Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 138/2012-T
Data da decisão: 2013-07-12  IRS  
Valor do pedido: € 107.491,39
Tema: Cláusula geral anti-abuso
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DECISÃO ARBITRAL

Acordam os árbitros Desembargador Manuel Luís Macaísta Malheiros (Árbitro Presidente), Prof.ª Doutora Paula Rosado Pereira e Dr. Ricardo Jorge Rodrigues Pereira (Árbitros Vogais), designados pelo Conselho Deontológico do CAAD para formarem o Tribunal Arbitral:

 

I. RELATÓRIO

No dia 3 de Dezembro de 2012, …, NIF … e …, NIF …, casados entre si, residentes na Rua … (doravante, Requerentes), formularam pedido de pronúncia arbitral tendo em vista a anulação da liquidação de IRS n.º 2012 … (imposto e juros compensatórios), referente ao exercício de 2008, no valor de € 105.681,83, bem como das subsequentes operações de “compensação” e “acerto de contas” das quais resultou a obrigação de pagamento de € 107.491,39, sendo Requerida a Administração Tributária e Aduaneira (doravante, Requerida ou AT).

Os Requerentes fundamentaram a sua pretensão na não verificação dos requisitos legais para aplicação da cláusula geral anti-abuso do n.º 2 do artigo 38.º da LGT e, consequentemente, na errónea interpretação e aplicação dessa norma legal por parte da Requerida.

No essencial, os Requerentes alegaram o seguinte:

a) “A fundamentação da liquidação impugnada é a que consta do projeto de decisão de aplicação da cláusula anti-abuso (…), notificado aos ora impugnantes em 13/07/2012, que constitui, por remissão, a fundamentação do acto tributário em causa”;

b) “Em 12 de fevereiro de 1999, a totalidade do capital da sociedade A..., Lda., passou a ser detida pelos ora Requerentes, na proporção de 2/3 pelo Requerente marido e 1/3 pela Requerente mulher”;

c) “Em 27 de junho de 2007, o capital social da A... foi aumentado, sendo que, no que aqui interessa, o aumento subscrito pelos ora Requerentes foi, na sua totalidade, feito por incorporação de reservas”;

d) “Em 17 de julho de 2007, foi requerido o registo da transformação da A... em sociedade anónima”;

e) “Em 1 de Julho de 2008, os Requerentes alienaram aos sócios parte das acções de que eram titulares [1.300, num total de 1980]”;

f) “A vontade de em passarem a ser sócios da A... “impunha-se” aos ora Requerentes, pois estas duas pessoas exercem funções essenciais na sociedade, assumindo, respectivamente, as tarefas de Director de Produção e de Director Comercial”;

g) “O eventual abandono, por estas duas pessoas, das funções que exercem implicava o sério risco de comprometer totalmente a actividade da sociedade, dado o know how e os contactos preferenciais (p. ex., aos fornecedores e clientes) por elas acumulado ao longo da vida da empresa”;

h) “Os ora Requerentes, ao perspectivarem a cedência da maioria do capital social da A..., tinham legítimo receio de (…) uma eventual penhora de quotas e sua aquisição por terceiros”;

i) “Por essa razão, devidamente aconselhados, nomeadamente pelo seu ROC, entenderam que a adoção da forma de sociedade anónima era conveniente”;

j) “Sendo que, subjacente a esta decisão (…) esteve, também, o facto de a empresa, entretanto, ter adquirido uma dimensão que aconselhava a alteração do tipo societário, não só por uma questão de maior facilidade de gestão mas, até, de imagem no mercado”;

k) “Em resumo, à decisão de alterar a forma jurídica da A..., estiveram subjacentes outras razões objectivas que não, apenas, o interesse fiscal pessoal dos sócios”;

l) “estamos perante um caso (…) de aplicação abusiva da cláusula geral anti-abuso por parte da AT”;

m) “A AT não identifica aqui os negócios jurídicos que considera abusivos pois (…) confunde os negócios jurídicos supostamente abusivos com os factos dados como provados”;

n) “os negócios jurídicos em causa são, primeiro, a alteração da forma social da A... (de sociedade por quotas para sociedade anónima) e, segundo, a alienação das acções”;

o) cada um destes negócios não revestiu uma forma anómala, inusual, artificiosa, complexa ou mesmo contraditória, tendo em consideração os fins com eles visados”;

p) “Em cada um desses negócios, a forma utilizada corresponde totalmente à substância, o meio jurídico utilizado foi o negócio típico que a lei prevê para a realização do fim em vista”;

q) “Ora, o abuso da forma jurídica utilizada, numa ou nos vários negócios em causa, é um elemento essencial para a aplicabilidade do disposto no n.º 2 do art. 38.º, pois que esta expressamente consagrou a teoria do “abuso da forma” (e com abuso das formas jurídicas, diz expressamente a lei)”;

r) “Improcede, pois, a aplicabilidade do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, por falta de um requisito essencial – o abuso da forma jurídica utilizada”;

s) “a AT (…) clarifica qual o negócio que considera ser artificioso: o artifício da transformação do tipo da sociedade A... , Lda., por quotas em anónima”;

t) “quem procedeu à transformação da sociedade A... não foram os ora Requerentes, mas sim a própria sociedade, através de decisão da sua assembleia geral”;

u) “o artigo 38.º, n.º 2, da LGT está sujeito a um princípio de tipicidade estrita, ou seja, não é aplicável em outras situações que não aquelas que, rigorosamente, possam ser consideradas como integrando a hipótese da norma”;

v) “Quando a lei fala de negócios jurídicos (seja um negócio, seja uma sucessão de negócios), fala de negócios praticados pelo contribuinte”;

w) “Não cabe, pois, na hipótese da norma, uma sucessão de negócios praticados por diferentes pessoas”;

x) “O que a AT, implicitamente, fez foi desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade A..., imputando aos ora requerentes um negócio (a transformação da forma societária) por esta praticada”;

y) “O âmbito da (…) cláusula geral anti-abuso reduz-se aos casos de abuso de forma, não podendo, pela sua invocação, ser desconsiderada a personalidade jurídica das pessoas coletivas que praticaram alguns do negócios em causa”;

z) “Estando em causa uma sucessão de negócios jurídicos [step-by-step doctrine] (no caso, a alteração da forma societária seguida da alienação de ações), não basta que, dessa sucessão negocial, resulte o pagamento de menos imposto”;

aa) “independentemente de quaisquer motivações de natureza fiscal, tal transformação sempre aconteceria”;

bb) “Pelo que não se pode concluir que foi feita prova – cujo ónus cabe à AT – que tal negócio foi determinado, única ou predominantemente, por um propósito fiscal”;

cc) “A AT dá também grande relevância ao facto de a alienação das acções ter ocorrido poucos dias após ter decorrido um ano contado da data da transformação da A... em sociedade anónima”;

dd) “No entender da AT, tal demonstraria, claramente, o propósito fiscal desta sucessão de negócio, ou seja:

1.º passo: alteração da forma jurídica da sociedade;

2.º passo: aguardar um ano para os sócios alienantes (os ora Requerentes) poderem beneficiar da não sujeição das mais-valias realizadas com a venda de acções;

3.º passo: alienação da acções, logo que perfeito tal prazo (sendo que, no entender da AT, os adquirentes das ações eram já anteriormente [antes da transacção das ações ter acontecido] tratados, de facto, como se já as tivessem adquirido)”;

ee) “Toda esta argumentação (…) assenta num erro de direito”;

ff) “O aumento do capital social (da sociedade por quotas) por eles realizado foi, na sua totalidade, feito por incorporação de reservas”;

gg) “Ao caso aplica-se, portanto, o disposto nas alíneas b) e a) do artigo 43.º do CIRS”;

hh) “Os requerentes, para efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 10.º do CIRS, são considerados como tendo adquirido em fevereiro de 1999 a propriedade das acções que alienaram (ou seja, desde há cerca de nove anos antes da alteração da forma social da A...)”;

ii) “Pelo que poderiam proceder à alienação das acções, sem sujeição a tributação em IRS, a partir do dia em que a sociedade passou a revestir a forma de sociedade anónima”;

jj) “É, pois, manifestamente irrelevante a data em que a alienação das ações teve lugar, bem como saber se os respectivos adquirentes já eram, anteriormente, de facto, considerados como já as tendo adquirido”;

kk) “esta questão da aplicabilidade do artigo 38.º, n.º 2, da LGT aos casos de transformação de uma sociedade por quotas em sociedade anónima (pesem embora as vantagens fiscais que daí possam advir para os sócios), não faz qualquer sentido porque não está em causa um qualquer abuso, mas antes o exercício de uma opção expressamente prevista pelo legislador”;

ll) “A liquidação ora impugnada apenas se pode “entender” em razão de uma total incompreensão do que seja a “cláusula geral anti-abuso”, de um entendimento administrativo de que há abuso sempre que um contribuinte não opta pela via fiscalmente mais onerosa de realizar os seus negócios jurídicos”.

Os Requerentes juntaram quatro documentos, o primeiro dos quais constituído pela cópia da liquidação impugnada, e arrolaram uma testemunha.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT em 4 de Dezembro de 2012.

Os Requerentes não procederam à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto – Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, RJAT), o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários para integrar o presente tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 22 de Janeiro de 2013, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 06.02.2013.

No dia 8 de Março de 2013, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua Resposta na qual impugna, especificadamente, os argumentos aduzidos pelos Requerentes e conclui pela improcedência do pedido, com a sua consequente absolvição.

No essencial, a Requerida alegou o seguinte:

a) “a acção inspectiva externa ao exercício de 2008, realizada ao abrigo da Ordem de Serviço OI… efectuada à sociedade A... ., SA, a qual identificou a existência de uma operação de transformação da natureza jurídica da sociedade por quotas em sociedade anónima, seguida de alienação de parte das acções por parte dos sócios originários, decorridos que foram 12 meses e 5 dias”;

b) “procedeu-se à análise pormenorizada da referida venda de acções, pois que se a venda da sociedade se tivesse dado sem recurso à transformação prévia da natureza jurídica da sociedade, as mais valias obtidas seriam tributadas”;

c) “É inequívoco que os requerentes mantiveram as acções durante 12 meses e 5 dias na usa posse, fazendo com que a exclusão da tributação em causa, por força da aplicação da alínea a) do n.º 2 do artigo 10.º do CIRS, se apresentasse perfeita legalmente, procurando afastar dúvidas sobre o cumprimento das normas legais”;

d) “A tenta a factualidade apurada, outra não podia ser a conclusão, senão a de que a operação desenvolvida é manifestamente artificial e abusiva e teve como objectivo a transformação artificial de um dividendo a pagar, numa mais valia excluída de tributação”;

e) “Sem que para o efeito releve nenhuma justificação económica, uma vez que, não se pode considerar lícito, nem legítimo que um contribuinte transforme rendimentos sujeitos a tributação em rendimentos dela excluídos, construindo artificiosamente uma mais-valia fiscal não sujeita a tributação”;

f) “Se os recorrentes tivessem qualquer outro propósito, que não fosse o de obter uma mais valia excluída de tributação, teriam, ao abrigo do princípio da colaboração, todo o interesse, no decurso do processo de inspecção que fundamentou a decisão de aplicação da cláusula geral anti-abuso em aduzirem argumentos pertinentes que impedissem a aplicação desta disposição”;

g) “Seria razoável e sem dúvida desejável que o fizessem, no entanto assim não foi”;

h) “Quanto ao “elemento meio” ou forma utilizada que corresponde á via escolhida pelos requerentes para obter o desenhado ganho ou vantagem fiscal, no presente caso consistiu na operação de transformação da sociedade por quotas A... ., Lda., em sociedade anónima, em 27/06/2007, na venda de acções aos dois novos accionistas formalizada em 01/07/2008, quando de facto já tinham beneficiado de direitos como se fossem detentores, cada um, de cerca de 1/3 de capital em data anterior, no mínimo desde 15/01/2008, eventualmente desde 27/06/2007, data da sua entrada para a sociedade e quando assumiram funções de administradores”;

i) “Os requerentes queriam efectivamente alienar as suas participações sociais na data em que efectuaram a transformação por quotas em sociedade anónima, no entanto, querendo efectivamente que essa alienação não fosse tributada, em virtude da diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição ser considerável - € 949 425,57 -, aguardaram os meses necessários para que as mais valias que resultaram da alienação onerosa não fossem tributadas”;

j) “Assim se justifica o facto de os sócios …, apesar de terem uma participação simbólica, inferior a 1% cada um, terem sido designados para integrar o conselho de administração da empresa para o quadriénio 2007/2010”;

k) “E assim se justifica o facto de, ainda antes da data da alienação das participações sociais (01/07/2008), em 19 de Janeiro de 2008, se tenha procedido à restituição de prestações acessórias no valor de € 45.000, aos accionistas …, em três partes iguais, apesar de os ora requerentes deterem mais de 97% do capital”;

l) “Não sendo de todo irrelevante (…) o facto da operação da restituição das prestações acessórias ter surgido antes da titularidade dos dois novos accionistas, na medida que constitui uma prova substantiva da existência de um negócio real (negócio sombra), a decorrer paralelamente ao negócio formal (artificial), cabendo a este conferir a formalidade necessária para atingir o objectivo da não tributação que resultaria única e exclusivamente com a realização do negócio real”;

m) “Não encontramos nos argumentos aduzidos em sede de pedido arbitral, nenhuma razão que nos permita justificar a transformação de uma sociedade por quotas, numa sociedade anónima que não fosse a de afastar o pagamento dos impostos resultante da alienação das participações sociais”;

n) “Transformar a sociedade por quotas em sociedade anónima consistiu num esquema artificioso, com o único e principal objectivo de alienação de parte da sociedade, pelos requerentes, para que se produzisse o efeito desejado – afastamento do pagamento dos impostos resultante desse negócio, a que corresponderia nos termos previstos no n.º 4 do art. 72.º do CIRS, ao valor de € 94.942,56”;

o) “Não tendo a AT (…) desconsiderado a personalidade jurídica da sociedade A..., no entanto a sociedade toma decisões apenas e só pela deliberação dos seus órgãos sociais”;

p) “sem qualquer fundamento a interpretação que fazem do art. 38.º, n.º 2, da LGT, uma vez que os negócios jurídicos não carecem formalmente de ser praticados pelo contribuinte, exigindo-se sim que o propósito dos mesmos seja dirigido ao afastamento da tributação, que seria devida se o mesmo não fosse realizado”;

q) “No que respeita ao elemento resultado ou vantagem fiscal prosseguida pelos requerentes, esta teve como objectivo a eliminação da tributação, em sede de IRS, no ano de 2008, fazendo com que retirassem o máximo benefício da estrutura utilizada ao não serem tributados para ganho das mais-valias obtidas, ao abrigo da alínea b) do n.º 4 do artigo 43.º do CIRS, mantendo as acções doze meses na sua posse e vendendo-as logo após o término desse prazo, fazendo com que a exclusão da tributação em causa fosse conferida não já por aquele normativo mas por via da aplicação da alínea a) do n.º 2 do artigo 10.º do CIRS, para que a referida exclusão de tributação se apresentasse perfeita e insuspeita em termos do cumprimentos das normas legais, procurando através do refinamento na estrutura dos actos sequenciais adoptados afastar quaisquer dúvidas que se pudessem levantar sobre a legalidade da mesma”;

r) “Sem recurso à estrutura utilizada os requerentes sabiam que não beneficiariam da exclusão de tributação, ficando sujeitos a imposto, nos termos gerais, como rendimentos da categoria G de IRS”;

s) “do relatório justificativo da transformação (…), elaborado pela respectiva gerência não consta qualquer justificação para esta concreta transformação do tipo social, como sejam quaisquer indícios de estratégia empresarial, incremento ou diversificação do objecto social”;

t) “não se verificou que a sociedade viesse a usufruir de nenhuma das vantagens elencadas no projecto de transformação da mesma, de que não beneficiasse já anteriormente”;

u) “No que respeita ao financiamento externo mantiveram-se os seus níveis”;

v) “No que respeita à transacção das partes sociais, ela poderia ter ocorrido da mesma forma com o seu capital representado por quotas”;

w) “Não se veio a verificar igualmente a sua entrada em bolsa”;

x) “Também quanto à facilidade de negociabilidade das acções, não surtiu qualquer efeito porque as mesmas não foram mais alienadas até à presente data”;

y) “no que respeita ao elemento normativo subjaz aqui a desconformidade do resultado obtido com a ratio legis, o espírito ou propósito da lei e os princípios do sistema fiscal”;

z) “Em relação ao elemento intelectual, atenta a sequência lógica e cronológica em que foram celebrados os negócios jurídicos em questão, o mesmo permite que se considere este conjunto de negócios como um esquema concebido e executado como meio ou ferramenta para a obtenção da evitação fiscal com manifesto abuso das formas jurídicas utilizadas”;

aa) “O que resulta corroborado pelo facto de o objecto social prosseguido (...) nunca ter sofrido qualquer alteração”;

bb) “em relação ao elemento sancionatório, este consiste na desconsideração dos efeitos fiscais dos contratos de compra e venda de acções celebrados pelos requerentes em 01/07/2008, na qualidade de alienantes, sendo antes tributado o negócio jurídico considerado usual para obter a efeito económico em causa”;

cc) “Estando pois devidamente fundamentada a decisão de aplicação da cláusula geral anti-abuso, demonstrou a Administração Tributária, quer em sede de procedimento inspectivo, quer nos presentes autos arbitrais que estão reunidos os pressupostos previstos no n.º 2 do art. 38.º da LGT que determinam a aplicação da cláusula geral anti-abuso para efeitos de liquidação do imposto que se mostra devido no caso em apreço, na medida em que:

  1. Verificou-se a prática ou celebração de acto(s) ou negócio(s) jurídico(s) de carácter artificioso ou fraudulento, tendo-se demonstrado a manipulação negocial da operação de aumento de capital, a admissão de novos sócios, seguida da transformação em sociedade anónima e, consequentemente, a redenominação das partes de capital – quotas em acções –, operações ocorridas antes da celebração do contrato de compra e venda de acções;

  2. Comprovou-se que a realização de tais actos ou negócios teve como objectivo principal possibilitar a realização de operações de transmissão de valores mobiliários – acções –, por parte de pessoas singulares, com benefício de exclusão de tributação, em sede IRS, das mais valias obtidas;

  3. Determinou-se a equivalência económica dos actos ou negócios praticados face aos actos ou negócios alternativos, através dos quais o rendimento de mais-valias obtido pelo sujeito passivo em resultado da venda da participação no capital – quota – passa a estar sujeito a tributação, por força do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 10.º do Código do IRS, pela diferença positiva entre o valor de realização, determinado de acordo com as regras estabelecidas no artigo 44.º daquele diploma, e o valor de aquisição, determinado nos termos dos artigos 45.º e 48.º também do CIRS, acrescido das despesas necessárias e efectivamente praticadas, inerentes à alienação, conforme dispõe o artigo 51.º do Código do IRS, ao qual deve aplicar-se a taxa especial de 10%, nos termos do artigo 72.º também do CIRS.”.

A Requerida não juntou qualquer documento e arrolou uma testemunha.

Na mesma ocasião, a Requerida juntou aos autos o Processo Administrativo Tributário (doravante, PA).

Em 8 de Abril de 2013, realizou-se a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, na qual foi decidido haver lugar a produção de prova testemunhal e alegações escritas.

A inquirição das testemunhas veio a ter lugar em 19 de Abril de 2013, quanto à testemunha arrolada pelos Requerentes, , e em 28 de Maio de 2013, quanto à testemunha arrolada pela Requerida, ; ambos os depoimentos foram gravados em sistema áudio. Na última data referida, foi decidido conceder às partes o prazo de 10 dias para a apresentação sucessiva das alegações escritas.

Os Requerentes e a Requerida apresentaram alegações escritas sucessivas.

Atentas as posições assumidas pelas partes nos respectivos articulados apresentados nos autos, são as seguintes as questões decidendas:

  1. Aplicabilidade da cláusula geral anti-abuso, previsto no artigo 38.º, n.º 2 da Lei Geral Tributária;

  2. Legalidade da liquidação de IRS impugnada pela Requerente.


 

II. SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente.

O processo não enferma de nulidades e não foram suscitadas quaisquer questões que possam obstar ao conhecimento do mérito da causa.

As partes gozam de personalidade e de capacidade judiciárias e são legítimas.

 

III. FUNDAMENTAÇÃO

 

III.1. DE FACTO

III.1.1. FACTOS PROVADOS

 

Relativamente à matéria de facto, importa, antes de mais, salientar que o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de seleccionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art. 123.º, n.º 2, do CPPT e art. 659.º, n.º 2, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT). Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. art. 511.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Nesta parametria, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, a prova documental e o PA juntos aos autos e a prova testemunhal produzida, consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

1. Em 15 de Fevereiro de 1996, foi constituída a sociedade comercial por quotas “A... – ., Lda.”, com sede e estabelecimento no lugar de , freguesia de , concelho de …, tendo com o objecto social a fabricação, comercialização e recuperação de produtos , com o capital social de PTE 3.000.000$00 (€ 14.963,94), representado por três quotas com o valor nominal de PTE 1.000.000$00 (€ 4.987,98) cada uma, integralmente realizadas em dinheiro pelos Requerentes (cfr. fls. 70 e 71 do ficheiro PA Parte2.pdf, cujo teor aqui se dá como reproduzido).

2. Em 1 de Junho de 1998, foi deliberado em Assembleia Geral o aumento do capital social da “A... – ., Lda.” para PTE 9.000.000$00 (€ 44.891,82), sendo o montante do aumento de PTE 6.000.000$00 (€ 29.927,88), realizado por transferência de prestações suplementares pelos três sócios em partes iguais, ou seja, correspondendo a cada um deles PTE 2.000.000,00 (€ 9.975,96), realizado anteriormente nas mesmas proporções por cada um dos sócios (cfr. fls. 71 do ficheiro PA Parte2.pdf, cujo teor aqui se dá como reproduzido).

3. Após o referido aumento de capital, o capital social da “A... – ., Lda.” ficou distribuído em três quotas iguais, no valor nominal de PTE 3.000.000$00 (€ 14.963,94) cada uma, pertencentes a cada um dos sócios (cfr. fls. 71 do ficheiro PA Parte2.pdf, cujo teor aqui se dá como reproduzido).

4. Em 12 de Fevereiro de 1999, ocorreu a saída da sociedade “A... – ., Lda.” dos sócios , por cessão das suas quotas efectuada da seguinte forma: o sócio cedeu a sua quota ao Requerente e a sócia cedeu a sua quota à Requerente (cfr. fls. 71 do ficheiro PA Parte2.pdf, cujo teor aqui se dá como reproduzido).

5. Após aquela cessão de quotas, o capital da sociedade “A... – ., Lda.” ficou assim distribuído: o Requerente ficou titular de duas quotas, cada uma no valor nominal de PTE 3.000.000$00 (€ 14.963,94), e a Requerente ficou titular de uma quota no valor nominal de PTE 3.000.000$00 (€ 14.963,94) (cfr. fls. 71 e 72 do ficheiro PA Parte2.pdf, cujo teor aqui se dá como reproduzido).

6. Em 11 de Abril de 2007, reuniu a Assembleia Geral da sociedade “A... – ., Lda.”, tendo sido deliberado por unanimidade proceder (cfr. fls. 106 a 111 do ficheiro PA Parte2.pdf, cujo teor aqui se dá como reproduzido):

(i) ao aumento do capital social de € 44.891,82 para € 102.000,00, sendo efectuado por incorporação de reservas quanto ao montante de € 54.108,18 e em dinheiro quanto ao montante de € 3.000,00;

(ii) à admissão de três novos sócios: ; e

(iii) à transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima, tendo sido aprovados os estatutos pelos quais a sociedade passará a reger-se no seu novo tipo.

7. Em 23 de Maio de 2007, foi elaborado o relatório justificativo da transformação da sociedade comercial por quotas “A... – ., Lda.” em sociedade anónima, subscrito pela respectiva gerência, cujo teor aqui se dá como reproduzido (cfr. fls. 112 a 114 do ficheiro PA Parte2.pdf, cujo teor aqui se dá como reproduzido).

8. Na sequência das deliberações tomadas na Assembleia Geral supra referida no ponto 6, em 27 de Junho de 2007, por escritura pública realizada no Cartório Notarial da Notária , sito na Rua, foram realizadas as seguintes operações relativas à sociedade “A... – ., Lda.” (cfr. fls. 115 a 129 do ficheiro PA Parte2.pdf e a certidão permanente de registo comercial a fls. 130 a 133 do ficheiro PA Parte2.pdf, cujos teores aqui se dão como reproduzidos):

8.1. Aumento do capital social no montante total de € 57.108,18, sendo € 54.108,18 por incorporação de reservas livres e € 3.000,00 em dinheiro e mediante a entrada de três novos sócios, a saber: , cada um com uma quota no valor nominal de € 1.000,00.

8.1.1. O capital social da sociedade passou, assim, de € 44.891,82 para € 102.000,00.

8.1.2. Na sequência desse aumento de capital, o capital social da sociedade, integralmente realizado, passou a estar representado por seis quotas da seguinte forma:


  •  

    Nome

    Capital Social

    Valor

    %

    [Requerente marido]

    € 33.000,00

    32,35%

    € 33.000,00

    32,35%

    [Requerente mulher]

    € 33.000,00

    32,35%

    € 1.000,00

    0,98%

    € 1.000,00

    0,98%

    € 1.000,00

    0,98%


 

8.2. Transformação da sociedade, do tipo de sociedade por quotas para o tipo de sociedade anónima, sob a firma “A... – ., S. A.”, sendo que o capital social, no valor de € 102.000,00, passou a ser representado por 2.040 acções, com o valor nominal unitário de € 50,00, tendo sido atribuído aos accionistas o número de acções correspondentes ao valor nominal das respectivas quotas, ficando o capital social assim distribuído:


 

Nome

Capital Social

N.º de acções

Valor nominal unitário

Valor nominal total

%

[Requerente marido]

1.320

€ 50,00

€ 66.000,00

64,71%

[Requerente mulher]

660

€ 50,00

€ 33.000,00

32,35%

20

€ 50,00

€ 1.000,00

0,98%

20

€ 50,00

€ 1.000,00

0,98%

20

€ 50,00

€ 1.000,00

0,98%

 

8.3. Designação da seguinte composição dos órgãos sociais da “A... – ., S. A.” para o quadriénio 2007/2010:

(i) Conselho de Administração:

Presidente – [Requerente marido]

Vogal – …

Vogal – …

(ii) Assembleia Geral:

Presidente – [Requerente mulher]

Secretário – …

(iii) Fiscal Único: …, SROC

(iv) Fiscal Suplente: … .

9. O objecto social da “A... – ., S. A.” não sofreu qualquer alteração (cfr. certidão permanente de registo comercial a fls. 130 a 133 do ficheiro PA Parte2.pdf, cujo teor aqui se dá como reproduzido).

10. Em 17 de Julho de 2007, foi requerido o registo do aumento de capital, da transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima e da designação dos membros dos órgãos sociais, através da AP. … na Conservatória do Registo Civil/Predial/Comercial de … (cfr. certidão permanente de registo comercial a fls. 130 a 133 do ficheiro PA Parte2.pdf, cujo teor aqui se dá como reproduzido).

11. Na Assembleia Geral Extraordinária da sociedade “A... – ., S. A.”, realizada em 19 de Janeiro de 2008, após o uso da palavra pela Presidente da Mesa da Assembleia Geral, “a qual referiu que a sociedade já alcançou um nível de equilíbrio financeiro que lhe permite proceder à restituição de parte das Prestações Acessórias efectuadas anteriormente pelos sócios”, foi deliberado, por unanimidade, proceder à restituição de prestações acessórias no valor de € 45.000,00 aos accionistas …, em três partes iguais de € 15.000,00, cada uma (cfr. fls. 134 e 135 do ficheiro PA Parte2.pdf, cujo teor aqui se dá como reproduzido).

12. Na mesma data, as prestações acessórias existentes na sociedade “A... – ., S. A.” ascendiam ao montante de € 678.365,14, tendo sido constituídas nos anos de 2000 (€ 374.098,42) e de 2003 (€ 304.266,72) (cfr. fls. 136 do ficheiro PA Parte2.pdf, cujo teor aqui se dá como reproduzido).

13. No dia 15 de Janeiro de 2008, foram emitidos os seguintes cheques, todos sacados sobre a conta n.º …, domiciliada no …Banco …, S. A., titulada pela sociedade “A... – ., S. A.” (cfr. fls. 137 do ficheiro PA Parte2.pdf, cujo teor aqui se dá como reproduzido):

(i) o cheque n.º …, no valor de € 15.000,00, à ordem do Requerente;

(ii) o cheque n.º …, no valor de € 15.000,00, à ordem de …; e

(iii) o cheque n.º …, no valor de € 15.000,00, à ordem de ….

14. Os referidos cheques destinaram-se à restituição de prestações acessórias a accionistas da “A... – ., S. A.”, supra mencionada no ponto 11 (cfr. artigo 3.2 da petição inicial, que não foi impugnado).

15. Os citados cheques foram apresentados a pagamento e pagos nas seguintes datas: o cheque emitido à ordem do Requerente, no dia 17.01.2008; o cheque emitido à ordem de …, no dia 18.01.2008; e o cheque emitido à ordem de …, no dia 25.01.2008 (cfr. fls. 138 e 139 do ficheiro PA Parte2.pdf, cujo teor aqui se dá como reproduzido).

16. No dia 1 de Julho de 2008, os Requerentes transmitiram 1.300 acções das 1.980 acções, com o valor nominal unitário de € 50,00, que detinham no capital social da “A... – ., S. A.”, através a celebração dos seguintes contratos de compra e venda de acções:

(i) um contrato entre o Requerente e …, pelo qual aquele vendeu a este 641 acções, ao valor de € 753,00 cada uma, pelo preço global de € 482.673,00, a pagar pelo adquirente no prazo de oito anos (cfr. fls. 141 e 142 do ficheiro PA Parte2.pdf, cujo teor aqui se dá como reproduzido);

(ii) um contrato entre a Requerente e …, pelo qual aquela vendeu a este 640 acções, ao valor de € 753,00 cada uma, pelo preço global de € 481.920,00, a pagar pelo adquirente no prazo de oito anos (cfr. fls. 143 e 144 do ficheiro PA Parte2.pdf, cujo teor aqui se dá como reproduzido); e

(iii) um contrato entre a Requerente e …, pelo qual aquela vendeu a este 19 acções, ao valor de € 753,00 cada uma, pelo preço global de € 14.307,00, pago na data da celebração do contrato (cfr. fls. 145 e 146 do ficheiro PA Parte2.pdf, cujo teor aqui se dá como reproduzido).

17. Após a celebração dos referenciados contratos de compra e venda de acções, o capital social da “A... – ., S. A.” ficou assim distribuído (cfr. fls. 75 do ficheiro PA Parte2.pdf, cujo teor aqui se dá como reproduzido):


 

Nome

Capital Social

N.º de acções

Valor nominal unitário

Valor nominal total

%

[Requerente marido]

679

€ 50,00

€ 33.950,00

33,28%

[Requerente mulher]

1

€ 50,00

€ 50,00

0,05%

660

€ 50,00

€ 33.000,00

32,35%

20

€ 50,00

€ 1.000,00

0,98%

680

€ 50,00

€ 34.000,00

33,33%


 

18. Em Assembleia Geral Extraordinária da “A... – ., S. A.”, realizada em 17 de Dezembro de 2009, foi deliberada a restituição de prestações acessórias no valor total de € 75.000,00, repartido em três partes iguais de € 25.000,00, uma para cada um dos accionistas … (cfr. fls. 147 e 148 do ficheiro PA Parte2.pdf, cujo teor aqui se dá como reproduzido).

19. Relativamente ao ano de 2008, os Requerentes apresentaram duas declarações de rendimentos modelo 3 de IRS, a saber:

(i) a primeira declaração, acompanhada dos anexos A (“Trabalho Dependente / Pensões”) e H (“Benefícios Fiscais e Deduções”), foi recebida nos serviços da AT em 17 de Março de 2009 (cfr. fls. 15 a 18 do ficheiro PA Parte1.pdf, cujo teor aqui se dá como reproduzido);

(ii) a segunda declaração (declaração de substituição), acompanhada dos anexos A (“Trabalho Dependente / Pensões”), G1 (“Mais-valias não tributadas”) e H (“Benefícios Fiscais e Deduções”), foi recebida nos serviços da AT em 5 de Maio de 2009 (cfr. fls. 19 e 23 do ficheiro PA Parte1.pdf, cujo teor aqui se dá como reproduzido).

20. No anexo G1 (“Mais-valias não tributadas”) que acompanhou a referida segunda declaração (declaração de substituição) de rendimentos modelo 3 de IRS, os Requerentes indicaram no respectivo quadro 4 o valor de realização de € 978.900,00 (€ 482.673,00 + € 496.227,00) e o valor de aquisição de € 65.000,00, relativamente às acções da “A... – ., S. A.” que venderam (cfr. fls. 21 do ficheiro PA Parte1.pdf e fls. 151 do ficheiro PA Parte2.pdf, cujos teores aqui se dão como reproduzidos).

21. Em 14 de Abril de 2009, os Requerentes entregaram no Serviço de Finanças de … a declaração modelo 4 (“Declaração de aquisição e ou alienação de valores mobiliários”), na qual declararam, relativamente às acções da “A... – ., S. A.” que venderam, um valor de realização global de € 978.900,00, sendo € 482.673,00 atinentes às acções vendidas pelo Requerente e € 496.227,00 atinentes às acções vendidas pela Requerente (cfr. fls. 149 e 150 do ficheiro PA Parte2.pdf, cujo teor aqui se dá como reproduzido).

22. O prazo legal para a entrega da referida declaração modelo 4 terminou em 31 de Agosto de 2008 (cfr. fls. 149 e 150 do ficheiro PA Parte2.pdf, cujo teor aqui se dá como reproduzido).

23. Em 14 de Dezembro de 2011, nos Serviços de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de … foi elaborada uma proposta de acção inspectiva aos Requerentes, cujo teor aqui se dá como reproduzido (cfr. fls. 9 do ficheiro PA Parte2.pdf).

24. Nessa sequência, a coberto das Ordens de Serviço n.º OI…n.º OI…, ambas de 14 de Dezembro de 2011, os Requerentes foram sujeitos a acção inspectiva externa de âmbito parcial – Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) –, incidente sobre os anos de 2007 e 2008, realizada pelos Serviços de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de …, tendo os respectivos actos inspectivos sido iniciados em 21 de Dezembro de 2011 (cfr. fls. 7 do ficheiro PA Parte1.pdf, cujo teor aqui se dá como reproduzido).

25. O Requerente foi notificado para no dia 20 de Janeiro de 2012, pelas 10H00, comparecer no Serviço de Finanças de … e aí apresentar os seguintes documentos relacionados com as alienações das acções da sociedade “A... ., S. A.” que ele e a Requerente efectuaram a …, em 1 de Julho de 2008 (cfr. fls. 12 a 21 do ficheiro PA Parte2.pdf, cujo teor aqui se dá como reproduzido):

(i) Relatório de avaliação da sociedade que serviu de base à determinação do valor de realização;

(ii) Contratos-promessa de compra e venda referentes à alienação das referidas partes de capital da sociedade;

(iii) Contratos de compra e venda referentes à alienação das referidas partes de capital da sociedade;

(iv) Movimentos financeiros referentes ao pagamento/recebimento dos valores de alienação das acções da sociedade;

(v) Facturas dos serviços de consultadoria relacionados com a transformação da sociedade em sociedade anónima e com a referida venda de acções;

(vi) Pedido de informação vinculativa à AT, a que se refere o n.º 8 do art.º 63.º do CPPT, referente à operação de transformação da sociedade em sociedade anónima e posterior venda de acções da mesma sociedade, por parte dos Requerentes.

26. O Requerente compareceu no Serviço de Finanças de …, nos indicados dia e hora, sem que tenha apresentado nenhum dos referidos documentos solicitados, tendo prestado os esclarecimentos vertidos no auto de declarações constante de fls. 54 e 55 do ficheiro PA Parte2.pdf, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

27. O Requerente foi notificado, por carta registada datada de 30 de Janeiro de 2012, para, até ao dia 10 de Fevereiro de 2012, entregar na Divisão de Inspecção Tributária II da Direcção de Finanças de …, os seguintes elementos (cfr. fls. 22 e 23 do ficheiro PA Parte2.pdf, cujo teor aqui se dá como reproduzido):

(i) Contratos de compra e venda referentes à alienação das partes de capital da sociedade “A... ., S. A.”;

(ii) Relativamente ao montante total da referida alienação de partes de capital da sociedade “A... ., S. A.”, qual o valor já recebido e quanto se encontra ainda em dívida.

28. Na sequência dessa notificação, apenas deram entrada nos serviços de inspecção tributária da Direcção de Finanças de …, em 13 de Fevereiro de 2012, as fotocópias de três contratos de compra e venda de acções, remetidas por correio pelo Ilustre Mandatário do Requerente (cfr. fls. 140 a 146 do ficheiro PA Parte2.pdf, cujo teor aqui se dá por reproduzido).

29. Em 31 de Maio de 2012, a Direcção de Serviços de Planeamento e Coordenação da Inspecção Tributária elaborou a informação que consta do PA (cfr. fls. 69 a 95 do ficheiro PA Parte2.pdf), cujo teor aqui se dá por reproduzido.

30. Em 22 de Junho de 2012, o Senhor Director-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira proferiu na primeira página da informação referida no número anterior o seguinte despacho: “Atento aos fundamentos invocados autorizo a aplicação do procedimento proposto” (cfr. fls. 69 do ficheiro PA Parte2.pdf).

29. Em 15 de Junho de 2012, nos Serviços de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de … foi elaborada uma proposta de prorrogação do prazo da acção inspectiva aos Requerentes, cujo teor aqui se dá como reproduzido (cfr. fls. 10 do ficheiro PA Parte 2.pdf).

30. A requerida prorrogação do prazo da acção inspectiva externa aos Requerentes foi deferida por despacho de 15 de Junho de 2012, do Chefe de Divisão por subdelegação do Director de Finanças Adjunto da Direcção de Finanças de …, e notificada aos Requerentes através do ofício n.º …, datado de 20.06.2012, remetido por correio registado (cfr. fls. 10 do ficheiro PA Parte2.pdf e fls. 14 do ficheiro PA Parte1.pdf, cujos teores aqui se dão como reproduzidos).

31. Os actos inspectivos foram concluídos em 27 de Julho de 2012, tendo nessa data sido enviadas aos sujeitos passivos, por correio registado, através do ofício n.º …, as notas de diligência n.º NDO… e n.º NDO…, uma vez que o Requerente se recusou a assiná-las, nessa mesma data, nas instalações da “A... – ., S. A.” (cfr. fls. 8 do ficheiro PA Parte1.pdf e fls. 24 a 36 do ficheiro PA Parte2.pdf, cujos teores aqui se dão por reproduzidos).

31.1. O referido ofício foi devolvido pelos CTT com a menção “Objecto não reclamado” (cfr. fls. 24 a 36 do ficheiro PA Parte2.pdf, cujo teor aqui se dá por reproduzido).

31.2. O mencionado ofício, bem como os restantes documentos referidos, foram enviados pela segunda vez aos sujeitos passivos, por carta registada, tendo sido igualmente devolvidos, novamente com a menção “Objecto não reclamado” (cfr. fls. 24 a 36 do ficheiro PA Parte2.pdf, cujo teor aqui se dá por reproduzido).

32. Em 2 de Agosto de 2012, foi remetido aos Requerentes o ofício n.º …, através de correio registado, a fim de os notificar do projecto de Relatório da Inspecção Tributária e para, querendo, exercerem o direito de audição (cfr. fls. 31 e 32 do ficheiro PA Parte1.pdf, cujo teor aqui se dá como reproduzido).

32.1. Esse ofício foi devolvido pelos CTT com a menção “Objecto não reclamado” (cfr. fls. 33 e 34 do ficheiro PA Parte1.pdf, cujo teor aqui se dá como reproduzido).

33. Em 21 de Agosto de 2012, foi remetido o ofício n.º …, através de carta registada com aviso de recepção, a fim de, novamente, os notificar do projecto de Relatório da Inspecção Tributária e para, querendo, exercerem o direito de audição (cfr. fls. 35 a 37 do ficheiro PA Parte1.pdf, cujo teor aqui se dá como reproduzido).

33.1. Esse ofício foi devolvido pelos CTT com a menção “Objecto não reclamado” (cfr. fls. 38 e 39 do ficheiro PA Parte1.pdf, cujo teor aqui se dá como reproduzido)

34. Os Requerentes foram notificados do Relatório de Inspecção Tributária por via do ofício n.º …, datado de 19.09.2012, remetido pelos Serviços de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de …, através de carta registada com aviso de recepção, e recebido pelos Requerentes em 20 de Setembro de 2012 (cfr. fls. 1 a 49 do ficheiro PA Parte1.pdf, cujo teor aqui se dá por reproduzido).

35. No Relatório de Inspecção Tributária é afirmado que, no decurso do referido “procedimento de inspecção, foram apurados negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos por meios artificiosos e com abuso das formas jurídicas, à redução de impostos que seriam devidos sem a utilização desses meios, que constituíram fundamento para proceder à aplicação da norma legal anti-abuso previsto no n.º 2 do artigo 38.º da LGT” (cfr. fls. 9 do ficheiro PA Parte1.pdf, cujo teor aqui se dá como reproduzido).

36. Como consta e resulta do mesmo Relatório (cfr. fls. 9, 10, 14 e 24 a 30 do ficheiro PA Parte1.pdf, cujo teor aqui se dá como reproduzido), “tendo em vista a aplicação da cláusula geral anti-abuso, prevista no n.º 2 do artigo 38.º da LGT, foram realizados os seguintes procedimentos:

  • O ofício n.º , enviado via CTT em 19 de Dezembro de 2011 para o domicílio fiscal dos sujeitos passivos, por carta registada, para os notificar do Despacho de 15 de Dezembro de 2011, da abertura do procedimento próprio para aplicação das normas anti-abuso, nos termos do n.º 1 do artigo 63.º do CPPT para os efeitos consignados no n.º 2 do artigo 38.º da LGT, foi devolvido com a anotação “Não Atendeu” (anexo 4 de 3 folhas);

  • Em 21 de Dezembro de 2011, foram notificados os sujeitos passivos, pessoalmente, na pessoa de , através do ofício n.º do Despacho de 15 de Dezembro de 2011, da abertura do procedimento próprio para aplicação das normas anti-abuso, nos termos do n.º 1 do artigo 63.º do CPPT para os efeitos consignados no n.º 2 do artigo 38.º da LGT. O sujeito passivo recusou-se a assinar a referida notificação, na data indicada (2011/12/21), pelo que foi a mesma assinada por duas testemunhas, pelo funcionário incumbido da prática dos actos de inspecção, e entregue cópia ao sujeito passivo (anexo 5 de 1 folha);

  • Em 19 de Março de 2012, foram os sujeitos passivos notificados através do ofício n.º …, para exercer o direito de audição sobre a informação relativa à aplicação das normas anti-abuso, nos termos dos n.ºs 4 e 5 do artigo 63.º do CPPT (anexo 6 de 1 folha);

  • Os sujeitos passivos não exerceram o direito de audição;

  • Através do ofício n.º , de 30 de Abril de 2012, foi remetida Informação ao Director-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira (anexo 7 de 1 folha), nos termos e para os efeitos do n.º 7 do artigo 63.º do CPPT;

  • Em 20 de Junho de 2012, foram os sujeitos passivos notificados através do ofício n.º , da prorrogação do prazo da Acção de Inspecção por um período de 3 meses, nos termos do n.º 4 do artigo 36.º do RCPIT (anexo 1);

  • Em 16 de Julho de 2012, foram os sujeitos passivos notificados através do ofício n.º , da autorização de aplicação da cláusula geral anti-abuso, nos termos do n.º 7 do artigo 63.º do CPPT (anexo 8 de 1 folha).”

37. No Relatório de Inspecção Tributária, sob o título “Enquadramento Fiscal e Correcções Propostas”, é afirmado o seguinte (cfr. fls. 10 do ficheiro PA Parte1.pdf, cujo teor aqui se dá por reproduzido):

Como consequência da aplicação da cláusula geral anti-abuso, prevista no n.º 2 do artigo 38.º da LGT, cujo procedimento se realizou nos termos do artigo 63.º do CPPT, foi apurado um rendimento da categoria G qualificado como mais-valia fiscal no montante de 949 425,57 euros, com os fundamentos constantes da Informação notificada aos sujeitos passivos para o exercício do direito de audição, através do ofício n.º (anexo 6), e da Informação sobre a qual recaiu a autorização do Director Geral (Despacho de 2012/06/22), através do ofício n.º (anexo 8), efectuadas no âmbito do procedimento próprio para a aplicação da cláusula geral anti-abuso.

Conforme a demonstração do apuramento da mais-valia realizada e da respectiva fundamentação apresentada nas Informações já notificadas aos sujeitos passivos, a tributação da mais-valia fiscal, realizada no ano de 2008, está prevista na aliena a) do n.º 1 do artigo 9.º e alínea b) do n.º 1 do artigo 10.º do CIRS. E foi apurada de acordo com o disposto na alínea a) do n.º 4 do artigo 10.º, nos artigos 43.º, 44.º, 48.º e 51.º do CIRS. Esta mais-valia é tributada à taxa especial de 10% de acordo com o n.º 4 do artigo 72.º do CIRS, originado um imposto de 94 942,56 euros.”

38. No decurso do ano de 2007, em data concretamente não apurada, foi acordado entre os Requerentes, o … que, a partir de 1 de Janeiro de 2008, estes dois últimos seriam considerados, para todos os efeitos, accionistas titulares das seguintes participações no capital social da “A... ., S. A.” (cfr. depoimento prestado pela testemunha …):


 

Nome

Capital Social

N.º de acções

Valor nominal unitário

Valor nominal total

%

680

€ 50,00

€ 34.000,00

33,33%

660

€ 50,00

€ 33.000,00

32,35%


 

39. O … exercem funções essenciais na sociedade “A... ., S. A.”, assumindo, respectivamente, as tarefas de Director de Produção e de Director Comercial (cfr. artigo 4.6 da petição inicial, que não é impugnado).

40. O eventual abandono, pelo …, das funções que exercem acarretava o sério risco de comprometer totalmente a actividade da sociedade “A... ., S. A.”, dado o know-how e os contactos preferenciais, nomeadamente com os fornecedores e os clientes, por eles acumulado ao longo da vida da empresa (cfr. artigo 4.7 da petição inicial, que não é impugnado).

41. Em 1 de Outubro de 2012, a AT emitiu a liquidação impugnada, tendo como data limite de pagamento voluntário o dia 19.11.2012 (cfr. documentos n.ºs 1 e 2 juntos com a petição inicial, cujos teores aqui se dão como reproduzidos).

42. Em 3 de Dezembro de 2012, os Requerentes apresentaram o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo (cfr. sistema informático de gestão processual do CAAD).

III.1.2. FACTOS NÃO PROVADOS

Com relevo para a decisão, consideram-se não provados os seguintes factos:

1. Os Requerentes, ao perspectivarem a cedência da maioria do capital social da “A... ., Lda.” ao …, tinham receio de uma eventual penhora de quotas e sua aquisição por terceiros.

2. A decisão de transformação da sociedade “A... ., Lda.”, do tipo por quotas para anónima, teve subjacentes questões relacionadas com a gestão e a imagem societária, em virtude da dimensão que a empresa adquiriu.

 

III.1.3. FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

 

No tocante à matéria de facto provada, a convicção do Tribunal fundou-se nos documentos indicados em relação a cada um dos pontos, cuja correspondência à realidade não foi questionada, nas afirmações feitas nos articulados, nos pontos indicados, em que não foi posta em causa a respectiva correspondência à realidade, e nos depoimentos prestados pelas testemunhas que foram inquiridas, nos pontos indicados.

Relativamente à factualidade não provada, esta foi assim considerada em resultado da ausência de quaisquer elementos probatórios susceptíveis de, inequivocamente, a comprovarem.

 

III.2. DE DIREITO

 

No que se refere à matéria de Direito, importa apreciar se se verifica ou não o preenchimento, no caso vertente, dos diversos requisitos legais necessários para que a cláusula geral anti-abuso seja aplicável.

Sustentam os Requerentes, nas suas alegações escritas, que “Não se verifica o elemento meio, pressuposto da cláusula geral anti-abuso, porquanto cada um dos negócios em causa não revestiu uma forma anómala, inusual, artificiosa, complexa ou mesmo contraditória, tendo em consideração os fins com ele visados, antes os meios jurídicos utilizados foram negócios típicos que a lei prevê para a realização dos fins em vista”, pelo que, no entendimento dos Requerentes, a cláusula geral anti-abuso, prevista no artigo 38.º, n.º 2 da Lei Geral Tributária, não é aplicável à situação em apreço.

Em contrapartida, é entendido pela Requerida, igualmente nas suas alegações escritas, que “Todos os elementos em que se decompõe a cláusula anti abuso estão preenchidos”, pronunciando-se depois especificamente quanto aos seguintes elementos: “elemento meio”, “elemento resultado”, “elemento normativo”, “elemento intelectual” e “elemento sancionatório”.

Cumpre, pois, analisar.

1. A denominada cláusula geral anti-abuso encontra-se prevista no artigo 38.º, n.º 2 da Lei Geral Tributária (LGT), disposição legal que estabelece o seguinte:

São ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efetuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas.”

2. De modo a facilitar a análise relativa à aplicabilidade da cláusula geral anti-abuso, pode recorrer-se, de forma conjugada, a cinco elementos: i) elemento meio; ii) elemento resultado; iii) elemento intelectual; iv) elemento normativo; e v) elemento sancionatório (cfr. GUSTAVO LOPES COURINHA, A Cláusula Geral Anti-Abuso no Direito Tributário – Contributos para a sua Compreensão, Almedina, Coimbra, 2004, p. 165).

Também a jurisprudência tem vindo a recorrer a esta sistematização, designadamente o AcTCA de 15/02/2011, proc. n.º 04255/10.

Reportam-se igualmente a ela tanto os Requerentes como a Requerida.

3. Na análise dos elementos determinantes da aplicabilidade da cláusula geral anti-abuso, referimo-nos, em primeiro lugar, ao elemento meio. Este corresponde aos actos ou negócios jurídicos a que o contribuinte recorreu para obter a vantagem fiscal pretendida – podendo tratar-se de actos ou negócios jurídicos isolados ou, mais comummente, integrados numa sequência de actos ou negócios jurídicos, planeada e dirigida à obtenção do resultado pretendido.

No caso em análise, a vantagem fiscal decorreu da transformação da sociedade por quotas “A... – ., Lda” em sociedade anónima, previamente à venda pelos Requerentes das participações societárias na aludida sociedade comercial.

4. No que diz respeito ao elemento resultado, este reporta-se à “redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios”, nos termos do artigo 38.º, n.º 2 da LGT. Trata-se, portanto, da obtenção de um tratamento fiscal mais favorável do que aquele que seria aplicável ao contribuinte, caso este tivesse praticado os actos ou negócios jurídicos “normais” e pautados por idêntica finalidade económica.

Também este elemento se encontra preenchido, uma vez que os Requerente lograram obter, através da transformação da sociedade comercial “A... – ., Lda” em sociedade anónima e da venda das acções apenas após tal transformação, a sujeição a um regime fiscal bastante mais benéfico, em comparação com o que lhes seria aplicável caso tivessem procedido à venda da sua participação societária na sociedade comercial em causa sem a prévia transformação desta em sociedade anónima.

Com efeito, a prévia transformação em sociedade anónima da “A... – ., Lda” permitiu que a mais-valia decorrente da venda pelos Requerentes das acções se encontrasse excluída de tributação, nos termos do artigo 10.º, n.º 2, alínea a) do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS), com a redacção do Decreto-Lei n.º 228/2002, de 31 Outubro. Em contrapartida, a mais-valia apurada na venda de quotas da mesma sociedade – caso esta não tivesse sido objecto de prévia transformação em sociedade anónima - estaria sujeita a tributação à taxa especial de 10%, nos termos do artigo 72.º, n.º 4 do CIRS, na redacção do Decreto-Lei n.º 192/2005, de 7 de Novembro.

5. Quanto ao elemento intelectual, este pressupõe que os actos ou negócios jurídicos a que o contribuinte recorreu tenham sido “essencial ou principalmente dirigidos”, na terminologia do artigo 38.º, n.º 2 da LGT, à obtenção da vantagem fiscal. A obtenção da vantagem fiscal surge, portanto, como a principal motivação do contribuinte para a prática dos actos ou negócios jurídicos em causa, sendo meramente secundárias as finalidades de índole não fiscal.

Este elemento também se encontra preenchido, conforme decorre da matéria de facto provada, da qual se depreende que a transformação da sociedade comercial “A... – ., Lda” em sociedade anónima teve como principal motivação possibilitar a venda das participações societárias beneficiando do regime de exclusão de tributação de mais-valias em sede de IRS, aplicável às mais-valias decorrentes da venda de acções detidas há mais de 12 meses, e assumindo as finalidades de índole não fiscal dessa transformação societária um carácter meramente secundário.

Afigura-se existir uma sequência lógica de actos e negócios jurídicos “essencial ou principalmente dirigidos” à obtenção de uma vantagem fiscal, uma vez que:

  1. não se vislumbra uma efectiva reorganização empresarial com reflexos ao nível da expansão da actividade da empresa, da obtenção de financiamento ou da maior abertura do capital social a novos sócios;

  2. antes se logrando adiar a transmissão das participações societárias para os novos sócios para momento posterior ao da transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima, não obstante serem já, antes da data dessa transmissão, atribuídos a esses novos sócios direitos correspondentes a uma posição societária que ainda não tinham (v.g. ao nível da restituição de prestações acessórias).

6. Cabe passar à análise do elemento normativo, que encontra a sua base na teoria da fraude à lei. Conforme salienta GUSTAVO LOPES COURINHA (cfr. A Cláusula Geral Anti-Abuso no Direito Tributário – Contributos para a sua Compreensão, Almedina, Coimbra, 2004, pp. 186-187) “tem lugar a reprovação de um certo resultado obtido ou pretendido, quando confrontado com a intenção ou espírito da lei, do Código do Imposto em causa ou do próprio Ordenamento Tributário. O acto fraudulento configura-se em função da reprovação pelo direito da sua natureza verdadeira e substancial – os efeitos obtidos. Efeitos esses que não são desejados, previstos ou promovidos pelo Direito, mas antes rejeitados”. Nestes termos, o apuramento das “fronteiras do acto elisivo” depende do “requisito da condenação pelo Ordenamento Fiscal do resultado obtido”.

A este propósito, J. L. SALDANHA SANCHES sustenta que a aplicação da cláusula geral anti-abuso depende da existência no ordenamento jurídico-tributário de “sinais inequívecos de uma intenção de tributar” (Cfr. J. L. SALDANHA SANCHES, Os Limites do Planeamento Fiscal, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, p. 180) – o que, diga-se, não parece existir relativamente às mais-valias na venda de participações sociais, atenta a coexistência no ordenamento jurídico-tributário da tributação em sede de IRS dos ganhos decorrentes da venda de quotas com a não tributar em sede daquele imposto dos ganhos resultantes da venda de acções.

Ora, perante tal opção do legislador fiscal – justa ou não, mas tal já é uma questão distinta – não estaria vedado ao contribuinte o aproveitamento daquele regime que se lhe afigure mais favorável, no contexto de um planeamento fiscal não abusivo, e não caberia ao aplicador da lei substituir-se às opções de tributar ou não tributar certas realidades seguidas pelo legislador fiscal (Cfr. J. L. SALDANHA SANCHES, Os Limites do Planeamento Fiscal, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, p. 180).

A transformação de uma sociedade por quotas em sociedade anónima, com a subsequente venda das acções sem sujeição a tributação (face ao regime em vigor até à revogação do artigo 10.º, n.º2 do CIRS), foi classificada por J. L. SALDANHA SANCHES como uma “lacuna consciente de tributação”.

Para o autor, esta não seria uma situação susceptível de aplicação da cláusula geral anti-abuso, uma vez que “se o legislador, ao mesmo tempo que tributa as mais-valias das alienações das quotas, deixa por tributar as mais-valias das acções ou as tributa com uma taxa mais reduzida, não pode deixar de se aceitar fiscalmente a transformação de uma sociedade comercial em sociedade por acções mesmo que a transformação seja motivada por razões exclusivamente fiscais” (Cfr. J. L. SALDANHA SANCHES, Os Limites do Planeamento Fiscal, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, p. 182).

Assim, afigura-se que, mesmo que a transformação de uma sociedade por quotas em sociedade anónima fosse motivada por razões exclusivamente fiscais, não se estaria perante um acto condenável face ao ordenamento jurídico-tributário, uma vez que o próprio legislador fiscal tinha optado por tributar em sede de IRS os ganhos decorrentes da venda de quotas e por não tributar em sede daquele imposto os ganhos resultantes da venda de acções.

Deste modo, faltaria o elemento normativo, associado à condenação do ordenamento jurídico-tributário, sem o qual não é aplicável a cláusula geral anti-abuso.

Neste sentido se encontra a decisão arbitral relativa ao Processo nº 123/2012-T, de 9 de Maio de 2013, na qual se conclui que “mesmo que a transformação [de sociedade por quotas em sociedade anónima] fosse motivada por razões exclusivamente fiscais, é o legislador que opta, expressamente, por tributar a venda das quotas e por não tributar a venda das acções naquele contexto”.

7. Por último, no que toca ao elemento sancionatório, este concretiza-se na ineficácia de actos e negócios jurídicos para efeitos fiscais, estando expresso na parte final do artigo 38.º, n.º 2 da LGT, nos termos do qual “São ineficazes no âmbito tributário os actos e negócios jurídicos (…), efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas”.

Uma vez que o elemento sancionatório depende da verificação cumulativa dos restantes elementos – a qual não ocorre no caso em análise, atenta a falta do elemento normativo – considera o tribunal arbitral que não será de aplicar a cláusula geral anti-abuso na situação vertente.

 

Conclusão

8. O tribunal arbitral conclui que não se encontram preenchidos, no caso em análise, todos os pressupostos de facto e de direito de que depende a aplicação da cláusula geral anti-abuso prevista no artigo 38.º, n.º 2 da LGT.

9. Consequentemente, julga procedente o pedido apresentado pelos Requerentes, de anulação da liquidação de IRS nº 2012 … (imposto e juros compensatórios) referente ao exercício de 2008, bem como das subsequentes operações de “compensação” e “acerto de contas”, por enfermarem de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito.

 

IV. VALOR DO PROCESSO

Nos termos do disposto no artigo 315.º, n.º 2, do CPC e 91.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de 107 491,39.

 

V. CUSTAS

Nos termos do artigo 22.º, n.º4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em 3 060,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.

 

VI. DECISÃO

Nestes termos, acordam neste Tribunal Arbitral em:

- julgar procedente o pedido de declaração da ilegalidade da liquidação de IRS n.º 2012 …, referente ao exercício de 2008;

- anular a referida liquidação n.º 2012 …, bem como as subsequentes operações de “compensação” e “acerto de contas”;

 

 

- condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagas as custas do presente processo.

 

 

Lisboa, 12 de julho de 2013

 

Os Árbitros

 

Manuel Luís Macaísta Malheiros (Árbitro Presidente)

 

 

Paula Rosado Pereira (Árbitro Vogal)

 

 

Ricardo Jorge Rodrigues Pereira (Árbitro Vogal)