Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 29/2020-T
Data da decisão: 2020-12-30  IRC  
Valor do pedido: € 73.154,45
Tema: IRC – Despesas não documentadas
Versão em PDF

Sumário:

I - As despesas relevantes para efeito do apuramento do lucro tributável em IRC não podem ser comprovadas através de extractos de movimentos bancários, carecendo de suporte documental de nível contabilístico que permita especificar a sua natureza, origem ou finalidade;

II –  O poder dever de  realizar todas as diligências necessárias à descoberta da verdade material que incumbe à Administração Tributária é meramente complementar relativamente às obrigações declarativas e contabilísticas do sujeito passivo, apenas se justificando a realização de diligências oficiosas quando os elementos instrutórios que tenham sido recolhidos a partir dos registos contabilísticos do sujeito passivo não permitam esclarecer certos aspectos da relação tributária e se torne necessário uma mais completa indagação.

 

III – Devem ser tidas como despesas não documentadas, sujeitas a tributação autónoma, as despesas que não se encontram reflectidas na contabilidade do sujeito passivo, através de documento justificativo.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Acordam em tribunal arbitral

 

I – Relatório

 

1.            A...LDA, contribuinte fiscal n.º ..., com sede zona industrial -..., ... - ... ..., vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, para apreciar a legalidade dos actos de liquidação de IRC em sede de tributação autónoma, referentes ao período de tributação de 2015, no valor de € 65.955,38, e de juros compensatórios no valor de € 7.199,07, e, bem assim, do despacho de indeferimento da reclamação graciosa contra eles deduzido.

 

Fundamenta o pedido nos seguintes termos.

 

No período de tributação de 2015, a Requerente apresentou prejuízo fiscal e obteve o reembolso de € 183.930,05 em razão dos pagamentos por conta efectuados no montante total de € 213,093,00.

 

Na sequência de um procedimento inspectivo, a Autoridade Tributária considerou que houve lugar ao reembolso indevido de € 65.955,38 uma vez que a Requerente contabilizou como gastos dedutíveis, para efeitos de apuramento do lucro tributável, despesas que não se encontram suportadas em documentos contabilísticos que cumpram todos os requisitos legalmente exigidos, sendo como tal classificadas como despesas não documentadas a que é aplicável a tributação autónoma à taxa de 50%, acrescida da taxa de 10% resultante do facto de o sujeito passivo apresentar prejuízo fiscal no período em questão.

 

A Requerente considera que os actos tributários são ilegais pelas seguintes ordens de razões.                  

 

Os documentos de suporte das despesas que se traduzem em extractos bancários da conta através da qual os pagamentos respectivos são efectuados, são documentos constantes da contabilidade, através dos quais, apesar de não preencherem todos os requisitos exigidos legalmente, é possível identificar os destinatários das operações bancárias e, como tal, não se subsumem ao conceito de despesas confidenciais, dado que a consequência legal para tal omissão de requisitos é a não dedutibilidade das despesas para efeitos do cálculo do lucro tributável. 

 

As despesas efetuadas, através do pagamento via débito directo na conta da titularidade do sujeito passivo, para pagamento de portagens a favor da “ViaVerde” resultam dos extractos bancários, sendo que, quanto a estes encontram-se preenchidos os requisitos exigidos legalmente, pelo que tais despesas devem ser consideradas como despesas devidamente documentadas e dedutíveis ao lucro tributável.

 

                O pagamento efectuado, através de débito directo, ao Fundo de Compensação do Trabalho e Fundo de Garantia de Compensação do Trabalho, constitui imposição legal e sendo acompanhado do documento comprovativo, cumpre todos os critérios de dedutibilidade.

 

Os levantamentos efectuados através do cartão de crédito do sócio-gerente configuram um adiantamento por conta de lucros, e não podem ser tidos como despesas confidenciais.

 

Os actos tributários incorrem, assim, em errónea classificação das despesas em causa como despesas confidenciais, e não tendo a Autoridade Tributária diligenciado no sentido de comprovar a identidade dos beneficiários dos pagamento através dos extractos bancários e do levantamento do respetivo sigilo bancário para obter informação mais detalhada sobre estes pagamentos, violou o princípio do inquisitório e da verdade material, bem como o princípio da legalidade, incorrendo ainda em vício de falta de fundamentação.

 

A Autoridade Tributária, na sua resposta, sustenta que os lançamentos inscritos na contabilidade do sujeito passivo devem estar apoiados em documentos justificativos, datados e suscetíveis de serem apresentados sempre que necessário (artigo 123°, n.º 2, alínea a), do CIRC), não sendo dedutíveis, para efeitos de determinação do lucro tributável, as despesas não documentadas (artigo 23.º-A, n.º 1) ou encargos cuja documentação não cumpra o disposto nos nºs 3 e 4 do artigo 23.º. O n.º 3 desse artigo estipula que, para esse efeito, os gastos devem estar comprovados documentalmente e o n.º 4 identifica os elementos que devem constar do documento comprovativo.

No caso em apreço, a Requerente contabilizou na conta 278810999 - Saldos a regularizar por contrapartida da conta 12 - Depósitos à ordem, e transferiu o saldo final para a conta 68813 - Regularização de saldo, influenciando negativamente o resultado líquido contabilístico.

Os documentos relevantes recolhidos no âmbito da ação inspetiva são os que constam dos Anexos I e II do RIT, sendo que o Anexo I apresenta o extracto da conta 278810999 que evidencia a existência de diversos movimentos que não correspondem a despesa efectiva, e o Anexo II contém fotocópias de documentos de apoio que constituem extractos bancários de uma conta em nome da Requerente.

Ainda que, a Requerente alegue que relativamente aos vários lançamentos de baixo valor é possível inferir da leitura do descritivo que se referem a despesas com portagens, não foram apresentados quaisquer documentos emitidos pelas concessionárias que permitam aferir a que viaturas se reportam por forma a verificar a conexão com a atividade empresarial e o motivo da sua deslocação ou quem as efetuou.  Nem existem outros documentos, como talões, recibos ou faturas.

Um extracto bancário não serve de documento comprovativo do gasto e apenas reflecte um movimento financeiro de saída, e ainda que identifique o destinatário dos pagamentos não permite especificar os demais elementos respeitantes à efectivação da despesa.

Quanto às despesas constantes do extracto bancário referidas a "restaurante", "táxi" ou "combustível", para além de haver uma divergência o valor total do documento (€ 8.670, 58) e a justificação apresentada (€ 4.577,54), tais referências não permitem identificar a natureza, finalidade, quantidades e bens adquiridos, nem mesmo o seu beneficiário.

Assim sendo, ainda que a Requerente defenda que as despesas em causa caem no âmbito de "despesas não devidamente documentadas", não existindo na sua contabilidade documentos que identifiquem e comprovem de forma idónea o beneficiário dos fluxos monetários, bem como a natureza das despesas, estas não podem deixar de ser tidas como não documentadas e como tal sujeitas a tributação autónoma.

Relativamente aos movimentos constantes da conta 6251 - Deslocações e Estadas, no valor de € 40.064,08, e relativos a deslocação, estadia e refeições de um dos sócios gerentes da sociedade, no estrangeiro, constata-se que os movimentos descritos não se referem a despesas suportadas com encargos de transporte, estadas, refeições dos trabalhadores da empresa por motivos de deslocação destes fora do local de trabalho",  consubstanciando-se em despesas de representação que se enquadram no nº 7 do artigo 88.º CIRC.

Afasta, nesse sentido, a violação dos princípios do inquisitório e da verdade material, e do princípio da legalidade.

Quanto à alegada falta de fundamentação, a Requerida refere que a fundamentação dos actos de liquidação consta do relatório inspectivo, que concretiza as correções efetuadas e as razões de facto e de direito que as justificam, bem como as disposições legais aplicáveis, a qualificação e a quantificação dos factos tributários, devendo entender-se que os actos se encontram suficientemente fundamentados.

Conclui no sentido da improcedência do pedido arbitral.

 

2. No seguimento do processo, por despacho arbitral de 28 de Outubro de 2020, foi determinada a dispensa da reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, bem como a apresentação de alegações escritas, por se entender que não existiam quaisquer elementos sobre que as partes se devam pronunciar, para além dos já constantes da documentação junta ao pedido e do processo administrativo apresentado pela Requerida.

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 6 de Julho de 2020.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas excepções.

 

Cabe apreciar e decidir.

 

II - Fundamentação

 

Matéria de facto

 

4. Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes.

A) A Requerente encontra-se registada para o exercício da actividade principal de “Fabricação de Outros Produtos Metálicos Diversos, CAE – Rev 3 25992;

B) A Requerente foi alvo de uma acção inspectiva externa, de âmbito parcial (IRC e retenções na fonte), credenciada pela ordem de serviço nº 012018..., com início em 28 de Novembro de 2018, tendo como objectivo esclarecer dúvidas suscitadas aquando da análise interna do processo de documentação fiscal;

C) Por ofício..., de 2 de Abril de 2019, aa Requerente foi notificada para exercer o direito de audição prévia relativamente ao projecto de Relatório de Inspecção Tributária que propunha correcções na matéria tributável com fundamento em despesas não documentadas e deslocações/estadas/despesas de representação;

D) Findo o prazo cominado, a Requerente não exerceu o direito de audição, pelo que as conclusões descritas no projecto de Relatório de Inspecção Tributária tornaram-se definitivas;

E) Os factos e fundamentos das correcções em IRC encontram-se descritas no Relatório nos seguintes termos:

 

Despesas não documentadas

1.1. Ao longo do ano de 2015, o sujeito passivo foi lançando na conta 278810999- Saldos a regularizar, vários movimentos contabilísticos, por contrapartida da conta 12 - Depósitos à ordem, os quais perfazem o montante anual de € 96.570,93.

1.2. O montante de € 96. 570, 93 resulta dos somatórios dos movimentos efectuados na conta 278810999 – Saldos a regularizar expurgado dos valores dos movimentos n. º 12748 e 12764 (€ 108.321,58 - € 7.525,64 - € 4.225,01), dado que se tratam de movimentos lançados por contrapartida das contas 272294 - Juros e despesas bancárias e 2312 - Ao pessoal, respectivamente, não correspondendo a despesa efectiva, Anexo I.

1.3. O saldo final da referida conta 278810999 - Saldos a regularizar, no montante de € 108.321,58, através do lançamento n.º 12764, é transferido para a conta 68813 - Regularização de Saldo, influenciando negativamente o resultado líquido contabilísticos apurado, mas anulando o efeito com o respetivo acréscimo ao resultado líquido no Q07 da modelo 22.

1.4. Da análise aos documentos de suporte aos registos contabilísticos cuja contrapartida foi a conta 12 - Depósitos á ordem, verifica-se que se encontram suportados por documentos bancários que refletem a saída dos meios de financeiros da empresa, tratando-se de despesas cuja documentação de suporte não cumpre o disposto nos n.ºs 3.º e 4.º do artigo 23.º do CIRC, conforme se verifica através dos documentos recolhidos a título de exemplo, desconhecendo-se o beneficiário das verbas e a que titulo foram efetuadas tais despesas. Anexo II.

1.5. Nesse sentido, estando comprovada a saída dos meios financeiros da empresa, tais despesas assumem a condição de despesas não documentadas."

1.6 Assim sendo, teremos de aplicar a taxa de 60% (50%+10% atendendo ao n.º 14 do artigo 88.º do CIRC), correspondendo a tributação autónoma em sede de IRC ao valor de ao valor de € 96.570,93 de onde resulta imposto em falta no montante de € 57.942,56.

 

Deslocações/estadas/despesas de representação

2.1. O sujeito passivo reconheceu, na conta 6251 - Deslocações e estadas, gastos no valor de € 40.064,08, referente às despesas discriminadas no quadro do Anexo III.

2.2 Contudo, da consulta aos documentos de suporte de movimentos contabilísticos reflectidos na conta deslocações e estadas verifica-se o seguinte.

2.2.1. Relativamente ao gasto cuja descrição consta do quadro do anexo III deslocação verifica-se que se refere a uma deslocação ao estrangeiro de B..., sócio da empresa – ver documento em Anexo IV.

2.2.2. Relativamente aos gastos cuja descrição consta do quadro do anexo III de refeições e lanches, verifica-se que se referem a várias facturas de refeições cujas cópias se recolheram - a título de exemplo, anexo V. Contudo, da consulta aos elementos da contabilidade não consta qualquer indicação do nome de quem realizou as despesas e respectivo motivo.

2.2.3. Relativamente a gastos cujo descritivo consta do quadro anexo III, estadia, verifica-se que se referem a encargos suportados com a estadia e refeições incluídas no Hotel ..., efectuados por B... . Veja-se a título de exemplo o anexo VI. 

2.3. Como facilmente se depreende, os movimentos descritos e que se encontram relevados na conta de deslocação e estadas não se referem a despesas suportadas com encargos de transporte, estadas, refeições dos trabalhadores da empresa por motivos de deslocação destes fora do local de trabalho.

2.4. Os encargos descritos e suportados pelo sujeito passivo consubstanciam-se em despesas de representação, nos termos do n. º 7 do artigo 88. ° CIRC, pelo que, também estão, estes encargos, sujeitos a tributação autónoma, à taxa de 20% (10%+10%) atendendo ao n. º 14 do artigo 88.° CIRC, tributação que o sujeito passivo não efectuou.

 

F) O anexo I ao Relatório de Inspecção Tributária, que aqui se dá como reproduzido, contém o extracto de conta da conta 278810999 – Saldos a regularizar, onde se encontram registados movimentos de pagamentos e transferências;

G) O anexo II ao Relatório de Inspecção Tributária, que aqui se dá como reproduzido, corresponde a um extracto de conta onde se encontram registados a data do movimento, descritivo da transacção e o respectivo montante;

H) Na sequência do Relatório de Inspecção Tributária, foram emitidos os actos de liquidação adicional de IRC, no valor de € 65.955,38 e de juros compensatórios, no valor de € 7.199,07;

I) Em 11 de Setembro de 2019, a Requerente apresentou reclamação graciosa contra os actos de liquidação, que foi indeferida por despacho proferido pelo Director de Finanças de Viana do Castelo em 29 de Outubro de 2019, notificado no dia 31 imediato;

J) A decisão de indeferimento manifesta concordância com a informação dos serviços, em que se refere, além do mais, o seguinte:

 

Apreciação

1. Os Anexos I e II ao RIT, validamente notificados à reclamante, contêm o extracto da conta 278810999 – Saldos a regularizar [fls. 42-43] e os respectivos documentos de suporte aos registos naquela conta, recolhidos no âmbito da ação inspetiva, a título de exemplo [fls. 44-70], e que correspondem a extractos bancários de uma conta em nome da reclamante no C... . 2. Do referido extracto contabilístico pode verificar-se que existem lançamentos de valores reduzidos e outros de maior valor (realça-se o facto de, relativamente a dois dos movimentos constantes daquele extrato, a IT considerou verificar-se a conformidade dos correspondentes documentos comprovativos (movimentos 12748 e 12764 – Cap. III 1.2. do RIT). 3. A reclamante vem alegar que vários daqueles lançamentos de baixo valor se referem a portagens, como bem se pode inferir da leitura dos extractos bancários e da respetiva descrição, permitindo a identificação do destinatário dos valores. 4. Ainda que se pudesse inferir, da mera leitura do extracto bancário, o destinatário da verba que saiu da conta bancária (que se pode concluir apenas tratar-se de uma concessionária, sem especificar qual), sempre fica por identificar a concreta despesa, ou seja, qual a viatura que realizou a passagem que esteve na origem da portagem (se pertence à sociedade ou estava ao seu serviço), o motivo da deslocação (particular ou ao serviço da atividade da empresa) e quem a efetuou. 5. De facto, não foi apresentado qualquer talão, recibo ou fatura, referente às portagens pagas através do cartão associado à conta bancária, nem a reclamante apresentou justificação concreta para estas despesas. 6. Pelo que se considera tratar-se de despesas que, tendo apenas como suporte o extracto bancário, que apenas comprova a saída do meio financeiro, não tem qualquer documento de suporte à despesa em concreto, que permita identificar, sem margem para dúvidas, a sua origem e a finalidade. 7. Relativamente a outros lançamentos, de maior valor, admite a reclamante que se referem a documentos que compilam vários pagamentos relativos a “…várias despesas, as quais, na generalidade, não podem ser consideradas confidenciais por estar perfeitamente identificado o seu destinatário”. 8. Tenta, na petição inicial, exemplificar uma dessas compilações de pagamentos, cujas rubricas e soma final não coincidem. 9. Efetivamente, estes montantes de maior valor resultam da soma de vários valores, cuja saída do respetivo meio financeiro constará dos extractos bancários, não concretamente identificados pela reclamante, e averbados manualmente nos referidos extractos para justificar os lançamentos [a título de exemplo, o lançamento nº 2488 do montante de 8.670,58€, averbado no extrato, a fls. 45; o lançamento nº 11380 do montante de 7.877,23€, averbado no extrato, a fls. 66]. 10. Os contribuintes devem manter a sua contabilidade organizada por forma a permitir o controlo do lucro tributável, devendo na sua execução observar que todos os lançamentos estejam apoiados em documentos justificativos. 11. Os extractos bancários serviram para a reclamante documentar os registos contabilísticos, mas não permitem documentar a despesa a que se referem, uma vez que, ao contrário do alegado pela reclamante, e conforme foi considerado no RIT, não é possível identificar a que título foi efetuada a despesa (se foi no âmbito da atividade da reclamante ou não) e quem foi o beneficiário da verba levantada da conta bancária. 12. Conforme pretende fazer valer na petição inicial, as referências, no extracto bancário, a “restaurante”, “táxi” ou “combustível” não servem para identificar a despesa nos seus requisitos essenciais, designadamente a sua natureza e finalidade. 74 sf16647 Informação 13. Note-se que a própria reclamante admite que o sócio-gerente tem acesso exclusivo ao PIN do cartão de crédito associado à conta bancária da reclamante, que efetuava levantamentos que chegavam a ascender a 900,00€ por dia, sem justificação plausível para que sejam classificados como despesa da reclamante, já que tais montantes ficavam à sua disponibilidade, sem que este apresentasse qualquer documento contabilístico de onde fosse possível retirar um destino para esses montantes. 14. Estas afirmações reforçam a tese de que se desconhece o destino dado às verbas saídas da conta bancária (a que titulo foram efetuadas e quem foi o destinatário das mesmas). 15. Para afastar a qualificação das despesas como não documentadas para efeitos de tributação autónoma, a reclamante chega a admitir que registou, indevidamente, como gasto da sociedade, valores que efetivamente configurariam adiantamentos por contra de lucros, ao invés de os registar na conta apropriada e sem ter procedido à competente retenção na fonte; chega a afirmar expressamente que estes valores não são despesas da reclamante (quesito 50.º). 16. Como a própria reclamante esclarece, uma despesa considerar-se-á não documentada quando não tenha suporte documental, enquanto uma despesa indevidamente documentada tem um suporte documental, mas o mesmo não é aceite. 17. Conforme tem vindo a constar de reiterada jurisprudência, as despesas não documentadas são despesas que não são especificadas ou identificadas, quanto à sua natureza, origem ou finalidade, sendo, pela sua própria natureza, não comprovadas documentalmente. 18. Os extractos bancários servem para comprovar a saída dos meios financeiros, mas não servem para comprovar concretamente as despesas a que as saídas dizem respeito. 19. Nos termos do artigo 23.º do CIRC, só são dedutíveis os gastos incorridos ou suportados para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC, o que significa que deve verificar-se a sua indispensabilidade e comprovação documental. 20. Um extracto bancário não serve de documento comprovativo de um gasto, apenas representa o movimento financeiro de saída. 21. Não foram apresentadas provas da efectiva identificação das despesas em causa, da sua indispensabilidade à actividade da reclamante, da sua natureza e finalidade. 22. Nos termos do artigo 74.º da LGT, o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos recai sobre quem os invoque, e a reclamante não logrou comprovar inequivocamente a natureza e finalidade das despesas registadas contabilisticamente. 23. A AT não se pode substituir aos contribuintes na comprovação das operações que efetivamente tenha realizado, quando ela própria fracassa em atingir tal objetivo. 24. Pelo que, conforme bem considerou a AT, os montantes inscritos na conta 278810999, que ascendem a 96.570,93€ correspondem a despesas não documentadas, pelo que são sujeitos a tributação autónoma nos termos do nº 1 do artigo 88º do CIRC.

L) A Requerente procedeu ao pagamento voluntário do imposto devido;

M) A Requerente apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral em 15 de Janeiro de 2020.

 

Factos não provados

 

Não existem quaisquer factos não provados relevantes para a decisão da causa.

 

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a resposta, e em factos não questionados pelas partes.

            

Matéria de direito

 

5. Num primeiro momento, a Requerente discute a sujeição a tributação autónoma das importâncias que se encontram suportadas em extractos bancários da conta pela qual foram efectuados os pagamentos, entendendo que esses documentos, apesar de não conterem todos os elementos legalmente exigíveis para a comprovação das despesas, tornam possível a identificação dos destinatários das operações bancárias, e, por via disso, não se subsumem no conceito de despesas confidenciais.

Para a análise desta questão, interessa começar por ter presente as disposições dos artigos 23.º e 23.º-A do Código de IRC, que definem os gastos e perdas dedutíveis para a determinação do lucro tributável e os encargos que não são dedutíveis para esse efeito, mesmo que contabilizados como gastos do período de tributação.

Segundo a primeira dessas disposições, na redacção resultante da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, “[p]ara a determinação do lucro tributável, são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC”. Segundo o entendimento corrente, e que se depreende dos trabalhos preparatórios, a nova formulação verbal, ao deixar de fazer menção ao requisito de indispensabilidade dos gastos, que constava da primitiva redacção da norma, visou implementar um maior grau de certeza na aplicação concreta dos critérios de dedutibilidade, passando a consagrar como princípio geral que são dedutíveis os gastos relacionados com a actividade empresarial, independentemente da efectiva contribuição para os rendimentos sujeitos a imposto (cfr. Relatório Final da Comissão para a Reforma do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, 30 de Junho de 2013).

                 

A comprovação dos gastos é feita através de documento comprovativo que contenha, pelo menos, os elementos mencionados no n.º 4 do artigo 23.º que, para além dos dados relativos à identificação do fornecedor dos bens ou prestador dos serviços e do adquirente ou destinatário, deverá incluir a quantidade e denominação usual dos bens adquiridos ou dos serviços prestados o valor da contraprestação e data em que os bens foram adquiridos ou em que os serviços foram realizados.

 

Por seu lado, o artigo 23.º-A, n.º 1, alínea b), do Código do IRC especifica como encargos não dedutíveis para efeitos fiscais, mesmo quando contabilizados como gastos do período de tributação, entre outros, as "despesas não documentadas".

 

Importa ainda ter em atenção que, nos termos do artigo 123.º, n.º 1, do Código do IRC, "as sociedades comerciais (...) que exerçam, a título principal, uma actividade comercial, industrial ou agrícola, com sede ou direcção efectiva em território português (...), são obrigadas a dispor de contabilidade organizada nos termos da lei que, além dos requisitos indicados no n.º 3 do artigo 17.º, permita o controlo do lucro tributável". Sendo que nos termos da alínea a) do n.º 2 do mesmo artigo, "[n]a execução da contabilidade deve observar-se, em especial, o seguinte: todos os lançamentos devem estar apoiados em documentos justificativos, datados e susceptíveis de serem apresentados sempre que necessário".

 

O falado artigo 17.º, n.º 3, do Código do IRC, para que remete o artigo 123.º, n.º 1, na parte que mais interessa considerar, refere ainda o seguinte:

 

3             - De modo a permitir o apuramento referido no nº 1, a contabilidade deve:

a) Estar organizada de acordo com a normalização contabilística e outras disposições legais em vigor para o respectivo sector de actividade, sem prejuízo da observância das disposições previstas neste Código;

b)           - Reflectir todas as operações realizadas pelo sujeito passivo e ser organizada de modo que os resultados das operações e variações patrimoniais sujeitas ao regime geral do IRC possam claramente distinguir-se dos das restantes;

(…).

 

De todas as referidas disposições, conclui-se que são dedutíveis, para a determinação do lucro tributável, todos os gastos e perdas que tenham conexão com a atividade empresarial (artigo 23.º), com exclusão, entre outras, das despesas não documentadas (artigo 23.º-A, n.º 1, alínea b)).  E, por outro lado, para efeito do controlo do lucro tributável, sobre o sujeito passivo incidem obrigações acessórias que não se cingem às obrigações declarativas, como a referente à declaração periódica de rendimentos (artigo 120.º), mas incluem obrigações contabilísticas, como as mencionadas nas referidas disposições dos artigos 17.º, n.º 3, e 123.º, n.º 1 e n.º 2, alínea a), que pressupõem que o lucro tributável seja determinado com base na contabilidade. Ou seja, o ponto de partida da quantificação da base tributável é o resultado líquido do exercício, o qual se apura através dos registos contabilísticos (GC, 13-14).

 

Dito isto, cabe passar à caracterização das despesas não documentadas.

 

Como despesas não documentadas devem entender-se aquelas que não têm por base qualquer documento justificativo ou de suporte documental a nível contabilístico, e, como tal, não especificam a sua natureza, origem ou finalidade (acórdão do TCA Sul de 7 de Fevereiro de 2012, Processo n.º 04690/11). Havendo de distinguir-se entre as despesas não documentadas e as despesas não devidamente documentadas, isto é, aquelas cujo suporte documental não obedece aos requisitos legalmente exigidos, embora permita identificar os beneficiários e a natureza da operação" e que apenas acarretam a não dedutibilidade para efeitos fiscais.

 

Ainda segundo o acórdão do STA de 7 de Julho de 2010 (Processo n.º 0204/10), "[a] apreciação da existência ou não da devida documentação e da confidencialidade da despesa é feita tendo por objecto o acto através do qual o sujeito passivo suporta o encargo ou a despesa que é susceptível de afectar o resultado líquido do exercício, para efeitos de determinação da matéria tributável de IRC. Isto é, o encargo não estará devidamente documentado quando não houver a prova documental exigida por lei que demonstre que ele foi efectivamente suportado pelo sujeito passivo e a despesa será confidencial quando não for revelado quem recebeu a quantia em que se substância a despesa" (a despesa confidencial encontra-se integrada agora no conceito amplo de despesas não documentadas).

 

6. Revertendo ao caso concreto, o único argumento aduzido pela Requerente para questionar a qualificação das despesas em causa como não documentadas consiste em considerar que as despesas se encontram suportadas em extractos bancários que, embora não preencham todos os requisitos legalmente exigíveis, permitem identificar os destinatários das operações bancárias, cabendo à Autoridade Tributária o poder dever de diligenciar no sentido dessa identificação em aplicação do princípio do inquisitório e da verdade material, ainda que mediante o recurso ao levantamento do sigilo bancário.

 

Não pode deixar de reconhecer-se que a Administração Tributária está vinculada, ao nível do procedimento, a realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, nisso se traduzindo o princípio do inquisitório como meio instrumental da preparação de uma decisão justa e conforme à legalidade.

 

Um afloramento deste princípio surge no artigo 58.º da LGT, mas consta também do artigo 6.º do RCPITA onde se diz que “o procedimento de inspecção visa a descoberta da verdade material, devendo a administração tributária adotar oficiosamente as iniciativas adequadas a esse objectivo”. Esse mesmo princípio tem como necessária decorrência que a Administração deva levar a efeito as diligências que entenda serem úteis no âmbito do procedimento sem se encontrar subordinada à iniciativa do contribuinte.

 

É, no entanto, patente, face a tudo o que já anteriormente se expôs, que esse poder dever é meramente complementar relativamente às obrigações declarativas e contabilísticas do sujeito passivo, apenas se justificando a realização de diligências oficiosas quando os elementos instrutórios que tenham sido recolhidos a partir dos registos contabilísticos do sujeito passivo não permitam esclarecer certos aspectos da relação tributária e se torne necessário uma mais completa indagação.

 

Ora, como se deixou já entrever, a consideração dos gastos para efeitos fiscais é feita com base na contabilidade que deve reflectir documentalmente as operações realizadas pelo sujeito passivo que tenham conexão com a actividade empresarial. É claro que não preenche essa exigência a mera apresentação dos extractos de movimentos emitidos pela instituição bancária, visto que o contribuinte carece de registar contabilisticamente os gastos e ter devidamente organizados os documentos comprovativos das despesas que pretende que sejam consideradas para o apuramento do lucro tributável.

 

E não cabe à Autoridade Tributária realizar diligências oficiosas em vista a apurar o tipo de operações que estão subjacentes aos movimentos bancários e identificar os intervenientes nessas operações, visto que não é função da Administração suprir a omissão do cumprimento pelo contribuinte das suas obrigações contabilísticas.

 

E muito menos se compreende que a Autoridade Tributária devesse realizar essas diligências mediante o acesso à informação protegida pelo sigilo bancário quando é certo que o poder de aceder a informações ou documentos na posse de instituições bancárias apenas pode ocorrer nas situações especialmente previstas no artigo 63.º-B da LGT, e, designadamente, quando existam indícios da prática de crime em matéria tributária ou da falta de veracidade do declarado ou de acréscimos de património não justificados, competência que se encontra sujeita a controlo jurisdicional e que nunca seria possível exercer para colmatar a não comprovação documental dos gastos declarados pelo contribuinte.

 

Haverá de concluir-se, face a todo o exposto, que estando em causa despesas que não têm por base qualquer documento justificativo ou de suporte documental de natureza contabilística que permita especificar a sua natureza, origem ou finalidade, tais despesas devem ser tidas como não documentadas e, como tal, sujeitas a tributação autónoma à taxa de 50%, nos termos previstos no artigo 88.º, n.º 1, do Código de IRC, a que acrescem 10 pontos percentuais por se referirem a um período de tributação em que o sujeito passivo apresentou prejuízo fiscal.

 

Não se verifica, por conseguinte, a invocada violação dos princípios do inquisitório, da verdade material e da legalidade.

 

7. A Requerente invoca ainda a violação do dever de fundamentação.

 

Como é entendimento jurisprudencial corrente, a fundamentação do acto tributário é um conceito relativo que varia conforme o tipo de acto e as circunstâncias do caso concreto, sendo que a fundamentação é suficiente quando permite a um destinatário normal aperceber-se do itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo autor do acto para proferir a decisão, isto é, quando aquele possa conhecer as razões por que o autor do acto decidiu num certo sentido e não de forma diferente.

 

No caso, quer o Relatório de Inspecção Tributária, quer a informação em que se baseou a decisão de indeferimento da reclamação graciosa (alíneas e) e j) da matéria de facto), explicitam, com suficiência, as razões de facto e de direito que justificam as correcções aritméticas e a decisão final em sede de impugnação administrativa.

 

E como ressalta do acórdão do TCA Sul de 26 de Junho de 2014 (Processo n.º 07148/13), nada obsta que os actos tributários resultantes de um procedimento inspectivo possam ter como referente o relatório elaborado, nesse âmbito, pelos serviços inspectivos.

 

O vício procedimental é igualmente improcedente.

 

8. A Requerente alega ainda que os levantamentos efectuados através do cartão de crédito do sócio-gerente configuram um adiantamento por conta de lucros, e não podem ser tidas como despesas confidenciais.

 

No entanto, a segunda questão que foi analisada no Relatório de Inspecção Tributária e originou a sujeição a tributação autónoma foi a referente a despesas relevadas na conta 6251 “deslocações e estadas”, que os serviços inspectivos entenderam não corresponderem a despesas suportadas com encargos de transporte, estadas, refeições dos trabalhadores da empresa por motivos de deslocação destes fora do local de trabalho, e que, por essa razão, foram qualificadas como despesas de representação, passíveis de serem tributadas autonomamente nos termos do n. º 7 do artigo 88.º do Código de IRC.

 

A Requerente, no pedido arbitral, não põe em causa essa correcção aritmética nem aduz quaisquer argumentos que pudessem de servir de fundamento à declaração de ilegalidade da liquidação adicional nesse segmento.

 

E a única referência que é feita no relatório inspectivo a adiantamentos por conta dos lucros é a que consta do Ponto III.3., que se refere a movimentos a débito da conta 25322- D... e B..., por contrapartida da conta 12 - Bancos vários adiantamentos por conta de lucros.

 

E o que a Autoridade Tributária questiona, nesse ponto, é não ter ocorrido a retenção na fonte no momento ou colocação à disposição dos adiantamentos aos respectivos titulares, mas apenas em 31 de Dezembro de 2015, à data da distribuição dos lucros, o que originou a elaboração de auto de contraordenação por entrega fora do prazo do imposto retido.

 

Ora, o tribunal apenas pode conhecer dos vícios que tenham sido arguidos pelo impugnante (artigo 124.º, n.º 1, do CPPT), e, em qualquer caso, o pedido formulado pela Requerente quanto ao adiantamento por conta dos lucros não tem qualquer correspondência com o decidido pela Autoridade Tributária, pelo que o Tribunal, nesta parte, não tem de conhecer do objecto do processo.

 

III – Decisão

Termos em que se decide:

 

a)            Julgar improcedente o pedido arbitral quanto ao acto de liquidação adicional de IRC n.º 2019..., referente ao ano de 2015, no valor de € 65.955,38, e de juros compensatórios, no valor de € 7.199,07, bem como à decisão de indeferimento da reclamação graciosa contra ele deduzido;

b)           Não conhecer do objecto do processo quanto ao pedido relacionado com o adiantamento por conta de lucros.

 

Valor da causa

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 73.154,45, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 2.448,00, que fica a cargo da Requerente.

 

Notifique.

 

Lisboa, 30 de Dezembro de 2020

 

O Presidente do Tribunal Arbitral

Carlos Fernandes Cadilha

 

O Árbitro vogal

Rui Marrana

 

O Árbitro vogal

Paulo Lourenço