Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 125/2020-T
Data da decisão: 2020-11-19  IRC  
Valor do pedido: € 33.628,07
Tema: Código do IRC – artigo 14.º, n.º 3, alínea c) do Código do IRC de 2015. Juros compensatórios.
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Sumário:

I - No artigo 14.º, n.º 3, alínea c), segundo segmento do Código do IRC em vigor em 2015 o legislador, ao prever a detenção “direta ou direta e indiretamente”, quis abranger a detenção de participações sociais diretas ou a detenção simultânea de participações sociais diretas e indiretas e não a possibilidade de detenção alternativa de participações sociais diretas e indiretas.

II - Esta é a única interpretação possível considerando a letra da lei e atendendo, também, à ratio legis e ao pensamento do legislador.

III - Resultando clara a interpretação do disposto no artigo 14.º, n.º 3 do CIRC, sabendo-se que a retenção de IRC devia ter sido operada pela Requerente e que a ignorância da lei não aproveita a ninguém, conclui-se que a não entrega aos cofres do Estado resultou de facto imputável à Requerente pelo que estão verificados os pressupostos para a liquidação de juros compensatórios (cfr. artigos 35.º da LGT e 102.º, n.º 1 do CIRC).

 

DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

O árbitro Nuno Cunha Rodrigues, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o presente Tribunal Arbitral, constituído em 05.08.2020, decide nos termos que seguem:

I. RELATÓRIO

1. A..., S.G.P.S., S.E., pessoa colectiva n.º..., com sede no ..., n.º..., ...-... Lisboa apresentou, em 26/02/2020, um pedido de constituição do tribunal arbitral singular, nos termos dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em conjugação com a alínea a) do art. 99.º do CPPT, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada apenas por Requerida AT).

2. A Requerente pede a declaração de ilegalidade dos atos de liquidação oficiosa de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“IRC”) e de juros compensatórios constantes da demonstração de liquidação de retenções na fonte de IRC n.º 2019..., que integra: (i) a nota de apuramento de retenções na fonte de IRC n.º 2019...; e (ii) as liquidações de juros compensatórios n.º 2019... e n.º 2019..., todas referentes ao exercício de 2015.

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD a 27-02-2020 e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nessa mesma data.

4. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular o ora signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

5. Em 06-07-2020 foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

6. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral singular foi constituído em 05-08-2020.

7. Atendendo a que não existia necessidade de produção de prova adicional, para lá da prova documental já incorporada nos autos, nem matéria de excepção sobre as quais as partes carecessem de se pronunciar, e que no processo arbitral vigoram os princípios processuais gerais da economia processual e da proibição da prática de atos inúteis ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º do RJAT, dispensou-se a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT, tendo sido fixado notificadas as partes para apresentarem alegações escritas facultativas pelo prazo sucessivo de dez dias.

8. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.

9. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

10. O processo não enferma de nulidades e não se suscita qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

II. DO PEDIDO DA REQUERENTE:

A Requerente solicita a declaração de ilegalidade dos atos de liquidação relativos a Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“IRC”) e de juros compensatórios constantes da demonstração de liquidação de retenções na fonte de IRC n.º 2019..., que integra: (i) a nota de apuramento de retenções na fonte de IRC n.º 2019...; e (ii) as liquidações de juros compensatórios n.º 2019... e n.º 2019..., todas referentes ao exercício de 2015.

Entende a Requerente que não estava obrigada a fazer qualquer retenção na fonte sobre os dividendos distribuídos à B... em 20 de maio e 22 de dezembro de 2015 uma vez que estaria abrangida pela isenção prevista no artigo 14.º, n.º 3, alínea c) do Código do IRC.

Mais considera a Requerente que, ainda que assim não fosse, os pressupostos para a liquidação de juros compensatórios não estão preenchidos, por a AT não ter demonstrado a sua culpa.

III. DA RESPOSTA DA REQUERIDA AT:

Em resposta, a Requerida AT considera que a interpretação alínea c) do n.º 3 do artigo 14.º do Código do IRC é diversa da operada pela Requerente, pelo que esta não estaria abrangida pela isenção uma vez que a B..., até 9 de dezembro de 2013, era indiretamente detentora de 38,67% da Requerente pelo que, relativamente aos lucros distribuídos em 2014, o disposto no artigo 14.º, n.º 3, alíneas c) e d) não se encontra cumprido.

Mais considera que a ignorância da lei não aproveitar a ninguém (cfr. artigo 6.º do Código Civil) pelo que, tendo a AT explicitado as razões pelas quais entende que a Requerente, na qualidade de substituto tributário, devia ter efetuado a respetiva retenção na fonte, sem prejuízo de posterior reembolso, devem ser liquidados juros compensatórios.

 

IV. MATÉRIA DE FACTO:

A. Factos provados

Consideram-se provados os seguintes factos:

1.            A Requerente é uma sociedade anónima europeia, que se dedica à gestão de participações sociais;

2.            Até 9 de dezembro de 2013, a sociedade de direito holandês B..., B.V. (adiante abreviadamente designada por “B...”) detinha — através da sua subsidiária C..., S.G.P.S., S.A. (adiante designada por C...) uma participação indireta de 38,67% no capital social da Requerente;

3.            A estrutura relativa a esta participação indireta era a que se compreende através do seguinte diagrama:

 

4.            No dia 9 de dezembro de 2013, foi deliberada uma redução do capital social da C... no valor de € 1.859.570,00 (um milhão oitocentos e cinquenta e nove mil quinhentos e setenta euros), para libertação de excesso de capital;

5.            Uma parte da contrapartida pela redução do valor das acções da C... foi feita mediante a transmissão para a B... (acionista única da C...) de uma parte dos títulos representativos do capital social da Requerente que ate ai eram detidos diretamente pela C... (e indiretamente pela B...);

6.            Em resultado desta operação, a B... manteve a sua participação global de 38,67% no capital social da Requerente mas passou a deter essa participação global cumulativamente de forma direta (em 33,46%) e de forma indireta (em 5,21%), nos termos que melhor se compreendem através do seguinte diagrama:

 

7.            Os títulos representativos dos mencionados 38,67% do capital social da Requerente, que antes eram (todos) indiretamente detidos pela B..., passaram a estar divididos em dois subgrupos: (i) o primeiro, representativo de 33,46%, passou a ser detido diretamente pela B...; e (ii) o segundo, representativo de 5,21%, continuou a ser detido diretamente pela C... e indiretamente pela B...;

8.            Em 20 de maio de 2015 e em 22 de dezembro de 2015, a Requerente fez duas distribuições de dividendos, colocando à disposição da B..., em cada uma delas, o montante de € 18.157.570,00 (dezoito milhões cento e cinquenta e sete mil quinhentos e setenta euros);

9.            A Requerente não fez qualquer retenção de IRC sobre o valor dos dividendos colocados à disposição da B... naquelas duas distribuições;

10.          Em janeiro de 2019, a Requerente foi notificada do Relatório de Inspecção Tributária (RIT) emitido pela Unidade dos Grandes Contribuintes ao abrigo da Ordem de Serviço n.º 012018..., referente ao exercício de 2015;

11.          No RIT entenderam os serviços de inspeção tributária que “do disposto nas alíneas c) e d) do n.º 3 do artigo 14.º do CIRC resulta que só se qualificam para efeitos de isenção os lucros que uma entidade residente em território português coloque à disposição de uma entidade residente noutro Estado membro da União Europeia, quando se estejam perante participações:

1. Diretas não inferiores a 5% detidas de modo ininterrupto durante 24 meses anteriores à colocação à disposição dos dividendos distribuídos; ou

2. Diretas inferiores a 5% que adicionadas de uma participação indireta calculada nos termos do n.º 6 do artigo 69.º do CIRC completem a percentagem mínima de 5%, detidas durante 24 meses anteriores à disposição dos dividendos atribuídos.

Concretizando, exige-se que a participação mínima de 5% seja obtida por via direta na sua totalidade ou obtida por via direta em termos parciais, a qual, adicionada a uma participação indireta, complete a percentagem de 5%.”

12.          O mesmo RIT conclui que "[s]e é verdade que a B... BV já tinha uma participação de 38,67% na A... SGPS há mais de 24 meses, também é verdade que a mesma, por se cingir a uma participação indireta, não tem enquadramento na alínea c) do n.º 3 do art. 14.º do CIRC pelas razoes já mencionadas. Além disso, tendo em conta as alterações das participações financeiras efetivadas em 2014, constata-se que, no momento da colocação à disposição dos dividendos distribuídos pela A... SGPS a B... BV em maio de 2014, a participação direta de 33,46% detida por esta última sociedade não cumpria o requisito de participação de 24 meses previsto na alínea d) do n.º 3 do art. 14.º do CIRC";

13.          Os Serviços de Inspeção Tributária especificaram que o artigo 274.º do Código das Sociedades Comerciais determina que a transmissão para a B... das ações representativas de 33,46% do capital social da Requerente só teria ocorrido em 8 de abril de 2014 (data do registo da transmissão junto da entidade emitente) e não no dia 9 de dezembro de 2013 (data da deliberação de redução do capital da C...);

14.          A AT concluiu que “aquando do pagamento dos dividendos à B... BV (2015-05-20 e 2015-12-22), a A... SGPS deveria ter deduzido, em cada um dos momentos, a título de retenção na fonte, o montante de 1.815.716,04 euros) e ter procedido à sua entrega nos cofres do Estado, conforme estabelecido no n.º 6 do art.º 94.º do CIRC, na qualidade de substituto tributário (n.º 5 do art.º 98.º do mesmo diploma)”;

15.          A AT decidiu não exigir à Requerente o pagamento do IRC em falta, uma vez que, se a retenção na fonte tivesse sido realizada, os valores retidos já teriam sido reembolsados, porque, entretanto, decorreram os 24 meses de maturidade da participação direta ininterrupta;

16.          A este respeito, o RIT indica que “há que atender à faculdade de devolução do imposto que tinha sido retido na fonte por não se verificar o requisito temporal de detenção da participação, estipulada no n.º 1 do art.º 95.º do CIRC, quando posteriormente se complete o período de 24 meses de detenção ininterrupta da participação. Isto é, caso a A... SGPS tivesse efetuado a retenção na fonte legalmente imposta sobre os dividendos pagos à B... BV em 2015-05-20 e em 2015-12-22 (1.815.716,70 euros x 2 = 3.631.433,40 euros), esta última teria a faculdade de solicitar à AT a sua devolução, no prazo de dois anos contados a partir da data em que se completasse o período de detenção de 24 meses previsto na alínea d) do n.º 3 do art.º 14.º do CIRC relativamente à participação definida na alínea c) do mesmo preceito”.

17.          Assim, “e atendendo a que, à data do início do presente procedimento relativo ao período de 2015 (2018-10-15) já se encontravam completados os 24 meses de detenção ininterrupta da participação detida pela B... BV na A... SGPS (…) não se procede à correção do IRC que deveria ter sido deduzido e entregue nos termos da lei pela C... SGPS, no montante de 3.631.433,40 euros”.

18.          Dada a indisponibilidade do imposto entre a data em que devia ter sido entregue ao Estado e a data em que devia ter sido restituído, a AT considerou que se impunha a “liquidação de juros compensatórios por dois períodos de tempo:

a.            Contados desde 2015-06-21 (dia imediato àquele em que o imposto de 1.815.716,70 euros, relativo aos dividendos pagos em 2015-05-20, devia ter sido entregue pelo sujeito passivo ao Estado, nos termos do n.º 6 do artigo 94.º do CIRC), até 2016-04-08 (data em que se efetivou o cumprimento do requisito temporal de detenção da participação exigida); e

b.            Contados desde 2016-01-21 (dia imediato àquele em que o imposto de 1.815.716,70 euros, relativo aos dividendos pagos em 2015-12-22, devia ter sido entregue pelo sujeito passivo ao Estado, nos termos do n.º 6 do artigo 94.º do CIRC), até 2016-04-08 (data em que se efetivou o cumprimento do requisito temporal de detenção da participação exigida)”;

19.          Nestes termos, o valor de juros compensatórios a apurar “em observância com o estabelecido no n.º 1, e na al. a do n.º 3 do art.º 102.º do CIRC, conjugados com os n.ºs 1, 3 e 10 do art.º 35.º da Lei Geral Tributária (LGT) ascende[ria] a 74.021,55 euros”;

20.          No dia 21 de janeiro de 2019, a AT notificou a Requerente da demonstração de liquidação de retenções na fonte de IR n.º 2019..., que integra as seguintes liquidações oficiosas:

a.            A nota de apuramento de retenções na fonte n.º 2019..., na qual é apurado o valor de € 3.631.433,40 (três milhões seiscentos e trinta e um mil quatrocentos e trinta e três euros e quarenta cêntimos) a título de imposto relativo aos meses de maio e de dezembro de 2015;

b.            A liquidação de juros compensatórios n.º 2019..., que apura um montante a pagar de € 68.450,03 (sessenta e oito mil quatrocentos e cinquenta euros e três cêntimos) a título de juros compensatórios devidos pela indisponibilidade do imposto entre 23 de junho de 2015 e 31 de maio de 2016; e

c.            A liquidação de juros compensatórios n.º 2019..., que apura um montante a pagar de € 26.265,71 (vinte e seis mil duzentos e sessenta e cinco euros e setenta e um cêntimos) a título de juros compensatórios devidos pela indisponibilidade do imposto entre 21 de janeiro de 2016 e 31 de maio de 2016;

21.          A diferença entre o valor total apurado naquelas liquidações de juros compensatórios n.º 2019... e n.º 2019... (€ 94.715,74) e o valor indicado no Relatório de Inspeção Tributária (€ 74.021,55) deveu-se a um automatismo no sistema informático de liquidação e foi posteriormente anulada pela Administração Tributária no âmbito do procedimento de revisão oficiosa n.º ...2019...;

22.          No dia 1 de março de 2019, a Requerente apresentou uma Reclamação Graciosa contra aqueles atos tributários sustentando que:

a.            Os dividendos colocados à disposição da B... em 20 de maio e 22 de dezembro de 2015 encontram-se efetivamente isentos de tributação em Portugal, nos termos do disposto no artigo 14.º, n.º 3, do Código do IRC, uma vez que, nos 24 meses anteriores à distribuição, a B... manteve de forma ininterrupta uma participação global não inferior a 5% do capital social da REQUERENTE e não há qualquer justificação substantiva para desconsiderar o valor das participações indiretas na verificação da percentagem dessa participação global;

b.            Ao contrário do que parece ter sido assumido pela Administração Tributária no Relatório de Inspeção que fundamenta os atos contestados, o apuramento de juros compensatórios não é uma consequência automática da indisponibilidade da prestação tributária, dependendo de um pressuposto subjetivo que não foi demonstrado nem se verifica no presente caso – a culpa do contribuinte; e que

c.            A participação da B... no capital social da REQUERENTE foi adquirida em 9 de dezembro de 2013 (e não em 8 de abril de 2014), pelo que, mesmo que a tese vertida pela Administração Tributária no Relatório de Inspeção estivesse correta: (i) a distribuição de 22 de dezembro de 2015 sempre estaria isenta de tributação; e (ii) todos os juros liquidados pela Administração Tributária estariam mal calculados

23.          Na sequência do exercício do direito de audição prévia por parte da Requerente, a Administração Tributária reconheceu que a participação direta da B... na Requerente foi adquirida no dia 9 de dezembro de 2013 e não no dia 8 de abril de 2014;

24.          Na decisão de indeferimento parcial aqui contestada, que foi notificada à Requerente no dia 28 de novembro de 2019, através do Ofício n.º..., a AT manteve o entendimento vertido no RIT quanto aos pressupostos da isenção do imposto, mas reconheceu que as “liquidações de juros compensatórios têm de ser [parcialmente] ajustadas (ou anuladas)” e que “atento o pagamento indevido e em razão dos atos ora contestados serem imputados à Administração Tributária, são devidos juros indemnizatórios, nos termos do n.º 1 do art.º 43.º da LGT”, na mesma proporção;

25.          Em concreto, a AT desconsiderou metade (€ 1.859.570,00) do valor de IRC que serviu de base à liquidação dos juros compensatórios na nota de apuramento de retenções na fonte n.º 2019..., por entender que a distribuição de 22 de dezembro de 2015 já ocorreu depois de decorridos dois anos sobre a aquisição da participação direta que a B... detém no capital social da Requerente;

26.          Em consequência anulou parcialmente os juros compensatórios inicialmente liquidados, corrigindo a data do termo final da contagem dos que se referem à distribuição de 20 de maio de 2015 e eliminando os que se referiam à distribuição de 22 de dezembro de 2015;

27.          Em conformidade com aquela decisão de indeferimento parcial, no final do mês de janeiro de 2020, a Requerente foi notificada das demonstrações de acerto de contas n.º 2020... e n.º 2020..., nas quais a AT reflete a anulação parcial dos juros compensatórios inicialmente apurados nas liquidações n.º 2019... e n.º 2019..., no montante total de € 40.393,48 (quarenta mil trezentos e noventa e três euros e quarenta e oito cêntimos);

28.          Tendo em conta o exposto, dos € 94.715,74 de juros compensatórios inicialmente liquidados, a AT já anulou: (i) € 20.694,19 no âmbito do procedimento de Revisão Oficiosa n.º ...2019...; e (ii) € 40.393,48 no âmbito do procedimento de Reclamação Graciosa n.º ...2019...;

 

B. Factos não provados

Não se provaram outros factos com relevância para a decisão arbitral.

C. Fundamentação da matéria de facto

A matéria de facto dada como provada assenta na prova documental apresentada.

Os factos dados como provados são aqueles que o Tribunal considera relevantes, não se considerando factualidade dada como não provada que tenha interesse para a decisão.

A matéria de facto foi fixada por este Tribunal e a convicção ficou formada com base nas peças processuais e requerimentos apresentados pelas Partes, bem como nos documentos juntos aos autos.

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, conforme n.º 1 do artigo 596.º e n.os 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º do artigo 29.º do RJAT e consignar se a considera provada ou não provada, conforme n.º 2 do artigo 123.º Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a decisão, em relação às provas produzidas, na íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC.

Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g. força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.

 

V. DO DIREITO:

A questão decidenda nos presentes autos prende-se, essencialmente, com a interpretação do artigo 14.º, n.º 3, alínea c) do Código do IRC na redação em vigor em 2015.

Nos termos do disposto nos artigos 94.º e 98.º do Código do IRC, conjugados com disposto no artigo 10.º, n.º 1, da Convenção entre a República Portuguesa e o Reino dos Países Baixos para Evitar a Dupla Tributação e Prevenir a Evasão Fiscal em Matéria de Impostos sobre o Rendimento e o Capital, os lucros distribuídos por uma entidade residente em território português a uma entidade residente na Holanda são, em princípio, sujeitos a tributação em Portugal, mediante retenção na fonte com carácter definitivo, à taxa de 10%.

Na redação em vigor em 2015, o artigo 14.º, n.º 3 do Código do IRC isentava de imposto os lucros e as reservas que uma entidade residente em território português, sujeita e não isenta de IRC, colocasse à disposição de uma entidade residente noutro Estado-Membro da União Europeia.

O Código do IRC então em vigor dispunha da seguinte forma:

“3 - Estão isentos os lucros e reservas que uma entidade residente em território português, sujeita e não isenta de IRC ou do imposto referido no artigo 7.º e não abrangida pelo regime previsto no artigo 6.º, coloque à disposição de uma entidade que:

a) Seja residente:

1) Noutro Estado membro da União Europeia;

2) Num Estado membro do Espaço Económico Europeu que esteja vinculado a cooperação administrativa no domínio da fiscalidade equivalente à estabelecida no âmbito da União Europeia;

3) Num Estado com o qual tenha sido celebrada convenção para evitar a dupla tributação, que preveja cooperação administrativa no domínio da fiscalidade equivalente à estabelecida no âmbito da União Europeia;

b) Esteja sujeita e não isenta de um imposto referido no artigo 2.º da Diretiva n.º 2011/96/UE, do Conselho, de 30 de novembro, ou de um imposto de natureza idêntica ou similar ao IRC desde que, nas situações previstas na subalínea 3) da alínea anterior, a taxa legal aplicável à entidade não seja inferior a 60 % da taxa do IRC prevista no n.º 1 do artigo 87.º;

c) Detenha direta ou direta e indiretamente, nos termos do n.º 6 do artigo 69.º, uma participação não inferior a 5% do capital social ou dos direitos de voto da entidade que distribui os lucros ou reservas;

d) Detenha a participação referida na alínea anterior de modo ininterrupto, durante os 24 meses anteriores à colocação à disposição.”

Alega a Requerente que a interpretação da expressão “direta, ou direta e indiretamente nos termos do artigo 69.º”, constante do artigo 14.º, n.º 3, alínea c) e sufragada pela Administração tributária não se coaduna com a intenção que levou o legislador a consagrar o regime de isenção previsto no artigo 14.º, n.º 3, do Código do IRC e conduz a um resultado totalmente injustificado.

Mais entende a Requerente que o objetivo central deste regime de isenção é a eliminação da dupla tributação dos lucros e reservas distribuídos a beneficiários que mantêm com a empresa distribuidora uma relação de participação: (i) razoavelmente estável; e (ii) economicamente relevante, em termos semelhantes aos estabelecidos para as distribuições a sociedades residentes.

Em sentido diverso, a Requerida AT considera que a expressão “direta, ou direta e indiretamente nos termos do artigo 69.º”, utilizada pelo legislador na qualificação das participações relevantes, refere-se apenas aos casos em que a entidade beneficiária tenha detido uma participação direta nos 24 meses anteriores à distribuição, admitindo-se que essa participação direta (obrigatória) seja complementada por participações indiretas para efeitos de apuramento dos 5% do capital social ou dos direitos de voto da entidade distribuidora.

A questão central que se coloca relaciona-se, portanto, com a interpretação do artigo 14.º, n.º 3, alínea c) do CIRC.

Aqui chegados, pode afirmar-se que uma interpretação literal da norma conduzirá à necessidade de se considerar a detenção simultânea de uma participação direta com uma participação indireta, ficando excluída a possibilidade de se considerar apenas participações indiretas para efeitos de aplicação do regime de isenção. Este é, aliás, o entendimento da AT.

Em sentido oposto, a Requerente entende que tal interpretação literal “não atende à teleologia da norma, nem ao funcionamento do sistema do IRC”.

Vejamos.

A interpretação de normas tributárias observa as mesmas regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis (cfr. artigo 11.º da Lei Geral Tributária).

Ora é indiscutível que toda a norma jurídica carece de interpretação mesmo nos casos em que parece evidente um "claro teor literal".

A interpretação há-de levar-se a efeito seguindo uma metodologia hermenêutica que, tendo em conta todos os elementos de interpretação - gramatical, histórico, sistemático e teleológico (este a impor que o sentido da norma se determine pela ratio legis) -, permita determinar o adequado sentido normativo da fonte correspondente ao "sentido possível" do texto (letra) da lei.

Com efeito, resulta do artigo 9.º do Código Civil que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir o pensamento legislativo, tendo sobretudo em consideração a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (n.º 1), não podendo, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (n.º 2); na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (n.º 3).

Atente-se na lição de BAPTISTA MACHADO , a propósito da posição do Código Civil perante o problema da interpretação:

“O artigo 9.º deste Código, que à matéria se refere, não tomou posição na controvérsia entre a doutrina subjectivista e a doutrina objectivista. Comprova-o o facto de se não referir, nem à "vontade do legislador", nem à "vontade da lei", mas apontar antes como escopo da actividade interpretativa a descoberta do "pensamento legislativo" (art. 9.º, 1.º). Esta expressão, propositadamente incolor, significa exactamente que o legislador não se quis comprometer. [...]

Começa o referido texto por dizer que a interpretação não deve cingir-se à letra mas reconstituir a partir dela o "pensamento legislativo". Contrapõe-se letra (texto) e espírito (pensamento) da lei, declarando-se que a actividade interpretativa deve - como não podia deixar de ser - procurar este a partir daquela.

A letra (o enunciado linguístico) é, assim, o ponto de partida. Mas não só, pois exerce também a função de um limite, nos termos do art. 9.º, 2: não pode ser considerado como compreendido entre os sentidos possíveis da lei aquele pensamento legislativo (espírito, sentido) "que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso".

Aqui chegados importa averiguar se o legislador, ao referir-se à detenção “direta ou direta e indiretamente” (cfr. artigo 14.º, n.º 3, alínea c) do CIRC 2015) quis, no segundo segmento (“direta e indiretamente”) abranger a detenção simultânea de participações sociais diretas e indiretas ou, de forma diversa, a detenção alternativa de participações sociais diretas e indiretas.

Se o elemento literal é, como vimos, muito claro – o legislador quis abranger a detenção simultânea de participações sociais diretas e indiretas – importa, porém, averiguar e tentar reconstituir, a partir da letra da lei, o "pensamento legislativo".

Aqui, deve observar-se que o legislador, quando quis abranger, no Código do IRC, a possibilidade de detenção alternativa de participações sociais diretas ou indiretas, o fez de forma expressa.

De forma diversa, em múltiplas normas do Código do IRC o legislador refere-se à detenção, “direta ou indireta”, de participações sociais.

Assim sucede, de forma exemplificativa, nos artigos 18.º, n.º 9, alínea a); 23.º-A, n.º 3, alíneas c) e d); 52.º, n.º 9, alínea d); 52.º, n.º 10; 63.º, n.º 4, alíneas a) e b); 68.º, n.º 3; 69.º, n.º 3; 69.º, n.º 5, alínea b); 86.º-A, n.º 1, alínea d); 91.º, n.º 1, alínea b) e 91.º-A, n.º 3, alínea a), todos do Código do IRC.

Registe-se ainda que, no CIRC 2015, o legislador referia-se apenas por duas vezes à detenção “direta ou direta e indiretamente” de participações sociais: justamente no artigo 14.º, n.º 3, alínea c) sub judice e no artigo 51.º, n.º 1, alínea a) (referente ao vulgarmente designado regime de “participation exemption”) do Código do IRC.

Ora, a esta luz, também se pode concluir que o legislador quis, clara e inequivocamente, distinguir situações em que a detenção simultânea de participações sociais diretas e indiretas se deve verificar – como ocorria no artigo 14.º, n.º 3, alínea c) do Código do IRC então em vigor – da possibilidade de detenção alternativa de participações sociais diretas ou indiretas, como sucedia nas múltiplas normas do Código do IRC anteriormente referidas de forma exemplificativa.

Ainda assim, importa verificar qual foi o pensamento do legislador neste domínio.

Analisado o relatório final da Comissão para a reforma do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas – 2013 , que esteve na base das alterações ao Código do IRC em vigor em 2015, verifica-se a Comissão não quis consagrar uma solução como a que passou a constar do artigo 14.º, n.º 3, alínea c) do CIRC 2015.

Na verdade, a Comissão propunha a seguinte redação para o artigo 14.º, n.º 3, alínea c) (cfr. página 111 do relatório):

c) Detenha direta ou indiretamente, nos termos do n.º 6 do artigo 69.º, uma participação não inferior a 2% do capital social ou dos direitos de voto da entidade que distribui os lucros ou reservas.

De forma idêntica, a Comissão propunha a seguinte redação para o artigo 51.º (cfr. página 112 do relatório):

                Eliminação da dupla tributação económica de lucros e reservas distribuídos

1. Os lucros e reservas distribuídos a sujeitos passivos de IRC com sede ou direção efetiva em território português não concorrem para a determinação do lucro tributável, desde que se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos:

a) O sujeito passivo detenha direta ou indiretamente, nos termos do n.º 6 do artigo 69.º, uma participação não inferior a 2% do capital social ou dos direitos de voto da entidade que distribui os lucros ou reservas;

Em síntese, a Comissão para a reforma do IRC, em 2013, propunha que a detenção alternativa de participações sociais diretas ou indiretas permitisse ao contribuinte beneficiar da isenção, para efeitos do artigo 14.º, n.º 3.

Porém, esta sugestão da Comissão não foi acolhida na redação final das alterações ao Código que vieram a ser aprovadas.

Não se pode considerar que tal se deveu a erro, omissão ou desatenção.

Pelo contrário.

O legislador quis, de forma propositada, modificar a proposta da Comissão e afirmar que, para efeitos do disposto no artigo 14.º, n.º 3, alínea c), segundo segmento do Código do IRC, a detenção de participações sociais diretas e indiretas deve ser simultânea.

A Requerente entende que esta interpretação “não atende à teleologia da norma, nem ao funcionamento do sistema do IRC.”

Sendo certo que o disposto no artigo 14.º, n.º 3, alínea c) não segue a regra adoptada na maior parte das disposições do Código do IRC – detenção “direta ou indireta” - não pode, contudo, deixar de se interpretar a lei não apenas com base na letra desta mas também atendendo à ratio legis e ao pensamento do legislador, como vimos anteriormente.

É legítimo assumir-se, de jure condendo, uma postura mais ou menos crítica do legislador – que, porventura, terá motivado a posterior alteração ao artigo 14.º e a aprovação da redação em vigor do CIRC. A Requerente assinala essa crítica quando defende que o resultado prático da aplicação do artigo 14.º, n.º 3 do CIRC 2015 “conduz a uma solução injusta e sem sentido”.

Porém o juízo crítico que a Requerente faz sobre a lei não coloca em causa a interpretação anteriormente feita nem legitima que se proceda a uma interpretação contra legem da norma, naturalmente inadmissível.

Como foi referido anteriormente, de harmonia com o artigo 9.º, n.º 2 do Código Civil, não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

Ora o resultado da tarefa interpretativa in casu é, como vimos, insofismável: o legislador pretendeu que, para efeitos do disposto no artigo 14.º, n.º 3, alínea c), segundo segmento, do Código do IRC, a detenção de participações sociais diretas e indiretas fosse simultânea.

Como foi dado como provado, a B... BV detinha uma participação de 38,67% na Requerente há mais de 24 meses, que se cingia a uma participação indireta,

A participação direta na Requerente, por parte da B... BV, passou a ser detida desde 08.04.2014 (data do registo das ações na Holanda).

Por esta razão, a Requerente estava obrigada a proceder à retenção na fonte sobre os dividendos distribuídos à B... em 20 de maio e 22 de dezembro de 2015 uma vez não tinha enquadramento na alínea d) do n.º 3 do artigo 14.º do CIRC.

Não assiste, por isso, razão à Requerente neste ponto.

A Requerente considera ainda que os pressupostos para a liquidação de juros compensatórios não estão preenchidos, por a AT não ter demonstrado a sua culpa.

Vejamos.

De harmonia com o artigo 35.º da Lei Geral Tributária (LGT), “são devidos juros compensatórios quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito da substituição tributária.”

Considera-se que se está perante um “facto imputável ao sujeito passivo” quando puder formular-se um juízo de censura em relação à conduta do sujeito passivo.

No caso em apreço a Requerente não entregou aos cofres do Estado a retenção de IRC a que se encontrava obrigada na qualidade de substituta tributária, de acordo com o artigo 94.º, n.º 6 do CIRC (cfr. consta do RIT, páginas 6 a 12, cumprindo-se assim o disposto no artigo 77.º, n.º 1 da LGT).

Podendo não se concordar, de jure condendo, com a redação do artigo 14.º, n.º 3 do CIRC, certo é que a mesma não suscitava uma dúvida razoável ao intérprete.

Na verdade, lendo o anteriormente citado relatório da Comissão de Reforma do IRC, de 2013, e o Código entretanto aprovado, é possível alcançar uma conclusão clara e perceptível sobre a interpretação a dar ao artigo 14.º, n.º 3 do CIRC de 2015 e a intenção do legislador.

Neste contexto, resultando clara a interpretação do disposto no artigo 14.º, n.º 3 do CIRC 2015, sabendo-se que a retenção de IRC devia ter sido operada pela Requerente e que a ignorância da lei não aproveita a ninguém (cfr. artigo 6.º do Código Civil), não pode deixar de se concluir que a não entrega aos cofres do Estado resultou de facto imputável à Requerente (cfr. artigo 102.º, n.º 1 do CIRC) pelo que estão verificados os pressupostos para a liquidação de juros compensatórios (cfr. artigos 35.º da LGT e 102.º, n.º 1 do CIRC).

Não procede, também aqui, a pretensão da Requerente.

 

VI. DECISÃO:

Nestes termos, decide o Tribunal Arbitral:

a.            Julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral;

b.            Condenar a Requerente no pagamento das custas do processo;

 

VII. VALOR DO PROCESSO:

De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 33.628,07 (trinta e três mil seiscentos e vinte e oito euros e sete cêntimos).

 

VIII. CUSTAS:

Nos termos do n.º 4 do artigo 22.º do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 1.836 (mil oitocentos e trinta e seis euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.

 

Registe-se e notifique-se.

 

Lisboa, 19 de novembro de 2020

O Árbitro Singular

Nuno Cunha Rodrigues