Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 330/2023-T
Data da decisão: 2024-01-05  ISV  
Valor do pedido: € 3.000,00
Tema: Imposto sobre veículos - Ilegalidade do ato de liquidação.
Veículo automóvel usado proveniente de outro Estado-membro.
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SUMÁRIO:

 

1.- O conceito de facto gerador constante do artigo 5.º do Código do Imposto sobre Veículos (CISV) deve estar em estreita relação com o princípio da não discriminação constante do artigo 110.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE) que, juntamente, com o Tratado da União Europeia (TUE) formam a base constitucional da União Europeia (UE). O TFUE é crucial para o funcionamento da UE, pois estabelece as regras específicas para a administração da União. Esse ordenamento estatui que nenhum Estado-membro (EM) fará incidir, direta ou indiretamente, sobre os produtos dos outros EM imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, direta ou indiretamente, sobre produtos nacionais similares.

 

2.- O princípio da equivalência deve, igualmente, ser observado pelo legislador e/ou pelo intérprete e aplicador, porquanto estatui os fundamentos do imposto sobre veículos (ISV) no objetivo de onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam nos domínios do ambiente, infra-estruturas viárias e sinistralidade rodoviária, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária – art. 1.º do CISV.

 

3.- Atendendo ao conceito de facto gerador não discriminatório decorrente do Direito da União e ao princípio da equivalência na concretização da igualdade tributária em que assenta o ISV, deve aplicar-se no tempo as taxas intermédias constantes do n.º 1 do artigo 8.º do CISV: (a) entre 2015 e 2020 para os veículos introduzidos pela primeira vez no consumo em qualquer Estado-membro da União Europeia; (b) a partir de 2021 para os veículos introduzidos pela primeira vez no consumo em qualquer Estado-membro da União Europeia. Neste mesmo sentido foi decido pelo CAAD - Processo n.º 136/2021-T.

 

DECISÃO ARBITRAL

PROCESSO N.º 330/2023-T

 

O árbitro Vítor Braz, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o presente Tribunal Arbitral Singular, decide o seguinte:

 

I. Relatório

1.- A..., Lda, doravante designado por “Requerente”, contribuinte n.º ..., com domicílio fiscal na Rua ..., ..., ...-... Ericeira, representada por Pedro Augusto, contribuinte n.º..., residente na rua ... n.º ..., ..., ...-... Mafra, ao abrigo dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20.01, com as alterações subsequentes (Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, a seguir RJAT), apresentou, em 05.05.2023, pedido de pronúncia arbitral em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, a seguir designada por “Requerida ou AT”, no qual peticionou a ilegalidade parcial do ato de liquidação de ISV no montante de 3.162,64 e a devolução do montante de € 2.467,68, acrescido de juros, atentos os elementos contidos na Declaração Aduaneira de Veículo (DAV) n.º 2022/... – Liquidação n.º 2022/..., de 2022-11-22.

2.- Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20-01-2011, o Conselho Deontológico do CAAD designou o árbitro do presente tribunal arbitral singular.

Em 23-06-2023, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, à qual não opuseram recusa nos termos conjugados dos artigos 11.º, n.º 1, alíneas b) e c) e 8.º do RJAT e 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

Em consonância com a al. c) do n.º 1 do art.º 11.º do RJAT, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o Tribunal Arbitral Singular ficou constituído em 11-07-2023.

3.- No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente alegou, em sustentação da peticionada ilegalidade da liquidação de ISV, confirmada no indeferimento do pedido de revisão oficiosa que apresentou junto da Requerida, os fundamentos essenciais seguintes:

“A ora requerente fundamentou no seu pedido a percentagem que não foi reduzida na componente ambiental do ISV, pela aplicação da redução de imposto atendendo aos anos de uso relativo à componente ambiental, no apuramento e liquidação do ISV, respeitante à viatura da DAV n.° 2022/... de 2022/11/22 e, consequentemente, solicitando o reembolso devido, na quantia de € 2467,68”.

“Analisado o pedido, considerou a Alfândega de Peniche, a nosso ver mal, que a liquidação de ISV é de 22/11/2022 e que, por isso, encontra-se fora do período de abrangência consagrado nas instruções de Serviços mencionadas - ocorridas de 1 de Janeiro de 2017 até ao dia 31 de Dezembro de 2020 - e, desse forma, indeferiram o pedido no que respeita à DAV.”

“Se a primeira matrícula é datada de 26.11.2019, é esta a data relevante para aplicação do conceito de facto gerador do imposto e que faz aplicar a taxa intermédia de 25% em vigor à data da primeira matrícula, no caso na Alemanha, sendo que uma interpretação diferente, como a feita pelo fisco, violaria o princípio da não-discriminação do Tratado de Funcionamento da União Europeia.”

“A ora requerente e contribuinte pagou o imposto liquidado, mas, no entanto, pretende saber se a liquidação do ISV viola ou não o disposto no Tratado, uma vez que discrimina negativamente os veículos usados admitidos no espaço português, provenientes de outro Estado-membro, relativamente aos que são matriculados e comercializados em Portugal.

“Nessa medida, requer-se (…) reconhecer que a liquidação de ISV efetuada pela AT, que aplicou o CISV na versão de 2021, e não na versão em vigor entre 2015 e 2020, foi efetuada em desconformidade com a lei nacional e o direito comunitário e, consequentemente, declarar a ilegalidade parcial do ato de liquidação de ISV, ordenando a devolução à requerente do montante peticionado de €2467,68, acrescido de juros indemnizatórios, à taxa legal, contados da data do seu pagamento até integral reembolso.”

4.- A Requerida, ao abrigo do n.º 1 do artigo 17.º do RJAT, juntou aos autos o Processo Administrativo (PA), incluindo o pedido de Revisão Oficiosa (RO) Processo n.° ...2023..., bem como apresentou resposta, alegando, por exceção, a incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria e; por impugnação, reafirmando os fundamentos que sustentaram indeferimento do pedido de RO e a improcedência dos factos e dos fundamentos constantes no pedido de pronúncia arbitral.

5.- A resposta extensa da Requerida é dada como aqui reproduzida, alegando, em súmula, o seguinte:

“(…) resulta clara a pretensão da Requerente, conforme formulado no PPA, já que visa unicamente o reconhecimento do direito à aplicação de taxa reduzida, ao invés da liquidação efetuada nos termos gerais, não sendo o ato decorrente da aplicação das taxas normais, que a Requerente quer, efetivamente, impugnar, antes pretendendo usufruir do benefício fiscal previsto no artigo 8.º do CISV, com o objetivo de afastar a tributação regra. Ora, tal pedido não pode, face à lei, ser submetido à presente instância arbitral pois o processo arbitral apenas abrange os atos suscetíveis de impugnação judicial, isto é, os abrangidos pelo artigo 2.º, n.º 1, do RJAT.” (…)

“Ora, tal pedido, independentemente, de tal benefício, previsto na alínea d) do n.º 1 do artigo 8.º do CISV, não abranger o veículo em questão, consubstancia por parte do Requerente uma exigência para que a administração tributária adote uma nova atuação em sede de liquidação do imposto, procedendo à realização de uma nova liquidação, que não a resultante da tributação regra.” (…)

“E, nesta medida, o meio processual próprio face à omissão do dever de proceder à liquidação substitutiva, seria o “Reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária”, em conformidade com o previsto no artigo 145.º do CPPT, uma vez que não está em causa a “intimação para um comportamento do seu direito”, a qual não resulta diretamente da lei.” (…)

“Efetivamente, a competência arbitral, enquanto meio alternativo para a resolução de conflitos, neste caso em matéria tributária, restringe-se aos atos e matérias ínsitas no n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, não podendo extravasar a sua competência nem avocar competências que, desde logo, não lhe estão cometidas no âmbito da apreciação da legalidade de liquidações de tributos.” (…)

“A liquidação do Imposto Sobre Veículos (ISV) assenta nos elementos declarados e características físicas e técnicas do veículo constantes da respetiva documentação, tendo sido, para o efeito, aplicadas as disposições do Código do Imposto sobre Veículos (CISV) atinentes às taxas em vigor, incidência, facto gerador e exigibilidade do imposto.”

“De acordo com a DAV foi declarado o veículo da marca Mercedes Benz, modelo R 1 ES, equipado com motor híbrido plug-in, elétrico e combustível (gasóleo).”

“E relativamente ao veículo em causa, constata-se, quanto à autonomia no modo elétrico, que, de acordo com o respetivo certificado de conformidade da marca, aquela é inferior a 50 Km, apresentando 42g/km de emissão de gases CO2.”

“Tratando-se de veículo proveniente de outro Estado-membro, foi ainda objeto de atribuição de matrícula nacional (...).”

“O cálculo do imposto foi efetuado com recurso à tabela A, aplicável aos veículos ligeiros de passageiros, atendendo à componente cilindrada e à componente ambiental, nos termos da tabela A do artigo 7.º e tabela D do artigo 11.º, n.º 1, do CISV, tendo sido aplicadas as taxas normais, previstas para os veículos ligeiros de passageiros usados de acordo com as características dos veículos (cf. Quadro R da DAV).”

“Do campo T da DAV consta a identificação do ato de liquidação n.º 2022/..., de 22.11.2022, no valor 3.162,64€, a título de ISV.”

“Em 09.03.2023, por ofício nº..., de 08.03.2023, foi a requerente notificada do despacho do Diretor da Alfândega de Peniche que determinou a revisão da DAV e a liquidação adicional oficiosa de ISV, e respetivos fundamentos (cfr. docs. do PA).”

“A Requerente apresentou, em 05.05.2023, o presente pedido de constituição de tribunal arbitral. Nesse pedido peticionando a declaração de ilegalidade parcial do ato de liquidação do Imposto sobre Veículos (ISV) resultante da introdução no consumo de um veículo ligeiro de passageiros, equipado com motor híbrido “plug-in”, através da declaração aduaneira de veículos (DAV) nº2022/..., praticado pela Alfândega de Peniche, devendo ser a Autoridade Tributária condenada a restituir o montante de 2.467,68€ que foi pago pela requerente na totalidade;” (…)

“Com efeito, a submissão da DAV tem subjacente uma situação de facto concreta, que se encontra claramente tipificada de entre as várias situações geradoras de imposto subsumíveis e enquadráveis no já citado n.º 1 do artigo 5.º, ou seja, no fabrico, montagem, admissão ou importação de veículos tributáveis em território nacional que estejam obrigados à matrícula em Portugal e não qualquer outro facto.”

“Concluindo-se que, in casu, somente a entrada do veículo no território nacional/admissão pode configurar facto gerador de imposto, o qual, mediante a obrigação declarativa de apresentação da DAV, determina a taxa de imposto a pagar, nos termos, conjugados, do n.º 1 do artigo 5.º, alínea b) do n.º 1 e n.º 3 do artigo 6.º do CISV.”

“De facto, em sede de ISV, a ocorrência do facto gerador faz nascer a obrigação declarativa e a obrigação tributária do imposto, sendo que a DAV de introdução no consumo constitui condição sine qua non da fixação da matéria tributável e da liquidação efetuada, aplicando-se a taxa em vigor no momento da exigibilidade do imposto.” (…)

“Assim, no que concerne à alínea d), do n.º 1, do artigo 8.º, não pode retirar-se desta norma outra interpretação que não seja a de aplicar uma taxa intermédia, ao imposto resultante da aplicação da tabela A constante do n.º 1 do artigo 7.º, de 25%, apenas aos automóveis ligeiros de passageiros equipados com motores híbridos plug-in, cuja bateria possa ser carregada através de ligação à rede elétrica e que tenham uma autonomia mínima, no modo elétrico, de 50 km e emissões oficiais inferiores a 50g CO2/km, constituindo, estas, condições cumulativas para a aplicação da referida taxa.” (…)

“Não reunindo as características de cuja verificação a lei faz depender a aplicação da taxa de 25%, o veículo tem de ser tributado pela taxa geral de 100% da tabela A, enquadrável fiscalmente na alínea a) do n.º 1 do artigo 7.º do CISV, tal como sucedeu, não enfermando a liquidação efetuada de qualquer ilegalidade.” (…)

“Quanto ao cálculo do imposto efetuado pela requerente, no pressuposto de que seria aplicada ao caso concreto a redação anterior da alínea d) do nº 1 do art.º 8º do CISV, e que, consequentemente, beneficiaria de redução do ISV a pagar pela introdução no consumo do veículo supra identificado, sempre se dirá que nunca teria direito ao montante de ISV constante do pedido.”

“Concretizando,

Aplicando uma percentagem de 25% ao imposto resultante da aplicação da Tabela A resulta no valor de € 1 096,59 (€ 4 386 x 25% = € 1 096,59). À componente cilindrada, além da redução dos anos de uso (28%) seria aplicada a percentagem de 25% [(€ 4 330,53 x 25€) x 28% = € 303,13] À componente ambiental, além da redução dos anos de uso (20%) seria aplicada a percentagem de 25% [(€ 55,83 x 25€) x 20% = € 2,79] Aos € 1 096,59 deverá ser deduzido a componente cilindrada (€ 303,13) e a componente ambiental (€ 2,79) o que resultava no ISV a pagar de € 790,70

• € 1 096,59 - € 303,13 - € 2,79 = € 790,70

Ao valor pago (€ 3 162,64) seria então deduzido o valor que deveria pagar (€ 790,70)

• € 3 162,64 - € 790,70 = € 2 371,94

Do que resulta o montante de ISV de € 2 371,94 (dois mil trezentos e setenta e um euros, e noventa e quatro cêntimos) e não a quantia de € 2 467,68 como pretende a requerente.” – (sic)

 

6.- Em 21.09.2023 foi proferido o Despacho a que se refere o artigo 18.º do RJAT, nos termos seguintes:

“1.- Atenta a resposta apresentada pela Requerida observa-se que não há irregularidades a suprir e que o processo não apresenta complexidade que exija especial tramitação processual. 2.- Atento o princípio da economia processual, dispensa-se a reunião com as partes. 3.- Faculta-se às partes a possibilidade de, querendo, apresentarem alegações escritas no prazo simultâneo de 15 dias, contados da notificação do presente despacho, podendo, ainda, o Requerente pronunciar-se sobre a exceção invocada pela Requerida na resposta.

4.- A exceção invocada pela Requerida na resposta será apreciada na decisão arbitral final, a qual será proferida até ao termo do prazo previsto no n.º 1 do artigo 21.º do RJAT. 5.- O Requerente, igualmente, no referido prazo de 15, deverá cumprir o disposto no n.º 4 do artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (pagamento antes da decisão e pela forma regulamentar do remanescente da taxa arbitral).”

 

II. Saneamento

1.- O Tribunal Arbitral Singular foi regularmente constituído e é materialmente competente - alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, na alínea a) do n.º 3 do artigo 5.º, na alínea a) do n.º 2 do art. 6.º e do n.º 1 do artigo 11.º, todos do RJAT.

2.- As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão devidamente representadas - artigo 4.º e n.º 2do artigo 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22-03.

3.- O processo não enferma de nulidades e não foram identificadas questões que obstem ao conhecimento do mérito.

 

III. Thema Decidendum

1.- A questão objeto do litígio concerne à apreciação da legalidade do ato de liquidação de ISV sindicado, em atenção aos requisitos estabelecidos nos artigos 5.º e 8.º do CISV, especificamente, à não aplicação do referido art.º 8.º (taxas intermédias) na redação em vigor antes das alterações introduzidas pela Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro, em especial, a sujeição a regime de tributação mais gravoso do que aquele que resultaria da aplicação do regime legal em vigor à data da primeira matrícula (2019) de viatura automóvel proveniente de outro EM.

Em suma, está em causa decidir a legalidade da liquidação de ISV pela Requerida, atento o ordenamento jurídico da união europeia e nacional, mediante o cálculo do imposto efetuado com recurso à tabela A, aplicável aos veículos ligeiros de passageiros, atendendo à componente cilindrada e à componente ambiental, nos termos da tabela A do artigo 7.º e tabela D do artigo 11.º, n.º 1, do CISV, tendo aplicado as taxas normais, em detrimento das taxas intermédias previstas no artigo 8.º do CISV, para o veículo ligeiro de passageiros usado proveniente de outro EM, na redação em vigor à data da primeira matrícula.

 

IV. Fundamentação de Facto

A. Factos provados

1.- Este Tribunal Arbitral Singular fixa a matéria de facto com base nas peças processuais e requerimentos apresentados pelas Partes, bem como nos documentos juntos aos autos.

2.- Não existe o dever de pronuncia sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa de pedir que fundamenta o pedido formulado pela Requerente e a resposta da Requerida – Cf. n.º 1 do artigo 596.º e n.ºs 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º do artigo 29.º do RJAT e consignar a que considera provada ou não provada, conforme n.º 2 do artigo 123.º Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

3.- Atentas as posições relevadas pelas partes, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos elencados adiante, atento o princípio da livre apreciação das provas. Somente, quando a força probatória de certos meios se encontrar estabelecida na lei (v.g.: força probatória plena dos documentos autênticos - artigo 371.º do Código Civil) é que não domina aquele princípio.

4.- Assim, com relevo para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

i) Conforme resulta dos elementos do Processo Administrativo (PA), decorreu procedimento para a introdução no consumo de um veículo automóvel de passageiros proveniente de outro Estado-membro, equipado com motor híbrido plug-in, efetuada através da Declaração Aduaneira de Veículo (DAV) n.º 2022/..., de 22-11-2022 (data de aceitação), da Alfândega de Peniche.

ii) A liquidação do ISV foi efetuada nos termos do artigo 7.º e do artigo 11.º, n.º 1, do CISV e assentou nos elementos declarados e características físicas e técnicas do veículo constantes da respetiva documentação, tendo sido, para o efeito, aplicadas as disposições do CISV, atinentes às taxas em vigor, incidência, facto gerador e exigibilidade do imposto, após a alterações introduzidas pela Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro.

iii) De acordo com a DAV foi declarado o veículo da marca Mercedes Benz, modelo R 1 ES, equipado com motor híbrido plug-in, elétrico e combustível (gasóleo), cuja autonomia no modo elétrico, de acordo com o respetivo certificado de conformidade da marca, é inferior a 50 Km, apresentando 42g/km de emissão de gases CO2.

iv) O cálculo do imposto foi efetuado com recurso à tabela A, aplicável aos veículos ligeiros de passageiros, atendendo à componente cilindrada e à componente ambiental, nos termos da tabela A do artigo 7.º e tabela D do artigo 11.º, n.º 1, do CISV, tendo sido aplicadas as taxas normais, previstas para os veículos ligeiros de passageiros usados de acordo com as características dos veículos - cfr. Quadro R da DAV.

v) Subsequentemente, foi efetuada a liquidação n.º 2022/..., de 22-11-2022, no valor de 3.162,64€,- Cfr campo T da DAV.

vi) Em 20-12-2022, através do portal das Finanças, foi rececionado na Alfândega de Peniche o pedido de Revisão Oficiosa de Imposto sobre Veículos (ISV), nos termos do n.° 1 do artigo 78.° da Lei Geral Tributária (LGT), aprovada pelo Decreto-Lei n.° 398/98 de 17 de dezembro, em nome de A..., Unipessoal, Lda - NIF ... .

vii) No sistema SICAT foi registada a instauração da Revisão Oficiosa (RO) - Processo n.° ...2023....

viii) O pedido de RO teve por fundamento a percentagem que não foi deduzida na componente ambiental do ISV, pela não aplicação da taxa intermédia no apuramento e liquidação do ISV, respeitante à viatura objeto da DAV n.° 2022/... de 2022/11/22, solicitando em consequência o reembolso devido.

ix) Em Informação de 13-02-2023, a Alfandega de Peniche reconhece fundamento aos argumentos invocados pelo contribuinte e nessa informação é exarado, na mesma data, o despacho seguinte:

“Concordo com a informação.

Ao Setor Automóvel para proceder à subsequente liquidação de substituição da(s) liquidações em causa considerando a desvalorização, ambiental no cálculo de ISV e a fim de ser efetuado o reembolso dos montantes pagos em excesso.” [Assinado manualmente por B...]

x) Posteriormente, em Informação [sem data ou assinatura identificáveis] vem a mesma Alfândega expressar o novo entendimento seguinte:

“(…) 4 - Estipulam as Instruções de Serviço n.° 35.158, Série II de 2021/10/14 e n.° 35.159, Série II de 2021/11/08, que:

Encontram-se abrangidos pelo âmbito de aplicação do Acórdão do TJ, os veículos cuja liquidação tenha ocorrido desde o dia 1 de janeiro de 2017 até ao dia 31 de dezembro de 2020, data, a partir da qual o CISV passou a prever a desvalorização da componente ambiental (Lei do OE/2021).

Veículos usados, comunitários, abrangidos pela tabela A, regularizados ao abrigo do método clássico (n.° 1 do art.° 11.° do CISV), ou do método de avaliação (n.° 3 do art.° 11.° do CISV).

Liquidações ocorridas desde o dia 1 de janeiro de 2017 até ao dia 31 de dezembro e 2020, desde que, à data do pedido, ainda esteja a decorrer o prazo de quatro anos sobre a data da liquidação (vide art.° 43.° e 78.° da LGT).

5 - Analisado o pedido verificou-se que a liquidação de ISV é de 22/11/2022, encontrando-se fora do período de abrangência consagrado nas Instruções de Serviço, que estipula que as liquidações tenham ocorrido desde 1 de janeiro de 2017 até ao dia 31 de dezembro de 2020.

6 - Desta forma e em conclusão propomos o seguinte:

•Indeferimento do pedido no que respeita ao exposto no ponto 5 da presente informação;

•Que seja ordenada a notificação do requerente para o exercício do direito de audição prévia, nos termos e para efeitos da alínea b) do n.° 1 do art.° 60.° da LGT.”

xi) Na sequência dessa Informação, em 24-02-2023 é exarado o despacho seguinte:

“Concordo com a informação.

Notifique-se o requerente para o exercício do direito de audição prévia, nos termos e para efeitos da alinea b) do n.° 1 do art.° 60.° da LGT quanto à intenção de indeferimento do pedido no que respeita ao exposto no ponto 5 da informação;” [assinado eletronicamente, no sistema GPS, mediante autenticação por senha pessoal, por B...]

xii) Pelo Ofício n.º ..., de 24-02-2023, a Requerente é notificada pela Alfândega de Peniche nos seguintes termos:

“Fica por este meio notificado para, no prazo de 15 dias a contar da data em que se concretizou a notificação nos termos do n° 1 do art° 39° do Código do Procedimento e Processo Tributário (CPPT) exercer, querendo, o direito de participação na decisão na modalidade de audição prévia previsto no art.° 60.° da LGT, devendo para o efeito remeter documento escrito endereçado ao serviço da AT Autoridade Tributaria e Aduaneira emitente desta notificação.

Nos termos do n°5 do já referido artigo 60.° da LGT, em anexo envia-se o correspondente projecto de decisão devidamente fundamentado.” [ofício assinado manualmente por B...]

xiii) Em 02-03-2023, a Requerente, em audição prévia e resposta por escrito, vem reafirmar os fundamentos que invocou no pedido de revisão oficiosa.

xiv) Em 08-03-2024, a Requerida, pela Alfândega de Peniche, através do Ofício n.º..., de 08-03-2023, notificou a Requerente da decisão final de indeferimento do procedimento de revisão oficiosa com o Processo n.º ...2023... . [ofício assinado manualmente por B...]

 

B. Factos não Provados

Da instrução do processo e documentos juntos não constam elementos que permitam aferir a data do efetivo pagamento do ISV liquidado (3.162,64€), pelo que sem essa prova e apesar do referido supra, o mesmo não pode ser considerado como devidamente provado, maxime, para o cálculo de juros pedidos pela Requerente, restando concluir pela não demonstração completa de toda a factualidade necessária para a apreciação do cálculo de reembolso e juros, cujo montante é contestado pela Requerida.

 

C. Motivação da Decisão da Matéria de Facto

1.- A convicção do Tribunal Arbitral Singular quanto à matéria de facto dada como provada, para além do reconhecimento de factos não controvertidos pelas partes, resultou da análise crítica dos documentos juntos aos autos com o pedido de pronúncia arbitral e dos constantes do processo administrativo, que integra o processo de liquidação e o processo de revisão oficiosa, como indicado em relação a cada facto julgado provado nos vários números do probatório.

2.- Nos termos do n.º 3 do artigo 27.º do CISV, os veículos não podem ser matriculados sem que a AT tenha comunicado ao Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres, I. P. ou às direções regionais de transportes terrestres das regiões autónomas, informação comprovativa de que o imposto sobre veículos e, se for o caso, os direitos aduaneiros e o imposto sobre o valor acrescentado, se encontram pagos ou garantidos, ou de que foi reconhecida a sua isenção ou a não sujeição ao imposto sobre veículos.

3.- Apesar do processo de atribuição de matrícula pressupor o pagamento, igualmente podem ocorrer falhas nos respetivos automatismos e o mesmo apenas foi invocado na PI pela Requerente, mas sem junção de prova da data do efetivo pagamento, pelo que à mingua de outros elementos provatórios resta concluir pela não adequada e integral demonstração dessa factualidade.

 

V. Do Mérito. Fundamentação de Direito

1.- A Requerente manifestou a sua discordância com o ato de liquidação de ISV perante a Requerida e, mantendo esta esse ato, subsequentemente apresentou pedido de pronúncia arbitral perante a CAAD, como exposto supra.

2.- Integram elementos essenciais do ato de liquidação de um tributo, designadamente a base de cálculo/tributável sobre a qual o imposto é calculado, bem como a taxa, ou seja, a percentagem que é aplicada a essa base para determinar o montante do imposto devido. No caso do imposto sobre veículos essas taxas variam e em face das características e tipologia do veículo. No presente pedido é exatamente a discussão sobre os elementos do facto gerador e, maxime, a taxa aplicável que integram o objeto da presente lide, maxime, saber qual a taxa (normal ou intermédia) aplicável e, subsequentemente, o rigor e a legalidade da liquidação de imposto realizada pela AT.

3.- No caso concreto, foi objeto de discussão junto da AT o ato de liquidação realizado, especificamente, o requerente apresentou um pedido de Revisão Oficiosa de ISV e, na sequência do seu indeferimento, foi suscitado o presente pedido de pronúncia arbitral.

Como a própria AT afirma: “O presente pedido de constituição de tribunal arbitral vem interposto para declaração de anulação parcial do ato de liquidação de Imposto Sobre Veículos resultante da introdução no consumo de um veículo ligeiro de passageiros equipado com motor híbrido plug-in, através da Declaração Aduaneira de Veículo (DAV) n.º 2022/..., de 22.11.2022 (data de aceitação), da Alfândega de Peniche (…).”

4.- Termos em que as alegações “por exceção” por parte da Requerida que se dão aqui por reproduzidas, não se consideram fundadas nem procedentes.

5.- Consequentemente, procede-se à apreciação do ato de liquidação praticado pela AT- Alfândega de Peniche, constante da DAV n.º 2022/... – Liquidação 2022/..., de 2022/11/22.

6.- Atento o caso sub judice e de acordo com as normas de incidência previstas no CISV, encontram sujeitos a imposto, designadamente, os “automóveis ligeiros de passageiros…”, sendo sujeitos passivos “os operadores registados, os operadores reconhecidos e os particulares, tal como definidos pelo presente código, que procedam à introdução no consumo dos veículos tributáveis, considerando-se como tais as pessoas em nome de quem seja emitida a declaração aduaneira de veículos” – alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e n.º 1 do artigo 3.º do CISV, incidência objetiva e incidência subjetiva, respetivamente.  A introdução no consumo e a liquidação do imposto são tituladas pela Declaração Aduaneira de Veículos (DAV) – n.º 1 do artigo 17.º do CISV.

7.- Nos termos desse código, o ISV possui natureza específica, sendo a sua base tributável constituída pelos elementos constantes do respetivo certificado de conformidade ou os critérios previstos no artigo 4.º do referido código, constituindo facto gerador do imposto “o fabrico, montagem, admissão ou importação dos veículos tributáveis em território nacional, que estejam obrigados à matrícula em Portugal” - n.º 1 do artigo 5.º do CISV.

8.- O CISV prevê diferentes taxas do imposto que incidem sobre automóveis: taxas: “normais”, “intermédias” “reduzidas” e “taxas - veículos usados” – cf. artigos 7.º, 8.º, 9.º e 11.º, respetivamente.

9.- No caso em apreciação no presente pedido arbitral, a Requerente contesta a ilegalidade da liquidação pela não aplicação da taxa (intermédia) prevista no artigo 8.º na redação anterior a 2021, a qual considera que deveria ter sido a taxa aplicada pela Requerida no ato de liquidação controvertido.

10.- Relevante para o caso em apreciação são as alterações, maxime, ao artigo 8.º do CISV, introduzidas pela Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro.

11.- Considerando as características do veículo automóvel da Requerida e os respetivos elementos constantes da DAV n.º 2022/... – Liquidação n.º 202/..., de 2022/11/22, esse tipo de veículos foram objeto, no tempo, da previsão legal de tributação seguinte:

i) de 2015 a 2020, tributados a 25% - taxa intermédia, desde que bateria pudesse ser carregada através de ligação à rede elétrica e com uma autonomia mínima, no modo elétrico, de 25 quilómetros. Caso não reunissem um desses requisitos, eram tributados a 100% - taxa normal.

ii) após 2021, tributados a 25% - taxa intermédia, se autonomia em modo elétrico de pelo menos 50km e emissões de CO2 menores que 50 g/km. Caso não reúnam um destes requisitos, são tributados nos termos do artigo 7.º e 11.º do CISV.

12.- Ora, a Requerente veio inicialmente perante a Requerida e, subsequentemente, perante o CAAD alegar que a liquidação de ISV constante da DAV referida é ilegal por entender que deveria ter sido aplicada ao veículo a taxa intermédia, porquanto se tratar de um veículo híbrido matriculado pela primeira vez em 2019 no país de origem, sendo que a redação anterior da alínea d) do n.º 1 do artigo 8.º do CISV previa a aplicação de uma taxa de 25% para os automóveis com motores híbridos plug-in, com bateria carregada através de ligação à rede elétrica, com uma autonomia mínima, no modo elétrico, de 25 quilómetros, sustentando essa posição ainda em anterior Decisão Arbitral do CAAD.

13.- Sobre uma situação de facto semelhante e a mesma questão fundamental de direito, a Decisão Arbitral do CAAD– Processo n.º 136/2021-T, pronunciou-se nos termos seguintes:

“É com base no conceito de facto gerador não discriminatório, decorrente do Direito da União, que devemos aplicar corretamente no tempo a taxa intermédia constante da alínea d) do n.º 1 do artigo 8.º do CISV: Entre 2015 e 2020 para os veículos introduzidos pela primeira vez no consumo em qualquer Estado-membro da União Europeia; A partir de 2021 para os veículos introduzidos pela primeira vez no consumo em qualquer Estado-membro da União Europeia.” Ainda nos termos dessa decisão arbitral e face ao caso concreto, sendo a primeira matrícula de 2019, “...conforme DAV junta, é esta a data relevante para aplicação do conceito de facto gerador constante do artigo 5.º do CISV e que faz aplicar a taxa intermédia em vigor à data da primeira matrícula constante da alínea d) do n.º 1 do artigo8.º do CISV em vigor à data (2019)”

14.- O artigo 110.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, anteriormente conhecido como Artigo 90.º do TCE, estipula que nenhum EM da UE deverá impor, diretamente ou indiretamente, sobre produtos de outros EM, impostos internos superiores aos aplicados a produtos nacionais similares. Além disso, o artigo proíbe os EM de imporem impostos internos sobre produtos de outros EM de maneira que proteja indiretamente outras produtos nacionais.

15.- Ora, os veículos automóveis iguais e com a mesma antiguidade do veículo constante da DAV n.º 2022/..., foram matriculados pela primeira vez em Portugal com uma taxa intermédia e inferior àquela que agora se pretende aplicar (taxa normal) a veículos similares, se adquiridos em outro EM e introduzidos no consumo em Portugal, após 2021.

16.- Acresce que na prática, um veículo de 2019, com as características do veículo constante da referida DAV n.º 2022/..., mas com primeira matrícula nacional, beneficiou da aplicação da taxa intermédia de ISV. Ao tributar agora de forma mais gravosa na atribuição da primeira matrícula nacional um veículo proveniente de outro EM, face à tributação que foi aplicada ao veículo similar matriculado inicialmente em Portugal, origina a subsequente discriminação do veículo usado similar proveniente de outro EM.

17.- Assim, como referido, esse agravamento tributário, por sua vez, conduz, ainda, a potenciais vantagens de mercado para os veículos usados nacionais e a distorções na concorrência entre os dois tipos de veículos, nacionais e provenientes de outro EM, ambos com primeira matrícula anterior a 2021.

18.- A doutrina e interpretação do Artigo 110.º do TFUE tornou-se uma parte fundamental desse Tratado, o qual, juntamente com o Tratado da União Europeia, constituem a base do direito primário da UE. Esse artigo aborda principalmente questões relacionadas à não discriminação em matéria de impostos entre os EM, proibindo-os de imporem impostos mais elevados sobre produtos provenientes de outros EM do que aqueles que aplica/ou sobre os produtos similares existentes no mercado nacional.

19.- A proibição de medidas de efeito equivalente a restrições quantitativas é um princípio chave no direito da União Europeia. Este princípio, consagrado no TFUE, proíbe os EM de imporem medidas que possam ter um efeito restritivo sobre o comércio entre os respetivos EM, de forma similar às restrições quantitativas. O objetivo é assegurar a livre circulação de mercadorias dentro do mercado interno da UE, eliminando obstáculos ao comércio intra-UE que não sejam restrições quantitativas diretas, mas que tenham efeitos similares.

20.- Por sua vez, no ordenamento jurídico tributário nacional, o princípio basilar do Imposto sobre Veículos é o “princípio da equivalência”, através do qual se procurar “onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam nos domínios do ambiente, infra-estruturas viárias e sinistralidade rodoviária, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária.” – artigo 1.º do CISV.

O princípio da equivalência pretende assegurar que o valor do imposto deve ser proporcional ao custo dos serviços ou benefícios fornecidos pelo Estado ao contribuinte e, consequentemente, a regra geral da igualdade tributária estabelece que contribuintes que se encontram em situações equivalentes devem ser tratados de maneira igual pela legislação tributária, garantindo uma distribuição justa da carga fiscal.

21.- Atenta a aplicação do disposto no artigo 11.º do CISV pela Requerida a um veículo proveniente de outro EM, com matricula anterior a 2021, e perante iguais “custos que provoca nos domínios do ambiente, infra-estruturas viárias e sinistralidade rodoviária” face a igual veículo com primeira matricula nacional que tributou nos termos do artigo 8.º do CISV, vigente à data dessa matricula, na prática, está a tributar de forma mais gravosa o veículo similar proveniente de outro EM, não observando, ainda, a regra geral de igualdade tributária, tratando de forma desigual contribuintes possuidores do mesmo tipo de bem/veículo.

22.- Na defesa da legalidade da liquidação na DAV n.º 2022/... – Liquidação n.º 202/..., de 2022/11/22, veio a Requerida, em suma, invocar o texto e a letra da lei, maxime, artigo 8.º do CISV, após sua alteração pela Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro.

23.- Acaso aceitássemos, de maneira positiva e acrítica, a letra ou as eventuais inconsistências que o texto da lei possa exprimir, de nada serviria a investigação do sistema positivo, bem como o trabalho descritivo e interpretativo dirigido à sua explicitação e adequada aplicação.

24.- Acaso essa exegese não fosse realizada “(…) permaneceríamos na superfície, desconhecendo a verdadeira e substancial organicidade que se esconde nas profundezas do direito vigente (…)” – Cf. Bobbio, Norberto apud Carvalho, P. Barros. Segundo o mesmo autor “as normas jurídicas nunca existem isoladamente, mas sempre dentro de um contexto de normas com relações entre si”. Nesse contexto, Bobbio reporta-se a Hans Kelsen e a atenção que o autor de Teoria Pura do Direito prestou aos problemas relativos à norma jurídica (nomostática) e ao ordenamento (nomodinâmica).

25.- Neste sentido se pronunciou a referida Decisão Arbitral (CAAD, Processo n.º 136/2021-T), nos termos seguintes:

“Na verdade, o que está em causa é uma questão de aplicação de lei no tempo conjugada com o conceito de facto gerador constante do artigo 5.º do CISV. Ora, um dos princípios gerais da interpretação das normas jurídicas e “critério de interpretação” é o da interpretação conforme à Constituição (cfr. KARL LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, 3ª.ed., Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, p. 480). Segundo este critério, no caso de o intérprete, mediante a aplicação dos elementos interpretativos, chegar a mais do que um sentido possível a atribuir a um preceito normativo, deve preferir aquele que mais se adeque à Constituição.

No caso concreto, tal regra hermenêutica, mediada por uma interpretação atualista, aponta decisivamente para a interpretação da alínea d) do n.º 1 do artigo 8.º do Código do ISV, tendo em conta a evolução temporal identificada entre a Lei n.º 82-D/2014, de 31/12 e a Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro e por base o conceito de facto gerador constante do artigo 5.º do CISV.

Assim, numa perspetiva atual, à luz da evolução dos conceitos técnicos operados nas duas normas, assentes na evolução tecnológica dos veículos híbridos, só uma interpretação assente num critério teleológico-objetivo, e em conformidade com a Constituição evita uma contradição de valoração insanável, que não encontra qualquer fundamento razoável e é contrária à unidade do sistema jurídico.” (…)

“Diga-se aliás que este entendimento alargado de facto gerador decorrente do princípio da não discriminação europeia vem confirmar, por estarmos perante uma taxa intermédia e especial e consequentemente perante um benefício fiscal, que o reconhecimento confere ex lege a sua eficácia declarativa (ex tunc e não ex nunc, o que exige a verificação dos pressupostos no momento da primeira aquisição e não das aquisições derivadas, desde que em espaço europeu) conforme resulta do artigo 5.º, n.º 2 do Estatuto dos Benefícios Fiscais.

Concluindo-se, assim, que a liquidação de ISV efetuada pela AT, que aplicou o artigo 8.º do CISV na versão de 2021, e não na versão em vigor entre 2015 e 2020, foi efetuada em desconformidade com a lei nacional e o direito comunitário, incumprindo, designadamente, o disposto nos artigos 110.º do TFUE e o artigo 103.º da Constituição.

Nessa senda diga-se, a talhe de foice, que o reenvio prejudicial para o TJUE só se justifica quando o julgador tenha dúvidas quanto ao sentido e alcance de alguma disposição do direito da União Europeia. Quando tal dúvida não exista, deve o tribunal arbitral limitar-se a aplicar o direito da União Europeia e fazer a interpretação conforme, mesmo que esteja em causa apenas, como é o caso, aplicação de lei no tempo com base na conformação e clarificador do conceito de facto gerador do imposto.

Ao decidir em sentido contrário a AT incorreu, desta forma, em ilegalidade, devendo a liquidação ser anulada conforme peticionado e reconhecido o direito à taxa intermédia de 25% constante da alínea d) do n.º 1 do artigo 8.º do CISV na redação dada pela Lei n.º 82-D/2014, de 31/12, com as legais consequências.” – Cf. CAAD, Processo n.º 136/2021-T.

26.- A Requerente peticiona no seu pedido de pronúncia arbitral, em suma, que a AT deve restituir a importância por ele paga correspondente à coleta constante da liquidação impugnada, feito o acerto de contas com a coleta a constar da liquidação de substituição a efetuar pela AT.

Sucede que, nos presentes autos, não foi apresentada toda a factualidade necessária para apreciação e decisão concreta sobre o montante de reembolso e juros, em consequência, a presente decisão arbitral não se pronuncia sobre o respetivo quantum, nem essa quantificação é essencial, atenta a vinculação da AT ao dever de restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito e até ao momento da reparação do ato de liquidação considerado ilegal.

Nos termos do n.º 1 do artigo 24.º do RJAT, a “decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários. a) Praticar o acto tributário legalmente devido em substituição do acto objeto de decisão arbitral. b) Restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”, o que abrange o pagamento de juros indemnizatórios, como resulta do n.º 5 desse artigo 24.º, bem como do artigo 100.º da LGT, aplicável ex vi al. a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

Acresce, no caso sub judice, a existência de decisão arbitral quanto à mesma questão fundamental de direito – Cf. n.º 2 do artigo 25.º do RJAT.

VII. Decisão

Nestes termos, o Tribunal Arbitral Singular decide:

  1. julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e declarar a ilegalidade do ato de liquidação peticionado e da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa a esse efeito deduzido e, subsequentemente, reconhecer o direito à aplicação da taxa intermédia prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 8.º do CISV na redação dada pela Lei n.º 82-D/2014, de 31/12, atenta a data da primeira matrícula do veículo, com as demais consequências legais, incluindo, o pagamento de juros, em conformidade com o disposto nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 24.º do RJAT; e
  2. condenar a Requerida nas custas processuais, dada a procedência do pedido de ilegalidade do ato de liquidação sindicado.

VIII. Valor do Processo

Fixa-se o valor do processo em € 2.467,68 (dois mil quatrocentos e sessenta e sete euros e sessenta e oito cêntimos), em conformidade com o disposto, na al. a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do Código de Procedimento e Processo Tributário e nos n.ºs 1 e 2 do artigo 306.º do Código de Processo Civil, aplicáveis por força das alíneas a), c) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

IX. CUSTAS

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 612,00 (seiscentos e doze euros), nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem tributária, a cargo da Requerida, dada a procedência do pedido de ilegalidade do ato de liquidação sindicado, de harmonia com o disposto no n.º 2 do artigo 12.º e no n.º 4 do artigo 22.º, ambos do RJAT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 5 de janeiro de 2024.

 

O Árbitro,

 

 

(Vítor M.R. Braz)