Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 394/2021-T
Data da decisão: 2022-03-21  IRS  
Valor do pedido: € 10.815,25
Tema: IRS – Residência fiscal – artigo 16.º do CIRS – Convenção sobre Dupla Tributação celebrada entre Portugal e Espanha.
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DECISÃO ARBITRAL

 

  1. RELATÓRIO

 

A..., sujeito passivo com número de identificação fiscal ... e B..., sujeito passivo com número de identificação fiscal ..., vêm requerer pedido de pronúncia arbitral (doravante PPA), nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 10.º e 2.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que regula o Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (doravante RJAT), submetendo à apreciação do Tribunal Arbitral a legalidade do ato tributário a seguir identificado.

Constitui objeto do presente pedido a liquidação de IRS n.º 2020..., referente ao período de tributação de 2016, com valor total de imposto a pagar de € 10.815,25, e com prazo para pagamento voluntário, até 18-01-2021, tendo os Requerentes procedido ao pagamento do mesmo.

No ano de 2016, os Requerentes consideram que a sua residência fiscal se situou em Espanha, e nesta medida, que não teriam de apresentar a declaração de rendimentos, modelo 1 de IRS, em Portugal.

 

 

Peticionam que seja declarada a ilegalidade e consequente anulação da liquidação de IRS             n.º 2020... e bem assim, que seja efetuado o reembolso do montante de imposto pago ao abrigo de tal ato de liquidação, acrescido do pagamento de juros indemnizatórios, até integral pagamento.

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Ex.mo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente enviado email à Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante AT), a informar da entrada de um pedido de constituição de tribunal arbitral e do n.º do processo atribuído, em 02-07-2021, tendo por sua vez a AT sido notificada, em 05-07-2021.

Nos termos do disposto na alínea a), do n.º 2, do artigo 6.º e da alínea b), do n.º 1, do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, a signatária foi designada pelo Ex.mo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente tribunal arbitral singular, tendo aceitado nos termos legalmente previstos. 

Em 09-09-2021, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º, do Código Deontológico.

Síntese da posição das Partes:         

 

  1. Dos Requerentes

Os Requerentes apresentaram alegações escritas onde mantêm, no essencial, os argumentos apresentados na petição inicial, acrescentando ou sublinhando o seguinte:

Que submeteram a este tribunal um pedido de pronúncia sobre a ilegalidade e consequente anulação da liquidação de IRS n.º 2020...;

 

Entendem os Requerentes que esta liquidação está ferida de ilegalidade porquanto considerou o Requerente marido residente em Portugal, no ano de 2016;

Que desde logo, o aqui Requerente marido não cumpre o requisito de residência previsto no n.º 1 do artigo 16.º do CIRS;

Em primeiro lugar, porque em 2016, não permaneceu no nosso País mais do que 183 dias;

Por outro lado, a sua residência não era a sua habitação própria e permanente;

Sendo ainda certo que, apesar das considerações efetuadas pela AT, nada do que alega quanto a estes factos se encontra provado;

Acresce que, a AT entende que o SP alterou, em 29-07-2016, o seu domicílio fiscal para Portugal, sem que disso faça também qualquer prova, quer na resposta apresentada, quer no PA junto aos autos;

O Requerente marido nessa data trabalhava e vivia em Espanha, conforme contratos de trabalho junto aos autos;

Aliás, em 01 de julho de 2016, assina um novo contrato em Espanha passando a ser jogador do El Pozo, e como tal mantem a sua residência em Espanha;

Isso mesmo demonstra também o certificado emitido pela Agência Tributaria Espanhola, referindo que o mesmo é residente em Espanha, desde 17 julho de 2015;

Por outro lado, o aqui Requerente nunca solicitou a alteração do domicílio fiscal para Portugal, e o único facto que pode ter ocorrido foi no pedido de cartão de cidadão terem colocado a morada em Portugal;

O SP não podia simultaneamente viver em Espanha, onde treinava todos os dias e participava em jogos ao fim de semana, e depois ter em Portugal a sua residência habitual;

E ainda que existisse a informação de outra residência em Portugal, facilmente se conseguia verificar que tendo o contribuinte trabalhado em Espanha em 2016 e 2017, não poderia residir em Portugal uma vez que tinha treinos diários e jogos naquele País, sendo os contratos de trabalho juntos prova suficiente para o efeito;

Não obstante, ainda no plano conceptual, podemos verificar a divergência entre a residência habitual e a residência própria permanente, tal como o domicílio fiscal nem sempre coincide com a residência no sentido do local onde a pessoa tem a sua habitação, podendo inclusive tal conclusão inferir-se da redação do artigo 82.º do Código Civil, que admite a possibilidade de residência ou domicílio em diferentes locais;

Concluem em suma os Requerentes que:

“O aqui Requerente, em 2016, era residente fiscal em Espanha, e isso resulta da prova efetuada nos autos, quer pelo certificado emitido pelas autoridades tributárias espanholas quer pelos contratos de trabalho juntos;

A AT não pode alegar que o Requerente alterou a sua residente e comunicou tal facto à AT, sem que faça prova dos factos;

Não tendo solicitado a alteração de morada para efeitos fiscais, a mesma não podia ser alterada;

E ainda que se entenda que há uma presunção assumindo-se que o domicílio fiscal é a residência permanente de acordo com o cartão de cidadão, sempre se dirá que esta presunção é ilidível;

A sua habitação própria e permanente, era em 2016, em Espanha, e isso ficou devidamente provado nos autos;

Assim, não sendo residente em Portugal não tinha o SP de apresentar declaração dos rendimentos obtidos no estrangeiro;

 

A doutrina e a jurisprudência parecem perfilhar o entendimento de que não existe uma identidade entre “domicílio fiscal” e “residência permanente” admitindo que o contribuinte comprove a sua residência permanente apresentando “factos justificativos” de que aí fixou de forma habitual e permanente o centro da sua vida pessoal;

Neste sentido, o acórdão n.º 04550/11 do Tribunal Central Administrativo do Sul, “O conceito de domicílio fiscal estatuído no disposto no artigo 19° da LGT, nomeadamente o seu n.º 1 é um domicílio especial que se refere a um lugar determinado para o exercício de direitos e o cumprimento dos deveres previstos nas normas tributárias o qual, sendo especial, (…) embora, ideologicamente e na sua essência o disposto naquele primeiro inciso legal se conecte com a necessidade de o sujeito passivo e a AT estarem em contacto sempre que o for necessário para o exercício dos respetivos direitos e deveres, em homenagem ao princípio da colaboração ínsito no art.º 59º da LGT;”

O domicílio fiscal é, assim, um domicílio especial, pelo qual se expõe a um lugar determinado o exercício dos direitos e o cumprimento dos deveres previstos nas normas tributárias (cfr. António Lima Guerreiro, Lei Geral Tributária anotada, 2000, Rei dos Livros, pág.119; Diogo Leite de Campos e outros, Lei Geral Tributária comentada e anotada, Vislis, 2003, pág.124) oportunamente citados no Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul acórdão n.º 04870/11 da Secção: CT-2º JUIZO de 25 de Outubro de 2011;

Assim, deve o pedido efetuado ser procedente por provado e consequentemente declarada a ilegalidade e consequente anulação da liquidação de IRS n.º 2020... e, consequentemente que seja feito o reembolso do montante de imposto pago ao abrigo de tal ato de liquidação acrescido do pagamento de juros indemnizatórios, até integral pagamento”.

 

  1. Da Requerida

A Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante AT) apresentou resposta, em que defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.

Segundo a Requerida, o cerne da argumentação do Requerente assenta no facto de no ano de 2016, ser residente em Espanha, por aí se encontrar a trabalhar como jogador de Futsal de um clube desportivo, e ter apresentado nesse ano a declaração de rendimentos em Espanha, referente aos rendimentos ali obtidos.

Refere a Requerida que por consulta ao Sistema de Gestão e Registo de Contribuintes, verificou-se que o Requerente:

- Em 2014-12-22, alterou o seu domicílio fiscal para Espanha;

- Em 2016-07-29, alterou o seu domicílio fiscal para Portugal;

- Em 2016-12-23, alterou o seu domicílio para Espanha;

- Em 2017-08-14, alterou o seu domicílio para Portugal.

A Requerida vem ainda, em síntese, invocar o seguinte:

“Apesar de o Requerente ter residido por um período inferior a 183 dias em território nacional, verifica-se que, por um lado, possuía habitação em condições de fazer supor a intenção de a manter e ocupar como residência habitual, e por outro lado, ao ter alterado o seu domicílio para Portugal, em 2017-08-14, é considerado residente em território nacional relativamente à totalidade do ano de 2016;

Que nos termos do n.º 1 do artigo 15.º do CIRS, “sendo as pessoas residentes em território português, o IRS incide sobre a totalidade dos seus rendimentos, incluindo os obtidos fora desse território”;

Que nos termos do n.º 1 do artigo 74.º da LGT o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos dos contribuintes recai sobre quem os invoque;

 

Que embora o Requerente alegue que foi residente em Espanha, na totalidade do ano de 2016, tendo protestado juntar ao pedido certificado de residência fiscal para efeitos do artigo 4.º da Convenção celebrada entre Portugal e Espanha no referido ano, o que sucedeu a 13-09-2021, no certificado de residência emitido pela Agência Tributária Espanhola, observa-se a seguinte inscrição:

“CERTIFICO QUE Solo consta como domicílio desde el momento de alta 17/julio 2015 en Av. ... Madrid”;

Que atendendo à informação que consta do certificado, não se pode depreender que no ano de 2016, o Requerente residiu em Espanha, muito menos qual ou quais os períodos que aí residiu.

Que nem tal podia declarar, uma vez que como se referiu no articulado da Resposta, o Requerente alterou a sua morada fiscal para Portugal, em 29/07/2016, tendo posteriormente alterado a morada para Espanha a 23/12/2016”;

Refere ainda que, não foi junta a declaração de rendimentos apresentada às autoridades fiscais espanholas de modo a comprovar que foi tributado como residente naquele país e pela universalidade dos seus rendimentos.

Tendo-se verificado que o Requerente foi residente em Portugal e que pagou imposto no estrangeiro, verifica-se que, conforme dispõe o artigo 81.º do CIRS e a alínea a), n.º 2 do artigo 23.º da Convenção para Evitar a Dupla Tributação celebrada entre Portugal e Espanha, foi aquele montante considerado na liquidação, para efeitos de atenuação ou eliminação da dupla tributação internacional;

Assim, verificando-se que ao abrigo das normas nacionais o Requerente é considerado residente em Portugal, no ano de 2016, e que de acordo com a referida Convenção, Portugal tem competência para tributar os rendimentos auferidos em Espanha, o Requerente estava obrigado a declarar os rendimentos auferidos no estrangeiro, pelo que a liquidação atualmente em vigor não se encontra ferida de qualquer ilegalidade, e, consequentemente, deverá ser negado provimento ao pedido;

Quanto ao pedido de juros indemnizatórios, improcedendo o pedido de declaração de ilegalidade da liquidação em crise, improcede, igualmente, o pedido de reembolso do imposto pago em excesso bem como o pedido de juros indemnizatórios”.

***

Em conformidade com o preceituado na alínea c), do n.º 1, do artigo 11.º, do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral singular, foi constituído em 28-09-2021.

Em 28-09-2021, foi proferido despacho arbitral ordenando a notificação do dirigente máximo do serviço da administração tributária para apresentar resposta, nos termos e prazo do artigo 17.º, n.ºs 1 e 2, do RJAT, o que efetuou, em 02-11-2021, juntando Processo Administrativo (doravante PA).

Em 10-11-2021, foram notificadas as partes do despacho, de 09-11-2021, proferido pelo Tribunal Arbitral, no qual se dispensava a reunião prevista no artigo 18.º, n.º 1, do RJAT, convidando-se as partes, querendo, a apresentar alegações escritas por prazo simultâneo, em 30 dias, o que o Requerente efetuou, em 13-12-2021.

No mesmo despacho o Tribunal Arbitral estimava ainda que, a prolação de decisão arbitral ocorresse dentro do prazo máximo previsto no n.º 1, do artigo 21.º, do RJAT, convidando o Requerente, a pagar a taxa arbitral subsequente prevista no artigo 4.º, n.º 3, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

 

  1. SANEAMENTO

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à luz do preceituado nos artigos 2.º n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (RJAT), e é competente.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

Não foram suscitadas exceções de que deva conhecer-se.

O processo não enferma de nulidades.

Inexiste, deste modo, qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

  1. MATÉRIA DE FACTO

 

1. Factos provados:

Consideram-se provados os seguintes factos relevantes para a decisão:

Em 01-07-2016, o Requerente celebrou um contrato de trabalho como jogador de futebol profissional, em Espanha, para a temporada de 2016/2017, com a C..., sediada em ..., sita na Av...., Murcia (CIF G-...), em Espanha;

Em 2017-05-22, foi entregue a declaração Modelo 3 de IRS relativa ao ano de 2016, na qual o Requerente mencionou, relativamente ao estado civil, ser unido de facto com B..., NIF..., e ser não residente em Portugal, com opção pela tributação pelo regime geral;

 

Através do ofício n.º ..., de 2020-07-31, da Direção de Finanças de Lisboa, foi o Requerente notificado para exercer o direito de audição ou entregar declaração de substituição na situação de residente em Portugal e onde constasse o Anexo J com os valores obtidos no estrangeiro (Espanha);

O Requerente marido auferiu o rendimento de € 90.120,62, e suportou o imposto de € 21.628,93, referente a trabalho dependente prestado no ano de 2016, à entidade patronal D..., sediada em Espanha;

 Em 2020-11-27, foi elaborada declaração de substituição/DC, na qual foi o Requerente considerado residente em Portugal e considerados no Anexo J os valores auferidos em Espanha, bem como o imposto suportado, da qual resultou a liquidação n.º 2020..., de 2020-12-02, com o valor a pagar no montante de € 10.815,25 e com data limite de pagamento, a 18-01-2021;

Desta alteração foi o Requerente notificado através de ofício registado com A/R, em 03-12-2020;

O Requerente procedeu ao pagamento do imposto, resultante da liquidação n.º 2020..., de 2020- 12-02, no montante de € 10.815,25, em 08-06-2021;

Em 10-09-2021, juntou aos presentes autos o certificado de residência emitido pela Agência Tributária Espanhola, de onde constava a seguinte inscrição:

“CERTIFICO QUE Solo consta como domicílio desde el momento de alta 17/julio 2015 en Av. ... Madrid. 17”;

 

2. Factos não provados:

Não ficou provado que o Reclamante dispunha de habitação em Portugal e “em condições de fazer supor a intenção de a manter e ocupar como residência habitual”.

Com relevo para a decisão da causa, não existem outros factos que não tenham ficado provados.

 

3. Fundamentação da fixação da matéria de facto:

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe antes o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada.

Assim, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. o artigo 596.º, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 29.º n.º 1 alínea e), do RJAT).

Os factos dados como “provados” e “não provados” foram-no com base nos documentos juntos aos autos com o PPA, e no PA - todos documentos que se dão por integralmente reproduzidos - e, bem assim, no consenso das partes.

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º n.º 7, do CPPT (aqui aplicável por força do disposto no artigo 29.º n.º 1, alínea a), do RJAT), a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados e não provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

Não se deram como provadas nem não provadas as alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

  1. DO DIREITO

 

1. A questão a decidir:

Atendendo às posições das partes assumidas nos articulados apresentados, a questão central a dirimir pelo presente Tribunal Arbitral consiste em apreciar a legalidade do ato de liquidação de IRS n.º 2020..., com valor total de imposto a pagar de € 10.815,25, referente ao período de tributação de 2016, por vício de violação de lei.

 A questão decidenda, perante a factualidade dada como provada e as normas legais em vigor à data dos factos, consiste, pois, em apreciar se o Requerente A..., sujeito passivo com número de identificação fiscal..., no ano de 2016, preenchia os requisitos para ser considerado residente fiscal em Portugal, e consequentemente, se como tal poderá ser tributado pela totalidade dos seus rendimentos, em Portugal.

Cumpre apreciar e decidir.

O conceito de residência para efeitos de incidência pessoal do IRS era-nos dado, como ainda hoje acontece, pelo artigo 16.º do Código do IRS (doravante CIRS) que, na redação em vigor à data, dispunha:

1 – São residentes em território português as pessoas que, no ano a que respeitam os rendimentos:

a) Hajam nele permanecido mais de 183 dias, seguidos ou interpolados, em qualquer período de 12 meses com início ou fim no ano em causa;

b) Tendo permanecido por menos tempo, aí disponham, num qualquer dia do período referido na alínea anterior, de habitação em condições que façam supor intenção atual de a manter e ocupar como residência habitual;

c) Em 31 de dezembro, sejam tripulantes de navios ou aeronaves, desde que aqueles estejam ao serviço de entidades com residência, sede ou direção efetiva nesse território; d) Desempenhem no estrangeiro funções ou comissões de carácter público, ao serviço do Estado Português.

2 - Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se como dia de presença em território português qualquer dia, completo ou parcial, que inclua dormida no mesmo.

 

E dispunha ainda o n.º 16, do artigo 16.º do CIRS: Um sujeito passivo considera-se, ainda, residente em território português durante a totalidade do ano sempre que volte a adquirir a qualidade de residente durante o ano subsequente àquele em que, nos termos do n.º 4, perdeu aquela mesma qualidade.

Recordando o argumentário principal em que se baseia a AT, veio esta invocar o seguinte:

“Apesar de o requerente ter residido por um período inferior a 183 dias em território nacional, verifica-se que, por um lado, possuía habitação em condições de fazer supor a intenção de a manter e ocupar como residência habitual, e por outro lado, ao ter alterado o seu domicílio para Portugal em 2017-08-14, é considerado residente em território nacional relativamente à totalidade do ano de 2016”.

Concordando a AT que não se encontra preenchida a previsão da alínea a) do n.º 1 do artigo 16.º, do CIRS, que consagra um critério de verificação puramente objetiva: a presença por um determinado número de dias mínimo no território português (mais de 183 dias), não qualificando o Requerente como residente em território português, ao abrigo deste critério, vejamos se se qualificaria através da previsão normativa constante da alínea b) do mesmo n.º 1.

Para o efeito, diz-nos o direito interno, que o Requerente teria de ter tido à sua disposição, a 31 de dezembro de 2016, uma habitação “em condições que façam supor a intenção de a manter e ocupar como residência habitual”.

O nosso legislador fiscal vem assim exigir uma apreciação, não só de natureza objectiva, como de natureza subjectiva – o animus com que o contribuinte dispõe de uma habitação em Portugal.

Ou seja, exige a verificação de condições que façam supor a “intenção” não só de manter, como também a intenção de ocupar tal habitação como sua residência habitual.

 

A título meramente exemplificativo, não será esse o caso de um contribuinte manter uma casa em Portugal para gozo de férias, ou residindo e trabalhando no estrangeiro, manter uma habitação em Portugal para o caso de voltar ao país de origem com o objetivo de aí residir de modo habitual, se e quando tal vier a acontecer.

Para preenchimento da previsão normativa, e prova da existência da referida intenção animus, deverá assentar quer em elementos objetivos, quer subjetivos.

Não bastarão, por exemplo, comprovativos de pagamentos de despesas de manutenção da habitação, carecendo-se de elementos que atestem no sentido de que (que façam supor que), existe o tal animus, a sua presença.

A este respeito, veja-se Manuel Faustino, em os “Os Residentes no Imposto Sobre o Rendimento Pessoal (IRS) Português”, CTF [424] julho-dez. 2009, pp. 99-147, p. 124.

Ora, não se provou que o Requerente dispunha de qualquer habitação em Portugal, nada apontando nos autos nesse sentido, não resultando igualmente do processo que não dispunha daquela.

Mesmo que tivesse à sua disposição alguma habitação, no dia 31 de dezembro de 2016 (o que, volta a sublinhar-se, não resulta dos autos), tal não seria suficiente para preencher a previsão normativa da alínea b). Teria de resultar também provado não só algum período de permanência, como ainda o animus, a intenção do Requerente de manter e ocupar, uma tal (hipotética) habitação, que lhe estivesse eventualmente disponível para o efeito de ser a sua residência habitual.

Considerando que a alínea b) do artigo 16.º, do CIRS exige três requisitos de cuja verificação cumulativa depende a qualificação como residente, fica desde já assente que o Requerente não reunia os pressupostos necessários para tal, não sendo considerado residente fiscal, em Portugal, com base na alínea b) do n.º 1 do artigo 16.º, do Código do IRS.

 

Mas acrescenta a AT, como acima referido: “ao ter alterado o seu domicílio para Portugal em 2017-08-14, (o Requerente, acrescentado nosso), é considerado residente em território nacional relativamente à totalidade do ano de 2016”.

Seguindo com a análise dos critérios de residência fiscal, cumpre assim analisar de seguida, a interpretação e aplicação do artigo 16.º, n.º 16, do CIRS.

O legislador, na nova redação do artigo 16.º do CIRS, em vigor à data dos factos, estabeleceu cláusulas específicas antiabuso que permitem aplicar o estatuto de residência quer no ano de entrada, quer no ano de saída, por recurso ao n.º 16 do referido artigo 16.º, admitindo a todo o tempo, prova em contrário.

Fundar o estatuto de residência do sujeito passivo, em Portugal, no ano de 2016, apenas no conceito de domicílio fiscal invocado a coberto da alegada alteração do seu domicílio para Portugal, em 2017-08-14, sem atender à realidade material do caso, afigura-se frágil, e alheado da suprema missão, que é também a da AT, da busca da verdade material com recurso ao princípio do inquisitório. Já lá iremos.

Nos termos do artigo 19.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária (doravante LGT), o domicílio fiscal do sujeito passivo é – para as pessoas singulares – o local da sua residência habitual. Num contexto de pedido de número de contribuinte, a morada que é comunicada à AT, fica, pois, a constar da informação cadastral em poder da AT.

De acordo com o mesmo artigo 19.º, da LGT, é obrigatória a comunicação do domicílio à AT e é ineficaz a respetiva mudança enquanto a mesma não lhe for comunicada. Retirar, porém, daí, como consequência, que o contribuinte que não atualizou ou comunicou a alteração do seu domicílio, fica por essa razão sujeito ao estatuto de residente fiscal, é ultrapassar o previsto na lei, seja na sua letra, seja no seu espírito.

Desde logo da própria letra da lei, decorre que o conceito de domicílio fiscal não pode ser entendido como sinónimo de residência, ou sequer, sem mais, de residência habitual.

 

“A distinção fundamental entre os conceitos jurídicos de residência e domicílio reside no facto de a residência integrar as normas fiscais substantivas, as quais, por sua vez, determinam a existência e a extensão do poder de tributar, enquanto o domicílio fiscal determina a competência territorial dos órgãos da administração fiscal e dos tribunais administrativos e fiscais, sendo, no caso da administração fiscal, o local onde os contribuintes podem ser contactados” (vd. Helena Gomes Magno, “A Residência Fiscal das Pessoas Singulares”, Porto, 2019, p. 32).

Como escreve Rui Duarte Morais, “A questão de saber se alguém é ou não residente em Portugal é independente da do domicílio fiscal. Aquele que efetivamente transferiu a sua residência para o estrangeiro não pode mais ser considerado residente em Portugal, mesmo que nos registos da administração fiscal continue a figurar como domiciliado em Portugal (mesmo que por omissão dele, sujeito passivo, em promover a necessária alteração).”

Antecipando que no direito Tributário Internacional, a residência e domicílio são conceitos que não se confundem com o conceito de direito interno, acompanhamos igualmente as conclusões do douto Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul 803/05.0BESNT, de 08-07-2021, que aqui se reproduz parcialmente:

“Assim, considerar-se-á como residente em território nacional, para efeitos de tributação, quem se encontre em qualquer das situações enunciadas nos n.ºs 1 e 2 do artigo 16.º do CIRS.

O conceito de “não residente” apura-se a contrario, devendo considerar-se como tal quem não se encontre em qualquer das situações previstas no n.º 1 e 2 do artigo 16.º do CIRS.

Saber de alguém é ou não residente em Portugal não está dependente do domicílio fiscal, por este não constituir, no plano internacional, qualquer presunção de residência.

Sobre o conceito de domicílio fiscal pronunciou-se o TCAS em acórdão de 07/04/2011, proferido no proc. 04550/11, cujo sumário com a devida vênia transcrevemos:

 

«I) -O conceito de domicílio fiscal estatuído no disposto no artigo 19° da LGT, nomeadamente no seu n°1 é um domicílio especial que se refere a um lugar determinado para o exercício de direitos e o cumprimento dos deveres previstos nas normas tributárias o qual, sendo especial, é independente do estipulado no artigo 82. ° do Código Civil, embora, ideologicamente e na sua essência o disposto naquele primeiro inciso legal se conecte com a necessidade de o sujeito passivo e a A.F. estarem em contacto sempre que o for necessário para o exercício dos respectivos direitos e deveres, em homenagem ao princípio da colaboração ínsito no artº 59º da LGT. (…)».

Assim, o conceito de residência integra a hipótese de normas tributárias substantivas, determinantes da existência e da extensão da obrigação de imposto, enquanto o domicílio fiscal projecta-se em consequências processuais”.

Tudo visto, não colhe também o argumentário da Requerida, quanto a este ponto.

Não obstante, nos termos do artigo 15.º do CIRS a regra ser a de que os rendimentos obtidos em território nacional, quer por residentes quer por não residentes, são aqui tributados, o Estado português pode abster-se de tributar rendimentos obtidos no seu território quando, em face de uma Convenção para Evitar Dupla Tributação, o beneficiário dos rendimentos deva ser considerado residente no outro Estado e aí seja tributado.

A razão de ser das Convenções sobre Dupla Tributação (doravante CDT), funda-se precisamente na circunstância de vários Estados soberanos terem considerado que, as aplicações unilaterais das suas normas fiscais, consubstanciam uma potencial fonte de conflitos.

“Deste modo, ao lado das fontes tradicionais da lei fiscal têm surgido instrumentos jurídicos destinados a evitar a dupla tributação e a evasão fiscal internacional e que se integram no Direito Internacional Fiscal” (vd. Margarida Mesquita, “As Convenções sobre Dupla Tributação”, Lisboa, 1998).

Releva, então, para aferir da pretensão da Administração Tributária, saber se a mesma é legitima face ao texto da Convenção celebrada entre Portugal e Espanha para evitar a dupla tributação, uma vez que as regras convencionais se sobrepõem às leis nacionais (artigo 8.º, n.º 1 e 2 da CRP)”.

Nos termos do artigo 8.º n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP), as normas constantes das convenções internacionais regularmente ratificadas vigoram na ordem interna e vinculam internacionalmente o Estado Português não podendo por tal razão uma norma interna alterar uma norma constante da convenção. Nesse sentido veja-se o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 107/84 in BMJ n.º 365- 107.

Continuando com a análise dos critérios de residência fiscal, nesta linha, somos assim reconduzidos à questão de saber se, para efeitos de Convenção sobre Dupla Tributação (doravante CDT) celebrada entre Portugal e Espanha, aprovada pela Retificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 6/95, o Requerente deve ser considerado residente em Portugal ou em Espanha.

A CDT entre Portugal e Espanha, procura resolver situações de dupla residência, em que alguém tem “contactos prolongados com mais de uma ordem jurídica” (Cf. J. L. Saldanha Sanches, “Manual de Direito Fiscal”, Coimbra, 2007, pp. 339-340), através de diversas regras especiais (de desempate) cuja aplicação determinará a residência em apenas um dos Estados que reclamam a residência fiscal de um determinado sujeito passivo.

“As convenções internacionais sobre dupla tributação aceitam tal competência (…) limitando-se a estabelecer regras de «desempate» que permitem qualificar um contribuinte como residente em (apenas) um dos Estados contratantes quando ambos (por força das divergências entre as respetivas leis) o considerem como tal.” (vd. Rui Duarte Morais, “Sobre o IRS”, Coimbra, Almedina, 2016, 3.ª Edição, p. 12.).

Dispõe o artigo 4.º n.º 2 alínea a), da CDT que: “Será considerada residente do Estado Contratante em que tenha uma habitação permanente à sua disposição. Se tiver uma habitação permanente à sua disposição em ambos os Estados, será considerada residente apenas do Estado com o qual sejam mais estreitas as suas relações pessoais e económicas (centro de interesses vitais).” Não sendo possível identificar ou tendo mais que um centro vital, um em Espanha e outro em Portugal, dispõe então a alínea b) do n.º 2 do artigo 4.º da CDT que: “Se o Estado em que tem o centro de interesses vitais não puder ser determinado, deverá ser considerada residente apenas do Estado Contratante em que permaneça habitualmente.

Ora, nos presentes autos ficou demonstrado que o Requerente residiu mais de 183 dias, em Espanha, no ano de 2016 respeitante à liquidação impugnada, país onde exercia a sua atividade como trabalhador por conta de outrem.

Estamos por este modo a concluir que, o Requerente não reside, para efeitos fiscais em Portugal, por aplicação da lei interna portuguesa (artigo 16.º do CIRS), e a alínea b) do n.º 2 do artigo 4.º, bem como o artigo 3.º, ambos da CDT celebrada entre a República Portuguesa e o Reino da Espanha, obstam a que Portugal possa tributar os rendimentos auferidos pelo Requerente, na medida em que resolve o conflito positivo de residências fiscais a favor de Espanha.

Ou seja, no ano de 2016, o Requerente é considerado residente fiscal, em Espanha, e não residente fiscal, em Portugal.

De onde se retira, antecipando a decisão, que a liquidação em crise se encontra ferida de vício de violação de lei.

Voltemos ainda assim atrás, recordando o invocado pela AT.

Segundo assinalou na sua Resposta: “Importa ainda referir que nos termos do n.º 1 do artigo 74.º da LGT o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos dos contribuintes recai sobre quem os invoque.

Embora o requerente alegue que foi residente em Espanha a totalidade do ano de 2016, tendo protestado juntar ao pedido certificado de residência fiscal para efeitos do artigo 4.º da Convenção celebrada entre Portugal e Espanha no referido ano, o que sucedeu a 13/09/2021.

No certificado de residência emitido pela Agência Tributária Espanhola vem referir o seguinte: CERTIFICO QUE Solo consta como domicílio desde el momento de alta 17/julio 2015 en Av. ... Madrid. 17 (sublinhado nosso).

Ora, atendendo à informação que consta do certificado, não se pode depreender que no ano de 2016, o Requerente residiu em Espanha, muito menos qual ou quais os períodos que aí residiu.

Aliás, nem tal podia declarar, uma vez que, como se referiu no articulado da nossa Resposta, o Requerente alterou a sua morada fiscal para Portugal a 29/07/2016, tendo posteriormente alterado a morada para Espanha a 23/12/2016.”

Tendo assente tudo o que se referiu até ao momento, e para além do sentido que a AT atribui ao declarado no certificado de residência emitido pela Agência Tributária Espanhola, que não obedece a uma tradução literal e que se nos afigura ambivalente, sempre se dirá que em todas as CDT se encontram previstos meios de troca entre as administrações tributárias, de informações necessárias à sua aplicação, que se destinam precisamente a confirmar a verificação dos pressupostos da tributação ao abrigo das CDT, e que permitem à AT nacional apurar com facilidade e fiabilidade quais as residências dos titulares de rendimentos.

Ora, porque não foi confirmado por esta via (que se prefigura não apenas como mera possibilidade, mas como um verdadeiro dever), o estatuto de residente do Requerente?

Acompanhamos a este propósito o decidido em Acórdão do CAAD, no Processo n.º 769/2020-T, pelos árbitros Cons. Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Prof. Doutor Victor Calvete e Dra. Magda Feliciano (árbitros vogais), onde se pode ler o seguinte:

 

“Desde logo, a fórmula usualmente utilizada nas CDT relativamente à «troca de informações», aponta no sentido da imperatividade da obtenção das informações necessárias ou previsivelmente relevantes para as aplicar, estando a atuação da Administração Tributária subordinada ao princípio do inquisitório.

Por exemplo, no artigo 26.º da Convenção Modelo da OCDE refere-se «as autoridades competentes dos Estados contratantes trocarão entre si a informação previsivelmente relevante para aplicar as disposições da Convenção.»;

Recorda-se o artigo 58.º da LGT, nos termos do qual se impõe à Administração Tributária o dever de «no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido».

À face deste princípio, a Administração Tributária não tem só a possibilidade, mas sim o dever de efetuar as diligências tendentes a obter as informações permitidas pelas CDT, o que se justifica acentuadamente por se tratar de um meio de prova especialmente qualificado, equiparado às próprias informações da Administração Tributária portuguesa (artigo 76.º, n.ºs 1 e 4, da LGT).

Assim, numa perspetiva que tenha em mente a unidade do sistema jurídico, que pressuponha a sua coerência, a observância dos deveres decorrentes do princípio do inquisitório não é dispensada quando está em causa o acionamento das CDT, antes é por estas pressuposta, sendo essa a finalidade primacial da previsão da possibilidade de troca de informações entre as administrações tributárias.

Por outro lado, a necessidade de realizar as diligências indispensáveis para apuramento dos pressupostos da tributação também não é afastada pelo entendimento da Administração Tributária sobre o alcance da regra do ónus da prova (…) «de acordo com o n.º 1 do art.º 4º da Lei Geral Tributária (LGT), compete ao sujeito passivo o ónus de provar que reúne as condições para aplicar a Convenção, através da existência de formulários apropriados devidamente certificados pelas Entidades Competentes do país da sede do não residente» e «torna-se necessário que o mesmo faça prova da sua qualidade de residente naquele Estado».

Como se referiu, mesmo quando a lei estabelece que o ónus da prova recai sobre o contribuinte, a Administração Tributária não está dispensada de «realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido» (artigo 58.º da LGT). As regras do ónus da prova, no procedimento tributário, não têm o alcance de dispensar a Administração Tributária do cumprimento deste dever (…).

Assim, no procedimento tributário, o princípio do inquisitório, enunciado neste artigo 58.º da LGT, situa-se a montante do ónus de prova (acórdão do STA de 21-10- 2009, processo n.º 0583/09), só operando as regras do ónus da prova quando, após o devido cumprimento daquele princípio, se chegar a uma situação de dúvida (non liquet) sobre os factos relevantes para a decisão do procedimento tributário, situação esta em que a matéria de facto é decidida contra a parte a quem é imposto tal ónus.

De resto, o dever de utilização de todos os meios de prova necessários resulta claramente do artigo 50.º do CPPT que estabelece que «no procedimento, o órgão instrutor utilizará todos os meios de prova legalmente previstos que sejam necessários ao correcto apuramento dos factos ...», independentemente de o ónus da prova recair ou não sobre o contribuinte, noma esta que está em sintonia com o artigo 72.º da LGT que estabelece que o «órgão instrutor pode utilizar para o conhecimento dos factos necessários à decisão do procedimento todos os meios de prova admitidos em direito».

As expressões todas as diligências necessárias», «todos os meios de prova admitidos em direito» e o «todos os meios de prova legalmente previstos que sejam necessários», utilizadas nos artigos 26.º e 72.º da LGT e 50.º do CPPT, não dão margem para interpretação restritiva quanto aos deveres de realização de diligências que a lei impõe à Administração Tributária e à não restrição dos meios de prova que deve utilizar.

 

Não há qualquer norma das CDT que afaste este dever que é imposto generalizadamente à Administração Tributária em todos os procedimentos tributários e é exigido para assegurar a concretização dos princípios constitucionais da prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, da justiça e da igualdade (artigo 266.º da CRP) (…).

Sobre este ponto, pode ver-se ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 1.ª edição, página 432.

Aliás, precisamente em situações deste tipo o Supremo Tribunal Administrativo, várias vezes afirmou a preponderância da situação substantiva.”

Com efeito, as partes podem excluir provas relevantes por inércia, por inépcia ou por desconhecimento, e sabemos que nem sempre têm o mesmo acesso à informação e aos meios instrutórios.

Por último, afirma-se a importância do artigo 75.º n.º 1, da LGT em matéria de ónus da prova, que consagra a presunção legal de veracidade e de boa-fé das declarações dos contribuintes, desde que apresentadas nos termos da lei.

Quem tem a seu favor uma presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz (artigo 350.º, n.º 1, do Código Civil), apenas tem de provar o facto que lhe serve de base, de acordo com as regras gerais do ónus da prova, do artigo 74.º n.º 1, da LGT. O facto que serve de base à presunção do artigo 75.º da LGT, no caso das declarações, é o das declarações terem sido apresentadas nos termos da lei.

“Impõe-se, portanto, à Administração Tributária abalar a presunção de veracidade da declaração do imposto e dos respetivos documentos de suporte, atento o princípio da declaração vigente no nosso direito (artigo 75.º da LGT), só depois passando a competir ao contribuinte o ónus de provar a veracidade do declarado, o que quer dizer que se a Administração Tributária não fizer prova do bem fundado da formação do seu juízo, a questão relativa à legalidade do seu agir terá de ser resolvida contra ela, sem necessidade de ir analisar se a Impugnante logrou ou não provar, em tribunal, a veracidade da declaração (cfr. Acórdão do TCA Norte no processo 00506/06.8BEVIS, de 13-12-2018).

Acresce, por conseguinte, a tudo o que acima ficou dito que, a Requerida devia ter provado a factualidade que a levou a não aceitar a presunção de veracidade da declaração do imposto Modelo 3 de IRS relativa ao ano de 2016, entregue pelo sujeito passivo, em 22-05-2017, e na qual o Requerente marido indicou não ser residente em Portugal, o que não aconteceu in casu.

Ainda que não se desse por assente tudo o que acima ficou dito, importaria ter em consideração o regime jurídico da fundada dúvida, estabelecido no artigo 100.º n.º 1 do CPPT, aqui aplicável subsidiariamente por força do disposto no artigo 29.º, do RJAT, e nos termos da qual se valora a fundada dúvida a favor do contribuinte.

 

  1. DECISÃO

 

Termos em que o presente Tribunal Arbitral Singular:

  1. Declara a ilegalidade e consequente anulação da liquidação de IRS n.º 2020..., ferida de vício de violação de lei, dando provimento ao pedido dos Requerentes;
  2. Julga procedente o reembolso do montante de imposto pago ao abrigo de tal ato de liquidação, no valor de € 10.815,25;
  3. Estando demonstrado que os Requerentes pagaram, em 08-06-2021, o imposto impugnado na parte superior ao que é devido, por força do disposto nos artigos 61.º do CPPT e artigo 43.º da LGT, aplicáveis ex vi artigo 29.º, do RJAT têm os Requerentes direito aos juros indemnizatórios devidos, juros esses a serem contados desde a data do pagamento do imposto indevido (anulado) até à data da emissão da respetiva nota de crédito, julgando-se procedente o pedido dos Requerentes;
  4. De harmonia com o disposto nos artigos 296.º e 306.º, do Código do Processo Civil (CPC) e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicáveis por força do artigo 29.º, n.º 1 alíneas a) e e), do RJAT, e 3.º, n.ºs 2 e 3, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 10.815,25

(dez mil oitocentos e quinze euros e vinte e cinco cêntimos), atendendo ao valor económico aferido pelo montante da liquidação de imposto impugnada;

  1. Nos termos dos artigos 12.º e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigos 2.º e 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas, em € 918,00 (novecentos e dezoito mil euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, imputáveis à Requerida AT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 21 de março de 2022     

 

A Árbitra

 

/Alexandra Iglésias/

 

Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do DL 10/2011, de 20 de janeiro.

A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990.