Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº '33/2012-T
Data da decisão: 2012-07-12   
Valor do pedido: € 0,00
Tema: Decisão interlocutória
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Processo n.º 33/2012-T

 

 

 

Os árbitros Dr. Jorge Manuel Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Dr. Pedro Pais de Almeida e Dr. Álvaro Caneira (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 29-5-2012, acordam no seguinte:

 

  1. Relatório

 

…, NIPC … (doravante referida como «Requerente»), requereu, ao abrigo do artigo 30.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante RJAT), a constituição de tribunal arbitral em matéria tributária, com vista à declaração de ilegalidade da liquidação de IRC, derrama e juros compensatórios n.º …, datada de 1-4-2009, em que foi fixado o valor a pagar de € 315.831,61, sendo € 41.306,61 de juros compensatórios.

A Requerente apresentou, em 1-6-2009, no Tribunal Tributário de Lisboa impugnação judicial da referida liquidação, que aí correu termos com o n.º … BELRS, reafirmado no presente processo arbitral, por remissão para a petição inicial daquele processo judicial tributário, os vícios que aí imputou ao acto impugnado, que são a falta de credenciação dos funcionários da Administração Tributária que procederam à inspecção externa e a caducidade do direito de liquidação.

Para além desses vícios, a Requerente, no presente processo arbitral, suscita a questão prévia da possibilidade de ampliar a causa de pedir ao abrigo do regime transitório estabelecido no art. 30.º do RJAT e, no pressuposto de que o pode fazer, imputa ao acto de liquidação referido ilegalidade por violação do princípio da neutralidade fiscal subjacente às operações de fusão, cisão e entrada de activos (art. 67.º e seguintes do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas) e violação do disposto nos arts. 17.º e 21.º do mesmo Código, por o montante de € 1.000.000 referente ao empréstimo contraído em 1-7-2004 não preencher os requisitos legais para ser considerado como variação patrimonial positiva, pelo que não deveria ter sido acrescido ao quadro 07 da declaração modelo 22 referente ao exercício de 2004.

A Requerente imputa ainda ao acto referido ilegalidade quanto à liquidação de juros compensatórios, vício de forma, por falta de fundamentação, e violação do art. 35.º da LGT.

Finalmente, a Requerente pede ainda indemnização pela prestação de garantia indevida.

A Requerente, além de vários outros documentos, juntou ao processo um parecer, identificado como «… – Parecer Documento n.º 1. pdf», em que, além do mais, se formulam as seguintes conclusões:

Por tudo quanto foi exposto, concluímos pela manifesta ilegalidade da correcção efectuada pelos SIT no âmbito do seu relatório de inspecção tributária por referência ao exercício de 2004, e da qual resultou a liquidação adicional de imposto alegadamente em falta, no montante de Euro 274.525,00, acrescido de juros compensatórios, no valor de Euro 41.306,61. Com efeito:

i) À data dos factos, encontravam-se abrangidas pelo regime especial de neutralidade fiscal, nomeadamente, as operações de cisão-fusão através das quais uma sociedade cindida destaca partes do seu património para as fundir com uma sociedade já existente, cumpridos que estivessem os demais requisitos e formalidades legalmente previstos, nos termos dos artigos 67.º a 72.º do Código do IRC, cuja verificação nunca foi questionada pelos SIT;

ii) Nenhum dos requisitos substantivos e formalidades estatuídos naqueles preceitos legais fazia depender a aplicação do regime especial de neutralidade fiscal de um julgamento casuístico e subjectivo da natureza dos elementos transferidos;

iii) Ademais, de acordo com o regime especial de neutralidade fiscal, a transferência do património destacado no âmbito de uma operação de cisão não gera quaisquer resultados fiscais (positivos ou negativos), em sede de IRC, na esfera das sociedades cindidas, não existindo qualquer norma que preveja uma mera ausência parcial de efeitos fiscais, em função da natureza do património transferido;

iv) Acresce o facto de o empréstimo de Euro 1.000.000,00 transferido para a esfera da … SGPS, em consequência da operação de cisão-fusão do património da …, dever ser entendido como uma dívida contraída para o funcionamento da … Imobiliária, porquanto o mesmo foi integralmente transferido para a esfera daquela entidade, sob a forma de suprimentos, com o objectivo de:

garantir a manutenção da capacidade da … Imobiliária para fazer face aos compromissos assumidos perante terceiros (fornecedores), atentas as carências de tesouraria da … que a impediam de liquidar as facturas recebidas daquela entidade em resultado das obras de modernização da sua unidade fabril executadas no exercício de 2004; e

indirectamente, assegurar o financiamento da obra da …, que envolvia uma ampliação e modernização da sua unidade fabril, a qual se revelava fundamental para o crescimento do Grupo;

 

v) Neste sentido, tendo a … Imobiliária e a … sido transferidas para a esfera da … SGPS no âmbito daquela operação de cisão-fusão, resulta claro o racional económico subjacente à inclusão da dívida contraída pela … junto do … na parte do património destacado, na medida em que, efectivamente, esta está associada ao “funcionamento” da actividade desenvolvida pelas referidas participadas – ao contrário do que alegam os SIT; e

vi) Não obstante as alegações aduzidas pelos SIT em sede de relatório de inspecção tributária, em consequência da operação de cisão-fusão houve lugar a uma redução do capital próprio da …, não podendo esta sociedade ter, em momento algum, ficado valorizada em Euro 1.000.000,00!

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira respondeu defendendo, em conclusão, que:

– deve ser ordenada a suspensão da instância arbitral até que a requerente proceda à junção da prova da promoção da extinção da instância referente aos autos de Impugnação Judicial n.º … BELRS, que corre termos na … Unidade Orgânica do Tribunal Tributário de Lisboa;

– deve ser julgada procedente, por provada, a excepção invocada de ilegalidade da ampliação da causa de pedir, devendo a entidade requerida ser absolvida do pedido com as demais consequências legais;

– deve ser julgada procedente, por provada, a excepção de incompetência do tribunal arbitral para conhecer do pedido de indemnização por prestação de garantia indevida, ou caso assim não se entenda a excepção de ilegalidade de ampliação da causa de pedir e do pedido, ou, ainda, caso assim não se entenda, a excepção de intempestividade da dedução do referido pedido, devendo a entidade requerida ser absolvida do pedido com as demais consequências legais;

– o presente pedido de pronúncia arbitral ser julgado improcedente, por não se verificar a alegada caducidade, absolvendo-se em conformidade a Entidade Requerida do pedido.

 

Por acórdão de 18-6-2012 foi indeferido o pedido de suspensão da instância formulado pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

Na reunião referida no art. 18.º do RJAT, foi decidido proferir uma decisão interlocutória sobre a excepção apresentada pela Autoridade Tributária e Aduaneira sobre a admissibilidade de ampliação da causa de pedir, de cujo sentido depende a apreciação da utilidade de inquirição da testemunha apresentada pela Requerente.

Em 21-6-2012, a Requerente apresentou um documento escrito com a sua resposta à excepção de ampliação da causa de pedir.

Sendo proferido um acórdão interlocutório e tendo as partes já tido oportunidade de se pronunciarem sobre todas as excepções é conveniente apreciar desde já todas as questões prévias/excepções suscitadas.

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos arts. 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do RJAT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (arts, 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

 

2. Matéria de facto

Dão-se como provados os seguintes factos com potencial relevo para a decisão, com indicação dos documentos que, não sendo impugnados, motivam a decisão:

 

  1. Em 25-3-2004, a Requerente …, elaborou um projecto de fusão/cisão (documentos n.º 1A, 1B, 1C. e páginas 11-17 do documento n.º 2, juntos com o requerimento inicial, cujo teor se dá como reproduzido);

  2. Em documento datado de 18-5-2004, a Requerente, a …, S.A, a …, LDA e a …, S.G.P.S.,S.A. requereram à Senhora Ministra de Estado e das Finanças isenções de Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis, Imposto do Selo e de emolumentos para as operações relativas ao referido projecto de fusão/cisão, nos termos que constam de páginas 46 a 56 do documento n.º 2 junto com o requerimento inicial, cujo teor se dá como reproduzido;

  3. Em 1-7-2004, foi celebrado entre o …, S.A., e a Requerente o contrato de mútuo cuja cópia consta de páginas 79 a 83 do documento n.º 2, junto com o requerimento inicial, cujo teor se dá como reproduzido, contrato esse pelo qual aquele banco concedeu à Requerente um empréstimo no montante de € 1.000.000, convencionando-se, além do mais, no ponto 2 da cláusula 1.ª, que «o referido empréstimo destina-se a apoio ao investimento»;

  4. Por despacho de 23-11-2004, proferido pelo Senhor Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, foi deferido o pedido de isenções referido na alínea b) (página 57 do documento n.º 2 junto com o requerimento inicial, cujo teor se dá como reproduzido);

  5. Através de escrituras efectuadas em 13-12-2004, no 2.º Cartório Notarial de …, a Requerente efectuou o processo de fusão/cisão, através do qual as empresas …, LDA, foram incorporadas e foram destacados/cindidos da empresa incorporante, algumas partes de património e incorporadas nas empresa …, LDA. e …– SGPS, SA (relatório da inspecção, a fls. 10-11 e 17 do documento n.º 2 junto com o requerimento inicial);

  6. A cisão de parte do património da impugnante …, S.A com a …, LDA, e a …SGPS, SA., visou a reestruturação do GRUPO …, o qual tem como um dos principais objectivos a organização empresarial, bem como a concentração das participações sociais numa sociedade exclusivamente vocacionada para esse fim.

  7. No âmbito dessa fusão/cisão, foram transferidas da Requerente para a …, SGPS, S.A., as obrigações decorrentes de um contrato de mútuo de € 7.500.000, celebrado em 5-11-2002 entre o …, SA, Sociedade Aberta e a Requerente, cuja cópia consta de páginas 60 a 78 do documento n.º 2 junto com o requerimento inicial, cujo teor se dá como reproduzido, em que, além do mais foi convencionado que «os fundos mutuados ao abrigo do presente CONTRATO destinam-se exclusivamente a ser utilizados pela MUTUÁRIA na aquisição do capital social da sociedade designada de “ …, SA”, sociedade comercial matriculada no Registo Comercial de …, sob o fls. 00054, obrigando-se a MUTUÁRIA a não dar aos fundos outro destino ou utilização».

  8. A Administração Tributária procedeu a uma inspecção à Requerente, relativa ao ano de 2004, baseada na Ordem de Serviço n.º …, emitida em 31-8-2007, pelos Serviços de Inspecção Tributária, da Direcção de Finanças de Lisboa (páginas 11 e 12 do documento n.º 1 e página 86 do documento n.º 2, juntos com o requerimento inicial, cujo teor se dá como reproduzido);

  9. A Ordem de Serviço referida apresentada à Requerente pelos funcionários da Administração Tributária que procederam à inspecção não continha qualquer assinatura no local adequado para registar a ordem de proceder à inspecção (página 12 do documento n.º 1, junto com o requerimento inicial, cujo teor se dá como reproduzido);

  10. Na Ordem de Serviço referida na alínea h), a Administradora da Requerente … apôs a sua assinatura, em 10-9-2008, data que indicou, sob um texto com o seguinte teor: «Tomei conhecimento do conteúdo desta Ordem de Serviço, de que me foi entregue cópia» (página 12 do documento n.º 1 junto com o requerimento inicial);

  11. A inspecção terminou em 13-2-2009, data em que foi assinada a nota de diligência pelo administrador da Requerente … (páginas 11 do documento n.º 1, e 8 do documento n.º 2, juntos com o requerimento inicial, cujo teor se dá como reproduzido);

  12. Nessa inspecção foi elaborado relatório em que a Administração Tributária entendeu ter sido contabilizada indevidamente como custo referente ao objecto da fusão/cisão, a quantia do empréstimo no montante de € 1.000.000,00 concedido pelo …, S.A. em 1-7-2004, referido na anterior alínea c);

  13. Na sequência desse entendimento foi elaborado pela Administração Tributária o «Documento de Correcção Único» cuja cópia consta de páginas 9 a 16 do documento do processo administrativo junto aos autos, identificado como «P33 T 2012 – …», cujo teor se dá como reproduzido, em que, além do mais, se inscreveu a quantia de 1.000.000 de euros, no campo 7, para efeitos de apuramento do lucro tributável, a título de «variações patrimoniais positivas não reflectidas no resultado líquido (art.º 21.º)»;

  14. Ainda na sequência do entendimento referido na alínea l) e da correcção referida na alínea anterior, o lucro tributável da Requerente, que segundo o declarado era de € 664.069,16, foi corrigido para o lucro tributável de € 1.664.069,16 (documento n.º 2 junto com o requerimento inicial, cujo teor se dá como reproduzido);

  15. O relatório da inspecção referido na alínea l) foi notificado à Requerente em 5-3-2009 (página 3 do documento n.º 2, junto com o requerimento inicial);

  16. Em 1-4-2009, foi elaborada a liquidação de IRC n.º …, relativa ao ano de 2004, em que foi fixado o valor a pagar de € 315.831,61, sendo € 41.306,61 de juros compensatórios (cópia junta a fls. 10 e 11 do documento n.º 1, junto com o requerimento inicial, cujo teor se dá como reproduzido);

  17. A liquidação referida na alínea anterior foi notificada à Requerente em 20-4-2009 (data de recebimento indicada a fls. 10 do documento n.º 1, junto com o requerimento inicial, cujo teor se dá como reproduzido);

  18. Em 1-6-2009, a Requerente apresentou no Tribunal Tributário de Lisboa impugnação judicial da liquidação referida na alínea anterior, que aí correu termos com o n.º … BELRS, em que imputou ao acto de liquidação vícios de falta de credenciação dos funcionários que procederam à inspecção e caducidade do direito de liquidação (documento n.º 1 junto com o requerimento inicial, cujo teor se dá como reproduzido);

  19. Não foi paga a quantia liquidada, tendo sido instaurado no Serviço de Finanças de … em 10-6-2009, o Processo de Execução Fiscal n.º …, para a respectiva cobrança coerciva, o qual foi suspenso por associação ao processo de impugnação judicial referido na alínea anterior, encontrando-se ainda associada a garantia n.º … de 2009 (informações que constam da página 16 e da página 6 dos documentos do processo administrativo junto aos autos identificados como «P…» e «P…», respectivamente, e documento n.º 1-S, junto com o requerimento inicial);

  20. Em 25-1-2012, a Requerente apresentou o requerimento que deu origem ao presente processo arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, em que, além do mais, pretende ampliar a causa de pedir, imputando ao acto de liquidação vícios de «erro nos pressupostos de facto e erro na subsunção dos factos ao direito aplicável, nomeadamente as normas de neutralidade fiscal das cisões/fusões» e violação do disposto nos artigos 17.º, 21.° e 67.° e seguintes, todos do IRC (artigos 22.º e 25.º do pedido de constituição do tribunal arbitral) e imputando à liquidação de juros compensatórios vício de forma, por falta de fundamentação e vício de violação de lei por ofensa ao disposto no artigo 35.º da LGT.

 

3. Questão da possibilidade de alteração da causa de pedir

 

Antes de mais importa apreciar a questão da alteração da causa de pedir, quanto à liquidação do IRC e dos juros compensatórios, expressamente colocada pela Requerente como «questão prévia» no requerimento inicial, já que dela depende o objecto do presente processo arbitral.

A Autoridade Tributária e Aduaneira opõe-se a essa pretendida alteração e, pelo contrário, suscita uma correlativa excepção de «ampliação da causa de pedir referente ao acto de liquidação».

A «questão prévia» colocada pela Requerente e a «excepção» invocada pela Autoridade Tributária e Aduaneira reconduzem-se à mesma questão, mas a pretensão de alteração da causa de pedir apresentada pela Requerente não se limita à liquidação de IRC, estendendo-se também à liquidação de juros compensatórios, relativamente à qual é apresentada fundamentação específica.

Por isso, importa apreciar esta questão prévia/excepção também relativamente à possibilidade de ampliação da causa de pedir relativamente à declaração de ilegalidade da liquidação de juros compensatórios, apesar de a Autoridade Tributária e Aduaneira não invocar uma excepção, como fez em relação à questão da ampliação da causa de pedir em relação à declaração de ilegalidade da liquidação de IRC.

 

3.1. O art. 30.º do DL n.º 10/2011, de 20 de Outubro (doravante RJAT) estabelece o seguinte:

1 – Os sujeitos passivos podem, a partir da entrada em vigor do presente decreto-lei e até ao termo do prazo de um ano, submeter à apreciação de tribunais arbitrais constituídos nos termos do n.º 1 e da alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º, pretensões que tenham por objecto actos tributários que se encontrem pendentes de decisão em primeira instância nos tribunais judiciais tributários há mais de dois anos, com dispensa de pagamento de custas judiciais.

2 – A utilização da faculdade prevista no número anterior determina, a partir do momento em que o processo arbitral se considera iniciado, a alteração da causa de pedir ou a extinção da instância, de acordo com os fundamentos apresentados no pedido de pronúncia arbitral, impondo-se ao impugnante promovê-la no prazo de 60 dias, juntando cópia do pedido de pronúncia arbitral.

 

A referência que se faz neste n.º 2 a alteração da causa de pedir e a extinção da instância, reporta-se aos processos judiciais tributários cuja pendência de decisão em 1.ª instância há mais de dois anos permite o uso da faculdade de submissão da pretensão neles formulada aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD.

Na verdade, a parte final deste n.º 2, ao impor a quem utilize essa faculdade a obrigação de promover a alteração da causa de pedir ou a extinção da instância com junção de cópia do pedido de pronúncia arbitral, refere-se necessariamente a alteração da causa de pedir ou extinção da instância no processo judicial pendente, pois o processo arbitral inicia-se nesse momento e a alteração da causa de pedir ou extinção da instância dependem «dos fundamentos apresentados no pedido de pronúncia arbitral».

Isto é, conforme o requerente do processo arbitral formule neste processo algumas ou todas as pretensões que submetera à apreciação do Tribunal Tributário, ocorrerá nesse processo judicial tributário a alteração da causa de pedir (fundamentos dos pedidos) ou a extinção da instância.

Por isso, não se encontra naquela referência à alteração da causa de pedir suporte para entender que a causa de pedir pode ser alterada ou ampliada no processo arbitral, em relação à que foi invocada no processo judicial, quando o interessado use aquela faculdade.

Os princípios do inquisitório e busca da verdade material que a Requerente invoca no pedido de constituição do tribunal arbitral, tal como são formulados no contencioso tributário também não servem de suporte à admissibilidade de alterações à causa de pedir.

Na verdade, o art. 99.º da LGT, que define esses princípios na fase jurisdicional (tem a epígrafe «Princípio do inquisitório e direitos e deveres de colaboração processual»), conduz precisamente à conclusão contrária, ao estabelecer que «o tribunal deve realizar ou ordenar oficiosamente todas as diligências que se lhe afigurem úteis para conhecer a verdade relativamente aos factos alegados ou de que oficiosamente pode conhecer». ( 1 )

Como se vê por esta norma, a actividade inquisitória dos Tribunais é orientada pelo objectivo da busca da verdade material mas, quando a lei não permite o conhecimento oficioso de factos, não deixa de ser limitada pelos «factos alegados».

E nas acções constitutivas e de anulação a causa de pedir «é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido» (art. 498.º, n.º 4, do Código de Processo Civil).

Este conceito de causa de pedir, que foi adoptado no contencioso administrativo de anulação, antes da reforma operada em 2002-2004, reconduz-se a que mesmo que haja um único pedido de anulação do acto impugnado, se ele «se apoia em causas de pedir diversas, ou seja, em factos integradores de mais do que um vício, estes operam o desdobramento de uma pretensão, única na aparência, em questões distintas». ( 2 )

Isto é, no contencioso administrativo anterior àquela reforma, há tantos pedidos de anulação quantas as causas de pedir invocadas, quantos os factos integradores de vícios invocados, e o tribunal ao apreciar vícios diferentes dos invocados está a apreciar pedidos de anulação diferentes, cuja procedência pode ter efeitos diferentes. ( 3 )( 4 )

No novo contencioso administrativo a questão do objecto dos processos impugnatórios poderá colocar-se em termos diferentes, designadamente em face do preceituado no art. 95.º, n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, em que se impõe ao juiz, em processos desse tipo, os deveres de «pronunciar-se sobre todas as causas de invalidade que tenham sido invocadas contra o acto impugnado» e de «identificar a existência de causas de invalidade diversas das que tenham sido alegadas».

No entanto, independentemente da solução adequada daquela questão no contencioso administrativo da nova reforma ( 5 ), o certo é que este novo regime não foi transposto para o contencioso tributário, pelo menos no domínio de aplicação do processo de impugnação judicial.

Na verdade, apesar de a Lei Geral Tributária e o Código de Procedimento e de Processo Tributário terem sido alterados por várias vezes desde que entrou em vigor aquela reforma do contencioso administrativo, aquele art. 99.º da LGT continuou a estabelecer a limitação dos poderes de cognição dos tribunais pelos factos alegados.

Na mesma linha, o art. 124.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário continuou a falar, para além dos vícios do acto impugnado de conhecimento oficioso (inexistência e nulidade), nos «vícios arguidos que conduzam à sua anulação», o que revela que, quanto a vícios geradores de mera anulabilidade, se limitou os poderes de cognição dos tribunais tributários aos arguidos pelo impugnante, não se adoptando, assim, o conceito mais amplo de objecto do processo impugnatório que se pode encontrar no Código de Processo nos Tribunais Administrativos. Na verdade, aquela referência aos vícios arguidos tem ínsita a inadmissibilidade de conhecimento de vícios geradores de anulação que não tenham sido arguidos.

A esta luz, havendo, em processo de impugnação judicial, tantos pedidos de anulação quantas as causas de pedir invocadas, a referência que no art. 30.º, n.º 1, do RJAT se faz «pretensões que tenham por objecto actos tributários que se encontrem pendentes de decisão em primeira instância nos tribunais judiciais tributários há mais de dois anos» tem de ser interpretada como reportando-se aos pedidos aí formulados com as respectivas causas de pedir. São essas pretensões anulatórias que estão formuladas no processo pendente no tribunal tributário que podem ser submetidas aos tribunais arbitrais e não novas pretensões, e serão novas pretensões as que se baseiem em novas causas de pedir.

Por outro lado, a tese defendida pela Requerente no pedido de constituição do tribunal arbitral de que se pretendeu legislativamente conceder a possibilidade de alteração da causa de pedir como incentivo para os contribuintes recorrerem aos tribunais arbitrais (a par da isenção de custas), não pode ser aceite, pois nada no texto da lei revela essa intenção e os incentivos legislativos são instrumentos jurídicos que, para funcionarem adequadamente, não podem estar ocultos. Os incentivos não podem desempenhar a sua função se estiverem camuflados ou for duvidoso se existem, pelo que só se poderia concluir pela existência de uma intenção legislativa de estabelecer um incentivo se fosse claro que aquele art. 30.º o instituía. Por isso, a omissão no regime transitório que consta do art. 30.º do RJAT de qualquer referência explícita à possibilidade de alteração da causa de pedir na formulação de pedido de constituição do tribunal arbitral constitui um elemento interpretativo seguro e objectivo de que não se pretendeu consagrar tal hipotético incentivo, pois tem de presumir-se que o legislador exprimiu o seu pensamento em termos adequados (art. 9.º, n.º 3, do Código Civil).

Assim, é de concluir que o elemento literal, que é o ponto de partida de toda a interpretação jurídica aponta manifestamente no sentido de que com aquele regime transitório se pretendeu legislativamente apenas permitir a submissão à apreciação dos tribunais arbitrais dos litígios pendentes nos tribunais tributários, definidos pelas pretensões aí apresentadas com as respectivas causas de pedir.

E, por isso, deve-se optar por uma interpretação neste sentido, que é a que melhor e mais imediatamente corresponde ao significado natural das expressões verbais utilizadas, na pressuposição (imposta pelo nº 3 do artigo 9.º do Código Civil, que vale até que se demonstre que não é correcta) de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. ( 6 )

 

3.2. É certo, como diz a Requerente ao pronunciar-se sobre a questão prévia da proibição de alteração da causa de pedir, que «em casos excepcionais, quando se esteja perante questões de conhecimento oficioso ou quando os factos subjectivamente supervenientes para o impugnante lhe proporcionem a tomada de conhecimento de vícios de que não podia ter conhecimento no momento da apresentação de petição, será permitido ao impugnante invocar novos factos ou imputar novos vícios ao acto impugnado», o que tem suporte legal nos arts. 134.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, para os vícios geradores de nulidade, e nos arts. 86.º e 91.º, n.º 5, do CPTA e no art. 506.º do Código de Processo Civil.

Na verdade, no referido modelo de contencioso tributário (como no modelo do contencioso administrativo anterior à reforma de 2002-2004), para além da possibilidade de invocar a todo o tempo vícios de conhecimento oficioso, tem-se entendido uniformemente que pode conhecer-se de vícios geradores de anulabilidade não invocados na petição inicial quando eles tiverem chegado ao conhecimento do impugnante em momento posterior ao da sua apresentação, mas só esses. ( 7 )

O que significa, assim, que, quanto aos vícios do acto impugnado geradores de anulabilidade que o impugnante está em condições de poder invocar na petição inicial do processo de impugnação judicial, caduca o direito de os invocar se não fizer nesse momento tal invocação.

Este regime justifica-se por evidentes razões de ordem processual, pois a possibilidade de arguição de novos vícios ao longo do processo implicaria perturbações processuais que não se compaginam com a optimização processual e eficiência dos serviços de justiça. Se, numa adequada ponderação dos interesses em jogo, essas perturbações são de aceitar quando forem imprescindíveis para concretizar o direito do impugnante à tutela judicial efectiva, já não o serão quando esse direito lhe foi assegurado e o seu exercício só não foi assegurado por negligência do impugnante em invocar os vícios que podia invocar no prazo legal de impugnação de actos anuláveis. Isto é, a perda de direitos impugnatórios é uma consequência adequada e justa da actuação negligente do interessado, que deixou de invocar na peça inicial do processo impugnatório fundamentos de anulação que estava em condições de invocar e, por outro lado, não merecendo tutela essa actuação negligente, deve prevalecer o interesse público do incremento da eficiência dos meios disponíveis nos tribunais tributários, obstando a que a normal tramitação dos processos seja perturbada, eventualmente com necessidade de retrocesso a fases processuais já ultrapassadas.

Mas, sendo razões de ordem processual que justificam tal caducidade do direito de invocar novos vícios, pode questionar-se, pertinentemente, a validade de tais razões nos casos de uso da faculdade prevista no art. 30.º do RJAT, designadamente à face do princípio da estabilidade da instância, enunciado no art. 268.º do Código de Processo Civil. Na verdade, iniciando-se o processo arbitral com a apresentação da pretensão que tenha por objecto acto tributário que se encontre pendente de decisão em primeira instância nos tribunais judiciais tributários há mais de dois anos, não há qualquer perturbação para este processo arbitral derivada de invocação de novas causas de pedir, pois o processo pode seguir integralmente a sua tramitação normal, prevista para qualquer tipo de pretensões anulatórias. Com efeito, a opção legislativa, decerto discutível em termos de economia processual, que está subjacente ao referido art. 30.º não é a de o processo pendente no tribunal tributário ser transferido para o tribunal arbitral, mas de se iniciar neste um processo novo, como evidencia o facto de, no seu n.º 2, se impor ao impugnante no processo pendente no tribunal tributário a obrigação de promover a alteração da causa de pedir ou a extinção da instância, de acordo com os fundamentos apresentados no pedido de pronúncia arbitral: o processo pendente no tribunal tributário continua, no caso de se apenas uma parte dos fundamentos de anulação serem invocados no processo arbitral, ou extingue-se, se todos esses fundamentos também o forem da pretensão arbitral, mas, o processo judicial tributário em nenhum dos casos é transferido para o CAAD.

Porém, se é processualmente razoável e compatível com o princípio da estabilidade da instância essa possibilidade de invocação no pedido de constituição do tribunal arbitral de vícios geradores de anulabilidade não invocados processo de impugnação judicial, ela é, desde logo, intolerável à face do princípio da igualdade.

Na verdade, a possibilidade de formular pedidos de constituição de tribunal arbitral prevista naquele art. 30.º é reconhecida apenas aos que têm pretensões que tenham por objecto actos tributários que se encontrem pendentes de decisão em primeira instância nos tribunais judiciais tributários há mais de dois anos.

Assim, o ressuscitar da possibilidade de ver declarada jurisdicionalmente a ilegalidade do acto impugnado com base em vícios em relação aos quais o direito de impugnação já se tinha extinguido traduzir-se-ia na atribuição de um privilégio injustificado aos impugnantes que têm pretensões pendentes nos tribunais tributários há mais de dois anos, pois tal possibilidade de voltarem a poder invocar jurisdicionalmente vícios geradores de anulabilidade, cujo direito a invocarem havia caducado, não é concedida também àqueles que têm pretensões pendentes nos tribunais tributários, mas há menos de dois anos.

Isto é, o renascimento de direitos de impugnação caducados reconhecido apenas aos que tinham processos pendentes nos tribunais tributários há mais de dois anos conduziria a uma situação discriminatória manifestamente arbitrária, por permitir, por exemplo, a invocação tardia de novos vícios geradores de anulabilidade relativamente actos de liquidação praticados há oito ou mais anos e não a permitir também relativamente a actos que foram praticados há menos de dois anos, quando as razões para penalizar a actuação negligente do impugnante são as mesmas em ambos os casos e a aceitação da possibilidade de impugnar actos praticados há menos tempo até é menos intensamente violadora do interesse da segurança jurídica, que se acentua com a passagem do tempo.

Por isso, sendo essa uma solução incompaginável com o princípio constitucional da igualdade (art. 13.º da Constituição da República Portuguesa), tem de interpretar-se aquele art. 30.º, em consonância com a Constituição e com o seu teor literal, com o alcance de apenas permitir aos impugnantes a apresentação de «pretensões que tenham por objecto actos tributários que se encontrem pendentes de decisão em primeira instância nos tribunais judiciais tributários há mais de dois anos», pretensões essas que são os pedidos de anulação indissociáveis das respectivas causas de pedir que foram apresentados no processo de tribunal tributário.

Para além disso, esta constatação de que a invocação de novas causas de pedir se reconduziria a ressuscitar direitos de impugnação perdidos, permite corroborar por outra via a interpretação para que aponta o referido elemento literal.

Na verdade, o RJAT foi elaborado em Novembro de 2010, numa situação de desesperado défice das finanças públicas e em que estava em processo de aprovação o Orçamento Estado para 2011, em que o Estado fez apelo a todos os meios admissíveis e talvez mesmo alguns inadmissíveis para reduzir as despesas públicas e incrementar a obtenção de receitas. Estaria manifestamente ao arrepio da directriz dessa política orçamental de diminuição do défice das finanças públicas, erigida em prioritário desígnio nacional, viabilizar a possibilidade de anulação de actos de liquidação de tributos com fundamento em vícios que os contribuintes já tinham perdido o direito de invocar perante os tribunais.

Por isso, também a coerência valorativa do sistema jurídico, que é postulada pela sua unidade (que o art. 9.º, n.º 1, do Código Civil impõe que seja salvaguardada na interpretação jurídica), como «as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada», sempre relevantes como elementos interpretativos (nos termos do mesmo art. 9.º, n.º 1, do Código Civil), mas de acentuada importância em situações de emergência, como era e é a que se vive no plano financeiro, apontam vigorosamente no sentido de o estabelecimento daquele regime transitório não admitir a impugnação de actos de liquidação com fundamento em vícios que os contribuintes já não tinham o direito de invocar perante os tribunais tributários, pois, para além de implicar incoerência valorativa criar novos direitos impugnatórios com conteúdo económico para alguns cidadãos num momento em que se está legislativamente em curso uma inusitada ofensiva estadual contra os direitos económicos de grande parte dos cidadãos (inclusivamente com reduções nominativas de salários, mesmo dos que exercem funções em entidades públicas, em regime de contratados, e a criação de formas de tributação extraordinária, como a sobretaxa sobre subsídio de Natal), tal significaria abrir a porta ao aumento de despesas (reembolso de tributos pagos e pagamento de juros indemnizatórios e indemnizações por garantias indevidas) e à diminuição da obtenção de receitas, como consequência da anulação e inexecução de actos de liquidação.

Assim, é de concluir que a globalidade dos elementos interpretativos pertinentes conduzem à interpretação de que aquele art. 30.º do RJAT não permite a invocação de no processo arbitral de vícios geradores de anulabilidade que não tenham sido invocados no processo de impugnação judicial e que o requerente estivesse em condições de invocar nesse processo.


 

3.3. Diferente da invocação de novos vícios é o «aperfeiçoamento dos argumentos de direito», pretendido pela Requerente no artigo 11.º do requerimento inicial, que não se confunde cm alteração da causa de pedir.

Vigora no nosso direito processual o princípio ius novit curia, que se traduz em o tribunal não estar limitado pelas alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 664.º do Código de Processo Civil).

Para além disso, ainda no que concerne a aperfeiçoamento dos argumentos de direito, é de salientar que, em processos impugnatórios, quando a causa de pedir é um determinado comportamento ilegítimo da Administração, que é invocado como fundamento do pedido de anulação, não há «necessidade de relacionar o facto com a fattispecie normativa», podendo «o juiz aplicar uma norma que o recorrente não tenha indicado, ou uma norma diferente daquela que por ele tenha sido erradamente indicada, desde que o recorrente tenha correctamente qualificado a conduta como ilegal, por referência ao conteúdo material de uma norma efectivamente existente». ( 8)

Por isso, é de entender, que não há obstáculo a que, no pedido de constituição do tribunal arbitral, os requerentes apresentem novos argumentos de direito e inclusivamente pareceres, que podem ser apresentados em qualquer estado do processo (art. 525.º do Código de Processo Civil).


 

3.4. A Requerente, no âmbito da questão prévia que coloca, defende também que «ainda que por mera hipótese não se entenda conhecer da ampliação da causa de pedir referente ao acto de liquidação de IRC, o mesmo não deverá acontecer no que respeita ao acto de liquidação de juros compensatórios», invocando como suporte desta pretensão a parte final do n.º 2 do art. 273.º do Código de Processo Civil em que se estabelece que «pode, além disso, o autor, em qualquer altura, reduzir o pedido e pode ampliá-lo até ao encerramento da discussão em 1.ª instância se a ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo».

Este fundamento de direito reporta-se a ampliação do pedido e não da causa de pedir, pelo que não pode, com base nele, a Requerente, ampliar a causa de pedir.

De qualquer forma, a anulação do acto de liquidação de juros compensatórios já foi pedida na petição apresentada no Tribunal Tributário de Lisboa (fls. 6 do documento n.º 1, junto com o requerimento inicial), pelo que no pedido de constituição do tribunal arbitral não há, quanto à liquidação de juros compensatórios, qualquer ampliação do pedido.

No que concerne a possibilidade de alteração da causa de pedir quanto ao pedido de anulação da liquidação dos juros compensatórios, é manifesto que a questão é precisamente idêntica à que se coloca em relação à alteração da causa de pedir quanto à liquidação de IRC, pelo que vale o que atrás se referiu sobre essa matéria, já que a Requerente apenas invoca o referido n.º 2 do art. 273.º do CPC como fundamento para a ampliação que pretende e esta não norma não permite a ampliação da causa de pedir.

Por isso, também quanto à impugnação da liquidação de juros compensatórios, o art. 30.º do RJAT não permite a invocação no processo arbitral de vícios geradores de anulabilidade que não tenham sido invocados no processo de impugnação judicial e que o requerente estivesse em condições de invocar nesse processo.


 

3.5. Estamos, agora, em condições de decidir a questão prévia colocada pela Requerente e determinar as questões que cabe apreciar relativamente ao mérito da causa.

Pelo que atrás se referiu, a admissibilidade da invocação neste processo arbitral de vícios do acto de liquidação do IRC e juros compensatórios que não foram invocados no processo de impugnação judicial n.º … BELRS, depende de os que apenas neste processo arbitral são invocados serem de conhecimento oficioso (designadamente geradores de nulidade ou inexistência) ou de a Requerente não estar em condições de os poder invocar naquele processo judicial.

Na petição apresentada no processo de impugnação judicial n.º… BELRS que correu termos no Tribunal Tributário de Lisboa, a ora Requerente invocou como fundamentos da anulação da liquidação de IRC e juros compensatórios:

– a falta de credenciação dos funcionários da Administração Tributária que procederam à inspecção externa, porque a ordem de serviço a que se refere o art. 46.º, n.º 2, do RCPIT «não se encontrava assinada pelo responsável hierárquico de direito»; no entender da ora Requerente «a falta de assinatura da Ordem de Serviço pela AF (responsável hierárquico), coloca em causa a credenciação dos funcionários que deram início ao acto da inspecção externa, junto da impugnante, acarretando desta forma a sua ineficácia e consequente nulidade do acto – acção inspectiva», «não se considerando assim a data de início do procedimento de inspecção ao exercício de 2004, na data de 10.09.2008, nem em qualquer outra» (artigos 10.º a 16.º da petição inicial);

– a caducidade do direito de liquidação: «dada a nulidade da ordem de serviço, por vício de forma, falta de assinatura, e prejudicada que está a sua notificação, jamais poderá haver lugar a qualquer suspensão ou interrupção do prazo de caducidade», pelo que a caducidade terá ocorrido por estar em causa o exercício de 2004 e a notificação da liquidação só ter sido efectuada em 20-4-2009 (artigos 17.º a 21.º da petição inicial). ( 9 )

 

No pedido de constituição deste Tribunal Arbitral, para além de reafirmar os vícios imputados ao acto impugnado na petição inicial do processo de impugnação judicial referido, para que remete, a Requerente invoca também:

– violação do princípio da neutralidade subjacente às operações de fusão, cisão e entrada de activos (arts. 67.º e seguintes do CIRC) e violação dos arts. 17.º e 21.º do mesmo Código, por a transferência da quantia de € 1.000.000, relativa ao empréstimo contraído em 1-7-2004 não preencher os requisitos para ser considerada como variação patrimonial positiva (artigos 20.º a 25.º do pedido de constituição do tribunal arbitral);

– ilegalidade do acto de liquidação de juros compensatórios, por vício de forma, por falta de fundamentação, e de violação de lei por ofensa ao disposto no artigo 35.º, n.º 1, da LGT, por, em suma, não se verificar o pressuposto de que o retardamento da liquidação do imposto se deva a facto imputável, a título de culpa, ao contribuinte, o que cabia à administração tributária demonstrar em face do preceituado nos artigos 74.º, n.º 1, da LGT e 342.º, n.º 1, do Código Civil (artigos 26.º a 47.º do pedido de constituição do tribunal arbitral).

 

Os vícios geradores de nulidade são de conhecimento oficioso, por força do disposto no art. 134.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, subsidiariamente aplicável, por força do disposto no art. 29.º, n.º 1, alínea d), do RJAT, mas a sanção de nulidade ( 10 ) apenas é aplicável nos casos em que aos actos falte qualquer dos seus elementos essenciais ou exista norma legal que preveja expressamente esta forma de invalidade, como decorre do art. 133.º do Código do Procedimento Administrativo, subsidiariamente aplicável, por força do disposto nos arts. 29.º, n.º 1, alínea d), do RJAT, 2.º, alínea c), da Lei Geral Tributária e 2.º, alínea d), do CPPT.

Sobre este ponto, a Requerente defende, em suma:

– Que a Administração Tributária lhe reconheceu o «direito à neutralidade fiscal da operação de cisão-fusão em sede de IRC, bem como deferiu o pedido de isenção de Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT) e Imposto do Selo (IS), por despacho de …/11/2004, do Exmo. Senhor Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais», indicando como prova o Documento n.° 1-N, anexo ao pedido de pronúncia arbitral;

– Que se trata de actos constitutivos de direitos e, por isso, insusceptíveis de revogação, de acordo com o disposto no artigo 140.º, n.° 1, alínea b) do CPA;

– Que a Administração Tributária, «ao corrigir o valor do empréstimo bancário transferido para a esfera da … SGPS no âmbito da operação de cisão-fusão, retira a neutralidade fiscal à operação, revogando, ainda que não expressamente, o anterior acto constitutivo de direitos da Requerente».

– E não se diga que o fez no prazo do respectivo recurso contencioso (1 ano), conforme impõe o artigo 141.°, n.° 1 do CPA para a revogação dos actos inválidos, pois a AT demorou cerca de 5 anos a tomar esta decisão;

– Ora, em face do exposto é forçoso concluir que o acto de liquidação de imposto e juros cuja anulação se pretende, é ilegal, por violação das normas sobre revogação dos actos.

– Acresce que o referido acto é nulo, por força do disposto na alínea h) do artigo 133.° do CPA, que estabelece que "são, designadamente, actos nulos: h) Os actos que ofendam os casos julgados".

– Ora, um acto constitutivo de direitos, como o reconhecimento da neutralidade fiscal da operação de cisão-fusão, em apreço nos presentes autos, que é irrevogável (nos termos acima referidos), não pode, após estar imutável na ordem jurídica (como sucede com o caso decidido ou caso resolvido) vir a ser revogado por um acto de liquidação adicional de imposto que põe em causa a referida neutralidade, sob pena de nulidade.

– Não podemos esquecer que o princípio do Estado de Direito se concretiza através de elementos retirados de outros princípios, designadamente, o da segurança jurídica e da protecção da confiança dos cidadãos. Tal princípio encontra-se expressamente consagrado no artigo 2.° da Constituição da República Portuguesa (CRP) e deve ser tido como um princípio politicamente conformado que explicita as valorações do legislador constituinte.

– Ora, os citados princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança assumem-se como princípios classificadores do Estado de Direito Democrático, e implicam um mínimo de certeza e segurança nos direitos das pessoas e nas expectativas juridicamente criadas a que está imanente uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado.

– Nesta medida, a figura do caso julgado ou decidido, próxima à figura do acto irrevogável, porque constitutivo de direitos e interesses legalmente protegidos, assenta nos supra referidos princípios, o que justifica a cominação de nulidade aos actos administrativos que o ofendam.

 

A alínea h) do n.º 1 do art. 133.º do CPA, prevê como vício gerador de nulidade a violação de caso julgado e não há qualquer decisão judicial transitada em julgado que tenha sido desrespeitada pela liquidação cuja ilegalidade a Requerente pretende ver declarada.

Por outro lado, independentemente da possibilidade ou não de aplicação do regime daquela alínea h) do n.º 2 do art. 133.º do CPA aos casos em que ocorre revogação ilegal de acto constitutivo de direitos, constata-se que, no caso em apreço, nenhum acto administrativo foi proferido em que a Administração Tributária aceite, mesmo implicitamente, que a transferência do referido empréstimo de € 1.000.000 se insira no âmbito da fusão/cisão, pois o requerimento de isenções de Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis, Imposto do Selo e de emolumentos para as operações relativas ao referido projecto de fusão/cisão foi apresentado em 18-5-2004 [alínea c) da matéria de facto fixada] e nessa data ainda nem sequer estava contraído o referido empréstimo [só veio a sê-lo em 1-7-2004, como se refere na alínea d) da matéria de facto fixada].

A razão pela qual a Administração Tributária entendeu, na inspecção referida e no acto de liquidação impugnado, que o referido empréstimo não beneficia do regime de neutralidade das operações de fusão/cisão é precisamente o facto de entender que esse empréstimo não se engloba nas operações de fusão/cisão, por não fazer parte do respectivo projecto, nem ter sido referido na escritura em que foi concretizada a operação. Ora, sobre este ponto, não se encontra qualquer decisão da Administração Tributária em sentido contrário, designadamente que tenha reconhecido implícita ou explicitamente à Requerente o direito de incluir os encargos derivados deste empréstimo no âmbito das transferências patrimoniais em que a fusão/cisão se concretizou.

Isto é, o direito que foi reconhecido à Requerente pelo referido despacho de 23-11-2004, proferido pelo Senhor Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, que foi o de beneficiar das isenções fiscais que requereu para as operações englobadas no projecto que apresentou, não foi desrespeitado pelo acto de liquidação impugnado, em que não é afectada qualquer das isenções concedidas, que são as de Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis, Imposto do Selo e de emolumentos para as operações relativas ao referido projecto de fusão/cisão. ( 11 )

Mesmo a entender-se que, implicitamente, o deferimento do pedido de concessão destas isenções implicava o reconhecimento de que as operações de cisão/fusão projectadas deveriam beneficiar do regime de neutralidade fiscal para efeitos de IRC, o certo é que aquele acto não reconheceu que a transferência do referido empréstimo de € 1.000.000 beneficiasse desse regime, pois não lhe era feita qualquer referência no referido projecto, elaborado antes de o empréstimo ter sido contraído .

Por outro lado, não se pode interpretar o referido acto de concessão de isenções fiscais como reconhecendo implicitamente o regime de neutralidade fiscal para transferências patrimoniais não indicadas no projecto apresentado à Administração Tributária, pois à face do art. 67.º, n.º 10, do CIRC (na redacção do Decreto-Lei n.º 221/2001, de 7 de Agosto), a aplicação desse regime depende do juízo que for efectuado relativamente à totalidade das transferências projectadas, já que esse regime «não se aplica, total ou parcialmente, quando se conclua que as operações abrangidas pelo mesmo tiveram como principal objectivo ou como um dos principais objectivos a evasão fiscal, o que pode considerar-se verificado, nomeadamente, nos casos em que as sociedades intervenientes não tenham a totalidade dos seus rendimentos sujeitos ao mesmo regime de tributação em IRC ou quando as operações não tenham sido realizadas por razões económicas válidas, tais como a reestruturação ou a racionalização das actividades das sociedades que nelas participam, procedendo-se então, se for caso disso, às correspondentes liquidações adicionais de imposto».

Isto é, não é afastada a hipótese de, mesmo nos casos em que se conclua que o regime de neutralidade fiscal deve ser aplicado, em geral, às transferências patrimoniais projectadas, ele seja afastado parcialmente, em relação a alguma ou algumas delas, se se formular uma conclusão que ela ou elas tiveram como principal objectivo ou como um dos principais objectivos a evasão fiscal.

Por isso, sendo o conhecimento das operações a efectuar imprescindível para a Administração Tributária formular estes juízos sobre a aplicação do regime de neutralidade fiscal, o acto praticado tem de ser interpretado como apenas reconhecendo implicitamente a aplicação desse regime para as operações que constavam do projecto de fusão, que foram as únicas que lhe foram comunicadas pelas entidades que requereram as referidas isenções.

Conclui-se, assim, que não foi praticado qualquer acto que reconhecesse que aquele empréstimo de € 1.000.000 beneficiaria de regime de neutralidade fiscal e, consequentemente, não pode o acto de liquidação impugnado enfermar de nulidade por revogar um acto constitutivo do direito a tal benefício ou por violar os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança dos cidadãos que são corolário do princípio do Estado de Direito democrático, consagrado no art. 2.º da Constituição da República Portuguesa.

Assim, não estando prevista a sanção de nulidade para qualquer dos novos vícios imputados pela Requerente no pedido de constituição do tribunal arbitral à liquidação de IRC e juros compensatórios, tem de se concluir que a sanção que lhes corresponde, a verificar-se, é a anulabilidade, como resulta do preceituado no art. 135.º do Código do Procedimento Administrativo, em que se estabelece que «são anuláveis os actos administrativos praticados com ofensa dos princípios ou normas jurídicas aplicáveis para cuja violação se não preveja outra sanção».

Por outro lado, é manifesto que as questões da violação do princípio da neutralidade, da existência ou não de variação patrimonial positiva e da ilegalidade da liquidação dos juros compensatórios por falta de fundamentação e por falta de prova da culpa do contribuinte são completamente distintas das questões da validade ou eficácia da inspecção e da caducidade do direito de liquidação.

Na verdade, as questões colocadas no processo de impugnação judicial prendem-se apenas com a legalidade formal da fixação dos pressupostos da liquidação e sua tempestividade, enquanto os vícios aditados no pedido de constituição do tribunal arbitral têm a ver com a legalidade interna do acto de liquidação de IRC e com a legalidade formal, por falta de fundamentação, e substancial do acto de liquidação de juros compensatórios.

Por isso, não se está perante meros aperfeiçoamentos de argumentos relativos aos vícios imputados ao acto impugnado no processo de impugnação judicial referido, mas sim invocação de novas pretensões anulatórias, com novos fundamentos.

Consequentemente, pelo que se referiu, sendo os novos vícios imputados pela Requerente à liquidação de IRC e juros compensatórios geradores de mera anulabilidade, não podem ser admitidas as pretendidas alterações da causa de pedir e respectivos pedidos de declaração de ilegalidade com elas conexionados.

Procede, assim, a excepção suscitada sobre tal matéria pela Autoridade Tributária e Aduaneira, pelo que esta tem de ser absolvida da instância quanto aos pedidos de declaração de ilegalidade da liquidação de IRC e juros compensatórios, com os fundamentos referidos que não foram invocados no processo de impugnação judicial n.º … BELRS.


 

4. Questão da possibilidade de conhecimento do pedido de indemnização por garantia indevida


 

A Autoridade Tributária e Aduaneira defende que deve ser julgada procedente a excepção de incompetência do tribunal arbitral para conhecer do pedido de indemnização por prestação de garantia indevida, ou, caso assim não se entenda, a excepção de ilegalidade de ampliação da causa de pedir e do pedido, ou, ainda, caso assim não se entenda, a excepção de intempestividade da dedução do referido pedido, devendo a entidade requerida ser absolvida do pedido com as demais consequências legais.

 

4.1. Questão da competência para conhecimento do pedido de indemnização por garantia indevida

 

De harmonia com o disposto na alínea b) do art. 24.º do RJAT a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito».

Na autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, concedida pelo art. 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, proclama-se, como directriz primacial da instituição da arbitragem como forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária, que «o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária».

Embora o art. 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão «declaração de ilegalidade» para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD e não faça referência a decisões constitutivas (anulatórias) e condenatórias, deverá entender-se, em sintonia com a referida autorização legislativa, que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários em relação aos actos cuja apreciação de legalidade se insere nas suas competências.

Apesar de o processo de impugnação judicial ser essencialmente um processo de mera anulação (arts. 99.º e 124.º do CPPT), pode nele ser proferida condenação da administração tributária no pagamento de juros indemnizatórios e de indemnização por garantia indevida.

Na verdade, apesar de não existir qualquer norma expressa nesse sentido, tem-se vindo pacificamente a entender nos tribunais tributários, desde a entrada em vigor dos códigos da reforma fiscal de 1958-1965, que pode ser cumulado em processo de impugnação judicial pedido de condenação no pagamento de juros indemnizatórios com o pedido de anulação ou de declaração de nulidade ou inexistência do acto, por nesses códigos se referir que o direito a juros indemnizatórios surge quando, em reclamação graciosa ou processo judicial, a administração seja convencida de que houve erro de facto imputável aos serviços. Este regime foi, posteriormente, generalizado no Código de Processo Tributário, que estabeleceu no n.º 1 do seu art. 24.º que «haverá direito a juros indemnizatórios a favor do contribuinte quando, em reclamação graciosa ou processo judicial, se determine que houve erro imputável aos serviços», a seguir, na LGT, em cujo art. 43.º, n.º 1, se estabelece que «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e, finalmente, no CPPT em que se estabeleceu, no n.º 2 do art. 61.º (a que corresponde o n.º 4 na redacção dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro), que «se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea».

Relativamente ao pedido de condenação no pagamento de indemnização por prestação de garantia indevida, o art. 171.º do CPPT, estabelece que «a indemnização em caso de garantia bancária ou equivalente indevidamente prestada será requerida no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda» e que «a indemnização deve ser solicitada na reclamação, impugnação ou recurso ou em caso de o seu fundamento ser superveniente no prazo de 30 dias após a sua ocorrência».

Assim, é inequívoco que o processo de impugnação judicial abrange a possibilidade de condenação no pagamento de garantia indevida e até é, em princípio, o meio processual adequado para formular tal pedido, o que se justifica por evidentes razões de economia processual, pois o direito a indemnização por garantia indevida depende do que se decidir sobre a legalidade ou ilegalidade do acto de liquidação.

O pedido de constituição do tribunal arbitral tem como corolário passar a ser no processo arbitral que vai ser discutida a «legalidade da dívida exequenda», pelo que, como resulta do teor expresso daquele n.º 1 do referido art. 171.º do CPPT, é também o processo arbitral o adequado para apreciar o pedido de indemnização por garantia indevida.

De resto, particularmente em processos que estavam pendentes nos tribunais tributários há mais de dois anos e em que os contribuintes utilizaram a faculdade prevista no art. 30.º do RJAT, não seria razoável entender que podiam ser apreciadas pelos tribunais arbitrais apenas as questões da legalidade dos actos de liquidação impugnados nos processos de impugnação judicial e não também a apreciação dos pedidos de condenação em juros indemnizatórios e de indemnização por garantia indevida, o que se reconduziria a que o processo de impugnação judicial tivesse de se manter, necessariamente com suspensão da instância até transitar em julgado a decisão arbitral, apenas para apreciar estes pedidos indemnizatórios, cuja apreciação depende da decisão sobre a legalidade dos actos de liquidação.

Na verdade, uma situação deste tipo estaria manifestamente ao arrepio das intenções legislativas de «imprimir uma maior celeridade na resolução de litígios que opõem a administração tributária ao sujeito passivo» e «reduzir a pendência de processos nos tribunais administrativos e fiscais», que são reveladas pelo preâmbulo do DL n.º 10-A/2012, de 20 de Janeiro.

Se legislativamente se impõe naquele art. 171.º do CPPT a formulação do pedido de indemnização por garantia indevida no processo em que se discute a legalidade da dívida, sem restringir essa imposição a qualquer tipo de processo, é, necessariamente, porque se entende que a apreciação conjunta da legalidade e da indemnização por garantia indevida é a melhor opção processual e, por isso, não se compreenderia que no processo arbitral, se fosse optar por solução diferente quando se pretende atingir maior celeridade e reduzir a pendência de processos nos tribunais tributários.

Por isso, numa interpretação teleológica, sendo de presumir «que o legislador consagrou as soluções mais acertadas» (art. 9.º, n.º 3, do Código Civil), impõe-se a conclusão de que a atribuição da competência aos tribunais arbitrais para apreciação da legalidade de actos de liquidação implica também a atribuição de competência para apreciação dos pedidos relativos a esses actos.

Aliás, a cumulação de pedidos relativos ao mesmo acto tributário está implicitamente pressuposta no art. 3.º do RJAT, ao falar em «cumulação de pedidos ainda que relativos a diferentes actos», o que deixa perceber que a cumulação de pedidos também é possível relativamente ao mesmo acto tributário e os pedidos de indemnização por juros indemnizatórios e de condenação por garantia indevida são susceptíveis de ser abrangidos por aquela fórmula, pelo que uma interpretação neste sentido tem, pelo menos, o mínimo de correspondência verbal exigido pelo n.º 2 do art. 9.º do Código Civil.

A Autoridade Tributária e Aduaneira invoca ainda como obstáculo à competência deste Tribunal Arbitral para apreciar o pedido de indemnização por garantia indevida o disposto no art. 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, que estabelece, numa redacção pouco feliz, que «os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto -Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (...)», seguindo-se algumas excepções.

O que se conclui desta disposição, conjugada com a reestruturação da Direcção-Geral de Impostos e da Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo operada pelo DL n.º 118/2011, de 15 de Dezembro, é a vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira à jurisdição dos tribunais arbitrais, fora dos casos excepcionados, para apreciação de todas as pretensões dos contribuintes conexas com actos de liquidação, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que tenham por objecto impostos que administre.

Os pedidos de indemnização por garantia indevida são pretensões relativas a actos daqueles tipos, estando em relação a eles como o estão os pedidos de reconhecimento de direito a juros indemnizatórios, visando ambos, como se referiu, explicitar o conteúdo do dever de «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito» que na alínea b) do n.º 1 do art. 24.º se impõe como consequência de uma decisão arbitral de procedência da pretensão apresentada ao tribunal arbitral.

Para além disso, tendo-se chegado à conclusão de que é de aplicar no processo arbitral a regra do art. 171.º do CPPT, que impõe apreciação do pedido de indemnização por garantia indevida no processo em que é apreciada a legalidade da dívida, aquele art. 2.º, n.º 1, da Portaria n.º 112-A/2011 seria ilegal, por ofensa do princípio da hierarquia das normas (estabelecido no art. 112.º, n.º 5, da CRP), se fosse interpretado como criando um regime processual diferente, em que a legalidade da dívida seria apreciada no processo arbitral e o pedido de indemnização por garantia indevida teria de ser apresentado autonomamente em relação a esse processo, em dissonância com a regra do n.º 1 do art. 171.º.

Conclui-se, assim, que este Tribunal Arbitral não é materialmente incompetente para apreciar o pedido de indemnização por garantia indevida, pelo que improcede esta excepção invocada pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

4.2. Questões da ampliação da causa de pedir e do pedido relativamente à indemnização por garantia indevida e da intempestividade deste pedido

 

A solução destas duas questões está relacionada, pelo que é conveniente apreciá-las concomitantemente.

O art. 171.º, n.º 2, do CPPT formula a regra de a indemnização por garantia indevida deve ser solicitada na reclamação, impugnação ou recurso ou, no caso de o seu fundamento ser superveniente, no prazo de 30 dias após a sua ocorrência.

Admite-se, assim, nestes casos de fundamento superveniente, a invocação dos factos que o constituem e a formulação do correspondente pedido de indemnização por garantia indevida.

Mas, como resulta da parte final deste norma, a formulação desse pedido tem de ser efectuada no prazo de 30 dias após a ocorrência do fundamento do pedido de indemnização por garantia indevida.

Relativamente à possibilidade de formulação deste pedido de indemnização por indevida concomitantemente com o pedido de constituição do tribunal arbitral, vale o que atrás se referiu nos pontos 3. a 3.4.: com a possibilidade «submeter à apreciação dos tribunais arbitrais pretensões que tenham por objecto actos tributários que se encontrem pendentes de decisão em primeira instância nos tribunais judiciais tributários há mais de dois anos» não se viabiliza a apresentação de novas pretensões que não podiam ser apresentadas nos respectivos processos de impugnação judicial.

Por outro lado, quanto à possibilidade de formulação do pedido de indemnização com fundamento em facto superveniente, constata-se que nenhum é invocado que tenha ocorrido há menos de 30 dias, como exige o referido n.º 2 do art. 171.º do CPPT.

Na verdade, a Requerente, quanto a este ponto, limita-se a dizer que:

 

48. Para suspender o processo executivo instaurado para cobrança coerciva da dívida de imposto e juros subjacente aos actos de liquidação objecto do presente pedido de pronúncia arbitral, a ora Requerente teve necessidade de prestar garantia e suportar os encargos com a sua prestação, que continuará a suportar até decisão final e levantamento da mesma.

49. Pese embora os referidos encargos não sejam ainda determinados, em caso de procedência do pedido, a ora Requerente tem direito a ser indemnizada pelo valor dos mesmos, nos termos do disposto no artigo 53.° da LGT, o que desde já se requer.

 

A prestação de garantia ocorreu em 2009, como se conclui do referido no ponto s) da matéria de facto fixada, e a Requerente não revela quais os encargos que diz ter suportado e continuar a suportar, pelo que não se encontra alegado nenhum facto ocorrido nos 30 dias anteriores à apresentação do pedido de constituição do tribunal arbitral.

Assim, é de concluir que é intempestivo o pedido de indemnização por garantia indevida, pelo que procede esta excepção invocada pela Autoridade Tributária e Aduaneira.


 

5. Questão da inquirição da testemunha indicada pela Requerente no pedido de constituição do tribunal arbitral


 

Na reunião de 18-6-2012, a Requerente indicou como suporte da utilidade da inquirição da testemunha indicada no pedido de constituição do tribunal arbitral a circunstância de se tratar de pessoa que acompanhou a fusão referida nestes autos.

Pelo que se referiu quanto à inadmissibilidade de ampliação da causa de pedir em relação ao processo n.º … BELRS, apenas pode ser apreciado no presente processo arbitral o mérito da causa quanto às questões da credenciação dos funcionários da Administração Tributária que procederam à inspecção e da caducidade do direito de liquidação.

A resolução de qualquer destas questões não depende da forma como foi efectuada a fusão, pelo que se tem de concluir pela inutilidade da inquirição da referida testemunha.

Por isso, não sendo permitido praticar actos inúteis [art. 137.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável por força do disposto no art. 29.º, alínea e), do RJAT], é de decidir, ao abrigo do disposto no art. 18.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, o prosseguimento do processo sem tal inquirição, em sintonia também com o princípio da simplificação processual indicado no art. 29.º, n.º 2, do mesmo diploma.


 

6. Questão da necessidade ou não de alegações orais


 

Nos processos arbitrais tributários apenas há lugar a alegações orais quando sejam necessárias, como decorre do preceituado no n.º 2 do art. 18.º do RJAT.

Não foi produzida prova testemunhal e as partes já se pronunciaram por escrito, tanto no processo de impugnação judicial n.º… BELRS cuja petição foi junta com o pedido de constituição do tribunal arbitral, sobre as duas questões cujo mérito pode ser apreciado no presente processo, que são a da falta de credenciação dos funcionários que procederam à inspecção e da caducidade do direito de liquidação.

Inclusivamente, no pedido de constituição do tribunal arbitral, a Requerente, quanto a tais questões, limitou-se a remeter para os fundamentos de facto e de direito expendidos na petição apresentada no referido processo de impugnação judicial, que juntou (art. 19.º do pedido de constituição do tribunal arbitral), o que permite concluir que entende não serem necessárias mais alegações sobre essas matérias.

Por isso, decide-se que o prosseguimento do processo far-se-á sem alegações orais.


 

Termos em acordam neste Tribunal Arbitral em:

– julgar improcedentes as questões prévias suscitadas pela Requerente e julgar procedente a excepção suscitada pela Autoridade Tributária e Aduaneira relativas à possibilidade de alteração das causas de pedir dos pedidos de anulação das liquidações de IRC e juros compensatórios e absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira da instância dos pedidos formulados com causas de pedir não invocadas no processo de impugnação judicial n.º … BELRS;

– julgar improcedente a excepção de incompetência deste Tribunal Arbitral para o conhecimento da questão de indemnização por garantia indevida;

– julgar procedente a excepção da intempestividade invocada pela Autoridade Tributária e Aduaneira relativamente ao pedido de indemnização por garantia indevida;

– determinar o prosseguimento do processo sem inquirição da testemunha indicada pela Requerente e sem alegações orais.

 

 

Lisboa,

 

Os Árbitros

 

 

Jorge Lopes de Sousa (árbitro presidente e relator)

 

 

Dr. Pedro Pais de Almeida (árbitro)

 

 

Dr. Álvaro Caneira (árbitro)

1(  ) Os princípios do inquisitório e da busca da verdade material estão previstos para o procedimento tributário e o procedimento administrativo, respectivamente, nos arts. 58.º da Lei Geral Tributária e 56.º do Código do Procedimento Administrativo, referidos pela Requerente, mas na fase jurisdicional, que é a da apreciação por tribunais arbitrais, a norma que os define é o art. 99.º da Lei Geral Tributária.

2(  ) Acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo de 19-1-1993, processo n.º 24606, publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 423, página 265.

No mesmo sentido, podem ver-se os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 11-12-1997, processo n.º 32764, publicado em Apêndice ao Diário da República de 25-9-2001, página 8791, e de 11-3-2010, processo n.º 415/07.

3(  ) Por exemplo, a anulação por vício procedimental ou de forma não impede, normalmente, a renovação do acto anulado, com supressão desse vício, enquanto os vícios de violação de lei, em regra, obstam à prática de um novo acto com o mesmo sentido, por o vício não poder ser suprimido.

4(  ) Essencialmente neste sentido, pode ver-se MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Sobre a Autoridade do Caso Julgado das Sentenças de Anulação de Actos Administrativos, páginas 86-87, em que refere que o acto impugnado, apesar de ser objecto de anulação, não é o objecto do recurso contencioso: «o recurso nunca se referiu ao acto administrativo na sua globalidade, mas ao acto no que apenas se refere às causas de invalidade que lhe são imputadas pelo recorrente. A iniciativa e a delimitação do objecto do recurso compete à parte que o desencadeia: cada motivo constitui um distinto pedido formal de anulação, incindível do motivo no qual se funda, uma vez que "não existe um simples poder de recurso ao juiz para que faça justiça”».

5(  ) MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, em Cumulação de pedidos e cumulação aparente no contencioso administrativo, publicado em Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 34, páginas 33-34, continua a entender que há concurso de causas de pedir quando o pedido de impugnação do acto administrativo tem por fundamento várias causas de invalidade.

Em sentido contrário, porém, pronuncia-se MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, em O objecto do processo no novo contencioso administrativo, publicado em Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 36, página 7, defende que «é de entender que todas as possíveis causas de invalidade de que padeça um acto administrativo integram uma única causa de pedir, que se traduz na invalidade do acto» e que «a pretensão anulatória se dirige contra o acto, na globalidade das causas de invalidade de que ele possa enfermar».

6(  ) Neste sentido, pode ver-se BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, página 182.

7(  ) Neste sentido, podem ver-se os seguintes acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo:

– de 14-1-1992, processo n.º 26504, sumariado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 413, página 585, e publicado em Apêndice ao Diário da República de 29-12-95, página 43;

– do Pleno da Secção do Contencioso Administrativo de 28-6-1994, processo n.º 26811;

– de 13-10-1994, processo n.º 25346, publicado em Apêndice ao Diário da República de 18-4-97, página 6876;

– de 5-12-1995, processo n.º 35689, publicado em Apêndice ao Diário da República de 30-4-98, página 9550;

– de 8-2-1996, processo n.º 37102, publicado em Apêndice ao Diário da República de 31-8-98, página 957;

– do Pleno da Secção do Contencioso Administrativo, de 20-3-1997, processo n.º 35689;

– de 17-5-2005, processo n.º 975/03;

– de 10-5-2006, processo n.º 1449/03.

 

 

 

8(  ) Neste sentido, pode ver-se Mário Aroso de Almeida, Sobre a Autoridade do Caso Julgado das Sentenças de Anulação de Actos Administrativos, página 91: esta tese é reafirmada em O objecto do processo no novo contencioso administrativo, publicado em Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 36, página 6, e em Manual de Processo Administrativo, páginas 86-87.

9(  ) Relativamente à liquidação de juros compensatórios não é invocado nenhum vício próprio, pelo que se depreende que, na perspectiva da Requerente, a sua invalidade será consequência da invalidade da liquidação do IRC.

10(  ) Também é de conhecimento oficioso a inexistência jurídica, por maioria de razão em relação ao conhecimento da nulidade, mas não se vislumbra nem a Requerente invoca que se esteja perante uma situação daquele tipo, pelo que não tem utilidade apreciar a questão sob essa perspectiva.

11(  ) Trata-se, assim, de uma situação distinta das que foram objecto do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 6-6-2010, proferido no processo n.º 103/10, e do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 20/9/2011, processo n.º 2009/07, invocados pela Requerente na reunião prevista no art. 18.º do RJAT, pois nestes casos tinham-se formado deferimentos tácitos sobre pedidos de transmissão de prejuízos fiscais no âmbito de operações de fusão, nenhum deste arestos se pronunciado sobre a questão de saber um acto administrativo que concede isenções fiscais com base em determinado projecto de operação de fusão/cisão de sociedades que foi apresentado à Administração Tributária pelo interessado, implica o reconhecimento de que se inserem no âmbito dessa fusão/cisão operações que não estavam indicada no referido projecto e que não vieram a ser referidas na escritura que concretizou as operações.