Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 22/2013-T
Data da decisão: 2013-09-12  IRC  
Valor do pedido: € 432.368,42
Tema: Compatibilidade do art. 46.º do CIRC com o art. 63.º do TFUE, eliminação da dupla tributação económica de dividendos; Acordo Euro Mediterrânico; reenvio prejudicial
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Decisão Arbitral

 

Os Árbitros Juiz Conselheiro Jorge Lino Ribeiro Alves de Sousa (árbitro presidente), Doutora Maria do Rosário Anjos e Doutor João Sérgio Feio Antunes Ribeiro (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para integrarem o Tribunal Arbitral, constituído em 19-04-2013, acordam o seguinte:

 

I – Relatório

 

  1. A... –…, SA, (doravante designada por Requerente) pessoa coletiva nº …, com sede em …, Concelho de …, sujeita, na qualidade de sociedade dominante, ao regime especial de tributação dos grupos de sociedades, veio ao abrigo do disposto no artigo 2º, nº1, alínea a), artigo 6º, nº2, alínea a) e artigo 10º, nº1, alínea a) do Decreto-Lei nº10/2011 de 20 de Janeiro e dos artigos 1º e 2º da Portaria 112-A/2011, de 22 de Março, (doravante designada por RJAT – Regime Jurídico da Arbitragem Tributária) deduziu pedido de pronúncia arbitral clamando pela declaração de ilegalidade da autoliquidação de IRC e derrama relativas ao exercício de 2007, sendo Requerida a Autoridade Tributária.

 

Em consequência, a constituição do Tribunal Arbitral processou-se em conformidade com o disposto no artigo 17º, nº 1 do RJAT, e ficou constituído em 19-04-2013.

Em 07-06-2013, pelas 14horas e 30 minutos, realizou-se a reunião prevista no artigo 18º do RJAT, como consta da respetiva ata disponível no sistema de gestão processual, que se dá por integralmente reproduzida.


 

  1. A pretensão objeto do pedido de pronúncia arbitral consiste, em síntese, no seguinte pedido:

  2. anulação da decisão do recurso hierárquico com a consequente declaração de anulação da supra mencionada autoliquidação de IRC do exercício de 2007, defendida pela Requerente, e a devolução à Requerente do valor de € 432.368,42 (paga a título de IRC pela Requerente, acrescido de juros indemnizatórios

  3. Serem integralmente deduzidos os rendimentos incluídos na base tributária, correspondentes aos lucros distribuídos pela B... à Requerente, nas mesmas condições em que tal está previsto para lucros distribuídos por sociedades residentes em Portugal, com fundamento no Acordo Euro-Mediterrânico que estabelece uma associação entre as Comunidades Europeias e os seus Estados Membros, por um lado, e a República da Tunísia, por outro (a que corresponde o valor de €239.276,59, acrescido de juros indemnizatórios; ou subsidiariamente,

  4. Serem integralmente deduzidos os rendimentos, incluídos na base tributária, correspondentes aos lucros distribuídos pela B... à requerente nas mesmas condições em que tal está previsto para lucros distribuídos por sociedades residentes em Portugal, com fundamento no atual artigo 63º, nº1 do TFUE (a que corresponde o valor de €239.276,59 acrescido de juros indemnizatórios),


 

ou subsidiariamente,


 

  1. A dedução de tal valor com fundamento no previsto para lucros distribuídos por sociedades residentes nos PALOP e em Timor Leste (a que corresponde o valor de €239.276,59 acrescido de juros indemnizatórios),

  2. Ou, ainda subsidiariamente aos pedidos anteriores, deduzir parcialmente – em 50% ou seja €119.638,30 - os ditos rendimentos incluídos na base tributária, com fundamento no artigo 63º do TFUE, e

  3. Serem admitidos como gasto fiscal no exercício de 2007 os encargos financeiros incorridos pela C..., uma vez que as participações sociais cuja aquisição foi parcialmente financiada pelos mesmos não foi objeto de alienação, a que corresponde em sede de IRC e derrama municipal aos montantes de €182.162,10 e €10929,73, respetivamente, acrescidos de juros indemnizatórios; e

  4. Subsidiariamente ser aplicado um método de afetação direta dos encargos financeiros incorridos com a aquisição dessas participações sociais ou, caso assim não se entenda,

  5. Utilizar, caso seja impossível a utilização de um método de afetação direta, um método indireto que tenha em consideração o capital próprio e os encargos líquidos;

  6. Considerar, em qualquer caso, inaplicável entendimento expresso na Circular nº7/2004;

  7. Ou subsidiariamente serem admitidos como gasto fiscal no exercício de 2007 os encargos financeiros incorridos pela C... de €523.971.07, uma vez que os mesmos não correspondem a encargos financeiros relativos à aquisição de participações sociais e que equivalem, em IRC e derrama municipal a €130.992,77 e €7.895,57, a que acrescem juros indemnizatórios

  8. O pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do disposto no artigo 43º e 100º da LGT e artigo 61º do CPPT;

  9. O pagamento dos custos suportados e a suportar pela Requerente com os honorários e despesas dos seus advogados, bem como outras despesas suportadas com a presente arbitragem, tudo em montante a liquidar futuramente.

 


 

  1. O quadro alegatório em que se sustenta o pedido de pronúncia arbitral é o que consta da Petição Inicial junta aos autos, a qual atendendo á sua extensão foi posteriormente resumida num articulado apresentado pela Requerente no qual formula conclusões e apresenta a síntese da fundamentação para o seu pedido, os quais se dão por integralmente reproduzidos.


 

Em síntese, resulta do alegado nos supra referidos articulados apresentados pela Requerente que:


 

  1. A tributação em Portugal dos dividendos de 2007, recebidos pela Requerente da sua subsidiária Tunisina, a B..., não gozando de qualquer regime de eliminação de dupla tributação económica é ilegal por violação do Acordo Euro Mediterrânico que estabelece uma associação entre as Comunidades Europeias e os seus Estados Membros, por um lado, e a República da Tunísia, por outro;

  2. Tanto a liberdade de estabelecimento como a liberdade de circulação de capitais consagradas naquele acordo impõem a aplicação das regras de eliminação da dupla tributação económica previstas na lei doméstica aos dividendos com origem em lucros distribuídos por sociedades residentes na Tunísia.

  3. Alega ainda a Requerente que, a referida tributação, viola também, em segundo lugar, a liberdade de circulação de capitais prevista no Tratado da Comunidade Europeia – atual Tratado sobre o funcionamento da União Europeia (“TFUE”); liberdade que goza de um âmbito universal de aplicação, compreendendo, por isso, países terceiros.

  4. Estão hoje completamente afastadas, sem mais, as dúvidas quanto à aplicação da liberdade de circulação de capitais a situações envolvendo países terceiros nos casos em que exista, in casu, uma influência certa ou dominante da entidade beneficiária dos dividendos na gestão da entidade distribuidora. Influência que existe no caso em apreço.

  5. Em suma, invoca a Requerente que: “seja por via do direito convencional – o Acordo Euro-Mediterrânico celebrado com a Tunísia – ou por via do direito primário europeu – o TFUE – não há razões para não aplicar aos lucros com origem na Tunísia o regime de eliminação da dupla tributação económica previsto na lei doméstica à data dos factos.”


 

Esta é a síntese do quadro alegatório que o Tribunal entende mais relevante para o conhecimento das questões essenciais a decidir. Em tudo o mais se dá por integralmente reproduzido o teor dos articulados juntos aos autos.


 

 

  1. A Requerida Autoridade Tributária apresentou Resposta, na qual, em síntese abreviada, alegou o seguinte:


 

  1. Não assiste razão à Requerente.

  2. O artigo 46º CIRC consagra o direito à eliminação da dupla tributação económica só e apenas nas situações e condições nele expressamente previstas.

  3. Tal só está consagrado para dividendos de origem nacional e com origem em sociedade de Estado Membro da União Europeia.

  4. Ao dispor nesses termos a legislação nacional opõe-se, assim, frontalmente, à aplicação do mesmo regime quando a entidade que distribui os lucros seja residente num Estado terceiro.

  5. Tendo em conta que a sociedade que distribui os lucros se qualifica como residente na Tunísia, é de concluir que o regime estabelecido na norma em apreço lhe é inaplicável


 

Ao supra descrito, acresce todo o exposto e alegado no articulado de resposta da AT que se dá por integralmente reproduzido.


 


 

  1. As questões essenciais colocadas ao Tribunal arbitral são as seguintes:


 

  1. Avaliar se as regras domésticas de tributação de lucros recebidos por uma sociedade portuguesa de uma sua subsidiária na Tunísia são conformes com o Direito Internacional Público e com o Direito da União Europeia, aos quais Portugal se encontra vinculado. Está, pois em causa, a aplicação das regras domésticas em matéria de IRC e sua conformidade com o TFUE e, ainda, com as regras do Acordo Euro Mediterrânico, Tratado que estabelece uma associação entre as Comunidades Europeias e os seus Estados Membros, por um lado, e a República da Tunísia por outro. Um dos objetivos deste Acordo, expressos claramente no nº 2 do seu artigo 1º, é: “estabelecer as condições de liberalização progressiva das trocas comerciais de bens, de serviços e de capitais;”.


 

  1. Aferir da legalidade das regras legais aplicadas pela Autoridade Tributária ao caso concreto, de acordo com aquele que é o seu entendimento, o qual assenta na não dedutibilidade dos encargos financeiros suportados por uma sociedade gestora de participações sociais (“SGPS”), in casu a C..., , SGPS, SA, pertencente ao grupo de tributação do qual a Requerente é sociedade Dominante, nos termos do disposto no artigo 69º do CIRC (na versão vigente ao tempo – 2007)


 


 

  1. Atendendo ao disposto no artigo 1º, alínea a) da Portaria nº 112 – A/2011 de 22 de Março, e no artigo 2º, nº1 do Decreto - Lei nº 10/2011, as partes são legítimas e o tribunal competente para o conhecimento do pedido formulado.


 

  1. Na reunião prevista no artigo 18º do RJAT, realizada em 07-06-2013, foi concedida às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre as questões jurídicas em presença e sobre a eventualidade de reenvio ao TJUE. Foi fixado prazo para se pronunciarem. Na respetivas respostas as partes apresentaram as questões que consideravam mais pertinentes para serem submetidas ao conhecimento do TJUE, caso o Tribunal Arbitral viesse a considerar necessário esse reenvio, como consta dos respetivos articulados juntos aos autos e que se dão por integralmente reproduzidos.


 

 

 

II – Questão do Reenvio Prejudicial

 

1.Importa, pois, decidir previamente da necessidade de reenvio prejudicial ao TJUE. As partes intervenientes não requereram o reenvio, tendo contudo, formulado as questões a colocar ao TJUE, caso o Tribunal viesse a suscitar tal reenvio.

Analisadas as matérias em presença e considerando as questões a decidir o tribunal arbitral entendeu não ser necessário promover o reenvio prejudicial ao TJUE, nos termos e fundamentos a seguir enunciados.

Os Tribunais arbitrais integram o conjunto de Tribunais nacionais, como expressamente resulta do previsto no artigo 209º da Constituição da República Portuguesa (CRP). Enquanto tal, e no desempenho ativo da sua função arbitral, atendendo à natureza excecional do recurso da decisão dos Tribunais Arbitrais em matéria tributária, o legislador nacional deixou expresso no preâmbulo do Decreto-Lei nº 10/2011, que “Nos casos em que o tribunal arbitral seja a última instância de decisão de litígios tributários, a decisão é suscetível de reenvio prejudicial em cumprimento do §3 do artigo 267º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia”.

Não há dúvida, pois, que em caso de dúvida sobre a interpretação de normas jurídicas de direito europeu o tribunal arbitral pode recorrer ao mecanismo de reenvio prejudicial.

Voltando ao caso sub judice, resta analisar da necessidade de promover esse reenvio, o que cabe, naturalmente, a este tribunal decidir.

 

2. Os tribunais nacionais são considerados como tribunais comuns da Ordem jurídica da União Europeia, dado o número considerável de normas e de atos comunitários, constituídos por disposições diretamente aplicáveis ou com efeito direto, cabendo aos tribunais nacionais dos Estados Membros aplica-las nos litígios que lhes sejam submetidos para apreciação.1 Cabe, pois, aos tribunais nacionais o dever de aplicar o direito comunitário, mesmo contra disposições de direito interno em sentido contrário.

Assim, para se recorrer ao processo de reenvio de uma ou mais questões a título prejudicial, para interpretação de uma ou mais normas jurídicas de direito comunitário, originário ou derivado, é necessário que subsistam dúvidas sobre a interpretação do texto em causa. Pelo contrário, se o texto é perfeitamente claro, não se trata já de interpretar, mas sim de o aplicar, o que é competência do Tribunal / Juiz incumbido da competência de julgar o caso concreto aplicando a lei, a nacional e/ ou a comunitária, se for esse o caso. Este entendimento é amplamente conhecido e defendido pela doutrina e pela jurisprudência como a “teoria do ato claro”.

Posto isto, acresce ainda o facto de as questões relativas ao entendimento do conceito de liberdade de circulação de capitais, bem assim como a da liberdade de estabelecimento, se encontrarem amplamente tratadas em numerosa jurisprudência do TJUE, alguma da qual foi, aliás, amplamente referenciada pelas partes intervenientes no presente litígio.

Tudo isto considerado, entendeu este tribunal arbitral que não subsistiam dúvidas de interpretação sobre qualquer uma das normas em presença e, nessa medida, o que se impõe a este tribunal é decidir em conformidade com a lei aplicável, nacional e comunitária, dando plena aplicação a ambas, bem assim como aos princípios enformadores em presença, tendo em linha de conta a jurisprudência do TJUE, relevante no tratamento das matérias em questão.

Nesta conformidade decidiu este tribunal pela desnecessidade de promover o reenvio ao TJUE para interpretação de qualquer questão prejudicial.

 

Cumpre, pois, decidir.

 

 

III – Matéria de Facto

 

 

1.Para a decisão das questões suscitadas nos autos, importa delimitar a matéria de facto, a partir da análise da prova documental e do processo administrativo tributário junto e em face dos factos alegados, a qual se fixa nos termos seguintes:


 

  1. Em causa está apreciar a legalidade da decisão de indeferimento do recurso hierárquico proferida e, em consequência, da autoliquidação de IRC, com referência ao ano de 2007.

  2. A Requerente apresentou, em 31 de dezembro de 2008, Reclamação graciosa da autoliquidação de IRC de 2007, a qual foi objeto de decisão de indeferimento, por despacho de 30 de abril de 2010.

  3. A Requerente apresentou, em 14 de junho de 2010, recurso hierárquico da decisão de indeferimento, o qual deu origem a dois exercícios de direito de audição à Requerente.

  4. Este recurso hierárquico veio a ser indeferido, por decisão notificada à Requerente em 22 de novembro de 2012

  5. No seguimento desta decisão a Requerente requer a constituição de Tribunal Arbitral nos termos supra descritos.

  6. A Requerente, A... – …, SA, pessoa coletiva nº …, é uma sociedade de direito português, com sede em ….

  7. A Requerente detém uma participação de 98,72% na sociedade tunisina designada por “B…”.

  8. A Requerente recebeu durante o exercício fiscal de 2007 dividendos da sua subsidiária na Tunísia (a B...), no montante de €902.930,54.

  9. Os lucros distribuídos pela B... à Requerente, em 2007 corresponderam a um IRC e derrama Municipal de, respetivamente, €225.732,64 e €13.543,96, o que perfaz um valor total de €239.276,60.

  10. Estes dividendos foram sujeitos a tributação em Portugal, e não beneficiaram de qualquer regime de eliminação de dupla tributação económica.

  11. À tributação que incidira sobre os lucros da sociedade tunisina acresceu uma segunda tributação, na forma de dividendos, na esfera da ora Requerente, acionista da sociedade Tunisina.

  12. O Acordo Euro – Mediterrânico que estabelece uma associação entre as Comunidades Europeias e os seus Estados-Membros e a República da Tunísia, tem como Estados signatários todos os Estados membros das Comunidades, entre os quais a República Portuguesa.


 

Não subsistem outros factos invocados pelas partes nos respetivos articulados que se afigurem relevantes para a decisão.


 


 

2. Fundamentação da fixação da matéria de facto


 

A convicção sobre os factos assim dados como provados fundou-se na prova documental junta aos autos pela Requerente (docs. nºs 1 a 18 juntos à petição) e nos documentos juntos ao processo administrativo de reclamação graciosa e recurso hierárquico junto aos autos pela Autoridade Tributária.

Não há factos relevantes para a decisão que não se tenham provado.


 


 


 

IV – Matéria de Direito


 

 

1. Apreciar-se-ão, prioritariamente, os pedidos principais, só passando a apreciar os pedidos subsidiários se improcederem aqueles. Os pedidos subsidiários só devem, portanto, ser tomados em consideração no caso de não proceder um pedido anterior [artigo 469.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT].

 

 

1.1 Questão da dedutibilidade integral dos rendimentos, incluídos na base tributária, correspondentes aos lucros distribuídos pela B... à Requerente.

 

A principal questão a decidir nos presentes autos arbitrais é a de saber se a diferenciação, estabelecida pela legislação nacional, entre o tratamento dos lucros quando estes são distribuídos por uma sociedade não residente ou em Portugal ou num Estado-Membro da União Europeia é (in)compatível com a liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), por se traduzir num regime fiscal menos favorável para os não residentes.

 

 

1.1.1. Enquadramento

 

De acordo com a legislação portuguesa, regra geral, sempre que uma sociedade participa no capital de outra sociedade e, nesse contexto, beneficia de uma distribuição de lucros por parte da sociedade participada, esses lucros são incluídos na sua base tributária. Isto é, são considerados como fazendo parte dos rendimentos da sociedade que deles beneficia. A incorporação desses lucros no lucro tributável da sociedade beneficiária gera uma dupla tributação económica, uma vez que o mesmo lucro é tributado na esfera de duas pessoas jurídicas distintas. No sentido de obviar a esta dupla tributação e aos efeitos negativos que tem sobre a atividade económica o legislador fiscal criou alguns mecanismos.

 

O mecanismo do artigo 46.º, n.º 1 do CIRC, que a requerente pretende ver ser-lhe aplicado, elimina a dupla tributação económica ao permitir deduzir aos rendimentos incluídos na base tributável os lucros distribuídos desde que sejam preenchidos vários requisitos. Exige para isso que (i) a sociedade que distribui os lucros tenha a sede e direção efetiva em Portugal ou num Estado da União Europeia (46.º, n.º 5), (ii) esteja sujeita a imposto sobre o rendimento; (iii) a sociedade beneficiária não se encontre abrangida pelo regime da transparência fiscal e (iv) detenha diretamente uma participação no capital da sociedade que distribui os lucros não inferior a 10% ou com um valor de aquisição não inferior a 20 000 000 Euros, tendo esta permanecido na titularidade da beneficiária, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da colocação à disposição dos lucros.

 

O mecanismo descrito e de que a requerente pretende beneficiar, tal como resulta da letra da lei, pode apenas ser aplicado a sociedades que preencham os requisitos descritos, o que prima facie não poderia beneficiar a requerente. Isto porque, apesar de, nos termos dos factos provados, a situação sub judice respeitar a maior parte dos requisitos, designadamente o que concerne ao montante e duração da participação detida na sociedade que distribui os lucros, o relativo à sujeição da B... (doravante sociedade tunisina) a tributação e o respeitante ao facto de a Requerente não estar sujeita a transparência fiscal, a sociedade tunisina não tem residência em Portugal ou num Estado-Membro.

 

1.1.2. Direito da União Europeia

 

Não obstante a limitação decorrente da letra da lei, é possível conceber que, por via do Direito da União Europeia, se possa alargar o âmbito de aplicação do mecanismo do artigo 46.º. do CIRC. Pois, como é sabido, não obstante só os Estados-Membros terem competência em matéria de impostos diretos, o Tribunal de Justiça (TJ) tem sustentado, através das suas decisões, que esses Estados devem exercer essa competência em conformidade com o direito da União Europeia2. Evitando, assim, violações das cinco liberdades económicas fundamentais, designadamente: (i) a livre circulação de mercadorias (artigos 28.º e seguintes do TFUE); (ii) a livre circulação de trabalhadores (artigos 45.º e seguintes do TFUE); (iii) a liberdade de estabelecimento (artigo 49.º e seguintes do TFUE); (iv) a liberdade de prestação de serviços (artigo 56.º e seguintes do TFUE) e (v) a livre circulação de capital (artigo 63.º e seguintes do TFUE). Ora, é precisamente através da proteção de cada uma destas liberdades, diretamente aplicáveis, que ocorre uma verdadeira harmonização pela via jurisprudencial que se traduz na obrigatoriedade de as legislações nacionais se conformarem a cada uma dessas liberdades.

11.3. Liberdade de circulação de capitais

 

Tendo como base o circunstancialismo da situação em análise, designadamente o recorte do mecanismo de eliminação da dupla tributação constante do artigo 46.º do CIRC, constata-se que a aplicação desse artigo unicamente a sociedades com residência na União Europeia ou em Portugal que distribuam lucros representa, à primeira vista, uma violação da liberdade de circulação de capitais (artigo 63.º do TFUE). Esta liberdade é, aliás, a única que se aplica também face a Estados terceiros, sendo neste momento pacífico que o seu conteúdo é exatamente o mesmo quando estão em causa Estados-Membros e Estados terceiros. Consequentemente, as restrições a esta liberdade são proibidas exatamente da mesma forma independentemente de estarem em causa Estados-membros ou Estado terceiros3, sendo as situações perfeitamente comparáveis. Dito de outro modo, todas as restrições relativas à circulação de capital e pagamentos entre os Estados-Membros e entre estes e países terceiros são proibidas4.

A sustentação de que, de facto, a não aplicação do regime do artigo 46.º, n.º 1 do CIRC aos dividendos distribuídos pela sociedade tunisina corresponde a uma situação de discriminação intolerável face à livre circulação de capitais (ao dissuadir os contribuintes tributados em Portugal de investir os seu capital na Tunísia) pressupõe, consequentemente, por um lado que o artigo 63.º do TFUE seja aplicável a essa situação e por outro que, sendo esse o caso, e havendo, portanto, discriminação, não seja aplicável a cláusula de reserva ou não haja uma justificação válida para essa discriminação.

Para responder à primeira questão, isto é, saber se o artigo 46.º está ou não abrangido pelo âmbito da liberdade de circulação de capitais (artigo 63.º do TFUE) é necessário esclarecer desde logo se tanto a aquisição de partes sociais numa sociedade como o pagamento de dividendos decorrentes dessa operação quadram ou não com essa liberdade.

Não há uma definição de «circulação de capital» no Tratado. Importa relevar, no entanto, que o TJ confirmou em vários acórdãos, ao fazer uma lista não exaustiva dos movimentos de capital, que a terminologia aplicada a esses movimentos no Anexo I da Diretiva do Conselho 88/361/ CEE, de 24 de Junho de 1988, para a implementação do antigo artigo 67.º do TCE, hoje revogado, ainda tem alguma relevância. Nesse contexto o TJ decidiu que podem ser reconduzidos aos movimentos de capitais no contexto do artigo 63.º, nomeadamente, os investimentos ditos «diretos», a saber, os investimentos sob a forma de participação numa empresa pela detenção de ações que confere a possibilidade de participar efetivamente na sua gestão e no seu controlo, assim como os investimentos ditos «de carteira», isto é, os investimentos sob a forma de aquisição de títulos no mercado de capitais com o único objetivo de realizar uma aplicação financeira sem intenção de influir na gestão e no controlo da empresa5.

Segundo o TJ as restrições aos movimentos de capitais aludidos abrangem «não só as medidas nacionais que, quando aplicadas a movimentos de capitais com destino a países terceiros ou deles provenientes, restringem o estabelecimento ou os investimentos mas também as que restringem os pagamentos de dividendos deles decorrentes»6.

Decorre, como consequência do exposto, nas palavras do próprio TJ que «uma sociedade residente num Estado-Membro e que detenha uma participação numa sociedade residente num país terceiro que lhe confere uma influência certa nas decisões desta última sociedade e lhe permite determinar as suas atividades pode invocar o artigo 63.º TFUE para pôr em causa a conformidade com esta disposição de uma legislação do referido Estado-Membro relativa ao tratamento fiscal de dividendos originários do referido país terceiro, não exclusivamente aplicável às situações em que a sociedade-mãe exerce uma influência decisiva na sociedade que procede à distribuição dos dividendos»7.

Relativamente à última parte do excerto transcrito, cumpre sublinhar que apesar de em termos históricos, até pela sua relação com a Diretiva sociedades-mãe sociedades afiliadas, ser concebível a ideia de que o artigo 46.º, n.º 1 do CIRC teria na origem em vista situações de controlo ou influência efetiva, hoje, não obstante poder haver essa preponderância, surge como claro que não se refere exclusivamente a essas situações. Desde logo porque 10% do capital, dependendo da maior ou menor dispersão deste, não garantem um controlo efetivo. Além disso, sendo esta ideia particularmente importante, o requisito dos 10% de participação no capital é alternativo face à aquisição de uma participação no valor de 20 000 000 de Euros, que não tem de corresponder a 10% ou qualquer percentagem pré-definida de participação. Ora, dependendo do tipo de empresa, 20 000 000 de Euros podem representar uma percentagem muito variável em termos de relevância da participação, podendo esta permitir ou não um controlo efetivo. Não se pode, por conseguinte, de modo algum dizer que o artigo 46.º, n.º 1 do CIRC se aplica de forma exclusiva às situações em que a sociedade-mãe exerce uma influência decisiva na sociedade que procede à distribuição dos dividendos.

Resulta claro, portanto, que o artigo 46.º do CIRC é claramente abrangido pela circulação de capitais, pelo que a recusa de um Estado em conceder eliminação da dupla tributação a dividendos com origem na Tunísia, quando essa eliminação é permitida a favor de dividendos de origem doméstica constitui, uma discriminação8. Pois, como é óbvio, essa disposição limita a aquisição de ações nas sociedades desse país, o que não pode ser permitido.

 

 

1.1.4. Cláusula de Salvaguarda

 

Verificada a suscetibilidade de aplicação do artigo 63.º do TFUE é necessário, todavia, antes de retirar daí consequências plenas, verificar ainda se é suscetível de ser aplicada a cláusula de salvaguarda do artigo 64.º do TFUE. Este artigo permite que, existindo restrições em vigor em 31 de dezembro de 1993 ao abrigo de legislação nacional ou da União adotada em relação a certos movimentos de capitais com países terceiros que envolvam, entre outras operações, o investimento direto (situação de que cuidamos), seja possível obstar à livre circulação de capitais. Isto porque «o objectivo e o contexto jurídico da liberalização dos movimentos de capitais são diferentes consoante se trate das relações entre Estados-Membros e países terceiros ou da livre circulação de capitais entre Estados-Membros, [assim] estes consideraram necessário prever cláusulas de salvaguarda e excepções que se aplicam especificamente aos movimentos de capitais com destino ou provenientes de países terceiros»9. A cláusula de salvaguarda tem em vista, ao cabo e ao resto, permitir algum controlo por parte dos Estados, dado que a liberdade de circulação de capitais é normalmente assegurada unilateralmente e sem reciprocidade.

Independentemente de a regra portuguesa que exclui os dividendos distribuídos por sociedades de Estados terceiros do mecanismo da dupla tributação económica configurar ou não uma disposição conforme aos requisitos do artigo 64.º do TFUE, a existência e o teor do Acordo Euro-Mediterrânico celebrado com a Tunísia sempre impediriam a aplicação dessa cláusula de salvaguarda às situações envolvendo sociedades tunisinas. Convém lembrar que o direito português consagra uma cláusula de receção automática plena do direito convencional internacional, cumpridas as formalidades de aprovação, ratificação e publicação (artigo 8.º, n.º 2 da CRP). Daqui decorre que os tratados são fonte imediata de direitos e obrigações para os seus destinatários, podendo ser invocados perante os tribunais.

Os tratados são superiores hierarquicamente relativamente à lei ordinária. Esta superioridade decorre não só dos artigos 26.º e 27.º da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, mas igualmente do artigo 8.º nos 1 e 2 da CRP. Apresenta-se pois como claro que para que a convenção vigore na ordem interna, é necessário que a lei ordinária posterior a não possa revogar. Ou seja, o direito internacional convencional não pode ser afastado por leis ordinárias, surgindo como superior àquelas. Sejam essas leis subsequentes, as quais serão inválidas se o contrariarem; sejam anteriores, as quais terão de ser suspensas se forem conflituantes com esse direito convencional internacional, só retomando a vigência no caso de suspensão ou cessação da convenção internacional que estiver em causa.

Aliás, o acordo celebrado com a Tunísia, enquanto tratado misto, ou seja, tratado celebrado conjuntamente pela União Europeia (na altura Comunidade Europeia) e os Estados-Membros é fonte de Direito por duas vias, enquanto Direito da União Europeia10 e enquanto Direito Internacional de incorporação automática no nosso sistema jurídico.

Não obstante este acordo ter essencialmente em vista a liberalização a nível das liberdades económicas fundamentais e evitar a discriminação, é-lhe ínsita, dada a abrangência dessas liberdades, a questão fiscal pelo impacto que tem sobre elas. O facto de o acordo com Tunísia incorporar cláusulas que especificamente fazem referência aos impostos atesta isso mesmo. São exemplo disso, aquelas que permitem às partes, designadamente o direito de distinguir residentes e não residentes para efeitos de tributação. Ora, só faz obviamente sentido a inclusão de cláusulas deste tipo se o acordo como o celebrado com a Tunísia tiver impacto na legislação fiscal dos Estados signatários. O facto de ter sido assinado pelos vários Estados-Membros, e portanto também por Portugal, assegura que lhe subjaz um exercício de uma indiscutível e plena soberania fiscal, o que reforça o seu efeito direto.

Importa salientar que, anteriormente à assinatura deste acordo, a livre circulação de capitais da Tunísia para Portugal e outros Estados-Membros já estava assegurada; com a eventual aplicação da cláusula de salvaguarda, é certo, mas já existia. Pelo que somos forçados a concluir que o objetivo do acordo com a Tunísia, à semelhança do que se passou com outros países relativamente aos quais se seguiu o mesmo modelo de acordo, era essencialmente assegurar a reciprocidade desta liberdade. Concretamente, no que respeitava aos investimentos diretos provenientes da União Europeia.

O artigo 34.º do acordo com a Tunísia não se limitou, no entanto, a referir aos investimentos diretos na Tunísia, assegurando relativamente a eles a livre circulação. Veio consagrar ainda, expressamente, que «a Comunidade e a Tunísia assegurarão…a liquidação ou o repatriamento de tais investimentos [diretos] e de quaisquer lucros deles resultantes». Tendo em conta que esta solução já decorria em abstrato da liberdade de circulação de capitais assegurada a Estados terceiros (sem prejuízo da aplicação de legislação enquadrável na cláusula de salvaguarda ou outras restrições aceites) tem de decorrer desta referência, partindo do pressuposto que os acordos por regra não são redundantes, a seguinte conclusão. Pelo menos no que se refere à circulação de capitais referentes a investimentos diretos envolvendo a Tunísia, as disposições suscetíveis de ser reconduzidas à cláusula de salvaguarda, isto é, as que estivessem em vigor em 31 de Dezembro de 1993, deixam de ser aplicadas. Resulta claro que uma das implicações do artigo 34.º n.º 1 do acordo com a Tunísia, que entrou em vigor no dia 1 de Março de 1998, tem de ser esta, representando este artigo uma clarificação a esse respeito. Enquanto norma subsequente às normas vigentes em 1993, que reveste natureza superior e que além disso assume natureza especial, sobrepõe-se necessariamente a elas, pelo que afasta uma eventual cláusula de salvaguarda que pudesse impedir a aplicação plena da liberdade de circulação de capitais relativos a investimentos diretos na Tunísia.

Aliás, outra não podia ser a consequência, sob pena de o acordo com a Tunísia ver totalmente frustrados os objetivos que claramente pretende atingir no que concerne à liberdade de circulação de capitais quando estejam em causa investimentos diretos. Convém não esquecer que uma das razões para a consagração da cláusula de salvaguarda contante do artigo 64.º do TFUE foi certamente a inexistência de reciprocidade por parte dos Estados terceiros no que concerne à liberdade de circulação de capitais. Ora, estando esta assegurada relativamente à Tunísia, deixa de fazer sentido a aplicação da cláusula de salvaguarda nas relações com esse país. Esta interpretação é, além de tudo o mais, a única consentânea com a observância do princípio da boa-fé11, incontornável na interpretação dos tratados, e que certamente impede que uma das partes no acordo o ponha em causa ao manter uma disposição com ele incompatível.

A solução veiculada pressupõe, no entanto, que o artigo 34.º, n.º 1, do acordo com Tunísia, depois de tida em atenção a sua natureza, contexto, clareza e precisão da sua redação possa ser aplicado diretamente sem necessidade da adoção de qualquer medida subsequente12. Considerados todos esses requisitos, com destaque para os objetivos e contexto em que o acordo foi celebrado, somos levados a concluir que o artigo em causa pode ser aplicado diretamente (em sintonia, aliás, com a própria Autoridade Tributária13).

O facto de o n.º 2 do artigo 34.º se referir a uma liberalização integral da circulação de capitais «quando estiverem reunidas as condições necessárias», não põe obviamente em causa as conclusões expostas, designadamente o efeito direto do artigo 34.º, n.º 1, do acordo. O artigo 34.º, n.º 2, reflete apenas o facto de se garantir apenas de forma plena, no n.º 1, a circulação de capitais respeitantes a investimentos diretos, e não os «investimentos de carteira», esses sim a ser liberalizados quando estiverem reunidas as devidas condições, e eventualmente de efeito condicionado. Dito de outro modo, o n.º 2 refere-se apenas aos movimentos de capitais que não podem ser reconduzidos ao n.º 1, isto é, os investimentos de carteira. Consequentemente apenas a disposições nacionais referentes a este tipo de «investimentos de carteira» e que sejam suscetíveis de ser reconduzidas à cláusula de salvaguarda do artigo 64.º do TFUE podem eventualmente ser aplicadas aos investimentos na Tunísia, ficando excluídas as disposições referentes ao investimento direto como a que está em causa na situação em análise.

 

 

1.1.5. Implicações do artigo 89.º do acordo celebrado com a Tunísia (Carve-out clause)

 

Importa agora determinar se o artigo 89.º do acordo com a Tunísia põe em causa o afastamento do regime discriminatório do artigo 46.º do CIRC, impedindo eventualmente que o artigo 34.º, n.º 1, do acordo seja interpretado no sentido que acabámos de lhe dar.

O artigo 89.º do acordo com a Tunísia de termina que nenhuma disposição desse acordo pode ter por efeito:

 

«- aumentar as vantagens concedidas por uma parte no domínio fiscal em qualquer acordo ou convénio internacional que vincula essa mesma parte,

 

- impedir a adopção ou a aplicação por uma parte de qualquer medida destinada a evitar a fraude ou a evasão fiscal,

 

- impedir o direito de uma parte de aplicar as disposições relevantes da sua legislação fiscal aos contribuintes que não se encontram em situação idêntica no que respeita ao seu local de residência».

 

O primeiro efeito que o artigo 89.º quer prevenir é tão só que através do acordo se aumentem as vantagens fiscais concedidas por qualquer umas das partes (União Europeia, Estados-Membros ou Tunísia) no âmbito de qualquer acordo ou convénio que tenham celebrado. Isto é, o que se pretende é circunscrever as vantagens fiscais que decorram do acordo com a Tunísia às relações entre as partes e não estendê-lo a outros Estados com quem tenham celebrado convénio ou acordos. Pretende-se, portanto, impedir que, no plano fiscal e na decorrência de um tratado, seja admitida a aplicação do princípio da nação mais favorecida14. Esse efeito não tem, por conseguinte, tanto em vista os convénios que vinculem as partes contratantes entre si, mas convénios com Estados terceiros, pelo que não se infere daí qualquer impedimento à não aplicação da eventual cláusula de salvaguarda às situações de investimento direto na Tunísia.

O segundo efeito que pretende impedir que o acordo com a Tunísia ponha em causa a aplicação de medidas que contrariem a fraude ou evasão fiscal, não é suscetível de quadrar com a situação de que tratamos, não tendo sido sequer levantada essa questão ou verificada a existência de indícios de qualquer situação de evasão ou fraude. Mesmo que uma eventual situação desse tipo se verificasse, o artigo 34.º do acordo jamais teria como efeito impedir que fossem tomadas medidas de reação, transcendo o seu sentido último e enquadramento qualquer entendimento com esse conteúdo.

O terceiro efeito, finalmente, também não levanta qualquer obstáculo à leitura preconizada a propósito dos efeitos do artigo 34.º, n.º 1, do acordo. Pois apesar de se permitir que as partes possam distinguir os contribuintes em função da condição de residente, essa distinção não pode jamais ser arbitrária ou redundar num tratamento discriminatório de situações comparáveis em termos objetivos, sob pena de, à revelia do espírito do próprio acordo, fazer letra morta do seu artigo 34.º, n.º 1. Para não falar da violação flagrante do próprio direito da União Europeia que proíbe tanto a discriminação direta como a indireta. A primeira é feita com base na nacionalidade e a segunda assenta normalmente num critério que leva ao mesmo resultado. Curiosamente o TJ sustentou a este propósito que quando distinções com base na residência privem os não residentes de certos benefícios que são garantidos aos residentes podem constituir uma discriminação indireta com base na nacionalidade15, o que é especialmente relevante para o caso que se julga, na medida em que um tratamento distinto das sociedades tunisinas teria precisamente esses efeitos.

O artigo 89.º do acordo não põe, portanto, em causa a liberdade de circulação de capital quando estejam em causa investimentos diretos, assegurando antes reciprocidade na proteção desta liberdade, em concordância com o espírito do próprio acordo.

 

 

1.1.6. Outras Justificações

 

Constatado que nem a cláusula de reserva constante do artigo 64.º do TFUE nem o artigo 89.º do acordo com a Tunísia tem como efeito pôr em causa a liberdade de circulação de capitais relativa a investimentos diretos feitos na Tunísia, resta determinar se a razão invocada pela Autoridade Tributária para justificar a restrição à liberdade de circulação de capitais ao abrigo de razões de interesse geral (artigo 65.º do TFUE) – concretamente, facilitar os controlos fiscais – pode ou não ser aceite. Esta justificação já foi aceite nas relações entre Estados-Membros no célebre caso Futura participations16. Contudo, sempre que o argumento dos controlos fiscais tem em vista essencialmente a dificuldade em obter informações e estão em causa Estados-Membros, essa justificação não tem sucesso, pois a Diretiva sobre a troca de informações 2011/16/UE17 obriga esses Estados a cooperar uns com os outros.

Quando estão em causa Estados terceiros a situação tem uma natureza distinta, desde logo porque estes não estão vinculados por essa diretiva, pelo que, tal como já aconteceu num caso com muitas afinidades com o que se decide, a justificação foi aceite. No acórdão Skatteverket v A o TJ decidiu «que, quando a legislação de um Estado-Membro faz depender uma vantagem fiscal [isenção do imposto sobre o rendimento de dividendos distribuídos sob a forma de ações de um filial] de requisitos cuja observância só pode ser verificada mediante a obtenção de informações junto das autoridades competentes de um país terceiro, esse Estado-Membro pode, em princípio, recusar-se a conceder essa vantagem se for impossível obter essas informações junto desse país terceiro, designadamente por não existir para esse país a obrigação convencional de fornecer informações»18. Infere-se daqui, a contrario, que os artigos 63.º e 65.º do TFUE opor-se-ão à legislação – no caso concreto o artigo 46.º do CIRC – de um Estado-Membro (Portugal) que não conceda isenção de imposto sobre o rendimento aos dividendos distribuídos por uma filial residente num Estado terceiro (Tunísia) com o qual tenha sido celebrada uma convenção que preveja a troca de informações19.

Na situação concreta, pelas razões expostas, a justificação apresentada relativa à facilitação dos controlos fiscais não procederia, portanto.

 

 

***

 

 

Deste modo, atento o que ficou exposto, procede o vício de violação de lei alegado pela Requerente, por incompatibilidade do n.º 1 do artigo 46.º do CIRC com o artigo 63.º do TFUE, na parte em que restringe a eliminação da dupla tributação económica através da isenção dos dividendos aos sujeitos passivos residentes em Portugal, Estados-Membros da União Europeia ou Estados do EEE, com a consequente anulação dos atos tributários objeto de pronúncia arbitral.

O artigo 63.º do TFUE impõe, portanto, a um Estado-Membro que aplique um sistema de eliminação da dupla tributação económica aos dividendos pagos a residentes por sociedade residentes que garanta tratamento equivalente aos dividendos pagos a residentes por sociedades residente na Tunísia20. A proibição enunciada por esse artigo é clara e incondicional, não necessita de nenhuma medida de execução e confere aos particulares direitos que estes podem invocar em juízo21.

 

Consequentemente a Autoridade Tributária tem de reembolsar os impostos cobrados em violação do direito da União Europeia22.

 


 

 

 

V. Termos em que se decide:

 

 

1.Quanto ao pedido principal:

 

Face ao exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral, na procedência da impugnação deduzida pela Requerente, com a consequente anulação da autoliquidação relativa ao exercício de 2007, e com a consequente devolução dos impostos pagos pela Requerente.

 

2. Quanto ao pedido de juros indemnizatórios:

 

A Requerente pede juros indemnizatórios, como consequência da anulação da liquidação impugnada.

Resulta do disposto na alínea b) do artigo 24º RJAT que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado.

Resulta, ainda, do disposto no artigo 43º, nº1, da LGT, que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”. Acrescenta ainda o artigo 61º, nº4, do CPPT que “se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea”.

E, segundo a jurisprudência superior, nem parece depender de alegação de factos que demonstrem a verificação do prejuízo, já que se trata de facto por si mesmo notório, evidente e que resulta da mera privação da quantia paga indevidamente. – Neste sentido vd.: Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, «Lei Geral Tributária anotada e comentada», 4ª ed., in anotação ao artigo 43º, pág. 342 e ss.; Jorge Lopes de Sousa, «Código de Procedimento e Processo Tributário anotado e comentado», Vol. I, in anotação ao artigo 61º, pág. 470 e ss.; e, ainda do mesmo Autor, «Sobre a Responsabilidade Civil da Administração Tributária por actos ilegais – notas práticas», áreas editora, 2010, pág. 35 e ss.

 

 

Assim, o artigo 43º da LGT “não faz senão estabelecer um meio expedito e, por assim dizer, automático, de indemnizar o lesado. Independentemente de qualquer alegação e prova dos danos sofridos, ele tem direito à indemnização ali estabelecida, traduzida em juros indemnizatórios nos casos incluídos na previsão (…)” – Cfr. Ac. STA de 2-11-2006, in proc. nº 604/06, disponível in www.dgsi.pt; vd. ainda, Jorge Lopes de Sousa «Sobre a Responsabilidade Civil da Administração Tributária por actos ilegais – notas práticas», áreas editora, 2010, pág. 39 e ss.

 

No caso dos autos, a Requerente pagou os montantes fixados em sede de IRC e de derrama, na liquidação impugnada e agora anulada pela presente decisão arbitral. Afigura-se verificada a previsão do nº1 do artigo 43º da LGT.

 

Isto posto, considerando os fundamentos supra expostos que servem de sustentação à decisão proferida sobre o mérito da questão, resulta inequívoco que a tributação que resultou a cargo da Requerente se deveu a erro sobre os pressupostos de direito, imputável aos serviços da AT, que conduziu a uma incorreta aplicação da lei, nacional e comunitária, aplicável ao caso concreto.

 

Consequentemente, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios, nos termos do art. 43º, nº1, e 100º da LGT e 61º do CPPT, contados desde a data do pagamento das liquidações de imposto anuladas, até à data da emissão da respetiva nota de crédito, contando-se o prazo para esse pagamento do início do prazo para a execução espontânea da presente decisão (artigo 61º, n.ºs 2 a 5, do CPPT), à taxa apurada de harmonia com o disposto no n.º 4 do artigo 43º da LGT.

 

 

3. Quanto ao pedido de reembolso de custos com a pagamento dos custos suportados e a suportar pela Requerente com os honorários e despesas dos seus advogados, bem como outras despesas suportadas com a presente arbitragem, tudo em montante a liquidar futuramente.


 

Atento o disposto no art. 2º do RJAT, o qual estabelece a competência dos tribunais arbitrais em matéria tributária, entende este arbitral que não tem competência para decidir tal pedido.

 

 

VI – DECISÃO

 

 

Pelos fundamentos, de facto e de direito, supra expostos, decide-se julgar procedente o pedido principal da Requerente, decidindo pela anulação da decisão do recurso hierárquico e a respetiva liquidação de IRC e Derrama, com as consequências legais de restituição dos valores liquidados pela requerente acrescidos dos juros indemnizatórios, nos termos da presente decisão arbitral.

Fica, pois, prejudicado o conhecimento de todos os pedidos subsidiários formulados pela Requerente.

 

 

Fixa-se o valor do processo em €432.368,42, atendendo ao valor económico do processo, aferido pelo valor do pedido fixado pela Requerente e, em conformidade, fixa-se o valor das custas no montante de €6.732,00, a cargo da entidade requerida, nos termos do disposto nos artigos 12º, nº2, e 22º, nº4, do DL nº 10/2011, de 20/01 (RAT), do artigo 4º do RCPAT e da Tabela I anexa.

 

 

Registe e Notifique.

Lisboa, 12-09-2013

 

O Árbitro Presidente,

(Jorge Lino Ribeiro Alves de Sousa)

 

 

O Árbitro Vogal, e Relatora

(Maria do Rosário Anjos)

 

 

O Árbitro Vogal

(João Sérgio Ribeiro)

1 Neste sentido, cfr., entre outros, FAUSTO QUADROS e ANA MARIA GUERRA MARTINS, «Contencioso da União Europeia», 2ª edição, Almedina, pág.23 e ss.

2 Cfr. Test Claimants in Class IV of The ACT Group Litigation, C-374/04, de 12 de dezembro de 2006; Amurta, C-379/05, de 8 de novembro de 2007; Aberdeen Property Fininvest Alpha, C-303/07, de 18 de junho de 2009.

3 Cfr. Skatteverket v A, C-101/05, de 18 de dezembro de 2007, n.º 31.

4 Cfr. Centro Equestre da Lezíria Grande, C-345/04, de 15 de fevereiro de 2007; Hollman, C-443/06, de 11de outubro de 2007; Haribo, processos apensos C-436/08 e C437/08 de 10 de fevereiro de 2011, Arens-Sikken, C-43/07, de 11 de setembro de 2008; X e O, processos apensos, C-155/08 e C-157/08, de 1 de junho de 2009; Gaz de France, C-247/08, de 1 de outubro de 2009; Comissão Europeia v República Portuguesa, C-267/09, de 5 de maio de 2011.

5 Cfr. Comissão Europeia v República Portuguesa, C‑171/08, de 8 de julho de 2010, n.º 49; Manfred Trummer and Peter Mayer, C-222/97, de 16 de março de 1999; Commission v. France, C-483/99, de 4 de junho de 2002; Commission v. United Kingdom, C-98/01, de 13 de maio de 2003; Commission v. Netherlands, casos apensos C-282/04 e C-283/04, de 28 de setembro de 2006.

6 In Test Claimants in the FII Group Litigation, C-35/11, de 13 de novembro de 2012, n.º 103; Haribo, processo apensos C-436/08 e C-437/08, de 10 de fevereiro de 2011, n.º 33; Accor, C-310/09, de 15 de setembro de 2011, n.º 30.

7 In Test Claimants in the FII Group Litigation, C-35/11 de 13 de novembro de 2012, n.º 104.

8 Ver Sanz de Lera, C-163/94, de 14 de dezembro de 1995.

9 In Skatteverket v A, C-101/05, de 18 de dezembro de 2007, n.º 32.

10 Haegeman v Belgium, C-181/73, de 30 de abril de 1974.

11 Artigo 31.º, n. º 1 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados.

12 Cfr. Simutenkov, C-265/03, de 12 de abril de 2005, n.º 21.

13 «Enquanto que o artigo 34.º determina que as partes têm de assegurar, a partir da entrada em vigor do Acordo, a livre circulação dos capitais respeitantes aos investimentos directos na Tunísia, decorrendo portanto, da norma, uma obrigação clara e precisa para as partes;» in artigo 117.º da resposta da Autoridade Tributária.

14 Em sintonia, alias com que se tem no domínio da União Europeia. Ver D, C-376/03, de 5 de Julho de 2005.

15 Cfr. Schumacker, C-279/93, de 14 de Fevereiro de 1995.

16 C-250/95, de 15 de Maio de 1997.

17 Diretiva do Conselho de 15 de Fevereiro de 2011 que veio substituir a Diretiva 77/99/CEE do Conselho, de 19 de Dezembro de 1977.

18 In Skatteverket v A, C-101/05, de 18 de Dezembro de 2007, n.º 63.

19 Ver artigo 25.º da convenção para eliminar a tributação celebrada entre Portugal e a Tunísia. Cfr. Skatteverket v A, C-101/05, de 18 de Dezembro de 2007, n.º 67.

20 Cfr. Test Claimants in the FII Group Litigation, C-35/11, de 13 de novembro de 2012, n.º 38.

21 Cfr. Sanz de Lera, C-163/94, de 14 de dezembro de 1995, n.ºs 41 e 47.

22 Cfr. Test Claimants in the FII Group Litigation, C-35/11, de 13 de novembro de 2012, n.º 84.