Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 351/2023-T
Data da decisão: 2023-12-26  Selo  
Valor do pedido: € 125.635,94
Tema: Imposto do Selo. Prestações acessórias.
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SUMÁRIO:

As prestações acessórias, a título gratuito, a que os sócios se encontram vinculados no âmbito do contrato de sociedade, não podem ser qualificadas como aquisição por doação do direito de propriedade por parte da sociedade beneficiária, para efeitos da verba 1.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Acordam em Tribunal Arbitral Coletivo

 

I – Relatório

 

1. A..., Lda., com o número único de matrícula e de pessoa coletiva ..., com sede em ..., n.º..., ...-... Cascais (adiante designada por Requerente), vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, para apreciar a legalidade do ato de liquidação do Imposto do Selo nº ... e da correspondente demonstração de acerto de contas nº 2021..., de 22/02/2021, no valor a pagar de € 125.635,94 e, bem assim, do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa contra ele deduzido, requerendo ainda a condenação da Autoridade Tributária (adiante também designada como Requerida) no pagamento de juros indemnizatórios.

 

Fundamenta o pedido nos seguintes termos.

 

A liquidação de Imposto do Selo resultou da realização de uma prestação acessória pelos sócios da Requerente a favor da sociedade, titulada por escritura pública, realizada em 20 de dezembro de 2018, através da entrega de determinados bens imóveis de que eram proprietários.

 

No dia seguinte à outorga da escritura, a Requerente procedeu à entrega da Declaração Modelo 1 de Imposto do Selo, assinalando como facto tributário “outros” e declarando, em observações, o seguinte: “Transmissão de imóveis por prestação acessória gratuita a título definitivo, não sendo a prestação reembolsável nem dando lugar, em momento algum, a qualquer contraprestação nem responsabilidade”.

 

A Administração Fiscal tributou a prestação acessória em sede de Imposto do Selo, por ter entendido que essa prestação reveste a natureza de uma aquisição gratuita de bens e encontra-se sujeita à verba 1.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS).

 

No entanto, o ato tributário não se encontra suportado em qualquer fundamentação, não podendo entender-se a mera referência à verba da TGIS como configurando uma fundamentação adequada, suficiente e clara, tanto mais que norma invocada contempla a aquisição onerosa ou por doação do direito de propriedade, enquanto o facto que está em causa é a entrega de bens imóveis a título de prestação acessória, o que não consubstancia nem uma aquisição onerosa nem uma doação.

 

O ato tributário impugnado também enferma de ilegalidade por erro nos pressupostos de direito, quanto à norma de incidência invocada.

 

Juridicamente, as prestações acessórias são descritas no n.º 1 dos artigos 209. ° e 287. ° do Código das Sociedades Comerciais, como prestações além da obrigação de entrada de capital das sociedades comerciais e, nesse sentido, a realização de uma prestação acessória pelos sócios, com a entrega de bens imóveis para a sociedade, consubstancia uma transmissão do direito de propriedade daqueles bens, mas não configura uma doação, na medida em que a transmissão não é realizada com espírito de liberalidade, mas no cumprimento de uma obrigação a que os sócios se encontram vinculados.

 

Por outro lado, a verba 1.1 da TGIS nunca seria aplicável às prestações acessórias, porque estas não constituem nem uma aquisição onerosa nem uma transmissão a título de doação. E a verba 1.2 não poderá ser aplicável a essas prestações, na medida em que a destinatária dos bens imóveis é uma pessoa coletiva, sujeito passivo de IRC, e não se encontra sujeita a Imposto do Selo, por força da norma de delimitação negativa da incidência prevista no artigo 1°, nº 5, alínea e), do Código do Imposto do Selo.

 

Acresce que a tributação das entradas dos sócios com bens imóveis para a realização de prestações acessórias só foi criada através da nova redação dada ao artigo 2.º, n.º 5, alínea e), do Código do IMT, pela Lei n.º 12/2022, de 27 de junho, que passou a incluir no campo da incidência do IMT, as entradas dos sócios com bens imóveis para a realização de prestações acessórias.

 

Assim sendo, a entrada de bens imóveis dos sócios para as sociedades, através de prestações acessórias passou a estar objetivamente sujeito a IMT apenas a partir de 28 de junho de 2022, data da entrada em vigor da Lei nº 12/2022, e, antes dessa alteração legislativa, e nomeadamente à data da escritura pública que titula a entrada com bens imóveis dos sócios para as sociedades, em 20 de dezembro de 2018, este facto não estava abrangido pelas Verbas 1.1 e 1.2 do TGIS, nem de qualquer outra norma do Código do Imposto do Selo.

 

 

 

 

Sendo de concluir que a liquidação em causa enferma de ilegalidade, por não ter qualquer suporte legal e configura um erro de direito imputável aos serviços porquanto considera, em 2018, como facto sujeito a Imposto do Selo, a realização a favor da Requerente de prestação acessória dos sócios através da entrada de bens imóveis.

 

E, por outro lado, o erro imputável aos serviços legitima a tempestividade do pedido de revisão oficiosa, atento o disposto nos artigos 78.º, n.º 7, da LGT e 86.º, n.º 4, alínea a), do CPPT.

 

A Autoridade Tributária, na sua resposta, suscita a exceção dilatória da caducidade do direito de ação, por considerar que o pedido de revisão oficiosa foi apresentado intempestivamente, porquanto o prazo de quatro anos previsto no artigo 78.º da LGT apenas é aplicável quando o ato de liquidação seja imputável um erro dos serviços, e, no caso, não se verifica qualquer erro imputável aos serviços, porquanto a liquidação do imposto resultou da entrega voluntária da declaração Mod.1.

 

Não podendo a Requerente pedir a revisão oficiosa do ato tributário dentro do prazo de 4 anos, por inexistência de erro imputável aos serviços, a sua revisão só se poderia ser efetuada no prazo da reclamação administrativa, com fundamento em ilegalidade, conforme o disposto no artigo 78.º, n.º 1, primeira parte, da LGT, sendo esse prazo de 120 dias contados do termo do prazo de pagamento voluntário da liquidação.

 

Pelo que, à data em que foi apresentado o pedido de revisão, em 9 de dezembro de 2022, o pedido era intempestivo, verificando-se igualmente a intempestividade do pedido de pronúncia arbitral.

 

Quanto à matéria de fundo, a Autoridade Tributária apenas se pronunciou quanto à alegada falta de fundamentação, dizendo que não ocorre esse vício formal, uma vez que a Requerente entendeu perfeitamente o sentido e alcance do ato de liquidação como se depreende da própria argumentação jurídica adotada no pedido arbitral.

 

2. A Requerente respondeu à matéria de exceção, dizendo que não estamos na presença de uma autoliquidação, mas de uma liquidação adicional, que é da competência da Autoridade Tributária e foi por ela realizada, tal como consta da demonstração da liquidação, e pela qual a Autoridade Tributária entendeu que a prestação acessória realizada pelos sócios da Requerente reveste a natureza de uma aquisição gratuita de bens sujeita ao Imposto do Selo previsto na verba 1.1 da TGIS e procedeu à liquidação deste imposto em conformidade.

 

Sendo que é jurisprudência do STA que a competência da liquidação do Imposto do Selo, com fundamento na verba 1.1 da TGIS, é da Autoridade Tributária, mesmo quando resulta de uma declaração Mod. 1 apresentada pelo contribuinte e, consequentemente, qualquer erro de direito praticado na liquidação realizada pela Administração configura-se como um erro imputável aos serviços.

 

Tratando-se de uma liquidação de Imposto do Selo, datada de 22 de fevereiro de 2021, e tendo sido apresentado o pedido de revisão oficiosa em 9 de dezembro de 2022, o mesmo é tempestivo, porquanto a revisão oficiosa do ato tributário, seja por iniciativa da administração tributária ou a pedido do contribuinte, pode ser efetuada no prazo de quatro anos após a liquidação, nos termos do disposto no artigo 78.º, n.º 1, da LGT.

 

Conclui pela improcedência da exceção invocada.

 

3. Por despacho arbitral de 19 de outubro de 2023, o tribunal determinou a dispensa da reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, bem como a apresentação de alegações, por não existirem novos elementos sobre que as partes se devam pronunciar, e relegou para final a matéria de exceção.

 

4. O pedido de constituição do tribunal arbitral, apresentado em 12 de maio de 2023, foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou os árbitros do tribunal arbitral coletivo aqui signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228. ° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi regularmente constituído em 25 de julho de 2023.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades.

 

A Autoridade Tributária, na resposta, suscitou a exceção de caducidade do direito de ação.

 

Cabe apreciar e decidir.

 

 

 

 

 

II – Saneamento

 

Caducidade do direito de ação

 

5. A Autoridade Tributária suscitou a exceção dilatória da caducidade do direito de ação, por considerar que o pedido de revisão oficiosa foi apresentado intempestivamente, porquanto o prazo de 4 anos previsto no artigo 78.º, n.º 1, da LGT apenas é aplicável quando ao ato de liquidação seja imputável a um erro dos serviços, e, na situação do caso, a liquidação do imposto resultou da entrega voluntária da declaração Mod.1., correspondendo a uma forma de autoliquidação, pelo que a revisão apenas poderia ser efetuada no prazo de reclamação administrativa com fundamento em ilegalidade.

 

Deve começar por dizer-se, como decorre do acórdão do STA de 17 de janeiro de 2018 (Processo n.º 01377/14), que, no caso do Imposto Do Selo incidente sobre os atos ou contratos previstos na verba 1.1 da TGIS, os sujeitos passivos têm de apresentar, no serviço de finanças ou por meios eletrónicos, uma declaração modelo oficial devidamente preenchida, a qual serve de base ao ato de liquidação, considerando-se, para todos os efeitos legais, que o ato é praticado no serviço de finanças competente.

 

Tal é o que resulta do disposto nos artigos 19º, nº 1, 20º e 21.º, n.º 1, do Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (CIMT), aplicáveis por remissão do artigo 23.º, n.º 4, do Código do Imposto do Selo (CIS).

 

Não se tratando de uma autoliquidação, mas de uma liquidação oficiosa da Administração, a impugnação judicial não depende da prévia a apresentação de reclamação graciosa a que se refere o artigo 131.º, n.º 1, do CCPT, a nada obstando a que possa haver lugar a revisão oficiosa por iniciativa do contribuinte.

 

O artigo 78.º, n.º 1, da LGT prevê que a revisão dos atos tributários possa ser efetuada por iniciativa do sujeito passivo, com fundamento em qualquer ilegalidade, no prazo de reclamação administrativa, ou por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação, com fundamento em erro imputável aos serviços.

 

E como se afirma, entre outros, nos acórdãos do STA de 14 de Março de 2012 (Processo n.º 01007/11) e de 8 de Março de 2017 (Processo n.º 01019/14), a revisão oficiosa do ato tributário pode ser efetuada a pedido do contribuinte no prazo de quatro anos contados da liquidação (ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago) quando houver erro imputável aos serviços, devendo entender-se como tal o erro material, o erro de facto ou o erro de direito, independentemente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na emissão da liquidação.

 

É o que depreende do disposto no artigo 78.º, n.º 7, da LGT, pelo qual a revisão oficiosa, nos termos previstos no n.º 1 desse artigo, pode ser desencadeada pelo sujeito passivo mediante requerimento dirigido ao órgão competente da Administração Tributária e com base nos mesmos pressupostos legais: no prazo de quatro anos e com fundamento em erro imputável aos serviços.

 

O que se tem entendido como uma decorrência do princípio da justiça e da verdade material (cfr., neste sentido, Joaquim Freitas da Rocha, Lições de Procedimento Tributário, 5.ª edição, Coimbra, págs. 227-228; Serena Cabrita Neto/Carla Castelo Trindade, Contencioso Tributário, vol. I, Coimbra, 2017, pág. 605, e Leonardo Marques dos Santos, “A revisão do ato tributário, as garantias dos contribuintes e a fiscalidade internacional”, in Estudos de Homenagem ao Professor Doutor Alberto Xavier, Economia, Finanças Públicas e Direito Fiscal, Vol. II, págs. 14 e ss.).

 

Conforme é também jurisprudencialmente aceite, existindo um erro de direito numa liquidação efetuada pelos serviços da administração tributária, e não decorrendo essa errada aplicação da lei de qualquer informação ou declaração do contribuinte, o erro em questão é imputável aos serviços, em resultado da obrigação genérica de a administração tributária atuar em plena conformidade com a lei.

 

Por outro lado, como é evidente, a existência do erro que constitui fundamento do pedido de revisão não pode ser aferida a partir da posição jurídica que tenha sido assumida pela Autoridade Tributária na apreciação do pedido de revisão, mas com base nos vícios de ilegalidade que tenham sido arguidos pelo sujeito passivo na formulação do pedido.

 

Sendo que o processo arbitral foi deduzido precisamente para discutir a validade do entendimento adotado pela Administração na decisão de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa.

 

Nestes termos, tendo sido invocado um erro imputável aos serviços e verificando-se que o pedido de revisão oficiosa deu entrada em 9 de dezembro de 2022 e reporta-se a ato de liquidação de Imposto do Selo de 22 de fevereiro de 2021, no momento da apresentação do pedido não tinha ainda decorrido o prazo de quatro anos após a liquidação, a que se refere o artigo 78.º, n.º 1, da LGT.

 

Tendo sido apresentado o pedido arbitral em 12 de maio de 2023, dentro do prazo de 90 dias após a decisão de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa, que ocorreu 9 de abril de 2023, o pedido arbitral é igualmente tempestivo.

 

Não se verifica, por conseguinte, a pretendida caducidade do direito de ação.

 

 

 

 

III - Fundamentação

 

Matéria de facto

 

6. Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes.

 

  1. Por escritura pública outorgada em 20 de dezembro de 2018, B... e C..., na qualidade de sócios da A..., Lda., realizaram uma prestação acessória a favor da sociedade, através da transmissão de bens imóveis de que eram proprietários, identificados na escritura, a título definitivo e gratuito, não sendo a prestação reembolsável, nem dando lugar a qualquer contraprestação (documento n.º 1 junto ao pedido, que aqui se dá como reproduzido).
  2. Em 21 de dezembro de 2018, a Requerente apresentou no Serviço de Finanças de Cascais a Declaração Modelo 1 de Imposto do Selo, relativa a participação de transmissões gratuitas, assinalando como origem do facto tributário ”outros” e fazendo constar em Observações o seguinte: “Transmissão de imóveis por prestação acessória gratuita a título definitivo, não sendo a prestação reembolsável nem dando lugar, em momento algum, a qualquer contraprestação nem responsabilidade” (documento n.º 4 junto ao pedido, que aqui se dá como reproduzido).
  3. A Autoridade Tributária emitiu a liquidação de Imposto do Selo nº..., com data de 11 de julho de 2019, com um total a pagar de € 133.094,33 e a correspondente demonstração de acerto de contas, com data de 22 de fevereiro de 2021, com um valor a pagar de 125.635,94 (documento n.º 1 junto ao pedido).
  4. A notificação da liquidação do Imposto do Selo é do seguinte teor:

Fica notificado nos termos do artigo 36.º e artigo 38.º, n.º 9, do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), da liquidação adicional do Imposto do Selo (IS) previsto na verba 1.1 da Tabela Geral (TG), com fundamento no n.º 4 do artigo 9.º do Código do Imposto do Selo (CIS) e da alínea b) do n.º 4 do artigo 15.º- D da Lei n.º 60-A/2011, de 30/11, com referência à transmissão do prédio abaixo identificado” (documento n.º 1 junto ao pedido).

  1. A Requerente procedeu ao pagamento do imposto devido em 14 de maio de 2021 (documento n.º 5 junto ao pedido, que se dá por integralmente reproduzido).
  2. A Requerente apresentou, em 9 de dezembro de 2022, um pedido de revisão oficiosa contra a liquidação do Imposto do Selo e correspondente demonstração de acerto de contas, ao abrigo do disposto no artigo 78.º, n.ºs 1 e 7, da LGT.
  3. A Autoridade Tributária não proferiu decisão no prazo legalmente previsto, considerando-se o pedido tacitamente indeferido em 10 de abril de 2023 (documento n.º 2 junto ao pedido, que se dá por integralmente reproduzido).
  4. O pedido arbitral deu entrada em 12 de maio de 2023.

 

Factos não provados

 

Não existem quaisquer factos não provados relevantes para a decisão da causa.

 

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos, pela Requerente, com o pedido e constantes do processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a resposta.

 

Matéria de direito

 

Ordem de conhecimento dos vícios

 

7. A Requerente fundamenta o pedido de anulação contenciosa num vício de falta de fundamentação e num vício de violação de lei por erro nos pressupostos de direito.

 

Conforme dispõe o artigo 124.º do Código de Procedimento e Processo Tributário, na sentença a proferir no processo de impugnação, o tribunal apreciará prioritariamente os vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do ato impugnado e, depois, os vícios arguidos que conduzam à sua anulação (n.º 1), havendo lugar, no primeiro grupo, à apreciação prioritária dos vícios cuja procedência determine, segundo o prudente critério do julgador, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos, e, no segundo grupo, a indicada pelo impugnante, sempre que este estabeleça entre eles uma relação de subsidiariedade e não sejam arguidos outros vícios pelo Ministério Público ou, nos demais casos, a fixada na alínea anterior (n.º 2).

 

No presente caso, não são arguidos vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do ato impugnado ou outros que resultem do exercício da ação pública, estando apenas em causa vícios que conduzem à anulação do ato administrativo.

 

Por outro lado, a Requerente não indica uma relação de subsidiariedade entre os vícios, pelo que se afigura haver lugar ao conhecimento prioritário do vício de violação de lei por ser este que confere mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos, visto que o vício de falta de fundamentação – a proceder – não impediria que a Administração produzisse, em execução de julgado, um ato de idêntico sentido ainda que devidamente fundamentado.

 

Tributação em Imposto do Selo de prestações acessórias

 

8. A questão em debate traduz-se em saber se a realização de prestação acessória pelos sócios da Requerente, mediante a transmissão de bens imóveis para a sociedade, se encontra sujeita à incidência de Imposto do Selo, nos termos gerais do artigo 1.º, n.º 1, do Código do Imposto do Selo (CIS), para efeitos da verba 1.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS).

 

Como resulta da matéria de facto dada como assente, dois sócios da Requerente realizaram uma prestação acessória a favor da sociedade, através da transmissão de bens

 

imóveis de que eram proprietários, a título definitivo e gratuito, e em que não houve lugar a qualquer contraprestação.

 

A Autoridade Tributária, na sequência da apresentação, pelo contribuinte, da Declaração Modelo 1 de Imposto do Selo relativa a participação de transmissões gratuitas, emitiu uma liquidação adicional de Imposto do Selo por considerar o facto tributário incluído na verba 1.1 da TGIS.

 

O Código do Imposto do Selo, no seu artigo 1.º, define o âmbito de incidência objetiva do imposto, na parte que interessa considerar, como respeitando a “todos os atos, contratos, documentos, títulos, papéis e outros factos ou situações jurídicas previstas na Tabela Geral, incluindo as transmissões gratuitas de bens”.

 

A Tabela Geral, por sua vez, sob a epígrafe “Aquisição de bens”, refere-se, na verba 1.1, à “[a]quisição onerosa ou por doação do direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito sobre imóveis, bem como a resolução, invalidade ou extinção, por mútuo consenso, dos respetivos contratos”, a que é aplicável uma taxa de 0,8%

 

Para uma melhor compreensão do objeto do litígio interessa começar por esclarecer o que se entende por prestações acessórias.

 

As prestações acessórias, a que aludem os artigos 209.º e 287.º do Código das Sociedades Comerciais, aplicáveis às sociedades por quotas e às sociedades anónimas, têm de ser estabelecidas no contrato da sociedade, originariamente ou através da modificação do estatuto social, poderão ser conferidas a título gratuito ou oneroso, e não correspondem propriamente a um reforço de capital, distinguindo-se, neste ponto, das prestações suplementares.

 

O conteúdo da obrigação das prestações acessórias poderá ser muito diverso, podendo traduzir-se não apenas em prestações pecuniárias, mas no fornecimento de bens à sociedade ou na aquisição de produtos desta, em assistência técnica, garantia de dívidas, prestação de serviços, exercício da atividade de gerente ou administrador ou atribuição do gozo de um prédio ou de um outro bem a favor da sociedade.

 

Sendo que o artigo 209.º do Código das Sociedades Comerciais não estabelece quaisquer restrições ao objeto das prestações acessórias (sobre todos estes aspetos, cfr. Pinto Furtado, Curso do Direito das Sociedades, 4.ª edição, Coimbra, págs. 219 e 320-321; Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, vol. II, 6.ª edição, Coimbra, págs. 215 e 313 a 317; Rui Pinto Duarte, “Suprimentos, Prestações Acessórias e Prestações Suplementares – notas e questões”, in Problemas do Direito das Sociedades, Coimbra, págs. 275 a 277).

 

 

 

Quando as prestações acessórias sejam efetuadas onerosa ou gratuitamente, entende-se como onerosa a prestação realizada pelo sócio a que corresponde uma contraprestação financeira por parte da sociedade beneficiária, o que significa que a sociedade retribui financeiramente a prestação recebida, quer pagando o preço do bem ou serviço, quer suportando o juro sobre as quantias entregues.

 

A prestação acessória é gratuita quando a sociedade beneficiária não assume, perante o sócio, qualquer contrapartida financeira decorrente da sua realização ou não suporta os juros relativos às quantias entregues.

 

A propósito da natureza onerosa ou gratuita das prestações acessórias, Raúl Ventura refere o seguinte:

 

As prestações gratuitas podem suscitar uma dúvida de natureza (...); não havendo qualquer contrapartida da sociedade a uma prestação efetuada por um sócio, pode parecer que se trata de pura liberalidade do sócio. Na realidade não é assim; com ou sem contrapartida da sociedade, a obrigação acessória tem natureza societária, faz parte da relação jurídica criada entre os sócios pelo respetivo contrato. O sócio obriga-se a efetuar prestações acessórias como se obriga a efetuar a própria prestação de capital e todas as prestações que efetua à sociedade, na qualidade de sócio, têm um fim social, que as afasta das liberalidades ou doações. A nomenclatura legal “prestações feitas gratuitamente” pode levar a supor o contrário, mas o defeito é da nomenclatura. A confirmar esta ideia podem apontar-se as prestações acessórias efetuadas logo no contrato de sociedade, as quais não têm contrapartidas, mas também de nenhum modo podem ser gratuitas, no sentido de constituírem liberalidades” (Sociedades por Quotas: Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, vol. I, 2.ª edição, Coimbra, 1989, pág. 218).

 

O que significa, como acrescenta o mesmo Autor, que as cláusulas do contrato de sociedade que estabelecem as obrigações acessórias fazem parte do contrato de sociedade, os direitos resultantes dessas cláusulas pertencem à sociedade, e as obrigações assumidas pelos sócios têm natureza social, como a obrigação básica de contribuir com entradas de capital para a sociedade (ob. cit., pág. 221), e não se confundem com os negócios típicos que lhe poderiam corresponder no direito comum.

 

Não se tratando de uma mera liberalidade, mas de uma obrigação de prestações acessórias, a título gratuito, a que os sócios se encontram vinculados no âmbito do contrato de sociedade, não poderiam essas prestações serem qualificadas como aquisição por doação do direito de propriedade por parte da sociedade beneficiária, e, nesse sentido, não só não se incluem no conceito de “transmissões gratuitas de bens” a que se refere o artigo 1.º, n.º 1, do Código do Imposto do Selo, quando define o âmbito de incidência objetiva do imposto, como também não se integram no conceito de doação a que se refere a verba 1.1 da TGIS.

 

 

9. A Requerente alega, como argumento adicional, que a tributação das entradas dos sócios com bens imóveis para a realização de prestações acessórias só foi introduzida com a nova redação dada ao artigo 2.º, n.º 5, alínea e), do Código do IMT pela Lei n.º 12/2022, de 27 de junho, e só a partir dessa alteração legislativa é que as prestações, que não se encontravam abrangidas pela verba 1.1 da TGIS, passaram a ser tributadas mas em sede do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT).

 

No entanto, como se decidiu nos acórdãos do STA de 3 de fevereiro de 2021 (Processo n.º 0432/16) e de 27 de outubro de 2021 (Processo n.º 083/12), a referida disposição do Código do IMT apenas compreende as entradas dos sócios com imóveis para realização do capital social do ente societário, e não abrange, no seu elemento literal, as transmissões de imóveis em cumprimento da entrega de prestações acessórias sociais.

 

Em todo o caso, como resulta do artigo 1.º, n.º 5, alínea e), do CIS, não estão sujeitas a Imposto do Selo as transmissões gratuitas de bens a favor de sujeitos passivos de IRC, ainda que dele isentas.

 

O que se justifica, como esclarece José Maria Fernandes Pires, porque, nesse caso, a aquisição gratuita está sujeita a IRC, por se tratar de uma variação patrimonial positiva que concorre para a formação do lucro tributável sujeito a este imposto, nos termos do artigo 21.º do Código do IRC (Lições de Impostos Sobre o Património e do Selo, 2.ª edição, 2012, Coimbra, pág. 461).

 

Nestes termos, haverá de concluir-se que se verifica, na situação em presença, um erro nos pressupostos de direito quanto à liquidação de Imposto do Selo, na medida em que as prestações acessórias, mesmo quando atribuídas a título gratuito, não se enquadram no âmbito de incidência do artigo 1.º, n.º 1, do Código do Imposto do Selo, e da verba 1.1 da TGIS, uma vez que não constituem uma aquisição por doação por parte da sociedade beneficiária.

 

E mesmo considerando tratar-se de transmissão gratuita, não poderia dar-se como verificada a legalidade da sujeição a Imposto do Selo com base verba 1.2 da TGIS, referente à “aquisição gratuita de bens”, por inaplicabilidade do respetivo âmbito de incidência às entidades societárias.

 

Assim, o pedido arbitral mostra-se ser procedente, havendo lugar à declaração de ilegalidade da liquidação adicional impugnada.

 

E, consequentemente, deverá ser anulada a decisão de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa deduzido.

 

Juros indemnizatórios

 

 

 

10. A Requerente pede ainda a condenação da Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios.

 

De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”. O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

 

Ainda nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito.

 

Nos casos de pedido de revisão oficiosa, em face do disposto na alínea c) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, apenas são devidos juros indemnizatórios depois de decorrido um ano após a iniciativa do contribuinte, e não desde a data do desembolso da quantia liquidada, constituindo esse o entendimento jurisprudencial corrente (cfr., entre outros, os acórdãos do STA de 18 de janeiro de 2017, Processo n.º 0890/16, e de 10 de maio de 2017, Processo n.º 01159/14). [1]

 

No caso, o pedido de revisão oficiosa foi apresentado em 9 de dezembro de 2022, pelo que são devidos juros indemnizatórios desde 10 de dezembro de 2023, ou seja, a partir de um ano depois da apresentação do pedido de revisão oficiosa, até à data do processamento da respetiva nota de crédito.

 

IV – Decisão

 

Termos em que se decide:

 

  1. Julgar procedente o pedido arbitral e anular o ato de liquidação impugnado, bem como a decisão de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa contra ele deduzido;
  2. Condenar a Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios calculados desde 10 de dezembro de 2023 até à data do processamento da respetiva nota de crédito.

 

Valor da causa

 

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 125.635,94, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 3.060,00, que fica a cargo da Requerida.

 

Notifique.

 

Lisboa, 26 de dezembro de 2023

 

 

O Presidente do Tribunal Arbitral

 

Carlos Fernandes Cadilha

 

 

O Árbitro vogal

                                                                                                    

João Marques Pinto

 

 

A Árbitro vogal

 

Sílvia Oliveira



[1] Neste mesmo sentido, vide Acórdão do STA nº 4/2023, de 16-11-2023 [Acórdão do STA de 30/09/2020, Processo n.º 40/19.6BALSB (Pleno da 2.ª Secção) - Uniformiza a Jurisprudência no sentido de que “só são devidos juros indemnizatórios decorrido um ano após o pedido de promoção da revisão oficiosa e até à data da emissão das respetivas notas de crédito a favor da Recorrida”].