lei fiscal (a chamada retroatividade impropria ou de 3.º grau).

Sabemos que tal “grau” de retroatividade é considerado constitucionalmente admissível pela nossa jurisprudência. Mas para que tal aplicação retroativa exista é necessário que exista um dictum legislativo que a tal obrigue.

Ora, tal não acontece no presente caso, pois que a regra geral constante do n.º 2 do art.º 12º, n.º 2, da LGT visa, precisamente, evitar situações de retroatividade da lei fiscal (ainda que “moderada”), sempre que o legislador não determine, especialmente, o contrário.

O art.º 12.º, n.º 2, da LGT é, pois, uma norma totalmente conforme aos princípios constitucionais que presidem a tributação, é mesmo, a que, nesta especifica questão, melhor dará tradução a tais princípios, ao prevenir a ocorrência de situações de aplicação retroativa da lei fiscal.

6.10 - Existe, é certo, doutrina que, com fundados argumentos, questiona o art.º 12, n.º 2, da LGT pelas dificuldades que a sua aplicação prática pode suscitar, ao obrigar à cisão do período tributário em tantos subperíodos quantas as alterações das normas de incidência e de determinação da matéria coletável que a tal obriguem.

Podemos aceitar que a norma possa, eventualmente, ser de afastar por violação do princípio da praticabilidade, que – quanto a nós - tem dimensão constitucional.

Porém, tais objeções não ocorrem no caso concreto:           

– apesar de a matéria coletável (mais-valias mobiliárias) a ser tributada em IRS corresponder ao saldo das mais e menos valias realizadas pelo sujeito passivo ao longo do ano, o certo é que, no caso concreto, só houve uma única alienação em 2010:, ou seja, o facto tributário, embora em abstrato de formação sucessiva, “esgotou-se” numa única transação.

- sendo as mais-valias obtidas com a alienação de participações sociais sujeitas a uma tributação autónoma (a uma taxa proporcional, não sendo aqui tidos em conta os elementos de personalização que, por princípio, deviam estar presentes na tributação de todos os rendimentos, caso o IRS fosse um verdadeiro imposto único – estamos perante uma das traduções do caráter dual deste imposto), nenhumas dificuldades se colocam relativamente às demais operações que a liquidação (entendido o termo em sentido amplo) do imposto implica, quando feita com observância do disposto no n.º 2 do art.º 12 da LGT.

Não há, pois, também, quaisquer dificuldades de índole prática que obstem a que, em cumprimento do disposto do n.º 2 do art.º 12º da LGT, a (não) sujeição a imposto dos ganhos obtidos pelas Requerentes em 24/04/2010 seja feita por aplicação da lei vigente nessa data.

Inviabilizar a aplicação do preceito (art. 12.º, n,º 2, da LGT) em casos como o presente significaria, “ignorar” a sua existência, o que é vedado a qualquer Tribunal.

Em resumo, entende-se que nada obsta à aplicação do disposto no n.º 2 do art.º 12 da LGT, da regra geral aí contida, a qual – repete-se - o legislador entendeu não afastar na Lei n.º 15/2010.

6.11 - Por último, refira-se que a solução preconizada tem amplo respaldo dou­trinário, nomeadamente em textos da autoria de quem colaborou na elaboração do anteprojeto da LGT (LEITE de CAMPOS / BENJAMIM S. RODRIGUES / J. LOPES de SOUSA, Lei Geral Tributária Anotada e Comentada, 2012, pág. 130; A. LIMA GUERREIRO, Lei Geral Tributária Anotada, 2001, pág. 91) e foi seguida por jurisdição arbitral em anterior decisão (proc. n.º 25/2011-T), bem como pelo STA no seu acórdão de 4.12.2013, proferido no rec. n.º 01582/13 (muito embora com fundamentações algo distintas).

6.12- Resulta, pois, prejudicada a apreciação dos demais vícios que os requerentes imputam à liquidação em causa.

 

VII – Pedido de indemnização cível

 

7.1- Tal como ficou provado no ponto 19 dos factos provados, os Requerentes prestaram garantia bancária com vista à suspensão do processo de execução fiscal n.º  …, incorrendo, consequentemente, em custos, dos quais pretendem ser indemnizados.

7.2– A obrigação de indemnização pelos encargos decorrentes de indevida prestação de garantia é regulada pelo art.º 53º da LGT, sendo que aqui relevaria o seu n.º 2, segundo o qual o prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo [sublinhado nosso].

7.4 – Ora, a liquidação em causa, ainda que formalmente da autoria da AT, baseou-se exclusivamente nos dados constantes da declaração inicialmente apresentada pelos ora Requerentes (a única por eles apresentada dentro dos prazos legais cuja observância é condição para que a liquidação seja feita com base no declarado pelo sujeito passivo).

7.5 – Como confessado nos n.º 8 e 9º do requerimento inicial, em 31.05.2011, o Requerente apresentou a correspondente declaração de rendimentos modelo 3; sucede que, por mero lapso, o Requerente inscreveu a mais-valia realizada com a transmissão das aludidas ações no quadro 8 do anexo G (“Mais-valias e outros incrementos patrimoniais” (…).

7.6 - A liquidação ora anulada baseou-se pois, exclusivamente, na declaração dos Requerentes, pelo que nenhuma censura pode ser feita à AT, não existe erro imputável aos serviços na liquidação do tributo, pelo que este pedido tem, necessariamente, que improceder.

 

VIII - Decisão

 

Em face do exposto, o presente Tribunal decide:

a) Anular a liquidação impugnada, no relativo às mais-valias obtidas pelo Requerente A... mediante a alienação, em 21.4.2010, de 15.786 ações representativas do capital da sociedade C...-Administração de Patrimónios, SGPS, SA, por força da não sujeição tributária que constava da alínea a) do n.º 2 do artigo 10.º do CIRS, na anterior redação resultante do Decreto-Lei n.º 228/2002, de 31 de Outubro.

b) Da conjugação desta decisão com a proferida na reclamação graciosa n.º n.º … (REC …/11), resulta anulada a totalidade da liquidação impugnada no relativo às mais-valias auferidas, no ano de 2010, por este Requerente, em resultado da alienação de ações representativas do capital da sociedade C...-, SGPS, SA.

c) Absolver a Requerida, Administração Tributária e Aduaneira, do pedido de pagamento de uma indemnização correspondente aos custos suportados com a constituição e manutenção da garantia bancária prestada para lograr a suspensão do processo de execução fiscal originado pela liquidação ora impugnada,

Não há lugar à fixação e repartição da responsabilidade pelas custas do processo, nos termos do n.º 4 do art.º 22 do RJAT.

Notifique-se.

 

Anexa-se: Voto de vencido do árbitro Sr. Dr. João de Menezes Leitão.

 

 

Lisboa, 18 de Janeiro de 2014

Rui Duarte Morais

Tomás Cantista Tavares

João de Menezes Leitão

 

Declaração de voto de vencido

 

 

1. Não subscrevo a decisão que fez vencimento quanto à aplicação no tempo da normatividade objecto da Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho, e à subsequente anulação da liquidação sub judice, no que concerne às mais-valias obtidas pelo Requerente no ano de 2010, mediante a alienação em 21.4.2010 de 15.786 ações, detidas há mais de 12 meses, no capital social da sociedade C...- , SGPS, SA, que se fundou, por via do disposto no n.º 2 do art. 12.º da Lei Geral Tributária, na subordinação das mais-valias assim realizadas à exclusão tributária que constava da alínea a) do n.º 2 do artigo 10.º do CIRS, na anterior redação resultante do Decreto-Lei n.º 228/2002, de 31 de Outubro, pelo que, em consequência, votei vencido.

Ao contrário da tese adoptada pelo presente acórdão[1], entendo que o critério normativo que se deve considerar juridicamente relevante quanto ao tratamento fiscal destas mais-valias realizadas no ano de 2010 é a sua sujeição ao disposto nos artigos 10.º, n.º 1, al. b), 43.º, n.º 1 e 72.º, n.º 4 do CIRS, na redação resultante da mencionada Lei n.º 15/2010.

Impõe-se, para devida observância do disposto no artigo 22.º, n.º 5 do RJAT, apresentar os fundamentos que subjazem à perspectiva interpretativa e aplicativa que reputo como a resposta correta ao caso sub judice.

 

a) Observação prévia

 

2. Preliminarmente, julgo conveniente consignar que tenho para mim que o julgador, na resolução dos litígios que lhe cabe apreciar e na busca do critério de decisão juridicamente relevante, deve orientar-se por uma diretriz de fidelidade ao pensamento legislativo, sob pena de afectar a ideia do Estado de Direito democrático, fundado na soberania popular e no primado da lei (artigos 1.º, 2.º e 3.º da CRP). Decorre daqui que o aplicador deve acatar as decisões e juízos que foram formulados pelo legislador, não podendo sobrepor às opções legislativas os seus próprios juízos e preferências, mesmo que os repute mais adequados e justos que os adoptados pelos órgãos de soberania dotados de competência legislativa, pois como incisivamente refere o – hoje amiúde desprezado – artigo 8.º, n.º 2 do Cód. Civil, “o dever de obediência à lei não pode ser afastado sob pretexto de ser injusto ou imoral o conteúdo do preceito legislativo”.

Evidentemente, daqui não se segue a marginalização de considerações de adequação material e de princípios de justiça, que marcam sempre presença pela via da necessidade da observância das normas e dos princípios emergentes da Lei Fundamental. Porém, sem prejuízo do cânone da interpretação conforme à Constituição, o qual, sempre se sublinhe, conhece o limite da letra da lei, isto não pode servir para fazer entrar, na base da textura aberta dos princípios constitucionais, escolhas pessoais de justiça no plano da revelação do sentido juridicamente decisivo de uma certa normatividade.

Daí que, na presente declaração de voto, se comece por explicitar qual se julga ser, em atenção aos princípios hermenêuticos pertinentes, o critério juridicamente relevante para a decisão do caso quanto à aplicação da lei no tempo, ponderando, depois, a sua conformidade com a Constituição, que constitui o local privilegiado, pelo menos em termos de fontes nacionais, em que se recolhem os princípios de justiça material susceptíveis de colocar em causa a aplicação de normas legais (art. 204.º da CRP).

 

b) A normatividade objecto de apreciação quanto à aplicação temporal

 

3. Depois desta observação prévia, parece imprescindível sublinhar, no que para aqui importa, que a Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho, cujo âmbito de aplicação estava em apreciação, não integra qualquer norma específica que expressamente deponha sobre a resolução da questão da respectiva aplicação temporal, limitando-se simplesmente o art. 5.º a prescrever, quanto à vacatio legis (cfr. art. 5.º, n.º 2 do Cód. Civil), que: “A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação”, fixando, portanto, a respectiva entrada em vigor em 27 de Julho de 2010.

Esta opção legislativa “silente” é distinta das escolhas anteriormente efetuadas pelo legislador no domínio de vigência do CIRS quanto à aplicação no tempo das alterações legislativas respeitantes à tributação de mais-valias mobiliárias, que tinham seguido outras orientações e técnicas, como facilmente se demonstra:

- desde logo, o artigo 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, dispôs o seguinte: “Os ganhos que não eram sujeitos ao imposto de mais-valias, criado pelo código aprovado pelo Decreto-Lei n.º 46 373, de 9 de Junho de 1965, bem como os derivados da alienação a título oneroso de prédios rústicos afectos ao exercício de uma atividade agrícola ou da afectação destes a uma atividade comercial ou industrial, exercida pelo respectivo proprietário, só ficam sujeitos ao IRS se a aquisição dos bens ou direitos a que respeitam tiver sido efectuada depois da entrada em vigor deste Código”;

- o art. 3.º, n.º 5 da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, previu o seguinte regime transitório: “A nova redação dos artigos 10.º, 41.º e 75.º do Código do IRS é apenas aplicável às partes sociais e outros valores mobiliários adquiridos após a data de entrada em vigor da presente lei, mantendo-se o regime anterior de tributação para as mais-valias e menos-valias de partes sociais e outros valores mobiliários adquiridos antes dessa data”, determinando, por seu turno, o art. 21.º, n.º 2 desta mesma Lei que: “Sem prejuízo do disposto noutras normas da presente lei, esta entra em vigor no dia 1 de Janeiro de 2001, aplicando-se aos períodos de tributação que se iniciem a partir dessa data”;

- o n.º 9 do art. 30.º da Lei n.º 109-B/2001, de 27 de Dezembro, previu igualmente um regime transitório, nos termos do qual: “Às mais-valias resultantes da alienação de obrigações e outros títulos de dívida, de ações detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses, e de partes sociais e de outros valores mobiliários, incluindo warrants autónomos, durante os anos de 2001 e 2002, aplica-se o regime de tributação constante dos artigos 41.º e 75.º do Código do IRS, e do artigo 19.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, na versão anterior à nova redação introduzida pelos artigos 1.º e 10.º da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, e à republicação operada pelo Decreto-Lei n.º 198/2001, de 3 de Julho, beneficiando ainda de uma exclusão de tributação as mais-valias e as menos-valias resultantes da alienação de obrigações e outros títulos de dívida, bem como de ações detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses, quando estes títulos sejam adquiridos até 31 de Dezembro de 2002, e sendo o saldo positivo entre as mais-valias e menos-valias apuradas na transmissão onerosa de partes sociais que não se encontrem nestas condições, desde que adquiridas até 31 de Dezembro de 2002, sujeito a uma taxa especial de 10%”;

- o Decreto-Lei n.º 228/2002, de 31 de Outubro, determinou no seu art. 3.º o seguinte: “O presente diploma produz efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2003”.

 

4. Verifica-se, pois, que, diferentemente dos diplomas antes citados, o legislador da Lei n.º 15/2010 não previu nenhuma solução específica sobre o âmbito de aplicação temporal das novas regulações instituídas.

Dada esta situação, o campo de aplicação temporal da Lei n.º 15/2010 tem de ser determinado na base dos mecanismos gerais de interpretação e concretização do Direito, considerando, de modo sistemático, a(s) normatividade(s) susceptíveis de aplicação.

Não se trata, pois, em relação a este diploma, como sucedia com os diplomas antes mencionados, de extrair simplesmente um critério decisório de um preceito legal particular dirigido direta e especificamente ao problema da aplicação temporal do diploma em que se contém; antes, na situação sub judicio, o procedimento de individualização do critério jurídico de decisão relevante surge como o fruto de uma operação jus-metódica mais complexa, se se quiser, como um resultado normativo.

 

c) O pensamento do legislador – elemento histórico-genético

 

5. É sabido que, entre os elementos habitualmente convocados para a hermenêutica de um texto legislativo, assume sempre relevo, seja ele maior ou menor, a busca do pensamento do legislador, na acepção da descoberta das opções e objectivos do autor da norma. Elemento interpretativo, o vector histórico ou intencional constitui igualmente um modo de argumentar em Direito em ordem a sustentar a correção de uma certa proposição sobre o sentido jurídico decisivo.

Pois bem, num caso como aquele que se encontra em causa, em que não se previu, de modo expresso e específico, uma determinada disposição sobre o âmbito de aplicação temporal do diploma, julgo ser útil começar a fundamentação da posição aqui seguida pela invocação do argumento histórico-genético, revelando a intenção do legislador (para recorrer a uma formulação que a tradição consagrou, muito embora cientificamente discutível, já que, em última análise, tudo se resume a uma ilação dos meios e elementos objectivos disponíveis) quanto ao âmbito temporal de aplicação da regulação resultante da Lei n.º 15/2010.

Para o efeito, importa olhar para o procedimento legislativo respectivo, designadamente os debates parlamentares e as posições neles expressas, pois, como quer que sejam metodicamente valorizados, representam o suporte da materialidade do texto normativo e, como tal, não devem ser descurados.

Note-se, então, que a Lei n.º 15/2010 teve essencialmente na sua base a Proposta de Lei n.º 16/XI, com a qual, como se declara na respectiva Exposição de Motivos, se pretendeu consagrar “a regra geral de tributação das mais-valias mobiliárias e a concomitante revogação do regime de exclusão de tributação atualmente vigente em sede de IRS”.

Pois bem, dos trabalhos parlamentares conducentes à aprovação da Lei n.º 15/2010 respiga-se, com clareza, a intenção do órgão proponente da medida legislativa de aplicar a nova regulação às participações sociais adquiridas antes da entrada em vigor da Lei e de a ela sujeitar as mais-valias obtidas durante todo o ano de 2010.

Com efeito, conforme se extrai do Diário da Assembleia da República, I Série, n.º 55/XI/1, de 8 de Maio de 2010, pp. 13-30, foram proferidas as seguintes declarações que se afigura assumirem significativo peso para a presente análise, justificando-se, por isso, a sua transcrição (os sublinhados são da nossa responsabilidade):

i) pelo Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais:

- “a receita a arrecadar com esta proposta depende, sobretudo, do regime de aplicação da lei no tempo e (...), nessa matéria, nós insistimos num regime de aplicação da lei no tempo que previna a «lavagem» das mais-valias, de modo a que, ao fim e ao cabo, em vez de um sistema de tributação, tenhamos um novo sistema de isenção a vigorar daqui em diante”;

- “julgamos que o principal factor de evasão que aqui pode ser criado resultaria, isso, sim, de um regime de aplicação da lei no tempo que apenas sujeitasse as mais-valias que fossem produzidas com participações adquiridas depois da entrada em vigor da lei. Esse, para nós, é o ponto crucial, ou seja, é o de evitar que, dessas regras, não resulte uma «lavagem» imediata das mais-valias latentes”;

- “Desde há bom tempo que a doutrina moderna, um pouco na sequência da doutrina alemã e também da jurisprudência do nosso Tribunal Constitucional, tem vindo a entender que há uma diferença — essa, clara — entre retroatividade e retrospectividade da lei fiscal. E essa diferença explica-se rapidamente: lei fiscal retroativa é aquela que se aplica a factos passados; retrospectiva é aquela que se aplica a factos futuros, pondo, embora, em causa expectativas fundadas no passado.

Isso significa, muito simplesmente, que, quando olhamos a proposta aqui formulada pelo Governo, ela não é, evidentemente, retroativa, porque se aplica ao saldo apurado entre mais e menos-valias que se verifiquem no final do ano. E é a esse saldo, aliás, que se aplica também a isenção dos 500 €, que figura na proposta”.

- pela Deputada Assunção Cristas (CDS-PP):

- “(...) no que respeita à aplicação da lei no tempo, vale a pena olhar, Sr. Secretário de Estado, para o que se fez no passado, inclusivamente em governos do Partido Socialista. Sempre houve um cuidado grande em não ofender o princípio basilar da não retroatividade da lei fiscal”;

- “A bem da segurança jurídica, a bem da estabilidade legislativa, é avisado e seguro considerar que a lei só se aplica a aquisições efectuadas depois da sua entrada em vigor. Ou, no limite, é imperioso considerar que, pelo menos, a lei não se pode aplicar a valores mobiliários vendidos antes da sua entrada em vigor”.

Como se observa, a discussão parlamentar considerou, em face do texto que esteve na base do diploma aprovado, dois pontos atinentes a matérias de direito transitório: por um lado, a questão da sua aplicação a participações adquiridas apenas após a entrada em vigor da lei; por outro lado, a questão da sua aplicação a mais-valias obtidas com a alienação de participações verificada antes da entrada em vigor da lei.

Ora, quanto a este último ponto, que é o que aqui importa, foi claramente assumido pelos parlamentares e explicitado pelo órgão proponente (ainda que, para uns, isso fosse reprovável, enquanto que, para outros, isso não suscitasse particulares dificuldades) que a lei se aplicava ao saldo apurado entre mais e menos-valias verificado no final do ano.

O texto da proposta de lei corresponde, nesta parte, inteiramente ao texto aprovado que ficou a constar da Lei n.º 15/2010. Impõe-se, pois, concluir que o objectivo do legislador foi o de subordinar todas as mais-valias auferidas com a alienação de participações no ano de 2010 ao novo regime (tributário e de isenção). Este objectivo foi, aliás, expressamente revelado e assumido em artigo publicado em 1.5.2010 pelo então Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais[2], no qual, depois de se referir que “[o] propósito essencial do Governo com esta proposta é o de corrigir um vício histórico do IRS e de fazer com que estes contribuintes singulares concorram também para o esforço de consolidação que agora nos toca a todos”, se escreve expressis verbis o seguinte (sublinhados nossos):

Quanto à aplicação da lei no tempo, valem as regras gerais do IRS e sujeita-se à nova taxa de 20% o saldo entre mais e menos-valias apurado no final do ano. O IRS não incide sobre as mais-valias de modo avulso, com taxa liberatória aplicada na fonte, incide sobre o saldo que se apura a final do ano, com taxa especial que dispensa retenção. A entrada em vigor de um novo regime a meio do ano não envolve, por isso, verdadeira retroatividade, mas o que a moderna doutrina designa de mera retrospectividade. Quer dizer, assim concebida, a lei não se aplica a factos passados, mas tão só a factos futuros, ainda que toque com certeza em expectativas fundadas no passado. A distinção entre leis fiscais retroativas e leis fiscais retrospectivas é talvez subtil, mas bem conhecida da jurisprudência, se neste plano quisermos colocar a discussão. É bem sabido que a tutela da expectativa não representa um princípio absoluto e que não se pode reconhecer a ninguém um direito à imutabilidade da lei fiscal, menos ainda um direito à manutenção de privilégios fiscais em momento de crise económica grave”.

 

6. Julga-se que fica, assim, bem evidenciado o pensamento do legislador em termos de direito transitório, o qual não deve ser, sem mais, repudiado, designadamente não o pode ser tão simplesmente por o aplicador discordar da justeza da opção legislativa realizada.

Como escreve, incisivamente, MENEZES CORDEIRO[3]: “Nas leis do Estado, os excesso objectivistas dos nossos dias podem levar a esquecer o essencial. Houve uma decisão humana ao mais alto nível, para equacionar ou resolver problemas da sociedade onde o problema se ponha. Esta decisão deve ser conhecida, sempre que possível. Ela não é tudo: cumpre verificar se ela é consequente com o que se pretenda e qual o modo por que ela se articula com o tecido normativo, em termos de coerência. Mas constitui um ponto de peso inegável”.

A fixação dos critérios de resolução de um caso deve, pois, considerar e atender à vontade do legislador, em ordem, aliás, como acima se disse, ao primado da lei como manifestação da soberania popular.

Ponto é, porém, que o pensamento legislativo detectado possua correspondência nos dados normativos aplicáveis, ou seja, que assuma peso objectivo no ordenamento.

É o que se passa a demonstrar, com o que apresento as razões pelas quais entendo que, ao contrário da decisão que fez vencimento, não cabe proceder à aplicação ao caso do disposto no n.º 2 do artigo 12.º da LGT (segundo o qual: “Se o facto tributário for de formação sucessiva, a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor”), não constituindo esta disposição a fonte de direito pertinente para a fixação do âmbito de aplicação temporal da Lei n.º 15/2010.

 

d) A fonte de direito pertinente para a resolução da questão

 

7. Saliente-se, antes de mais, o facto evidente de que as modificações legislativas introduzidas pelos artigos 1.º e 2.º da Lei n.º 15/2010 se destinarem a ser incorporadas no articulado mais vasto componente do Código do IRS. Assim, a moldura jurídica, o contexto normativo em que se insere o regime de tributação das mais-valias mobiliárias à taxa de 20%, que foi criado por este diploma, é o texto global do próprio CIRS, na pluralidade dos seus enunciados regulatórios[4].

Pois bem, esta óbvia inserção sistemática das modificações operadas pela Lei n.º 15/2010 implica que se deve ter em conta, para a determinação do sentido e âmbito do novo regime, as mensagens prescritivas envolventes que são explicitamente enunciadas no Código do IRS, as quais, seja dito, são tão lei expressa como o n.º 2 do artigo 12.º da LGT, representando, por isso, igualmente comandos que o Tribunal Arbitral está obrigado a respeitar enquanto direito constituído.

Ora, a primeira indicação normativa pertinente que importa ter em atenção, conforme já resulta do que atrás se expôs em sede de detecção das intenções históricas do legislador, respeita ao disposto no art. 43.º, n.º 1 do CIRS, segundo o qual: “O valor dos rendimentos qualificados como mais-valias é o correspondente ao saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano, determinadas nos termos dos artigos seguintes”. Seguidamente, cabe recordar que o art. 1.º, n.º 1 do CIRS estabelece que: “O imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) incide sobre o valor anual dos rendimentos das categorias seguintes (...)”.

Assim, pois, quando o legislador da Lei n.º 15/2010, sem estabelecer qualquer disposição especial de direito transitório, revoga a dita exclusão tributária antes constante do n.º 2 do art. 10.º do CIRS e introduz um regime de tributação das mais-valias mobiliárias à taxa especial de 20% aplicável ao saldo positivo entre as mais-valias e as menos-valias (art. 72.º, n.º 4 do CIRS), abriga-se, inelutavelmente, àquelas disposições constantes do Código do IRS, maxime à determinação do n.º 1 do art. 43.º do CIRS de que “O valor dos rendimentos qualificados como mais-valias é o correspondente ao saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano”. Na verdade, a regulação introduzida no CIRS não pode deixar de ser objecto de compreensão e de fixação do seu âmbito de aplicação no contexto normativo em que se situa, assim se obedecendo a exigências de congruência interna e de consistência intra-sistemática. Opera nesta sede o elemento sistemático da interpretação assente no “postulado da coerência intrínseca do ordenamento, designadamente no facto de que as normas contidas numa codificação obedecem por princípio a um pensamento unitário[5].

Esse pensamento unitário do Código do IRS, que aqui importa sublinhar, e que determina a indicada dinâmica intertextual de sentido da Lei n.º 15/2010, prende-se com o princípio da anualidade, em atenção ao facto de o CIRS segmentar em termos anuais a tributação do rendimento das pessoas singulares, autonomizando períodos de tributação temporalmente definidos. 

Deste modo, a alteração legislativa que foi realizada pela Lei n.º 15/2010, na medida em que fatalmente se vai integrar no contexto normativo próprio das determinações regulatórias do CIRS, implica que, no final do ano, todas as mais-valias mobiliárias realizadas durante esse ano de 2010 concorrem para o saldo anual, para o saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano a que expressamente se alude no preceito do artigo 43.º, n.º 1 do CIRS.

Por isso, e daí que não a possa subscrever, a tese que fez vencimento desconsidera inteiramente este explícito dictum normativo, pois, ao excluir da tributação as mais-valias realizadas em 21.4.2010 com a alienação então efectuada, vai fazer com que o Requerente não fique sujeito ao imposto, como determina o n.º 1 do artigo 43.º do CIRS, quanto ao saldo apurado entre as mais valias-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano.

Como a solução que fez vencimento não se conforma com esta precisa regra jurídica substantiva, afigura-se-me que se impunha outro tipo de ponderação para a resolução desta questão sobre a aplicação temporal da lei.

 

8. Essa ponderação passa por verificar que, como é da aplicação do n.º 2 do art. 12.º da LGT à situação sub judice que resulta a conclusão de que os sujeitos passivos suportam a tributação não sobre o saldo anual, mas, quando muito, sobre um saldo semestral, então aquela disposição do n.º 2 do art. 12.º entra em contradição com a determinação resultante do artigo 43.º, n.º 1 do CIRS, bem como com o princípio geral do próprio n.º 1 do art. 1.º do CIRS. 

Na verdade, não é possível, em simultâneo, aplicar o art. 43.º, n.º 1 do CIRS – nem, mais vastamente, o n.º 1 do art. 1.º do CIRS – que obriga a considerar um saldo anual e o art. 12.º, n.º 2 da LGT que determina, na interpretação, não inquestionável, mas correntemente seguida, uma segmentação pro rata temporis do período de tributação, o que exclui a consideração do saldo anual. Assim, em atenção ao princípio da não contradição da ordem jurídica, das duas uma: ou a ratio decidendi assenta exclusivamente no n.º 2 do art. 12.º da LGT e desrespeita o art. 43.º, n.º 1 do CIRS, ou se aplica o art. 43.º, n.º 1 do CIRS e se afasta a aplicação do n.º 2 do art. 12.º da LGT.

 

9. Ora, quando duas regras simultaneamente vigentes colidem no seu sentido prescritivo ou nas consequências jurídicas que produzem, impõe-se, naturalmente, resolver o conflito, em nome da diretriz da unidade do sistema jurídico, mediante o recurso a um critério que confira prevalência a uma regra sobre a outra no respectivo campo de aplicação.

Como é sabido, a lei especial, no seu domínio próprio de aplicação, sobrepõe-se à lei geral, pelo que, em caso de conflito, aquela prevalece sobre esta.

Na verdade, por força do princípio lex specialis derogat legi generali, um conflito normativo resultante da presença de regras jurídicas aparentemente desconformes é resolvido pela preferência dada à norma especial para o seu campo específico de aplicação. O princípio da especialidade assim reconhecido funda-se na ideia de que a norma especial, cuja previsão está compreendida igualmente na previsão de uma norma mais geral, mostra-se mais aderente e adequada às realidades particulares a que se dirige, “tal como o fato por medida assenta melhor que o “pronto a vestir””, para citar a comparação clássica de QUADRI[6].

 

10. Pois bem, a LGT, como indica a sua própria denominação, constitui normatividade de âmbito geral, pelo que é afastada pelas regras especiais aplicáveis. Isto mesmo é expressamente consignado no art. 1.º da LGT, sobre âmbito de aplicação, já que o seu n.º 1 estabelece: “A presente lei regula as relações jurídico-tributárias, sem prejuízo do disposto no direito comunitário e noutras normas de direito internacional que vigorem diretamente na ordem interna ou em legislação especial”. O disposto em legislação especial prefere, pois, ao disposto na Lei Geral Tributária, pelo que, sem a alteração expressa daquela legislação especial, não há que aplicar com supremacia esta Lei Geral.

Acrescente-se, claro está, que não vale aqui nenhum critério de hierarquia, pois a Lei Geral Tributária (que de “Lei” só tem a designação que lhe foi dada pois não passa de um decreto-lei) não cabe no conceito de lei com valor reforçado (artigo 112.º, n.º 3, da CRP), não constituindo, assim, pressuposto normativo necessário ou parâmetro de validade de outras leis[7].

Por outro lado, não se pode entender que a LGT tenha, só por si,  como lex posteriori, afectado as soluções conflituantes constantes dos diversos Códigos. Para além do disposto no bem conhecido n.º 3 do art. 7.º do Cód. Civil, segundo o qual “A lei geral não revoga a lei especial, excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador”, deve-se salientar que a Lei n.º 41/98, de 4 de Agosto, que autorizou o Governo a publicar uma lei geral tributária, determinou no art. 3.º, epigrafado “Legislação a revogar e a alterar”, o seguinte: “O Governo promoverá, mediante decretos-leis ou propostas de lei, a revogação expressa das normas contrárias à lei geral tributária e a alteração das normas dos códigos e leis tributárias cujo sentido tenha sido alterado pela lei geral tributária”. Deste modo, via de regra, sem específicas alterações, as disposições dos Códigos mantiveram, no seu campo específico de aplicação, a sua força vinculativa própria.

 

11. Como normatividade de âmbito geral, a disposição do art. 12.º, n.º 2 da LGT não pode ser feita valer em relação a toda e qualquer legislação atinente a facto tributário de formação sucessiva sem se apurar se não existe regulação especial respeitante a particulares factos tributários de formação sucessiva.

Assim, pois, não cabe convocar tal disposição geral sobre aplicação da lei no tempo sem verificar se dos regimes específicos em consideração não resultam soluções particulares sobre o seu próprio âmbito temporal de aplicação. Pode suceder, com efeito, que do próprio teor das disposições fiscais aplicáveis resulte a solução particular a dar à questão da respectiva aplicação no tempo[8]. Com efeito, como já escrevemos noutro local[9], a diretriz primária sobre a matéria da aplicação das leis no tempo é a interpretação da própria lei em questão, já que em função dessa interpretação podem ser obtidos resultados quanto à determinação da respectiva eficácia temporal e, designadamente, sobre se a mesma pretende abranger ou não factos ou situações constituídos ou iniciados anteriormente a sua vigência – não basta, pois, olhar para o art. 12.º da LGT, pois tal norma não prevalece sobre os resultados da interpretação da própria lei que esteja em causa.

 

12. Pois bem, o Código do IRS, ou, pelo menos, a generalidade dos enunciados normativos dele constantes, constitui regulação especial para efeitos de fixação do critério de aplicação temporal da lei relevante em sede de tributação em IRS, pelo que prevalece relativamente ao disposto no art. 12.º, n.º 2 da LGT, por força do princípio lex specialis derogat legi generali.

Isto sucede porquanto as referidas disposições do CIRS não operam apenas como uma regulação sobre a incidência e a matéria colectável do imposto, não influenciam exclusivamente a morfologia tributária, mas envolvem concomitantemente uma dimensão normativa atinente à aplicação da lei no tempo, trazendo implícito um critério sobre a aplicação temporal das normas que se integrem, em termos coerentes, no CIRS, critério esse que será aplicável na ausência de solução específica de direito transitório e que prevalece no seu campo próprio de aplicação sobre o disposto na LGT. As soluções relevantes sobre aplicação da lei no tempo não têm forçosamente de estar expressas em normas especificamente dirigidas a tal questão, mas podem estar ínsitas ou resultar de outros enunciados normativos, devidamente interpretados, como sucede precisamente com o n.º 1 do art. 43.º do CIRS.

Na verdade, o Código do IRS, pela específica natureza da fenomenologia tributária que genericamente conforma, opera nos termos de um “arco temporal”, pelo qual a factualidade tributária atinente à imposição dos rendimentos a que se reporta assenta em – e é mesmo constituída por – um período anual (art. 143.º do CIRS). Na sua estrutura típica[10], o CIRS reporta-se a uma factualidade tributária de formação sucessiva em que o momento relevante para a aplicação das respectivas normas é a conclusão final da formação da factualidade, a qual é dada pelo último dia do período de tributação de realização dos rendimentos tributáveis.

O princípio da anualidade do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares envolve, assim, a consequência de que, no seu âmbito de regulação, a lei aplicável em sede de conflitos de leis no tempo é aquela que se encontra em vigor no termo do período de tributação. O Código do IRS é, assim, na generalidade das suas regulações, auto-suficiente quanto à aplicação no tempo das normas nele compreendidas: elas valem e tem eficácia para todo o período anual de tributação.

 As normas de alteração do CIRS, na ausência de determinação particular, são, em suma, sincrónicas com o período de tributação, principiando a sua aplicação com o início do próprio período a que respeitem.

 

13. Nestes termos, na atual situação regulatória, via de princípio, as normas constantes do, ou introduzidas no, CIRS, independentemente de entrarem em vigor no primeiro dia do ano ou a meio do ano ou até, no limite mais radical, no último dia do ano, por natureza reportam-se ao período temporal em curso, pelo que, quando nada indiquem quanto à sua eficácia temporal, implicitamente prescrevem a sua aplicação a todo o ano a que respeitam, reportando os seus efeitos ao primeiro dia do período anual de tributação, de modo a abrangerem todos os factos geradores e rendimentos que se verifiquem até 31 de Dezembro de cada ano.

Justamente, como a factualidade tributária relevante neste âmbito é constituída pelo saldo positivo entre as mais-valias e as menos-valias apurado em relação a todo o ano, a lei nova que constitui a Lei n.º 15/2010 deve aplicar-se a todas as mais-valias realizadas desde 1 de Janeiro a 31 de Dezembro de 2010. A disposição constante do n.º 1 do artigo 43.º do CIRS  constitui, assim, uma norma especial que afasta, por si mesma, qualquer fraccionamento pro rata temporis do período anual de tributação, pois impõe antes a consideração do período de tributação desde o seu início e na sua integralidade.

Por isto, respeitosamente dissinto da decisão em sentido oposto que foi adoptada nos presentes autos.

 

14. Acrescente-se que este entendimento não afasta a concepção de que a lei  nova se aplica aos factos posteriores à sua entrada em vigor (cfr. n.º 1 do art. 12.º da LGT e n.º 1 do art. 12.º do Cód. Civil).

É que factos produzidos depois da entrada em vigor de uma norma, sujeitos ao seu domínio de aplicação, não são apenas os factos instantâneos, mas são também os factos que, tendo-se iniciado antes da entrada em vigor da lei nova, constituem uma situação que ainda subsiste nessa data e que projeta a sua existência no futuro para o domínio temporal da aplicação da lei nova.

É isto precisamente o que sucede, via de regra, com a factualidade relevante em sede de IRS, que respeita a factos ou estados fácticos com trato sucessivo (o rendimento anual), cuja consubstanciação ainda decorre quando a entrada em vigor da lei nova ocorre durante o período de tributação.

Para citar uma formulação clássica, excelentemente cinzelada, de RODRIGUES QUEIRÓ[11] que reputo inteiramente aplicável a este sector normativo: “as situações de fato de trato sucessivo estão à mercê das leis sucessivas, presumidas mais justas e progressivas. Em casos destes, não é aceitável que a factos ou situações idênticas se aplique direito diferente, à medida que o direito se altere”. “A lei sucessiva tem, neste campo, em princípio, imediata aplicação, no pressuposto de que a lei nova tutela melhore que a lei anterior o interesse público que à Administração compete prosseguir, e porque esse interesse público requer, sob pena de extrema confusão nas relações jurídicas, uma disciplina uniforme de todas as situações, sem atenção pelo momento em que surgiram”.

Assim, a subordinação das mais valias realizadas que se encontram em apreciação nos autos à nova regulação não põe em causa a aplicação do princípio geral de que os factos jurídicos se regem pela lei vigente ao tempo em que ocorrem. Isso resulta, como se disse, de o imposto se referir a um período de tributação, pelo que o momento final ou conclusivo do período de tributação funciona como o termo de referência para a aplicação temporal das regras do IRS, sendo relevante a normatividade que estiver em vigor no dia do encerramento do período de tributação.

 

e) A questão da alegada inconstitucionalidade

 

15. A solução assim perfilhada obriga a analisar um último tema, que se prende com saber se dela resulta uma afectação do princípio da não retroatividade dos impostos, consagrado no n.º 3 do artigo 103.º da CRP, ou se põe em crise o princípio da proteção da confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito consagrado no art. 2.º da CRP. Com efeito, como se adiantou no início desta declaração, fixada a aplicação temporal da Lei n.º 15/2010 a todo o ano de 2010, compreendendo, pois, os atos de alienação de participações sociais que sejam anteriores a 27 de Julho de 2010, data da entrada em vigor daquela Lei, é preciso seguidamente verificar se esse resultado normativo não se deve ter por inconstitucional.

Pois bem, a este respeito, afigura-se-nos suficiente recorrer ao direito “vivente” que se consubstancia na jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a matéria (cfr. acórdãos n.ºs 128/2009 e 399/2010).

Assim, no que concerne ao princípio da não retroatividade constante do art. 103.º, n.º 3 da CRP é suficiente notar que, na orientação seguida pela jurisprudência constitucional, este princípio apenas se aplica à retroatividade forte, autêntica ou própria, relativamente à qual veda, de modo absoluto, uma atuação legislativa de tributação de um facto integralmente ocorrido no âmbito de vigência da lei fiscal antiga. Ora, como se viu atrás, não é possível falar em relação à Lei n.º 15/2010 em tal espécie de retroatividade, porquanto como a solução legal se aplica ao saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas em cada ano, concerne a factualidade ainda em formação, cuja verificação plena só tem lugar no fim do período de tributação, pelo que a respectiva consubstanciação integral e definitiva ocorre no domínio na lei nova.

A não subsunção da situação sub judicio à proibição da retroatividade constante do art. 103.º, n.º 3 do CRP não resolve, porém, todas as questões de inconstitucionalidade, já que, como é sabido, resulta igualmente da jurisprudência constitucional que as manifestações normativas de retroatividade fraca, inautêntica ou de retrospectividade devem subordinar-se ao crivo do parâmetro da confiança decorrente do princípio do Estado de Direito reconhecido no artigo 2.º da CRP.

Pois bem, a este respeito, para não recorrer a luzes próprias, parece bastante, pelo seu significado, citar a tomada de posição institucional do Provedor de Justiça (processo R-3736/10) sobre a tributação aplicável, por força da referida Lei n.º 15/2010, às operações de alienação de valores mobiliários, e às mais-valias com as mesmas realizadas, efectivadas entre 1 de Janeiro e 26 de Julho de 2010, no que se refere às ações até então detidas pelo alienante há mais de 1 ano:

Resulta claro do Acórdão n.º 399/2010 que, nestas situações, o Tribunal Constitucional considera que não há retroatividade autêntica ou própria, a única, de acordo com a mesma doutrina do Tribunal, que é proibida pelo art.º 103.º, n.º 3, da Lei Fundamental.

Quanto à questão da proteção da confiança, o nível de frustração das expectativas dos visados pelas alterações promovidas pela Lei n.º 15/2010 é aqui manifestamente mais grave do que o verificado na situação que envolve a mera compra de valores mobiliários no âmbito da lei antiga.

No entanto, tendo o Tribunal Constitucional entendido, no âmbito do Acórdão n.º 399/2010, que o estabelecimento, em Junho deste ano, de um novo escalão de IRS, e o aumento, na mesma data, da taxa de IRS em todos os escalões do imposto, com efeitos reportados em ambas as situações ao início do ano, não colide de forma intolerável com decisões de vida que os contribuintes tenham eventualmente tomado, dificilmente considerará de forma diferente no que às alterações sobre o regime de tributação das mais-valias mobiliárias diz respeito.

Mesmo que assim não o considerasse o Tribunal Constitucional, sempre seria invocável a circunstância de, também neste caso, à semelhança da situação do Acórdão n.º 399/2010, ocorrerem razões de interesse público, associadas à situação económico-financeira do país, que justificam, após ponderação dos elementos conflituantes em presença, a não continuidade do comportamento do Estado que originou a situação de expectativa dos privados”.

Acrescentaria unicamente que como está em causa na anterior exclusão de tributação das mais-valias mobiliárias resultante do revogado n.º 2 do art. 10.º do CIRS um benefício fiscal “sem justificação económica ou ética”, configurável como “verdadeiro paraíso fiscal interno[12], “uma verdadeira aberração[13], “uma situação que viola frontalmente a equidade da tributação”, “uma tão grave entorse aos princípios basilares da justiça na tributação”, pois “é possível obter rendimentos deste tipo, qualquer que seja o respectivo valor, sem haver lugar ao pagamento de um cêntimo de imposto[14], dificilmente parece sequer configurável uma situação de confiança merecedora de tutela.

 

16. Eis as razões essenciais pelas quais julgo que a aplicação das soluções consagradas com a Lei n.º 15/2010 a todas as mais-valias mobiliárias realizadas no ano de 2010 constitui a posição correta em face do ordenamento jurídico e que, por isso, deveria ter determinado a solução da questão da aplicação da lei no tempo, e, subsequentemente, conduzido à apreciação das demais questões objecto do pedido de pronúncia arbitral. Daí este voto de vencido.

 

 

João Menezes Leitão

 



[1] Tese esta que, como se refere no ponto 6.11 da decisão, já foi igualmente acolhida no acórdão do tribunal arbitral deste CAAD proferido no processo arbitral n.º 25/2011-T, bem como no acórdão do STA de 4.12.2013, proferido no proc. n.º 01582/13 (muito embora com fundamentação distinta). Como nas tarefas de realização do Direito a única autoridade válida é a dos argumentos que são invocados, não conseguimos igualmente orientar-nos por estas decisões antecedentes.

[2]Mais-valias, expectativa e solidariedade” in Expresso, 1.5.2010, Economia, p. 11.

[3] Tratado de Direito Civil, I, 4.º ed., Coimbra, Almedina, p. 717.

[4] Cite-se a significativa disposição do art. 16.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro: “As modificações que de futuro se fizerem sobre matéria contida no Código serão consideradas como fazendo parte dele e inseridas no lugar próprio, devendo essas modificações ser sempre efetuadas por meio de substituição dos artigos alterados, supressão dos artigos inúteis ou aditamento dos que forem necessários”.

[5] JOÃO BATISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, Almedina, 1983, p. 183.

 

[6] ROLANDO QUADRI, Dell'Applicazione della Lege in Generale, in ANTONIO SCIALOJA/GIUSEPPE BRANCA (org), Commentario del Codice Civile  Bologna/Roma, 1974, p. 326.

[7] Vd. com clareza neste sentido os acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 289/12 e 308/2007.

[8] Já seguimos esta metodologia no nosso trabalho, velho de anos, “Aplicação temporal da alteração legislativa introduzida pelo DL nº 197/2001, de 29 de Junho ao Regime do Crédito Fiscal ao Investimento em I&D (DL nº 292/97, de 22 de Outubro). Sujeito passivo com período especial de tributação” in Ciência e Técnica Fiscal, n.º 406 (Abril/Junho de 2002), pp. 452-453, 461, 462-463.

[9] Ult. loc. cit., pp. 462-463.

[10] Que respeita, adite-se, à tributação do rendimento, excluindo, pois, desde logo, as situações relativas à tributação de encargos que apenas formalmente pertencem ao CIRS.

[11] Lições de Direito Administrativo, Coimbra, 1976, pp. 520-521.

[12] As expressões devem-se a ANTÓNIO CARLOS DOS SANTOS, “A crise financeira e a resposta da União Europeia: que papel para a fiscalidade?” in SÓNIA MONTEIRO/SUZANA COSTA/LILIANA PEREIRA (coord.),  A fiscalidade como instrumento de recuperação económica, Porto, Vida Económica, 2011, pp. 19-40 [pp. 36-37].

[13] A incisiva qualificação pertence a MANUEL FAUSTINO, “Retroactividade, Retrospectividade e alguma serenidade” in RFPDF, ano III, n.º 3 (2010), pp. 183-208 [p. 205].

[14] As citações pertencem agora a Competitividade, Eficiência e Justiça do Sistema Fiscal. Relatório do Grupo para o Estudo da Política Fiscal, Lisboa, CEF, 2009, p. 249.