Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 414/2023-T
Data da decisão: 2024-02-22  IRS  
Valor do pedido: € 232.365,59
Tema: IRS. Cláusula Geral Antiabuso - Distribuição de dividendos ou pagamento do preço de aquisição de participações sociais. Interposição artificiosa de sociedade comercial.
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SUMÁRIO

  1. As “dividend-stripping transactions” são formas de planeamento fiscal agressivo que propiciam a elisão fiscal, através da interposição de uma sociedade criada para o efeito, à qual são alienadas participações sociais e à qual é concedido um avultado mútuo pelos próprios alienantes, para que os lucros destas participações sociais possam ser por ela “reconvertidos” em amortizações do mútuo a favor dos mutuantes / credores – os anteriores titulares das participações sociais geradoras de lucro.
  2. Trata-se, através da utilização de meios artificiosos, com abuso das formas jurídicas, de diferir, reduzir ou eliminar a tributação que incidiria sobre os dividendos correspondentes às participações sociais, aproveitando vantagens fiscais de tributação reduzida ou diferida, ou não-tributação, dessas amortizações do mútuo, face à tributação que incidiria sobre a distribuição de dividendos.
  3. Essa montagem “step by step” é abusiva e “extra legem”, e justifica a aplicação da Cláusula Geral Antiabuso (CGAA), na medida em que estejam igualmente reunidos os demais pressupostos da sua aplicação.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – Relatório

 

  1. Os contribuintes A..., com o NIF..., (doravante também “1º Requerente”) e B..., com o NIF..., (doravante também “2º Requerente”), doravante “os Requerentes”, apresentaram conjuntamente, em coligação, no dia 5 de Junho de 2023, um pedido de constituição de Tribunal Arbitral Colectivo, nos termos dos artigos 2º, 1, a), e 10º, 1 e 2 do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, com as alterações por último introduzidas pela Lei nº 7/2021, de 26 de Fevereiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), e dos arts. 1º e 2º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).
  2. Os Requerentes pediram a pronúncia arbitral sobre a ilegalidade da decisão de indeferimento proferida no âmbito dos procedimentos de Reclamação Graciosa n.os ...2022... e ...2022..., e mediatamente sobre a ilegalidade do objecto dessas reclamações graciosas, no caso do 1º Requerente, as liquidações de IRS referentes aos anos de 2017 e 2018 identificadas nos documentos n.os 2021 ... e 2021 ... e respectivos juros compensatórios, com valores anuais de €116.137,68 e €104.097,58, com um valor total a pagar de €220.235,26; e no caso do 2º Requerente, as liquidações de IRS referentes aos anos de 2017 e 2018 identificadas nos documentos n.os 2021 ... e 2021 ... e respectivos juros compensatórios, com valores anuais de €6.062,01 e €6.068,32, com um valor total a pagar de €12.130,33. Pretendendo os Requerentes que seja declarada a ilegalidade do conjunto desses actos tributários, e promovida a respectiva anulação.
  3. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT.
  4. O Conselho Deontológico designou os árbitros do Tribunal Arbitral Colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação.
  5. As partes não se opuseram, para efeitos dos termos conjugados dos arts. 11º, 1, b) e c), e 8º do RJAT, e arts. 6º e 7º do Código Deontológico do CAAD.
  6. O Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 16 de Agosto de 2023; foi-o regularmente, e é materialmente competente.
  7. Por Despacho de 25 de Agosto de 2023, foi a AT notificada para, nos termos do art. 17º do RJAT, apresentar resposta.
  8. A AT apresentou a sua Resposta em 2 de Outubro de 2023, juntamente com o Processo Administrativo.
  9. Por Despacho de 13 de Outubro de 2023, determinou-se a realização da reunião prevista no art. 18º do RJAT
  10. No dia 12 de Dezembro de 2023 realizou-se a reunião prevista no art. 18º do RJAT, tendo-se procedido à inquirição das testemunhas arroladas pelos Requerentes.
  11. As partes foram notificadas para a apresentação de alegações.
  12. Os Requerentes apresentaram alegações em 4 de Janeiro de 2024.
  13. A Requerida apresentou alegações em 5 de Janeiro de 2024.
  14. Por Despacho de 9 de Fevereiro de 2024, designou-se o dia 16 de Abril de 2024 para prolação e comunicação da decisão arbitral.
  15. As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, e têm legitimidade.
  16. A AT procedeu à designação dos seus representantes nos autos e a Requerente juntou procuração, encontrando-se assim as Partes devidamente representadas.
  17. O processo não enferma de nulidades.

 

II – Matéria de Facto

 

II. A. Factos provados

 

Com relevo para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

  1. Os Requerentes são accionistas da C...- SGPS, SA.
  2. Os Requerentes eram accionistas da D..., SA, no momento em que esta foi adquirida pela C...- SGPS, SA, no âmbito de um processo de reestruturação que teve lugar em 29 de Dezembro de 2009.
  3. A reestruturação de 2009 teve, como propósitos anunciados, terminar com a dispersão de empresas e duplicação de estruturas resultantes de uma organização bicéfala, com duplicação de custos de estrutura e de contexto, mormente entre a sociedade D..., Lda e a Sociedade E..., Lda, mas abarcando também a sociedade F..., Lda, a sociedade G..., Lda, a sociedade H..., Lda, a sociedade I..., Lda, a sociedade J..., Lda, a sociedade K..., Lda e a sociedade L... Lda.
  4. Ao todo, 9 empresas, com 15 sócios e 8 gerentes, divididas em 2 pólos: o de Lisboa centrado na D..., Lda, contendo ainda as sociedades F... e G...; o do Porto centrado na H..., e contendo as sociedades H..., I... e J..., K... e L... .
  5. Entendeu-se que, com os propósitos anunciados, se deveria encarar a constituição de uma Sociedade Gestora de Participações Sociais, que agregaria os sócios maioritários – a C...- SGPS, SA, com a seguinte composição:
    1. M... (35%), com 17.500€ (3.500 ações)
    2. A...  (35%), com 17.500€ (3.500 ações) (o 1º Requerente no presente processo)
    3. N...  (20%), com 10.000€ (2.000 ações)
    4. B... (8%), com 4.000€ (800 ações) (o 2º Requerente no presente processo)
    5. O... (1%), com 500€ (100 ações)
    6. P... (1%), com 500€ (100 ações),
  6. No Conselho de Administração da C...- SGPS, SA ficaram:
  • M... (Presidente)
  • A...  (Vice-Presidente) (o 1º Requerente no presente processo)
  • B...  (vogal) (o 2º Requerente no presente processo)
  • N... (vogal)
  1. A D..., Lda transformou-se em SA em 31 de Dezembro de 2009, e fez um aumento de capital, ficando a ser as seguintes as participações:
  1. M...– 44,82% (€ 22.410)
  2. A...– 44,82% (€ 22.410) (o 1º Requerente no presente processo)
  3. B...– 9,96% (€ 4.980) (o 2º Requerente no presente processo)
  4. Q...– 0,2% (€ 100)
  5. R...– 0,2% (€ 100)
  1. Nesse âmbito foi convencionado que os Requerentes, tal como os demais accionistas da D..., SA, alienariam em 30 de Dezembro de 2009 as suas acções à C...- SGPS, SA, e esta pagaria o respectivo preço ao longo de um prazo máximo de reembolso de 15 anos:
  1. M... (venda de 2.241.000 acções à C...)
  2. A... (venda de 2.241.000 acções à C...) (o 1º Requerente no presente processo)
  3. B... (venda de 498.000 acções à C...) (o 2º Requerente no presente processo)
  4. Q... (venda de 10.000 acções à C...)
  5. R... (venda de 10.000 acções à C...)
  1. O 1º Requerente vendeu as suas 2.241.000 acções na D..., SA por € 3.186.098,55.
  2. O 2º Requerente vendeu as suas 498.000 acções na D..., SA por € 708.021,90.
  3. Também em 31 de Dezembro de 2009 a E.., Lda se transformou em SA, realizou um aumento de capital e cedeu as suas acções à C..., da seguinte forma:
  1. N...  (49,71%, € 29.927,87) (venda de 2.992.787 acções à C...)
  2. D...  (49,71%, € 29.927,87) (venda de 2.992.787 acções à C...)
  3. M...  (0,24%, € 144,26) (venda de 14.426 acções à C...)
  4. A... (0,17%, € 100,00) (venda de 10.000 acções à C...) (o 1º Requerente no presente processo)
  5. B... (0,17%, € 100,00) (venda de 10.000 acções à C...) (o 2º Requerente no presente processo)
  1. A D..., SA continuou a deter a maioria do capital das sociedades F... – e G..., cedendo a totalidade das quotas da F... (€ 5.000,00) à C... em 31 de Dezembro de 2009.
  2. A H..., Lda, que dependia da E..., foi transferida em 100% (5.000€), por cedência de quotas, à C..., em 31 de Março de 2010.
  3. Por cedência de quotas, a sociedade K..., Lda passou da E... para a C... em 76%, ficando os restantes 24% para o sócio S....
  4. A criação da C...- SGPS, SA representou, portanto, a integração numa estrutura comum das sociedades D... e E..., e dessa circunstância decorreu a extinção da E..., em Maio de 2013.
  5. No mesmo sentido, foram encerradas as sociedades G... e I... e J  ... .
  6. Em 11 de Março de 2010 foi criada uma nova sociedade,T..., Lda, com o objectivo de promover o software SaaS., tendo por sócios:
  • C…- SGPS, SA (98%, € 4.900,00)
  • D…, SA (2%, € 100,00)

E por gerentes:

  • M...
  • A... (o 1º Requerente no presente processo)
  1. Em 27 de Junho de 2011 foi criada a U..., sociedade espanhola, detida a 100% pela C... (€ 25.000,00).
  2. Já em 2018 e 2019, foram criadas, no grupo de empresas, sociedades em Moçambique (V...), em Angola (D..., Lda) e Perú (W...), todas com o objecto de comercialização de software.
  3. Por seu lado, a sociedade H..., Lda, que foi redenominada X..., Lda. em 7 de Janeiro de 2011, e tinha como sócio único a C..., foi, em 1 de Abril de 2013, objecto de cessão de quotas para a sociedade Y..., SA, sociedade que não tem nada a ver com o grupo de empresas.
  4. Em termos contabilísticos, a C... evidencia os seguintes resultados:

 

 

2009

2010

2011

2012

2013

2014

2015

2016

2017

2018

2019

2020

Proveitos

0

2.304.789

382.866

1.651.274

2.316.903

2.090.271

1.724.021

2.558.925

2.067.676

2.706.895

3.170.480

3.040.020

Capitais próprios

50.000

2.357.126

3.219.137

4.902.014

6.938.712

9.015.246

10.590.251

12.539.182

14.048.096

16.135.238

18.147.599

20.595.005

 
  1. A C...- SGPS, SA foi sujeita a procedimentos de inspecção relativamente aos exercícios de 2017 e 2018, em resultado das ordens de serviço n.os OI2019... e OI2021....
  2. Os Requerentes foram, na sequência, objecto de procedimentos de inspecção aos anos de 2017 e 2018, respectivamente com os n.os OI2021..., 012021... (A...), OI2021... e OI2021... (B...).
  3. Os resultantes RITs concluíram que, para ambos os Requerentes, se verificaram actos e negócios jurídicos que teriam sido essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos e com abusos de formas jurídicas, à eliminação de impostos que de outro modo seriam devidos, o que justificaria o recurso à norma geral anti-abuso prevista no art. 38º, 2, da LGT.
  4. Especificamente, ambos os RIT concluíam que:

“Entende-se que o conjunto de operações levadas a cabo pelos acionistas das sociedades D... e C... SGPS, são negócios que devem ser objeto de qualificação como “meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas”. Ao serviço de uma finalidade exclusivamente fiscal, os atos de aquisição de ações das sociedades D... e E... (Norte) pela C... SGPS foram objeto de uma utilização distorcida destinada simplesmente a conseguir, sem tributação, a distribuição de dividendos oriundos da D..., mediante distribuição “encapotada”, “indireta” de dividendos a B... (e aos restantes acionistas) com o fim de evitar que os montantes recebidos fossem subsumíveis na norma de incidência constante do n.º 1 e da alínea h) do n.º 2 do art.º 5.º CIRS, segundo os quais os lucros/ adiantamentos por conta de lucros, das entidades sujeitas a IRC, colocados à disposição dos respetivos associados ou titulares, constituem rendimentos de capitais (categoria E) sujeitos a IRS.

A sociedade criada, C... SGPS, foi utilizada e serviu de sociedade veículo para elidir o disposto no citado normativo, através de uma configuração artificiosa do pagamento de uma dívida em vez da obtenção de dividendos distribuíveis, de modo a obter uma vantagem fiscal. Configurou-se, sem qualquer substância económica, por razões estritamente fiscais, uma situação negocial que produz idênticos resultados materiais e financeiros, mas que possibilita evitar as consequências tributárias aplicáveis à distribuição de dividendos, nos termos do art.º 5.º n.º 2 alínea h) do CIRS, incorrendo-se numa prática abusiva de elisão fiscal.

Face a todo o exposto, entende-se estarem verificadas as condições para que se possa lançar mão do mecanismo previsto no n.º 2 do art.º 38.º da LGT.”

  1. Nomeadamente, foi imputada aos Requerentes a omissão de tributação sobre dividendos que, na sua qualidade de accionistas da C...- SGPS, SA, teriam recebido nos anos de 2017 e 2018, no valor bruto de €408.000 (o 1º Requerente) e €36.000 (o 2º Requerente), em cada um daqueles anos.
  2. Entretanto, ambos os Requerentes, que tinham auferido € 500,332,84, cada um, de rendimentos da categoria A provenientes da E... nos anos de 2009 e 2010, após a alienação à C... passaram a auferir cada um apenas €14,960,00, não tendo auferido quaisquer rendimentos da categoria A pagos pela E... em 2011 e 2012.
  3. Os Requerentes foram informados do teor do RIT em 21 de Setembro de 2021, através do ofício nº..., tendo eles exercido esse direito de audição prévia em 29 de Outubro e 20 de Novembro de 2021.
  4. Da conjugação dos factos alcançados nas acções inspectivas resultaram os fundamentos para se proceder à aplicação da norma legal anti-abuso prevista no art. 38º, 2 da LGT e do art. 63º do CPPT, cuja autorização foi dada a 18-11-2021 por despacho da Directora-geral da AT.
  5. Daí resultaram, quanto a A..., as liquidações adicionais de IRS 2017 n.º 2021..., de 2021-11-09, com valor a pagar de €110.870,40, e IRS 2018 nº 2021..., de 2021-11-09, com valor a pagar de € 98.880,27; quanto a B..., as liquidações adicionais de IRS 2017 nº 2021..., de 2021-11-09, com valor a pagar de € 6.062,01, e IRS 2018 nº 2021..., de 2021-11-09, com valor a pagar de € 6.180,12. Tudo acrescido de juros compensatórios.
  6. Ambos os Requerentes apresentaram reclamação graciosa (nº ...2022... A..., nº ...2022... B...), tendo também em vista a impugnação da liquidação de tributos com base na norma geral anti-abuso, para efeitos do art. 63º, 11 do CPPT. Nelas sustentaram que o pagamento efectuado pela C...- SGPS, SA aos seus accionistas não teve a natureza de dividendo, mas sim de pagamento de uma dívida de que os Requerentes são credores, resultante da compra, pela C...- SGPS, SA, das acções da D..., SA, da qual os Requerentes eram titulares.
  7. No âmbito das reclamações graciosas, os Requerentes exerceram o seu direito de audição prévia, depois de notificados para o efeito pelos ofícios nº ... 23-01-20 e nº ... 23-01-20, nos quais se transmitia a conclusão do RIT relativa à “existência de actos e negócios jurídicos que teriam sido essencial ou principalmente dirigidos por meios artificiosos e com abuso das formas jurídicas, à eliminação de impostos que seriam devidos sem a utilização desses meios, o que constituiu fundamento para a aplicação da norma legal anti-abuso (CGAA)”.
  8. As decisões finais de indeferimento das reclamações graciosas, por despacho de 6 de Março de 2023, foram notificadas pelos ofícios ... 23-03-08 e ... 23-03-08, ambos da DF Lisboa, no dia 9 de Março de 2023.
  9. No despacho de indeferimento consideraram-se “reunidos os pressupostos de direito e de facto para se proceder à sujeição a tributação dos rendimentos de capitais – categoria E - previstos no nº 1 e na al. h) do nº 2 do art.º 5.º do CIRS, auferidos e não declarados, relativos aos dividendos pagos ou colocados à sua disposição, em obediência à aplicação do disposto no nº 2 do art.º 38º da LGT, conjugado com o art.º 63.º do CPPT, e sobre os mesmos incidiria a taxa liberatória de 28%, prevista, à data dos factos, na alínea a) do n.º 1 do art.º 71.º do CIRS
  10. Em 5 de Junho de 2023 os Requerentes apresentaram no CAAD o Pedido de Pronúncia Arbitral que deu origem ao presente processo.

 

II. B. Matéria de facto não-provada

 

Com relevância para a questão a decidir, ficou por provar:

  1. Que houvesse razões económicas que tivessem levado os accionistas da C..., entre eles os Requerentes, a investirem nela um valor que é uma pequena fracção do crédito que constituíram sobre ela.
  2. Que o sobre-endividamento da C... e a sua subcapitalização fossem soluções necessárias ou indispensáveis, ou sequer normais, para a constituição da SGPS como meio de “reestruturação e racionalização da actividade do grupo AA...”, ou de agregação em si de “todo o valor da gestão estrutural e estratégica desse grupo de empresas”.
  3. Que o sobre-endividamento da C..., a sua subcapitalização, e a sua subdotação em meios materiais e humanos, fossem o modo adequado de prossecução de um escopo económico genuíno pela própria C... .

 

II. C. Fundamentação da matéria de facto

 

  1. Os factos elencados supra foram dados como provados, ou não-provados, com base nas posições assumidas pelas partes nos presentes autos, nos documentos juntos ao PPA e ao processo administrativo, e na prova testemunhal.
  2. Cabe ao Tribunal Arbitral seleccionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cfr. art. 123º, 2, do CPPT e arts. 596º, 1 e 607º, 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi art. 29º, 1, a) e e) do RJAT), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cfr. arts. 13.º do CPPT, 99º da LGT, 90º do CPTA e arts. 5º, 2 e 411.º do CPC).
  3. Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cfr. art. 16º, e) do RJAT, e art. 607º, 4, do CPC, aplicável ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).
  4. Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (por exemplo, quanto aos documentos autênticos, por força do artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação (cfr. art. 607º, 5 do CPC, ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).
  5. Nos termos do art. 396º do Código Civil, a força probatória da prova testemunhal é livremente apreciada pelo tribunal.
  6. Nos termos do art. 393º do Código Civil, havendo documentos, a prova testemunhal (ou, subalternamente, as declarações de parte) cingir-se-á à interpretação do contexto desses documentos, não podendo incidir nos factos que esses documentos provam.
  7. Além disso, não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.

 

III. Sobre o Mérito da Causa

 

III. A. Posição dos Requerentes no Pedido de Pronúncia

 

  1. Os Requerentes alegam que a decisão de proceder à venda com um prazo dilatado de pagamento (15 anos) se deveu a duas ordens de razões: 1) evitar o recurso à banca, o que oneraria a SGPS com encargos pesados; 2) criar um incentivo suplementar de alinhamento da conduta dos sócios com os interesses da sociedade, associando o retorno dos sócios aos resultados da nova sociedade, um modo de promover a partilha do risco empresarial (negando o pagamento imediato de mais-valias, que desligaria o interesse dos sócios dos resultados futuros da sociedade recém-constituída).
  2. Admitem também que a opção pela venda das acções foi objectivamente incentivada pelo regime legal vigente em 2009, de não tributação das mais-valias realizadas com a venda de acções detidas há mais de 12 meses, prevista na alínea a) do nº 2 do artigo 10º do CIRS, na redacção vigente em 2009, e pela isenção de Imposto do Selo prevista para a constituição e o aumento do capital social das SGPS, na alínea r) do nº 1 do artigo 7º do CIS, na redacção então em vigor (art. 188 do PPA).
  3. Desse modo, a alienação das participações sociais, pelos seus accionistas, nas sociedades D... e E..., teria gerado um pagamento constante a favor dos novos sócios, que foi sendo efectuado, com excepção do ano de 2010.
  4. Trata-se-ia do pagamento faseado e parcelado do preço das acções, uma amortização da dívida incorrida pela C... – no valor de €3.186.098,55 quanto ao 1º Requerente, no valor de €708.021,90 quanto ao 2º Requerente – e não de qualquer pagamento de dividendos ocultado atrás da aparência de pagamento de dívidas com o fito de se tirar proveito de normas de exclusão de tributação, como se presumira no RIT.
  5. Os Requerentes admitem que é aos dividendos que se vai buscar os meios para poder pagar aos vendedores das acções, mas que “tal não significa que o pagamento da C... aos vendedores tenha também a natureza de dividendos.” (arts. 109 e 110 do PPA).
  6. Assim sendo, inferem os Requerentes, os pagamentos efectuados em 2017 e 2018 a favor deles assentam em dividendos, mas não constituem distribuição de dividendos, pelo que as liquidações que assentaram na ideia de que essa distribuição teria ocorrido, invocando a norma geral anti-abuso, não teriam respeitado a realidade dos factos.
  7. Razão pela qual os Requerentes reagiram, começando pela reclamação graciosa, como se impunha, nos termos do art. 63º, 11, do CPPT.
  8. Em questão está saber-se se a compra e venda de acções, depois de adoptada a forma de SA, foi, ou não, um meio para dissimular a distribuição de lucros, apresentando-os como pagamento de dívidas, procurando furtá-los, assim, à norma de incidência constante da alínea h) do nº 2 do art. 5º do CIRS.
  9. Se, como a AT sustenta, não existir uma genuína dívida da C... para com os Requerentes, então os pagamentos da C..., em 2017 e 2018, só podem constituir distribuição de dividendos. Mas replicam os Requerentes que a AT não prova o que alega, quando lhe competia fazê-lo, nos termos do art. 74º da LGT, com requisitos adicionais por força do recurso à CGAA.
  10. Contra o argumento do RIT de que a C... não teria exercido de facto, no intervalo temporal relevante, a actividade de gestora de participações sociais, tal como preconizado no quadro legal das SGPS (nomeadamente o Decreto-Lei nº 495/88, de 30 de Dezembro), os Requerentes sustentam o preciso contrário, ou seja que ela “assumiu de pleno direito e de facto o objecto, actividade, função e fim para o qual foi criada pelos respectivos sócios, não apenas sendo a "cabeça" (ou cérebro) fundamental de todo o grupo, mas agregando em si todo o valor da gestão estrutural e estratégica desse grupo de empresas” (art. 137 do PPA).
  11. No entanto, ressalvam que o quadro legal português não impõe às SGPS a necessidade de promoverem uma actividade de gestão activa e dinâmica, com a prestação de serviços técnicos de administração e gestão às suas participadas, configurando-se como holdings de direcção – podendo, pelo contrário, configurar-se como “holdings puras”, cingindo-se à gestão de participações sociais noutras sociedades, como forma indirecta de exercício de uma actividade económica.
  12. Portanto, concluem, longe de ter sido um esquema fiscal elisivo, com base na falta de substância ou vantagem económica, a constituição da SGPS teria tido objectivos económicos bem identificados, mormente a constituição de um grupo efectivo de sociedades, centralizando as participadas num núcleo societário coeso, com uma gestão única e centralizada, funcionalizada ao desenvolvimento do negócio e actividade do grupo, reforçando a actividade de algumas sociedades e cessando a actividade de outras, ou constituindo novas sociedades.
  13. Os Requerentes manifestam a sua oposição àquilo que consideram ser um uso indiscriminado da CGAA, lembrando que ela não pode destruir, seja o planeamento fiscal não-abusivo, seja o legítimo aproveitamento, pelo contribuinte, de omissões deliberadas do legislador fiscal. A CGAA, sustentam, é uma ultima ratio do sistema, a reclamar sempre uma interpretação teleológica, dada a necessidade de respeito pela segurança e pela previsibilidade jurídicas, e a necessidade de preservação da liberdade de escolha de formas jurídicas, nomeadamente de adopção de modelos de organização empresarial no exercício da iniciativa económica privada.
  14. A CGAA, insistem os Requerentes, destina-se, em subordinação ao princípio da prevalência da substância sobre a forma, a combater o chamado planeamento fiscal abusivo e a fraude à lei tributária que resulta da contradição entre as formas jurídicas adoptadas pelas partes na realização de determinado acto jurídico e os verdadeiros fins económicos do acto ou negócio.
  15. Daí o art. 38º, 2 da LGT, que à data dos factos (redacção anterior à Lei nº 32/2019, de 3 de Maio) estabelecia que:

São ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas.

  1. Significando isso que, independentemente do suporte de um negócio jurídico e da qualificação que lhe for dada pelas partes, atendendo à sua efectiva realidade, a AT não fica vinculada àquela qualificação, tendo legitimidade para reagir de forma que promova a prevalência da substância sobre a forma.
  2. Os Requerentes lembram[1] que a doutrina e a jurisprudência têm elaborado cinco requisitos para a aplicação da CGAA, o “elemento sancionatório” (a estatuição da norma que determina a ineficácia no âmbito tributário) e quatro requisitos cumulativos para a identificação do “planeamento fiscal abusivo”:
  1. Elemento meio: os actos ou negócios jurídicos tidos por artificiosos ou fraudulentos, no caso, um conjunto de actos e negócios sequenciais, lógicos e planeados, encadeados com vista a atingir o objetivo fiscal visado, que teria sido o de distribuir dividendos sem os sujeitar a tributação em sede de IRS
  2. Elemento resultado: a obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas através da prática de actos ou negócios jurídicos «normais» e de efeito económico equivalente.
  3. Elemento intelectual: ter havido prática de actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos à obtenção de vantagens fiscais, em termos de a escolha do meio ter sido essencial ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos, ou seja, a busca de vantagens fiscais ter sobrelevado à opção material por um acto, um negócio ou uma dada estrutura.
  4. Elemento normativo: a censura do ordenamento jurídico sobre os meios artificiosos ou fraudulentos utilizados, e que assenta na distinção entre o que é legítimo e o que é ilegítimo no planeamento / poupança fiscal, demarcando o que, sendo elisão, não pode ser legalmente admitido.
  1. Os Requerentes apresentam a sua defesa relativamente a cada um desses pressupostos:
  1. Elemento meio: a criação da SGPS teria sido uma decisão de motivação empresarial. Igualmente o teria sido a escolha do financiamento através de crédito dos accionistas, por alegadamente representar o meio mais simples, sem os encargos de um financiamento bancário e sem inconvenientes para o crescimento e fortalecimento do grupo dado a dívida aos accionistas poder ser paga a médio ou longo prazo na medida das disponibilidades da SGPS, sem colocar em causa os investimentos necessários; alegando que a criação de um passivo elevado na SGPS, que dispunha de património muito diminuto, não pode ser considerada uma solução irracional, estranha ou inconveniente para esta, já que a aceitação daquela dívida elevada foi acompanhada da criação de um activo do mesmo valor, constituído pelas participações sociais e o património que lhes estava subjacente; sendo que a isso acrescem as vantagens que, em 2009, se associavam à não-tributação de mais-valias resultantes da venda de acções detidas há mais de 12 meses.
  2. Elemento resultado: os Requerentes lembram que os lucros e reservas acumulados pelas sociedades podem ser transferidos para os patrimónios dos accionistas por via da distribuição de dividendos, mas também do pagamento de mais-valias realizadas com a venda das acções, não havendo qualquer obrigação legal de adoptar um ou outro dos meios referidos para concretizar a transferência de tais lucros e reservas acumulados. Os Requerentes sustentam ainda que, à face do regime legal vigente em 2009, as mais-valias consideraram-se realizadas com a venda das acções, independentemente do pagamento do preço, pelo que, ao efectuar-se a venda, os requerentes terão realizado as mais-valias para efeitos fiscais, e adquirido o direito a transferir para o seu património pessoal os lucros e reservas acumulados pelas empresas subjacentes a essas mais-valias, sem tributação – sendo que sustentar o diferimento da tributação para momento posterior à abolição do regime de não-tributação equivaleria, no entendimento deles, a tributação retroactiva. Devendo reconhecer-se, pelo contrário, que as operações referidas não foram realizadas com o intuito de evitar o pagamento de IRS quando fossem feitos os reembolsos das dívidas, pois tratava-se de actos relativamente aos quais os Requerentes tinham conscientemente aproveitado o regime de não tributação de mais-valias e já tinham obtido todas as vantagens que poderiam obter, e que consistiram nessa não-tributação. E sublinham ainda que ficou salvaguardado, no contrato de venda das acções, que os Requerentes manteriam o seu direito aos lucros.
  3. Elemento intelectual: os Requerentes entendem que a constituição da SGPS visou, em termos económicos e organizacionais, os objectivos que estão expressamente consagrados no regime das SGPS, criando uma cúpula de participação dentro de uma reestruturação e reorganização societária. E concluem: “Sendo patente que no caso em análise houve uma inequívoca reestruturação e racionalização da actividade do grupo AA..., o facto dos negócios jurídicos que as permitiram terem gerado, simultaneamente, ganhos de natureza fiscal não invalida que aquela motivação tenha estado presente, afastando o objectivo da motivação essencial ou predominantemente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos.” (art. 221 do PPA). Asseverando ainda que o facto de a venda ter gerado um crédito para os Requerentes se deveu apenas ao objectivo de dotar inicialmente a SGPS dos meios de aquisição das participações, não se tendo antecipado o efeito futuro que tal decisão pudesse ter na distribuição dos resultados da SGPS.
  4. Elemento normativo: os Requerentes sustentam que, tendo adoptado formas jurídicas de acordo com as suas finalidades típicas, nada houve de insólito ou impróprio, não se descortinam quaisquer expedientes artificiais geradores de uma total ausência de fins económicos ou de uma clara divergência entre os fins da operação pretendida e os resultados alcançados – não devendo perder-se de vista que se tratou da venda de activos não sujeitos a tributação.
  1. Concluem os Requerentes que a aplicação da CGAA, neste contexto, resultaria na desconsideração da própria opção do legislador fiscal que, deliberadamente, potenciou ao máximo a vantagem fiscal associada às mais-valias por meio da sua pura e simples não tributação, em total contraste com a tributação dos respectivos dividendos.
  2. Acrescentando que não se verificou qualquer redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos, nem se verificou a obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas sem a utilização dos meios invocados pela AT.
  3. E terminam pedindo que se lhes reconheça o direito à exclusão de tributação em IRS do valor recebido em pagamento das suas acções, indevidamente tributadas como dividendos, por a sua venda ter ocorrido em data anterior à entrada em vigor da cessação do benefício incidente sobre a venda de acções, com a consequente correcção do cálculo do imposto e das liquidações aqui em causa.
  4. Requerendo, em consequência, a anulação do indeferimento das reclamações graciosas ...2022... e ...2022..., e das liquidações (2021..., 2021..., 2021 ... e 2021...) a que aquelas reclamações se reportaram.

 

III. B. Posição dos Requerentes em Alegações

 

  1. Em alegações, os Requerentes retomam as posições expressas no seu Pedido de Pronúncia, e concentram a sua defesa na refutação dos argumentos apresentados pela Requerida na sua resposta, nomeadamente contestando o recurso contabilístico ao “método da equivalência patrimonial” ou ao “método do custo” para se sustentar o “carácter artificial” da C... .
  2. Esclarecem que a não-distribuição de lucros pela C...  se deveu ao intuito de aforro de uma “almofada financeira” de cobertura de um ano de custos operacionais de todas as sociedades do grupo.
  3. Sustentam também que não se pode conceber que uma simples venda de acções por parte dos sócios de empresas que são transferidas para uma outra sociedade possa conter algo associável a uma acção anómala, inusual, artificiosa, complexa ou mesmo contraditória, simplesmente porque nessa operação os sócios são remunerados, a prazo, pelo justo valor dos bens cuja propriedade alienam. E que não será o facto de a AT considerar que seria mais normal proceder a uma entrega das acções como entrada no capital que torna a venda uma operação artificiosa.
  4. Entendem que a AT teria que demonstrar que a operação de reestruturação não tinha bases empresariais nem promoveu bons resultados para o grupo de sociedades nela envolvidas, faltando-lhe uma racionalidade económica, reprovando no “business purpose test”.
  5. E alegam que a indevida requalificação dos pagamentos de uma dívida para a designação de dividendos, um rendimento que pode ser sujeito a tributação, representa uma tentativa de tributação retroactiva do rendimento derivado da venda de acções, que à data dos factos estava isento por expressa previsão legal do CIRS (art. 10º, 2, a) e art. 43º, 4, b), pelo simples facto de o seu pagamento ser diferido nos termos contratados.
  6. Os Requerentes sustentam ainda que, não se verificando os elementos (meio / resultado / intelectual / normativo) pressupostos para aplicação da cláusula geral anti-abuso, não se pode proceder ao seu efeito sancionatório, que visa impedir a produção de um resultado fraudulento – porque esse resultado fraudulento não se verificou no caso.
  7. E realçam aspectos concordantes da prova das testemunhas: P..., N..., O..., Z..., e M... .

 

III. C. Posição da Requerida na Resposta

 

  1. Na sua resposta, a Requerida começa por sintetizar que o que está em causa é a realização de duas operações que tiveram, como único objectivo, o de permitir transferir para a esfera pessoal dos Requerentes os rendimentos gerados por uma empresa de que eram accionistas sem que, por isso, tivessem ficado sujeitos à tributação que seria devida em sede de IRS, e isso não apenas nos anos em causa, mas igualmente em anos subsequentes.
  2. Ponderando casuisticamente a actuação concreta imputável aos sujeitos passivos em função das circunstâncias de facto que possam ser tidas como assentes, como se impõe nas aplicações da CGAA, a Requerida conclui pela existência de artifícios de evitação de pagamento de imposto relativamente à distribuição de dividendos, que, normalmente, seria objecto de tributação como rendimentos de capitais, nos termos da alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS: artifícios traduzidos num conjunto sucessivo de operações societárias, de “step transactions”, que permitiu aos Requerentes invocarem um crédito resultante da alienação de acções para auferirem de rendimentos a título de pagamento desse mesmo crédito – rendimentos que, na realidade, consubstanciam uma distribuição de dividendos – procurando, com essa transformação de rendimentos de capitais em pagamento de créditos, evitar a tributação em IRS que incidiria sobre os dividendos, à taxa de 28%, por retenção na fonte e com opção pelo englobamento.
  3. Sustenta a Requerida que, através da interposição da sociedade C..., os dividendos pagos pela sociedade D... foram distribuídos aos Requerentes sem que ocorresse a tributação em sede de IRS. Ter-se-á tratado de um conjunto complexo de actos e negócios jurídicos sujeito a arquitectura global, que tornou a C... SGPS numa sociedade veículo de que os Requerentes foram beneficiários:
    1. A... em aparente contrapartida da venda das acções representativas de 44,82% do capital da sociedade D... SA e E... SA aquando da constituição da C... SGPS em Dezembro de 2009 – uma contrapartida que lhe permitiu receber dividendos como se de amortização/reembolso de um crédito se tratasse.
    2. B... fazendo o mesmo, em aparente contrapartida da venda das acções representativas de 9,96 %. do capital da sociedade D... SA e E... SA – recebendo dividendos como se de amortização/reembolso de um crédito se tratasse.
  4. Tudo com o fim de elidir o art. 5º, 1 e 2, h) do CIRS, evitando abusivamente a respectiva incidência sobre os montantes recebidos por ambos os Requerentes, através da configuração artificiosa da conversão de dividendos em pagamentos de dívida, graças à interposição de uma sociedade-veículo com a fachada de uma SGPS, uma operação desprovida de qualquer substância económica.
  5. A Requerida sublinha que, quando, em 30 de Dezembro de 2009, foi constituída a C... SGPS, esta adquiriu aos seus accionistas as suas representações do capital da sociedade D..., S.A., pelo custo de €7.100.219,00, bem como as ações representativas do capital da sociedade E..., S.A., pelo custo de €1.464.979,76 – isto ao mesmo tempo que o capital social da C... SGPS, perfazia apenas €50.000,00, sendo que, para solver a obrigação legal de pagamento das acções adquiridas, a sociedade C... SGPS, não recorreu a qualquer aumento de capital, ou a um financiamento externo da operação – antes enveredou por um esquema de pagamento em 15 anos, com a constituição de um crédito contabilístico a favor dos seus próprios accionistas.
  6. Por outras palavras, a C... não tinha uma situação patrimonial ou financeira que lhe permitisse fazer face ao pagamento das acções adquiridas aos alienantes com major representatividade no capital social das sociedades D... e E..., e a esse pretexto constituiu-se um crédito contabilístico a favor dos alienantes, sendo que a amortização parcial dos referidos créditos, durante os anos de 2017 e 2018, foi realizado com os fluxos financeiros provenientes da distribuição de lucros da D... à C... SGPS.
  7. A Requerida assinala ainda que, se descontarmos a D... SA, as participações detidas pela sociedade C... SGPS representam apenas 0,73% dos capitais próprios antes de resultados e 0,48% depois de resultados, e um resultado liquido, no seu conjunto, negativo (- €10 783.70), não gerando rendimentos capazes de justificar a própria criação da SGPS. Sendo que nunca ocorreu um desenvolvimento e diversificação das áreas de actividade exercidas indirectamente pela C... SGPS, continuando a D... a gerar a quase-totalidade dos resultados recebidos pela C... SGPS.
  8. Caso as sociedades D... e E... tivessem distribuído os seus lucros pelos seus accionistas, sem a interposição da sociedade C... SGPS, tais montantes seriam pagos aos accionistas sob a forma de dividendos, sendo qualificados como rendimentos de capitais e subsumidos à norma de incidência constante da alínea h) do n.º 2 do art. 5° do CIRS, recaindo sobre eles a taxa liberatória de 28%, prevista, à data dos factos, na alínea a) do n.º 1 do art. 71° do CIRS.
  9. Bastaria isso, no entender da Requerida, para evidenciar que a interposição da sociedade C... SGPS como veículo entre as sociedades D... e E..., por um lado, e os accionistas, por outro, não apresentou, nem apresenta, substância ou vantagem económica que sustente a constituição da SGPS, ou sequer os gastos associados à sua constituição e manutenção.
  10. Para lá da ausência de razões económicas válidas para a sua constituição e existência, a Requerida destaca ainda, quanto à C... SGPS:
    1. A sociedade não exerceu, no lapso temporal analisado, a actividade de gestora de participações sociais, tal como deveria ter acontecido em conformidade com o quadro legal;
    2. A sociedade não procedeu à distribuição de resultados aos seus accionistas;
    3. A sociedade nasceu com incapacidade patrimonial e financeira para solver o pagamento das acções adquiridas aos seus accionistas, pelo que a amortização do resultante crédito foi realizada, desde o início, com os fluxos financeiros provenientes da distribuição de lucros da D... à C... SGPS;
    4. A sociedade não aufere praticamente outros rendimentos, nem tão-pouco se lhe conhece qualquer outra fonte de financiamento;
    5. Não se lhe identificaram colaboradores / trabalhadores.
  11. Na prática, os accionistas das sociedades D... e E... passaram somente de accionistas directos a accionistas indirectos dessas mesmas sociedades, por interposta sociedade, a C... SGPS.
  12. Não se vislumbra qualquer mais-valia de índole económica ou financeira a favor desses accionistas, e o único resultado palpável é a vantagem fiscal obtida com essa passagem de accionistas directos a accionistas indirectos, com o endividamento contabilístico da sociedade que serviu de veículo a essa transição.
  13. A Requerida lembra ainda que a celebração do contrato de compra e venda das acções no mesmo dia da constituição da SGPS adquirente, pelos mesmos accionistas que já participavam no capital social das sociedades D... e  E... e se tornaram accionistas da SGPS adquirente, é um artifício que fez esses accionistas intervirem simultaneamente na qualidade de adquirentes e vendedores nessas participações sociais cruzadas, sem qualquer ganho económico ou financeiro líquidos.
  14. Finalmente, a realçar a posição da SGPS como puro veículo formal, a Requerida lembra que a distribuição dos dividendos da D... para a C... SGPS não concorre para a determinação do seu lucro tributável, nos termos do art. 51°, 1 do CIRC (participation exemption) e encontrava-se dispensada de retenção na fonte, nos termos do art.º 97°, 1, c) do CIRC.
  15. Assim, a C... SGPS serviu, e serve, exclusivamente para permitir a retirada dos dividendos das suas participadas em benefício dos accionistas da C..., transformados aqueles dividendos em amortizações de crédito, que não são tributadas em sede de IRS.
  16. Quanto às afirmações dos Requerentes relativas a outras finalidades da criação da C... SGPS, a Requerida argumenta que se trata de alegações e suposições não-comprovadas, o que constitui violação do ónus da prova que sobre eles recai, nos termos dos arts. 342º do Código Civil e 74º da LGT.
  17. A Requerida reitera a conclusão dos RIT: “O conjunto de operações levadas a cabo pelos acionistas das sociedades D... e C... SGPS, são negócios que devem ser objeto de qualificação como “meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas”. Ao serviço de uma finalidade exclusivamente fiscal, os atos de aquisição de ações das sociedades D... e E... (Norte) pela C... SGPS foram objeto de uma utilização distorcida destinada simplesmente a conseguir, sem tributação, a distribuição de dividendos oriundos da D..., mediante distribuição “encapotada”, “indireta” de dividendos aos ora requerente (e aos restantes acionistas) com o fim de evitar que os montantes recebidos fossem subsumíveis na norma de incidência constante do n.º 1 e da alínea h) do n.º 2 do art.º 5.º CIRS, segundo os quais os lucros/ adiantamentos por conta de lucros, das entidades sujeitas a IRC, colocados à disposição dos respetivos associados ou titulares, constituem rendimentos de capitais (categoria E) sujeitos a IRS.
  18. A Requerida sublinha que deste conjunto de negócios com a constituição e interposição da C... SGPS, e sem substância económica, resultou na realização de duas operações distintas:
    1. uma operação aparente de amortização parcial da dívida aos Requerentes (e aos restantes accionistas/administradores), proveniente do preço das acções da D...;
    2. uma operação real que é uma distribuição de lucros, respeitante a entidade sujeita a IRC (no caso a D...), colocados à disposição do respectivo associado ou titular, qualificados como rendimentos de capitais (Cat. E) e subsumíveis na norma de incidência constante do art. 5.º, 1 e 2, h) do CIRS, e que foi tributada porque a entidade competente (AT), declarou ineficazes, no âmbito tributário, os referidos negócios por caberem no âmbito da CGAA prevista no art. 38º, 2 da LGT, conjugado com o art. 63º do CPPT.
  19. A Requerida considera que foi cumprido o ónus de provar a natureza abusiva da operação (art. 74º da LGT) porquanto os actos praticados e meios utilizados permitiram obter vantagens fiscais que não seriam alcançadas em condições normais de mercado.
  20. E realça que a C... SGPS carece de uma estrutura material e humana mínima, tendo-se comprovado a inexistência de pessoal e de equipamento, a reforçar a ideia de que se trata de um mero veículo formal instrumentalizado a vantagens de natureza fiscal – não tendo por convincente a narrativa de que se tratou da concretização de um projecto de reestruturação empresarial justificado pela complexidade e dispersão dos negócios por várias sociedades: a ideia de que a SGPS passou a encabeçar o grupo não resiste à constatação factual de que a composição dos órgãos de gestão das sociedades não se alterou, nem a natureza dos negócios foi objecto de diversificação ou de incremento significativo.
  21. A reforçar a mesma percepção, a evolução dos capitais próprios da C..., que, feita a sua desagregação, permitem concluir que os valores em causa são fruto da aplicação do método da equivalência patrimonial à valorização das participações sociais que reflecte na sociedade participante a variação dos capitais próprios e dos resultados das participadas (a D...).
  22. O capital próprio da C... SGPS indica que a sociedade não redistribui aos seus accionistas os dividendos que lhe são distribuídos pelas sociedades participadas, e também não cede, por empréstimo, os fundos recebidos a esse título, a qualquer das sociedades, destinando-os, no essencial, à amortização dos créditos dos seus accionistas. A função da C... SGPS é, portanto, a de “parqueamento” dos lucros distribuídos pela D..., convertendo-os em “reembolsos”, sem tributação a jusante; não dispondo de estrutura material ou humana, não pode fazer muito mais, e certamente não pode desempenhar as tarefas que o quadro legal comete às SGPS.
  23. No que respeita ao recurso à CGAA, a Requerida defende que nunca pôs em causa as liberdades constitucionalmente consagradas nem a legitimidade de um planeamento fiscal lícito.
  24. Só que, no caso vertente, sustenta existir sobreposição de interesses pessoais aos interesses societários com vantagens fiscais óbvias, num esquema em circuito fechado com vendedores que são compradores, accionistas e administradores, tudo com relações especiais, nos termos definidos no art. 63º do CIRC.
  25. Ora, tem de entender-se como abusiva uma liberdade que subverte as regras da oneração fiscal e desrespeita a realidade material e jurídica subjacente.
  26. Foi o caso, e a Requerida insiste que a constituição da C... SGPS e a alienação subsequente das participações sociais das sociedades D... e E..., por parte dos seus accionistas, com estipulação do pagamento diferido do preço convencionado, atentas as concretas condições e motivações que rodearam estas operações, podem qualificar-se como sendo um negócio essencialmente dirigido à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos, consubstanciando um esquema fiscal elisivo, com falta de substância ou vantagem económica que sustentem a constituição de uma verdadeira SGPS.
  27. Quanto à verificação dos elementos que integram o esquema analítico de aplicação da CGAA, a Requerida pronuncia-se do seguinte modo, ressalvando a necessidade de uma visão integrada, de conjunto:
  1. Quanto ao elemento meio: existiu um encadeamento de actos e negócios jurídicos considerado abusivo à luz da “step-by-step transaction doctrine”, resultando numa operação artificiosa: em condições normais, a modalidade apropriada às circunstâncias de uma SGPS criada com o capital de €50.000,00, consistiria na entrega das participações sociais para a realização das entradas, e não da constituição de uma dívida para com os accionistas, a ser paga à custa dos lucros distribuídos das sociedades participadas, cuja deliberação era tomada justamente pelos próprios credores. Assim, criou-se uma SGPS-veículo que tem servido somente para “parquear” participações sociais e canalizar os dividendos da D..., transformando-os, pelo período de 15 anos, em “reembolso de dívida” aos accionistas / credores da C...– uma clara incoerência entre a forma escolhida e os propósitos anunciados para a constituição da SGPS. Verificou-se a utilização de um esquema que goza de considerável difusão: uma sucessão de actos, contratos ou negócios válidos em si mesmos, praticados pelas empresas ou entidades do grupo que, vistos de forma global (e não de modo autónomo) se encontram coordenados entre si, constituindo esquemas ou montagens pré-planificadas para a obtenção, de modo exclusivo ou predominante, de uma vantagem fiscal. No caso, através da transmissão de acções da E... à C..., os Requerentes passaram a deter indiretamente os mesmos activos que anteriormente detinham directamente, sem sujeição a qualquer tributação, ao transformar o pagamento de dividendos sujeitos a tributação em IRS, no pagamento (amortização) de uma dívida, evitando a incidência de qualquer tributação.
  2. Quanto ao elemento resultado: trata-se de saber se, com a adopção dos actos descritos, se alcançou uma vantagem fiscal, para o que há que comparar a carga tributária que se verificaria caso tivessem sido praticados actos ou negócios jurídicos de efeito económico equivalente, e não passíveis de gerar a aplicação da cláusula anti-abuso. No caso, ocorreu uma transacção simulada (sham transaction) de descolamento de dividendos (dividend-striping transaction), que consiste precisamente na distribuição de dividendos através da constituição de um empréstimo junto dos accionistas: a dívida constituída a favor dos Requerentes (e dos restantes accionistas) visou tão-somente a obtenção de um resultado fiscal que era a distribuição dos dividendos disfarçados de reembolsos de dívida, sem os sujeitar a tributação, em sede de IRS, na esfera dos seus beneficiários. O resultado final alcançado foi o de exclusão de tributação da operação aparente de amortização parcial da dívida, proveniente do preço das acções, quando a operação real (dissimulada) constituiu uma distribuição de lucros, respeitante a entidade sujeita a IRC, colocados à disposição do respectivo associado ou titular, qualificados como rendimentos de capitais e subsumíveis na norma de incidência constante da alínea h) do n.º 2 do art. 5º do CIRS.
  3. Quanto ao elemento intelectual: trata-se de saber se, além da verificação de um resultado fiscal mais vantajoso, o mesmo foi alcançado com o intuito essencial ou principal do contribuinte. Como já o estabeleceu o STA, basta que a AT faça prova de que a operação realizada não tem um propósito racional à luz do ordenamento jurídico mobilizado, não se enquadrando nas razões que o direito societário apresenta, e que, por isso, o seu propósito se esgota no aforro fiscal a que conduz – não sendo exigível à AT a prova diabólica da representação psicológica da “intencionalidade abusiva”. Ora, ficou comprovado que a C... SGPS não dispunha de recursos materiais e humanos para o exercício da sua actividade, e que o “Grupo AA...” cresceu com as receitas da D..., sociedade sobre a qual os accionistas da C... SGPS mantiveram o seu controlo efectivo. Isso, conclui a Requerida, prova que a operação de constituição da SGPS, e o elevado montante da divida a favor dos Requerentes e dos restantes acionistas, nos moldes em que foram feitos, se deveram a razões predominantemente fiscais, e sem substância económica.
  4. Quanto ao elemento normativo, trata-se de saber se os actos ou negócios foram celebrados por meios artificiosos ou fraudulentos, com abuso de formas jurídicas, para se obter, de forma reprovável, a vantagem fiscal (ou seja, se se abusou da liberdade de gestão, de actuação, de planeamento fiscal). Por outro prisma, trata-se de apurar se o ordenamento jurídico tributaria a realidade fáctica que teria sido praticada se não fossem as condutas abusivas. É evidente que existe uma intenção do legislador de tributar em sede de IRS as operações nas quais se visem distribuir lucros e/ou adiantamentos por conta de lucros e, tanto assim é que este tipo de rendimentos se encontra tipificado no art. 5º, 2, e), do CIRS - não se admitindo  que, pelo simples facto de tal distribuição ter sido “camuflada” por uma diferente “roupagem jurídica” com o intuito de obtenção de vantagens fiscais, o ordenamento se abstivesse de tributar tais realidades, privilegiando a forma (o artifício) em detrimento da substância (artificiosamente dissimulada). Em suma, existe uma intenção clara de tributação das operações que teriam sido praticadas se não fosse a actuação elisiva dos Requerentes.
  5. Quanto ao elemento sancionatório: a verificação cumulativa dos outros quatro elementos torna aplicável o art. 38º, 2 da LGT, que comina uma reprovação normativo-sistemática às operações realizadas pelos contribuintes, através da respectiva tributação de acordo com as normas que seriam aplicáveis se não tivessem sido praticados os actos ou negócios jurídicos artificiosos, visando desconsiderar os actos praticados e desfazer as vantagens fiscais ilegitimamente alcançadas. No caso em apreço, a tributação deve ocorrer de acordo com as normas aplicáveis na ausência da tal “estrutura”, isto é, a alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS, sendo os montantes auferidos sujeitos a tributação autónoma à taxa de 28% nos termos da alínea d) do nº 1 do art.º 72º, todos do CIRS, à taxa liberatória de 28%, ou em caso de opção pelo englobamento, por força do disposto nos nºs 1 e 2 do art.º 40º-A do CIRS (sujeitos às taxas gerais do art.º 68º do CIRS), não se produzindo as vantagens fiscais referidas, tal como dispõe o n.º 2 do art.º 38° da LGT.
  1. Conclui a Requerida que estão verificados todos os pressupostos de que depende a aplicação da CGAA.
  2. Não descortinando qualquer vício nos actos de liquidação, a Requerida entende dever ser absolvida de todos os pedidos.

 

III.D. Posição da Requerida em Alegações

 

  1. Em alegações, a Requerida volta a insistir nas posições defendidas na sua resposta.
  2. Formula reservas à prova testemunhal produzida, sublinhando que ela involuntariamente demonstrou a irrelevância da C..., cuja sede só um dos depoentes conseguiu localizar, tendo todos reconhecido que a C... não teve um único trabalhador até 2018, não reúne condições humanas e físicas, não presta qualquer serviço de gestão às suas participadas e nem sequer remunera o trabalho dos respectivos administradores. Nunca financiou nada, nunca negociou um projecto de investimento, nunca recorreu a qualquer financiamento externo, nunca apresentou passivo relevante.
  3. Quanto ao argumento de que a C... foi constituída com o objectivo de investir na internacionalização/crescimento do Grupo via gestão de participações sociais, a Requerida observa que isso é totalmente contraditado pela prática de transferência imediata dos primeiros recursos disponíveis para os seus accionistas, a título de um crédito associado à criação da C... e à aquisição das participações da D... e E... aos sócios destas.
  4. Quanto ao argumento de que a C... foi constituída com o objectivo de resolver tensões e ineficiências na gestão de sociedades do grupo, a Requerida faz notar que o argumento é desmentido pelo facto elementar de a estrutura de comando, a estrutura accionista, os administradores, se terem mantido praticamente os mesmos, após a constituição da C... .
  5. Acrescenta que, em toda a publicidade do grupo AA... e dos produtos D..., a  C... é invisível, inexistente.
  6. Entende a Requerida que ficou abundantemente provado que a C... não tem substância económica real, sendo apenas uma estrutura artificial criada para obter benefícios fiscais, pelo que nem subsistem dúvidas que pudessem ser dissipadas por um “business purpose test”.
  7. Voltando a enfatizar que a motivação de constituição da C... foi de índole fiscal, sendo que a constituição de uma SGPS não trouxe qualquer mais-valia de índole económico-financeira para os detentores do capital das sociedades... , SA e E..., que apenas passaram de accionistas directos para indirectos, servindo antes para a transformação de um fluxo financeiro, de lucros em pagamentos de divida, com o propósito único de permitir o afastamento da carga fiscal associada ao recebimento de dividendos.

 

IV. Fundamentação da decisão

 

IV.A. O mérito da causa.

 

Estamos agora em condições de nos pronunciarmos sobre o mérito da causa.

 

IV. B. 1. O direito à boa gestão fiscal

 

Aos contribuintes assiste o direito ao livre desenvolvimento de uma actividade económica, que pode ser exercida através do modelo de organização empresarial que aqueles entendam ser mais adequado para o efeito, conforme decorre dos princípios da liberdade de iniciativa económica privada e da liberdade de iniciativa, organização e gestão empresarial previstos nos artigos 61º, 1, 80º, c) e 86º, 2, todos da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Um corolário da tutela conferida por aqueles princípios é a liberdade de gestão fiscal, nos termos da qual se assegura aos contribuintes a necessária amplitude na planificação das actividades económico-empresariais, e na escolha das opções que permitam uma maximização de receitas e uma optimização de custos, com a consequente obtenção, dentro dos limites da lei, de todas as vantagens fiscais possíveis.

Não está em causa que a “boa gestão fiscal” suponha a minimização dos custos fiscais, a “economia” ou “poupança” fiscal, avaliando as consequências económicas e fiscais das suas escolhas, buscando a optimização dos seus meios e a maximização dos seus resultados – dos seus proveitos.

Mas esse direito não é absoluto, e não só supõe o rigoroso cumprimento das leis tributárias como, também, deve subordinar-se às opções expressas na lei relativamente à ponderação de valores e interesses que devam funcionalizar o exercício da própria liberdade económica, demarcando o exercício da liberdade económica por balizas de legitimidade e admissibilidade – fronteiras para lá das quais a referida ponderação qualificará com abusivo o exercício da mesma liberdade económica.

E uma dessas fronteiras é, precisamente, a da existência, ou inexistência, de substância económica ou de razões comerciais ou empresariais válidas para a escolha, pelo contribuinte, de um meio específico para a realização dos seus negócios – porque a inexistência dessas razões fará desaparecer qualquer intenção expressa da lei em termos de poupança ou ganho fiscal equacionado pelo legislador.

 

IV. B. 2. O planeamento fiscal ilícito e a elisão fiscal

 

É possível, assim, demarcar o planeamento fiscal lícito, por um lado, da evasão e da elisão fiscais, por outro lado.

  1. No planeamento lícito, “secundum legem” ou “intra legem”, o contribuinte adapta a sua conduta por forma a obter as tais referidas poupanças ou ganhos fiscais equacionados pelo legislador.
  2. A evasão fiscal (“tax evasion”) consistirá num planeamento “contra legem”, consistente numa conduta ilegal e censurável de tentativa de obtenção de vantagens fiscais.
  3. A elisão fiscal (“tax avoidance”) corresponde ao planeamento fiscal “extra legem”, consistente numa conduta que, composta de actos que não violam directamente a lei, alcançam, por abuso dos meios disponibilizados pela lei, resultados censuráveis, resultados que violam os valores e objectivos do ordenamento jurídico-tributário.

O abuso de mecanismos aparentemente legais converte esses mesmos mecanismos em expedientes anómalos, impróprios e artificiais, desprovidos da racionalidade económica, comercial ou empresarial que legitimaria o respectivo emprego, e cuja utilização se explica pelo intuito proeminente de contornar ou instrumentalizar as normas jurídico-tributárias, tendo em vista a obtenção de uma poupança fiscal.

A propósito da elisão, note-se que o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) já assinalou que “o princípio geral da proibição de práticas abusivas deve ser oposto a uma pessoa quando esta invoca certas regras do direito da União que preveem uma vantagem de uma forma que não é coerente com os objetivos que essas regras visam”, e que um “contribuinte não pode beneficiar de um direito ou de uma vantagem decorrente do direito da União caso a operação em causa seja puramente artificial no plano económico e vise eximir-se à aplicação da legislação do Estado-Membro em causa” (cfr. acórdão do TJUE de 26 de Janeiro de 2019, processos apensos C-115/16, C-118/16, C-119/16 e C-299/16, N Luxembourg 1 e outros, n.os 102 e 109).

O combate à elisão é um exercício de conciliação de valores e interesses, visto que, a seu pretexto, não se pode colocar em crise todos os resultados fiscais obtidos pelos contribuintes, ou seja, não se pode invadir totalmente os domínios do planeamento lícito – mas ao mesmo tempo não se pode conceber que, enredada nas naturais limitações que a obediência ao princípio da legalidade impõe para a globalidade da actuação administrativa da AT, esta se veja desarmada no combate à elisão fiscal.

Por isso a lei confere à AT poderes de actuação que lhe permitem sindicar a legalidade, e colocar em crise o planeamento fiscal realizado pelos contribuintes, quando haja indícios de que esse planeamento degenerou em elisão fiscal: e um dos seus principais instrumentos é a CGAA, que foi aplicada pela AT aos ora Requerentes, de forma a corrigir as respectivas situações jurídico-tributárias.

 

IV. B. 3. A política antiabuso e o art. 38º da LGT

 

A política legislativa antiabuso foi-se desenvolvendo no ordenamento jurídico-fiscal português a partir dos anos 90 do século XX, mormente sob a forma de cláusulas especiais antiabuso destinadas a eliminar ou atenuar fenómenos de crescente evasão e elisão fiscais, em especial em sede de IRC, de que são exemplo os arts. 49º, 10 e 73º, 10 do CIRC, relativos, respectivamente, à requalificação, pela AT, de operações com instrumentos financeiros derivados, quando haja desfasamento entre forma e substância das mesmas; e à exclusão, em certos casos, da aplicação do regime especial aplicável às fusões, cisões e entradas de activos e permutas de partes sociais.

As inadequações do casuísmo cedo apontaram para a necessidade de estabelecimento de cláusulas gerais, como veio a suceder com a CGAA, introduzida no final do século XX por ocasião da reforma do CPPT: cláusulas com vocação universal, e com a vantagem adicional de poderem servir de apoio a cláusulas especiais antiabuso.

A jurisprudência foi lenta a adoptar essa novidade normativa, e a sua primeira aplicação remonta à decisão do TCAS de 15/2/2011, no Proc. n.º 04255/10.

Na versão que releva para os factos de que se ocupa o presente processo (exercícios de 2017 e 2018), a CGAA constava do art. 38º, 2, da LGT, e estabelecia-se nesse artigo o seguinte:

Artigo 38.º

Ineficácia de actos e negócios jurídicos

1 - A ineficácia dos negócios jurídicos não obsta à tributação, no momento em que esta deva legalmente ocorrer, caso já se tenham produzido os efeitos económicos pretendidos pelas partes.

2 - São ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas.”

Essa a redacção introduzida na LGT pela Lei nº 30-G/2000, de 29 de Dezembro, e tem interesse considerarmos a versão actualmente vigente, introduzida pela Lei nº 32/2019, de 3 de Maio:

“[…] 2 - As construções ou séries de construções que, tendo sido realizadas com a finalidade principal ou uma das finalidades principais de obter uma vantagem fiscal que frustre o objeto ou a finalidade do direito fiscal aplicável, sejam realizadas com abuso das formas jurídicas ou não sejam consideradas genuínas, tendo em conta todos os factos e circunstâncias relevantes, são desconsideradas para efeitos tributários, efetuando-se a tributação de acordo com as normas aplicáveis aos negócios ou atos que correspondam à substância ou realidade económica e não se produzindo as vantagens fiscais pretendidas.

3 - Para efeitos do número anterior considera-se que:

a) Uma construção ou série de construções não é genuína na medida em que não seja realizada por razões económicas válidas que reflitam a substância económica;

b) Uma construção pode ser constituída por mais do que uma etapa ou parte.

4 - Para efeitos de aplicação do disposto no n.º 2, nos casos em que da construção ou série de construções tenha resultado a não aplicação de retenção na fonte com caráter definitivo, ou uma redução do montante do imposto retido a título definitivo, considera-se que a correspondente vantagem fiscal se produz na esfera do beneficiário do rendimento, tendo em conta os negócios ou atos que correspondam à substância ou realidade económica. […]”

 

IV. B. 4. A sanção da ineficácia

 

Por via da aplicação da CGAA, os actos ou negócios jurídicos abusivos praticados pelos contribuintes com o intuito essencial, ou principal ,de obtenção de uma vantagem fiscal são ineficazes, isto é, são desconsiderados e requalificados quanto aos efeitos produzidos: significando isto que, não obstante poder manter-se (ou não) a validade e a eficácia desses actos ou negócios jurídicos quanto aos efeitos produzidos noutros ramos do Direito, são anulados os efeitos tributários que tiverem sido produzidos, “requalificando-os” de modo que a tributação se processe com base nas normas aplicáveis aos actos equivalentes que teriam sido praticados, não fosse ter ocorrido, entretanto, a conduta abusiva ditada pelo propósito de alcançar a vantagem fiscal indevida.

A essa desqualificação para efeitos fiscais de um qualquer acto ou negócio jurídico praticado pelo contribuinte com o único, ou principal, objectivo de obtenção de uma vantagem fiscal, segue-se a reconfiguração de tais actos ou negócios jurídicos como tendo sido praticados de acordo com aquele padrão normal do comércio jurídico que teria sido seguido para obter o mesmo resultado económico, determinando-se a obrigação tributária em função dos actos equivalentes que pudessem, assim, ter sido praticados com normalidade.

Insista-se que a solução da ineficácia significa que os actos ou negócios jurídicos não produzem os seus efeitos típicos, nem são oponíveis à AT, em sede tributária, sem embargo de poderem ser inteiramente válidos face a outros ramos de direito, nomeadamente em sede de direito privado. Poderão, nesses outros ramos de direito, ser inválidos por outros motivos; mas serem-no, ou não, não interfere com a sua ineficácia em sede tributária.

Essa ineficácia significa a desconsideração da finalidade fiscal daquele acto ou negócio que seja considerado abusivo, ou seja, a sua não-relevância para a obtenção de vantagens fiscais que, se não fosse o abuso, seriam, total ou parcialmente, alcançáveis.

A desconsideração do acto ou negócio que seja qualificado como abusivo tem, como corolário lógico, a consideração de um outro acto ou negócio jurídico (“dissimulado” lato sensu, abarcando neste sentido amplo as chamadas “sham transactions”) que seria tributável de acordo com as normas aplicáveis a essa mesma situação.

Em tese geral, trata-se de contrabalançar o respeito genérico pela autonomia privada e pela liberdade de gestão, traduzidos na licitude, em princípio, do planeamento fiscal, com salvaguardas que preservam os interesses tributários contra o uso de formas jurídicas, “construções”, “séries de construções” (as “step transactions”), artifícios mais ou menos estruturados, que tenham o fito predominante de obter uma vantagem fiscal em detrimento da essência económica visada pela tributação, e justificadora das referidas vantagens.

Trata-se, em suma, com a CGAA, de contribuir para o combate à elisão e evasão fiscais, à erosão da base tributável, ao abuso estratégico de formalismos jurídicos (genericamente, a prevalência da substância sobre a forma[2]), ao abuso de lacunas inadvertidas no quadro legal, procurando a preservação da equivalência económica dos efeitos jurídicos tributários, a sanidade das práticas negociais e empresariais (aferida pelo “business purpose test” e pelo “arm’s length” dos preços de transferência), e, através delas, o respeito pela boa-fé, pela igualdade e pela capacidade contributiva.

 

IV. B. 5. Os conceitos abertos em normas antiabuso, nacionais e internacionais

 

A norma que prevê a CGAA foi redigida com recurso a conceitos vagos e indeterminados, a reclamarem concretização normativa – pelos contribuintes, pela AT e, em termos decisivos, pelos Tribunais.

Trata-se de uma técnica legislativa intencional, na medida em que o legislador fiscal reconhece a necessidade de preservar a base tributária e habilitar a AT, e os tribunais, a protegerem as finalidades substantivas da legislação fiscal, mantendo a flexibilidade reclamada pela natureza dinâmica e evolutiva do planeamento fiscal, tanto o lícito como o ilícito, sem entravar, com fórmulas peremptórias e pretensamente definitivas, uma actuação da AT, e dos tribunais, que tem que ir acompanhando, nas suas respostas, as novas transacções geradas pela crescente “indústria do planeamento fiscal agressivo”, uma actividade expansiva e inventiva, na sua capacidade de descobrir e explorar “loopholes” inadvertidos na lei fiscal.

Defrontando-se com realidades dinâmicas e com comportamentos estratégicos de crescente sofisticação, é natural que as CGAA sejam formuladas com recurso a conceitos abertos, susceptíveis de interpretação e aplicação activa por parte do Fisco e dos tribunais, com uma margem de discricionariedade e de agilidade susceptível de fazer frente ao planeamento fiscal agressivo e a evasão fiscal.

Essas ductilidade e abertura, insista-se, são resultados de uma ponderação explícita das necessidades de adequação a um universo de manipulação de formas jurídicas que não se compadece com o modo tradicional – formalista – de estruturação e funcionamento do direito fiscal; uma ponderação reclamada, por outro lado, pela preservação dos valores de justiça e segurança prosseguidos pela tipicidade, certeza e previsibilidade dos regimes legais próprios de um Estado de Direito.

Dentro das margens da ponderação, a intensificação e globalização das condutas de evasão e fraude fiscal impõem a adopção de atitudes mais realistas, pragmáticas e consequencialistas, por parte do legislador, da administração e dos tribunais tributários – sob pena de estes ficarem reféns do planeamento fiscal “agressivo” e do abuso na exploração estratégica dos próprios constrangimentos causados pela configuração formalista e rígida do quadro legal, administrativo e judicial.

A CGAA tornou-se, assim, uma peça central numa “caixa de ferramentas” que está ao dispor da AT no seu combate às formas especiais de abuso (pense-se nos preços de transferência), à evasão, à elisão e à fraude fiscal, reforçando a mencionada agilidade de resposta às dinâmicas do abuso – resgatando a administração e os tribunais do excessivo (e irrealista) confinamento à interpretação literal, às categorias da dogmática privatística, ao literalismo, à predominância da qualificação e da forma sobre a real substância daquilo que os actos e os negócios jurídicos efectivam ou colocam em marcha (pelas mesmas razões pelas quais “a qualificação do negócio jurídico efectuada pelas partes, mesmo em documento autêntico, não vincula a administração tributária” – art. 36º, 4 da LGT).

A CGAA tornou-se, no direito fiscal português, a pedra de toque de um “novo realismo” ditado por circunstâncias prementes a nível nacional e internacional, devendo lembrar-se que o problema da evasão fiscal tem estado no centro da agenda da comunidade internacional, nomeadamente através da iniciativa Base Erosion e Profit Shifting (BEPS), promovida pela OCDE, ou de medidas europeias vocacionadas para lidarem com a “manufactura da indeterminação factual”, que passa pela geração artificiosa de complexidade nas transacções empresariais e na estruturação empresarial, com abuso do direito ao planeamento fiscal, com escopo de fraude à lei.

Aliás, a publicidade de denúncias contra práticas evasivas ou elisivas de empresas plurilocalizadas levou a comunidade internacional, em especial no quadro da OCDE e do G20, a reforçar a luta contra a erosão das bases fiscais e a deslocalização de lucros, não só com o Plano Anti-BEPS mas com a imposição de deveres de revelação e transparência susceptíveis de identificarem mecanismos de planeamento tributário agressivo, e de separá-los da substância das operações.

Daí, entre outras, a Directiva Antielisão (DAE, Directiva [UE] 2016/1164 do Conselho de 12 de Julho de 2016), aprovada com o objectivo de “restabelecer a confiança na equidade dos sistemas fiscais e permitir que os governos possam exercer eficazmente a sua soberania fiscal”, e que, entre outras soluções, contém uma “regra geral antiabuso” no seu art. 6º:

1. Para efeitos do cálculo da matéria coletável das sociedades, os Estados-Membros devem ignorar uma montagem ou série de montagens que, tendo sido posta em prática com a finalidade principal ou uma das finalidades principais de obter uma vantagem fiscal que frustre o objeto ou a finalidade do direito fiscal aplicável, não seja genuína tendo em conta todos os factos e circunstâncias relevantes. Uma montagem pode ser constituída por mais do que uma etapa ou parte.

2. Para efeitos do n.º 1, considera-se que uma montagem ou série de montagens não é genuína na medida em que não seja posta em prática por razões comerciais válidas que reflitam a realidade económica.

3. Caso as montagens ou série de montagens não sejam tomadas em consideração nos termos do n.º 1, a coleta é calculada nos termos do direito nacional.

Esta redacção, que está evidentemente na base da nova formulação do art. 38º, 2 da LGT (“montagem ou série de montagens” foi transposto para “construções ou séries de construções”), realça a noção de que o que se combate é o abuso, ou seja, o planeamento agressivo e “extra legem”, o qual – recordemos – pode, e deve, ser destrinçado do planeamento fiscal lícito, que é a expressão de uma liberdade económica e empresarial, e pode até ser encorajado pelo quadro normativo.

 

IV. B. 6. A aplicação da CGAA

 

A CGAA é uma arma excepcional e poderosa, pelo que se compreende que o recurso a ela deva ser acompanhado de importantes precauções de natureza instrumental, que salvaguardem garantias dos contribuintes, evitando que, na ponderação de interesses que legitima o recurso à CGAA, essas garantias sejam inadvertida e injustificadamente sacrificadas.

Essa a razão pela qual, entre os “procedimentos próprios” do CPPT, se conta, no art. 63º, o de “Aplicação de disposição antiabuso”.

Na versão que releva para os factos de que se ocupa o presente processo, essa norma estabelecia que:

1 - A liquidação de tributos com base na disposição antiabuso constante do n.º 2 do artigo 38.º da lei geral tributária segue os termos previstos neste artigo.

2 - (Revogado.)

3 - A fundamentação do projecto e da decisão de aplicação da disposição antiabuso referida no n.º 1 contém necessariamente:

a) A descrição do negócio jurídico celebrado ou do acto jurídico realizado e dos negócios ou actos de idêntico fim económico, bem como a indicação das normas de incidência que se lhes aplicam;

b) A demonstração de que a celebração do negócio jurídico ou prática do acto jurídico foi essencial ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em caso de negócio ou acto com idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais.

4 - A aplicação da disposição antiabuso referida no n.º 1 depende da audição prévia do contribuinte, nos termos da lei.

5 - O direito de audição prévia é exercido no prazo de 30 dias a contar da notificação do projecto de aplicação da disposição antiabuso ao contribuinte.

6 - No prazo referido no número anterior poderá o contribuinte apresentar a prova que entender pertinente.

7 - A aplicação da disposição antiabuso referida no n.º 1 é prévia e obrigatoriamente autorizada, após a audição prévia do contribuinte prevista no n.º 5, pelo dirigente máximo do serviço ou pelo funcionário em quem ele tiver delegado essa competência.

8 - A disposição antiabuso referida no n.º 1 não é aplicável se o contribuinte tiver solicitado à administração tributária informação vinculativa sobre os factos que a tiverem fundamentado e a administração tributária não responder no prazo de 150 dias.

Essa a redacção introduzida no CPPT pela Lei nº 64-B/2011, de 30 de Dezembro, e tem interesse considerarmos a versão actualmente vigente, introduzida pela Lei nº 32/2019, de 3 de Maio:

1 - A liquidação de tributos com base na disposição antiabuso constante do n.º 2 do artigo 38.º da lei geral tributária segue os termos previstos neste artigo.

2 - (Revogado.)

3 - A fundamentação do projecto e da decisão de aplicação da disposição antiabuso referida no n.º 1 contém necessariamente:

a) A descrição da construção ou série de construções que foram realizadas com abuso das formas jurídicas ou que não foram realizadas por razões económicas válidas que reflitam a substância económica;

b) A demonstração de que a construção ou série de construções foi realizada com a finalidade principal ou uma das finalidades principais de obter uma vantagem fiscal não conforme com o objeto ou a finalidade do direito fiscal aplicável;

c) A identificação dos negócios ou atos que correspondam à substância ou realidade económica, bem como a indicação das normas de incidência que se lhes aplicam;

d) A demonstração de que o sujeito passivo sobre o qual recairia a obrigação de efetuar a retenção na fonte, ou de reter um montante de imposto superior, tinha ou deveria ter conhecimento da construção ou série de construções, quando aplicável.

4 - A aplicação da disposição antiabuso referida no n.º 1 depende de:

a) Audição prévia do contribuinte, nos termos da lei;

b) Existência de procedimento de inspeção dirigido ao beneficiário do rendimento e ao substituto tributário, quando se verifique o recurso às regras gerais de responsabilidade em caso de substituição tributária a que se refere o n.º 5 do artigo 38.º da Lei Geral Tributária.

5 - O direito de audição prévia é exercido no prazo de 30 dias a contar da notificação do projecto de aplicação da disposição antiabuso ao contribuinte.

6 - No prazo referido no número anterior poderá o contribuinte apresentar a prova que entender pertinente.

7 - A aplicação da disposição antiabuso referida no n.º 1 é prévia e obrigatoriamente autorizada, após a audição prévia do contribuinte prevista no n.º 5, pelo dirigente máximo do serviço ou pelo funcionário em quem ele tiver delegado essa competência.

8 - A disposição antiabuso referida no n.º 1 não é aplicável se o contribuinte tiver solicitado à administração tributária informação vinculativa sobre os factos que a tiverem fundamentado e a administração tributária não responder no prazo de 150 dias.

9 - (Revogado.)

10 - (Revogado.)

11 - A impugnação da liquidação de tributos com base na disposição antiabuso referida no n.º 1 será obrigatoriamente precedida de reclamação graciosa.

12 - Quando se verifique a aplicação do disposto no n.º 5 do artigo 38.º da Lei Geral Tributária:

a) A aplicação da disposição antiabuso referida no n.º 1 não prejudica o direito de regresso aplicável do montante do imposto retido e, bem assim, o direito do beneficiário de optar pelo englobamento do rendimento, nos termos previstos na lei;

b) A decisão da reclamação graciosa apresentada pelo beneficiário do rendimento nos termos do número anterior, é igualmente da competência do órgão periférico regional que, nos termos do n.º 1 do artigo 75.º, seja competente para a decisão de reclamação graciosa apresentada pelo substituto tributário, podendo este órgão determinar a sua apensação.

13 - A opção de englobamento prevista no número anterior pode ser exercida pelo sujeito passivo através de declaração de substituição acompanhada de requerimento dirigido ao Diretor-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira, no prazo de 120 dias a contar da data do conhecimento, ou da data em que for possível obter o conhecimento, do trânsito da decisão, quer administrativa quer judicial, das correções efetuadas ao abrigo do n.º 1.

Retenha-se que, entre as aludidas precauções de natureza instrumental que visam assegurar as garantias dos contribuintes, avultam a exigência de um procedimento especial, com um reforçado dever de fundamentação, e com necessidade de audição prévia do contribuinte, após a qual a aplicação efectiva da CGAA dependerá ainda da autorização de um superior hierárquico.

Vigorava ainda, à data dos factos, o Decreto-Lei n.º 29/2008, de 25 de Fevereiro, que estabelecia deveres de comunicação, informação e esclarecimento à administração tributária para prevenir e combater o planeamento fiscal abusivo, e que entretanto foi revogado pela Lei nº 26/2020, de 21 de Julho, que estabelece a obrigação de comunicação à Autoridade Tributária e Aduaneira de determinados mecanismos internos ou transfronteiriços com relevância fiscal, transpondo a Diretiva (UE) 2018/822 do Conselho, de 25 de maio de 2018, e revogando o Decreto-Lei n.º 29/2008, de 25 de fevereiro.

Embora o alcance dos dois diplomas fosse, e seja, essencialmente o de combater o fenómeno do planeamento fiscal agressivo promovido por intermediários fiscais (“promotores”), impondo deveres de divulgação prévia, existem óbvias sobreposições com o quadro de aplicação da CGAA – com a diferença essencial de que a CGAA se aplica igualmente, como é óbvio, a esquemas de planeamento fiscal agressivo não previamente divulgados – fosse ou não obrigatória essa divulgação prévia.

 

IV. B. 7. Os elementos integradores da CGAA

 

Seja o abuso resultante de planeamento fiscal agressivo, ou não (não podendo proceder-se a uma triagem entre formas abusivas em termos de intencionalidade e de sofisticação), a cominação do art. 38º, 2 da LGT será sempre a da desconsideração das formas, esquemas e “montagens” utilizados no seu conjunto e no seu resultado final, independentemente da sua validade jurídico-privada, ou do seu valor considerado acto a acto – desde que verificados os seus elementos integradores[3]:

  1. Elemento meio (a forma utilizada, a via livremente escolhida): o recurso a formas ou negócios jurídicos inabituais, atípicos ou artificiais (esquemas ou montagens), tendo em vista a obtenção, de modo exclusivo ou predominante, de uma vantagem fiscal – o que normalmente requer uma análise global, sintética, que transcenda a análise separada de cada passo da sequência adoptada, como o aconselha a doutrina da step transaction, que privilegia o desenho artificioso da sequência (da “montagem ou série de montagens”), em detrimento da insuficiência de cada passo separado para ser identificado como abusivo. Por outras palavras, o que é abusivo ou fraudulento é o meio, globalmente considerado, e não necessariamente um qualquer elemento desgarrado desse “meio”; abusiva será a via escolhida pelo contribuinte para obter o desejado ganho ou vantagem fiscal, e isso será globalmente aferido através do nível de incoerência entre a forma ou estrutura escolhida e o propósito económico-prático final do contribuinte, entre o fim para que é empregue concretamente essa forma adoptada, por um lado, e, por outro lado, a causa que lhe é própria.
  2. Elemento resultado (a vantagem fiscal e a equivalência económica visadas e obtidas): a obtenção de uma vantagem fiscal efectiva que se traduz na redução, eliminação ou diferimento temporal do imposto; uma vantagem, decorrente dos esquemas, ou montagens, utilizados, que conduz à obtenção de uma carga tributária mais favorável do que aquela que o contribuinte obteria se não tivesse recorrido àqueles meios.
  3. Elemento intelectual (a motivação do contribuinte que torna preponderante ou essencial a via escolhida): com este elemento procura analisar-se se a motivação do contribuinte foi, ou não, preponderantemente de natureza fiscal, relativamente à obtenção da vantagem fiscal efectiva através dos meios utilizados – uma motivação apurada objectivamente, com base num juízo de razoabilidade e normalidade; ou seja, mesmo que exista também alguma finalidade económica no conjunto dos actos e contratos realizados, esta seria de natureza meramente acessória, e não de natureza principal, não podendo ser considerada razão comercial ou empresarial legítima para efeitos tributários.
  4. Elemento normativo (a reprovação normativo-sistemática da vantagem obtida): visa detectar-se se existe, ou não, um juízo de censura ético-jurídico da parte do legislador, relativamente aos comportamentos dos sujeitos passivos, se o espírito e a razão de ser da ordem jurídica era o de impedir a obtenção de vantagens fiscais por meio de esquemas ou montagens que contornem a lei (abuso artificioso de formas jurídicas, fraude à lei), ou se tais vantagens são um resultado assumido pelo próprio legislador fiscal, como no caso das lacunas conscientes de tributação, nas quais fica disponibilizada uma opção fiscal de que o contribuinte se limita a tirar proveito, legitimamente, no exercício da sua liberdade económica, alcançando uma poupança fiscal legítima.
  5. Estatuição, ou elemento sancionatório (a efectivação da cláusula na estatuição da norma, determinando a sanção de ineficácia): por vezes autonomizado, é, contudo, mais uma consequência do que um pressuposto da aplicação da CGAA, é o efeito da verificação cumulativa dos demais pressupostos que desencadeiam a estatuição da norma.

Embora a análise de cada um destes elementos deva ser feita de modo individualizado, esse facto não pode fazer esquecer que, na realidade, eles se encontram fortemente articulados ou concatenados entre si; sendo sempre necessário observar tais elementos no seu conjunto, e na sua articulação dinâmica, aliás o único modo de se chegar a uma visão realista, pragmática e consequencialista que permita captar aquilo que, no todo, está em jogo na qualificação como “abusiva” de uma conduta que, em cada um dos passos autonomamente considerado, aparenta não ser abusiva.

Por outro lado, a apreciação casuística é inescapável, visto que os critérios normativos são deliberadamente abertos e remetem para uma avaliação complexa, dúctil, adaptada, pragmática, das circunstâncias relevantes, meramente aludidas ou esboçadas no quadro jurídico-tributário pertinente, sendo que o funcionamento da CGAA pressupõe sempre uma tarefa de realização concreta do Direito, não sendo viável, sob pena de se desprotegerem as necessidades reais que presidiram à sua consagração, reduzir a sua aplicação à subsunção estrita e automática das realidades a categorias jurídicas abstratas.

Admitir-se-á ainda que, na ausência de confissão dos perpetradores, a detecção do planeamento abusivo, e a sua demarcação face ao planeamento legítimo, sempre reclamarão juízos de razoabilidade e racionalidade, remetendo para juízos de experiência comum e de normalidade económica e social.

Sendo este esquema analítico de cinco elementos que se encontra nos RIT, e que enquadra as posições expostas pelas partes nos presentes autos, moldando-lhes as posições e argumentos, na apreciação aqui em causa, este Tribunal vai igualmente orientar-se por tal esquema analítico – insistindo que não há lugar a uma subsunção estrita e mecânica das realidades do caso a categorias jurídicas abstractas, antes se impõe um esforço interpretativo das circunstâncias concretas e das suas implicações pragmáticas, num registo casuístico que é reclamado pelas finalidades próprias do antiabuso – cuja conotação anti-formalista já tivemos ocasião de referir.

Ora a dissimulação da distribuição de dividendos (tributáveis) noutras formas não-tributáveis de distribuição pelos sócios dos rendimentos de uma empresa, por transformação desses rendimentos em mais-valias, ou em reembolsos de dívidas, é um esquema de elisão conhecido.

Na primeira dessas modalidades, este esquema envolve, como passos essenciais, que pessoas singulares, sócios dominantes de uma sociedade que possui avultadas reservas disponíveis, traduzíveis em elevada liquidez, que derivam de uma política sistemática de não-distribuição de dividendos, procedem à alienação onerosa das acções de que são titulares a uma outra sociedade, designadamente uma SGPS, igualmente por eles controlada (sendo coincidente a estrutura accionista e o Conselho de Administração de ambas as sociedades), com pagamento diferido do preço, que será efectuado uma vez distribuídas as reservas disponíveis à sociedade adquirente, a qual não suporta qualquer tributação sobre esses lucros recebidos por força dos mecanismos da eliminação da dupla tributação económica de lucros distribuídos, uma montagem com a qual os sócios pessoas singulares conseguem receber como mais-valias não tributadas, advenientes do preço das acções alienadas de cujo crédito são titulares na SGPS, aquilo que, em termos normais, receberiam sob a forma de dividendos tributados em sede de IRS.

Na segunda modalidade, constitui-se uma SGPS, e os accionistas das participadas transmitem para ela as acções que têm nessas participadas, ficando com um crédito sobre a SGPS que vai sendo reembolsado através da entrega de dividendos das participadas à SGPS; e assim, com a “interposição” da SGPS, os dividendos das participadas chegam aos bolsos dos seus ex-accionistas, transformadas em reembolsos de dívidas da SGPS para com os seus accionistas (os mesmos que eram accionistas das empresas participadas) – com o resultado de que, a ter havido distribuição directa desses proventos, eles seriam tributados na Categoria E de IRS; mas que, dissimulada essa distribuição sob a aparência de pagamento de dívidas, isso determinou que acabasse por não incidir qualquer tributação efectiva na esfera pessoal dos intervenientes.

A sequência de sucessivos negócios jurídicos, nesta segunda modalidade, propicia a dissimulação da distribuição de dividendos através da interposição deliberada de uma SGPS, a quem os accionistas da principal geradora de lucros transmitem onerosamente as suas acções, não obstante serem eles mesmos os únicos accionistas da própria SGPS, estabelecendo um valor para essa venda de acções que assegura por um longo período um rendimento correspondente àquilo que teria sido distribuído em termos de dividendos.

Voltando aos elementos integradores: a concretização normativa do art. 38º, 2, da LGT apoia-se num conjunto de critérios ou elementos que têm sido desenvolvidos pela doutrina, em atenção ao teor do mencionado enunciado normativo, para determinar se a CGAA é, ou não, aplicável a um certo caso concreto – entendendo-se, em consenso crescente, que o esquema analítico de aplicação da CGAA passa pela verificação dos mencionados cinco elementos, que analisaremos separadamente adiante: meio, resultado, intelectual, normativo e sancionatório.

Lembrando que tal análise não poder ser feita de modo completamente estanque e segmentado, impõe-se que a apreciação dos referidos elementos, congenitamente interligados entre si, seja feita de modo articulado, encarando a operação a sindicar como um todo, o que faz com que eles se reforcem mutuamente, se completem e confirmem de forma cruzada.

Ainda antes de se proceder a essa análise compartimentada de cada um dos elementos enunciados, deve ressalvar-se que a análise a efectuar tem subjacente uma inevitável apreciação casuística das concretas circunstâncias de facto inerentes ao caso sub judice, não sendo viáveis, nem convenientes, generalizações e abstracções que possam desproteger as necessidades reais que presidiram à consagração da CGAA, ou possam reduzir a sua aplicação à subsunção estrita e automática das realidades a categorias jurídicas abstractas.

Como tal, o centro de gravidade da matéria sujeita à apreciação deste Tribunal Arbitral é a cadeia de contratos celebrados, a intervenção das sociedades envolvidas e a actuação de accionistas, ex-accionistas e credores, nas circunstâncias fácticas já apuradas em matéria de facto.

Dado que a solução do caso se prende com a apreciação de factos e circunstâncias numa avaliação casuística respeitante a uma situação específica que foi criada pelo conjunto de contratos particulares, pelas empresas nele envolvidas e respectivos accionistas, ex-accionistas e credores, é descabido desenvolver cogitações teóricas sobre o exercício da liberdade de prestação de serviços, ou juízos abstractos sobre a genérica submissão da adopção da forma societária à aplicação da CGAA, não obstante a apresentação de argumentação desse teor pelas partes.

Com efeito, o thema decidendum do presente processo não respeita ao genérico exercício empresarial de actividades societárias, mas incide estritamente sobre operações concretas em que surgiram envolvidas, nos contornos fácticos acima descritos, sociedades, accionistas, ex-accionistas e credores.

Tendo este enquadramento presente, cumpre então apreciar cada um dos elementos de que dependia a aplicação da CGAA aos Requerentes, tendo em atenção os fundamentos da actuação administrativa, que sobrelevam na fundamentação contextual integrante dos actos tributários sindicados.

 

IV. B. 8. A verificação dos elementos integradores da CGAA

 

IV. B. 8. 1: Elemento meio. A “dividend-stripping transaction”.

 

É determinante para a aplicação da cláusula antiabuso e, como tal, de indispensável verificação na situação em julgamento, a detecção de uma actuação abusiva ou em fraude à lei, ou, na formulação normativa constante, à data, do art. 38º, 2 da LGT, a adopção de “meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas”.

O ponto fulcral da aplicação da norma é a qualificação como abusiva ou fraudulenta da conduta ou operação sob apreciação, o que envolve a reprovação dos meios utilizados. Nestes termos, depara-se com uma prática de elisão fiscal, com uma actuação extra legem de poupança fiscal, que se pretende contrariar por via da cláusula geral antiabuso, quando se verifica o exercício abusivo de um direito por parte do sujeito passivo, ou a adopção, por este, de um comportamento em fraude à lei, um comportamento que tenha como finalidade exclusiva, ou principal, contornar uma ou várias normas jurídico-fiscais, de modo a conseguir a redução ou a supressão do encargo fiscal.

Daí que, como referimos, haja que aferir o elemento “meio” da cláusula antiabuso pelo nível de incoerência entre a forma ou estrutura escolhida e o propósito económico-prático final do contribuinte, entre o fim para que é empregue concretamente essa forma adoptada, e a causa que lhe é própria.

Em rigor, a ponderação do elemento “normativo”, no qual se joga a reprovação normativo-sistemática da vantagem obtida, tem de acompanhar necessariamente, não podendo ser disso separada, a verificação do elemento “meio”, como veremos adiante.

Impõe-se reconhecer que o conjunto de operações levadas a cabo pelos Requerentes e demais accionistas da D..., e depois da C..., constituem actos ou negócios que devem ser objecto de qualificação como “meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas”.

É que, ao serviço de uma finalidade exclusivamente fiscal, esses actos de alienação de acções pelos Requerentes, a favor de uma SGPS puramente instrumental, foram objecto de uma utilização distorcida, destinada simplesmente a conseguir, sem tributação, o acesso aos lucros da D... através de uma distribuição “encapotada”, “indirecta” ou “oblíqua” de dividendos aos titulares indirectos das respectivas acções (porque accionistas da SGPS “dominante”).

Assim, através dos actos praticados em ordem a evitar a aplicação das normas que determinam que “os lucros das entidades sujeitas a IRC colocados à disposição dos respectivos associados ou titulares” constituem rendimentos de capitais sujeitos a IRS, configurou-se, sem qualquer substância económica, por razões estritamente fiscais, uma situação negocial artificiosa que produz os mesmos resultados materiais e financeiros, mas que possibilita evitar as consequências tributárias aplicáveis à distribuição de dividendos.

Entende-se, pois, verificado, na situação sub judice, o elemento “meio”, porquanto o conjunto de operações desencadeado pelos accionistas beneficiários, com a utilização instrumental de uma SGPS-veículo, consistiu na configuração artificiosa do pagamento de uma dívida em vez da obtenção de lucros distribuíveis, de modo a obter uma vantagem fiscal – no caso, a eliminação da tributação que incidiria sobre os dividendos como rendimentos de capitais –, o que configura uma utilização anómala, porque desviada dos seus fins típicos, da compra e venda de acções através do recurso à SGPS, entidade dominada pelos Requerentes e demais accionistas beneficiários.

Visaram, deste modo, os accionistas transmitentes das acções da D..., com tais alienações, obter, através de “SGPS interposta”, pela configuração do pagamento de uma dívida, rendimentos que, caso não tivessem sido praticados tais actos artificiosos ou fraudulentos, e com abuso das formas jurídicas, corresponderiam a dividendos procedentes da referida sociedade D... .

A C..., na verdade, atentos os factos provados, foi utilizada e serviu como veículo para elidir o regime de tributação de dividendos, através do uso que lhe coube da “roupagem” negocial do pagamento de dívida de preço de aquisição de participações sociais, substitutivo do pagamento de dividendos provindos da D...– um objectivo tornado mais transparente pela circunstância de a SGPS ter sido constituída já sem disponibilidades que lhe permitissem liquidar a dívida contraída, e sem meios financeiros que lhe permitissem solver, nos prazos estipulados, a dívida decorrente da aquisição das acções da sociedade D..., senão à custa dos dividendos da própria D... .

Logo, os actos e negócios realizados entre os Requerentes, a D... e a C... constituem actos anómalos, dado que não pretenderam qualquer propósito económico-prático que não a eliminação de impostos que seriam devidos, caso tivesse lugar uma directa distribuição de dividendos aos accionistas: ou os da D... caso não se tivesse interposto a C..., ou os dividendos da própria C... se ela tivesse sido constituída de forma normal, através de entradas dos sócios.

Insistamos no carácter anómalo das soluções encontradas: como as sociedades visam o desenvolvimento da actividade económica escolhida para seu objecto social, em ordem à realização do fim lucrativo para que são constituídas, de modo a permitirem a repartição do lucro pelos sócios (cfr. art. 980.º do Código Civil), os gastos incorridos, para serem fiscalmente dedutíveis, têm que ser justificados em congruência com o intuito, directo ou indirecto, próximo ou longínquo, de obtenção de excedente a repartir pelos sócios (cfr. art. 22º, 3 e 4 e 294.º do Código das Sociedades Comerciais).

Pelo que, quando uma certa actuação conduz simplesmente a obviar à obtenção de lucro, e subsequente repartição do lucro pelos sócios, proporcionando-lhes antes, por erosão da base tributável, uma outra modalidade de remuneração como a percepção de juros ou a amortização de dívidas, os gastos aí incorridos não se podem reputar indispensáveis em função de uma relação causal com a actividade e o interesse da empresa, na normalidade da vida económica e societária, e no correspondente quadro jurídico comum.

O uso anómalo das formas jurídicas resulta da contradição entre a finalidade da disciplina tributária concedida a certas estruturas negociais e a utilização concreta que delas é efectuada – “esquemas negociais que ocultem os seus verdadeiros propósitos e aos quais seja dada uma utilização manifestamente anómala face à prática jurídica comum[4]. Surge, assim, um resultado fiscal assistemático, porque alheio aos fins visados pela normatividade impositiva, pois a roupagem jurídica adoptada visa, simplesmente, retirar lucros e reservas disponíveis da sociedade, sem a tributação inerente.

Estamos, no presente caso, perante a utilização de um esquema há muito identificado como planeamento fiscal agressivo, e que goza de considerável difusão: um dos múltiplos exemplos de escola da doutrina da “sham transaction doctrine”, mais precisamente o de uma distribuição de dividendos através da constituição de um empréstimo junto dos accionistas, operação que é designada, nos meios dedicados ao estudo do planeamento fiscal agressivo, como uma “dividend-stripping transaction” – uma de muitas modalidades estudadas de dividendos “construtivos” ou disfarçados.

A via “clássica” adoptada, nesses casos, implica a interposição de uma sociedade criada para o efeito, entre a pretendida distribuição de lucros e os seus beneficiários, de modo a descaracterizar esta distribuição, fazendo-a surgir como amortização de mútuo, com ausência de juros, sendo tudo sempre decidido pelos mesmos interessados.

Este facto torna-se ainda mais patente, tendo em conta, nomeadamente, soluções típicas deste esquema elisivo: o aproveitamento de não-tributações (dos rendimentos resultantes das vendas das participações e da colocação à disposição dos lucros à sociedade interposta), o irrisório capital da sociedade interposta face ao preço na compra que se seguiu imediatamente, a localização da sede em local gratuitamente cedido por entidades do grupo, a própria nomeação dos mutuantes para a direcção da sociedade interposta e “mutuária”, bem como os aspectos qualitativo e quantitativo da actividade dessa sociedade-veículo – ressaltando que, nestas “montagens”, todas as decisões são efectuadas dentro das fronteiras do mesmo grupo económico, pelas mesmas pessoas singulares, ora na qualidade de sócios das empresas do grupo, ora na qualidade de administradores, ora na qualidade de credores de uma ou várias dessas empresas.

Trata-se, afinal. de um afloramento da categoria mais geral das “thin-capitalization rules”, regras de “safe haven” ou de “earnings stripping”, com as quais se busca contrariar o uso do “endividamento intra-grupo” como técnica de “planeamento fiscal agressivo”. Na verdade, a prova de que as decisões de financiamento são tomadas pelo grupo, dentro de uma lógica de grupo, remete para uma taxonomia – bem conhecida na lei, na jurisprudência e na doutrina – de estratégia típica de “planeamento fiscal agressivo”, o “earnings stripping”, na modalidade sub-capitalizadora de “interest stripping”.

Nesse aspecto, o grupo de empresas de que são accionistas os Requerentes seguiu, como é habitual nestes domínios do planeamento fiscal agressivo, a lógica pioneiramente enunciada, em 1963, por Modigliani e Miller, um estudo em que se enuncia a vantagem fiscal do endividamento face à detenção de capital próprio – por mera comparação entre a dedutibilidade dos gastos de financiamento, por um lado, e a relativa indedutibilidade dos dividendos, por outro, o que determinará que o endividamento possa ser um recurso de “protecção fiscal” de grupos de empresas – o célebre “Teorema Modigliani-Miller” sobre a debt-equity ratio[5].

Não se vislumbra que interesse teria uma empresa de transitar de uma situação de desafogamento para uma situação de crónico afogamento financeiro em resultado da subcapitalização, como sucedeu com a C... . Não seria descabido, a propósito, interrogarmo-nos sobre a pertinência, nesta sede, das limitações gerais que o próprio CIRC, no seu art. 67º, estabelece aos gastos de financiamento.

Ganha relevância, desde logo, lembrar que, num sistema económico baseado no mercado e na concorrência como forma de coordenação económica, decisões como estas estão sujeitas, por assentarem em relações estabelecidas no seio de um único grupo, a importantes limitações, como é o caso das que resultam do instituto dos preços de transferência, ou as da aplicação da CGAA, que permite desconsiderar operações jurídicas efectuadas exclusiva ou predominantemente por razões fiscais, e não por razões genuinamente económicas ou comerciais, do género daquelas que seriam tomadas por operadores privados independentes que se situassem fora das fronteiras de um único grupo económico.

No caso vertente, impõe-se a conclusão de que o contrato de compra e venda em que a C... adquire as participações da D... pelo montante convencionado, e nas condições estabelecidas, não seria celebrado por um operador privado independente, por ser um acto desprovido de racionalidade económica; e que tal aquisição só foi possível por ter sido decidida e efectuada por entidades que integram o mesmo grupo económico, nomeadamente por sócios e administradores comuns que tomaram as deliberações estratégicas do grupo, e que, deste modo, poderiam ter conhecimento de que estava em curso uma negociação relativa à operação da venda das participações que eles detinham na D... por valores próximos daqueles que eles calcularam que a D... geraria, sob forma de lucros, por um período máximo de 15 anos.

Por outras palavras, no momento em que este negócio foi concretizado, é impossível considerar o preço atribuído às acções da D... como um real preço de mercado concorrencial, visto tratar-se de um preço de cessão interna, formado num “mercado fictício” definido no seio do grupo, entre entidades vinculadas, com relações especiais – sendo que a invocada “racionalidade económica” dessa operação não passaria, assim, no teste do operador privado independente.

É verdade que a AT não questionou a fundo se os termos e condições de aquisição acordados corresponderiam aos que normalmente seriam aceites e praticados entre partes independentes em operações comparáveis: mas isso não era pura e simplesmente necessário, nem a invocação do instituto dos preços de transferência é premissa da aplicabilidade do regime da CGAA – bastando lembrar que a aplicação do instituto dos preços de transferência é independente de qualquer motivação fiscal do contribuinte, e da existência, ou não, de qualquer abuso culposo[6].

Na verdade, a questão da aplicação da CGAA à substância económica da constituição da dívida de preço situa-se a montante do regime dos preços de transferência: a questão do preço é, por óbvio, meramente instrumental relativamente à montagem de actos e contratos levada a cabo no seio do grupo, destinados a criar uma “dívida” (aparente) da C..., que, na prática, coincidisse fundamentalmente com o que se estimava que seria o lucro a distribuir pela D... durante um período determinado de anos futuros – pelo que a aplicação do instituto dos preços de transferência, em vez da CGAA, equivaleria a desconhecer a descaracterização da distribuição do lucro através de reembolso da dívida contraída.

O relevante é, sim, a criação de uma dívida de montante necessário à criação de um reembolso que ocultasse a distribuição de lucros, e é importante recentrarmo-nos nessa questão, a própria “alma” do esquema – e, portanto, a essência do seu elemento “meio”.

O elemento “meio” da CGAA, insistamos, corresponde à via escolhida pelo contribuinte para obter o desejado ganho ou vantagem fiscal, consistindo, portanto, nos actos ou negócios jurídicos cuja estrutura se encontra determinada em função de um dado resultado fiscal, preenchendo-se este elemento “meio” quando se verifique o nível de incoerência entre a forma ou estrutura escolhida e o propósito económico-prático final do contribuinte, entre o fim para que é empregue concretamente essa forma adoptada e a causa que lhe é própria.

Logo, a anti-juridicidade, ou censurabilidade, dos meios utilizados tem de ser aferida em termos objectivos, tendo em conta a ausência de substância ou racionalidade económica na estrutura jurídica das operações realizadas – uma ausência apurada com base nas circunstâncias e indícios evidenciados pela factualidade do caso em análise, avaliados segundo um padrão de razoabilidade económico-empresarial. Devendo novamente ressalvar-se que só perante o caso concreto é que será possível determinar se os actos ou negócios jurídicos praticados pelos contribuintes têm substância e racionalidade económica; ou se, pelo contrário, foram estruturados tendo em vista, essencial ou principalmente, a obtenção de uma pura vantagem fiscal – na medida em que uma certa estruturação jurídica pode apresentar-se como abstractamente válida e razoável de um ponto de vista económico-empresarial, e, ainda assim, perante os elementos e circunstâncias do caso concreto, revelar-se invulgar, supérflua, anómala, desfuncionalizada, incoerente ou artificial para a prossecução dos fins que se esperaria que fossem os visados pelos contribuintes.

É a essa luz que não consegue descortinar-se uma razão válida para o endividamento da C... perante aqueles que seriam os seus sócios, em alternativa à capitalização da própria C... através das entradas dos seus sócios, deixando a C..., desde o primeiro momento, subcapitalizada e sobre-endividada – por mais válidas que fossem todas as razões para a reestruturação do Grupo AA... .

Não somente a “dividend-stripping transaction” surge como uma aberração face aos propósitos enunciados para a criação de uma SGPS, não havendo razão nenhuma para que um tal expediente pudesse ter-se como necessário ou indispensável, como também é legítimo duvidar-se da intenção de utilização da SGPS para outros fins que não os meramente fiscais – visto que, nascendo sem estrutura humana e material adequada para a prestação dos serviços enunciados como justificativos da sua constituição, sem contar com uma estrutura financeira capaz de suportar sequer o exercício da actividade de gestão de participações sociais, segundo um padrão de razoabilidade económico-comercial, a C... surge no esquema contratual como um "meio” de obter a vantagem fiscal anteriormente identificada, e não como um meio de genuína reestruturação institucional – uma “SGPS-veículo” para “parquear” participações e converter dividendos em reembolsos – além de tudo o resto, uma nítida confusão e indissociação entre a esfera pessoal dos sócios e a esfera societária, com absoluta funcionalização desta àquela.

Em suma, a interposição da C... no esquema do grupo, a sua interposição no fluxo de rendimentos gerados pela D..., não traduz um objectivo suficientemente definido e justificado de acordo com um critério de razoabilidade económico-empresarial, já que esse desiderato sempre seria atingido sem que para isso fosse indispensável, ou sequer necessária, a intervenção daquela sociedade – bastando pensar que os accionistas e administradores da C... são as mesmas pessoas que já detinham as participações das empresas do Grupo AA..., e as controlavam – e daí que a C... não tenha desempenhado, desde a sua génese, uma função real e efectiva, quando comparada aos objectivos que foram anunciados para ela.

É de lembrar que as sociedades, enquanto pessoas colectivas, são entendidas, desde sempre, como colectividades de pessoas, ou complexos patrimoniais, organizados em vista de um fim comum ou colectivo, a que o ordenamento jurídico atribui a qualidade de sujeitos de direitos, sendo especificamente entendidas como entidades que contribuem com bens ou serviços para o exercício de uma actividade económica dirigida à obtenção de lucros e à sua distribuição pelos sócios.

Dada esta premissa, o sobre-endividamento da C... é desprovido de substância económica, não se revelando o mesmo coerente e racional, segundo um padrão de razoabilidade económico-comercial; mas antes como anómalo, supérfluo e artificial, tendo em vista os objectivos a alcançar com a constituição de uma SGPS.

Por outro lado, a existência de pessoas colectivas resulta da existência de interesses humanos duradouros e de carácter comum ou colectivo. A consecução destes interesses exige o concurso dos meios e das actividades de várias pessoas, ou, pelo menos, nela estão interessadas várias pessoas, pelo que a personalidade colectiva é um mecanismo técnico-jurídico justificado pela ideia de, com maior comodidade e eficiência, organizar a realização dos interesses colectivos e duradouros, sendo o reconhecimento da possibilidade desses interesses comuns ou colectivos que funcionaliza a actividade das sociedades, e ao mesmo tempo justifica o reconhecimento, pela ordem jurídica, de uma personalidade colectiva distinta das personalidades dos sócios.

Esse reconhecimento de uma personalidade colectiva, a própria separação de patrimónios, e a responsabilidade limitada, são postos em causa se se constatar que não passam de mecanismos técnico-jurídicos colocados ao serviço exclusivo de puros interesses pessoais, pervertendo a função económico-social do instituto da personalidade colectiva, e abusando dessa forma jurídica – por exemplo, para “parquear” receitas e diferir, reduzir ou eliminar a tributação: uma das razões, aliás, para o regime de transparência fiscal, que visa evitar, preventivamente e por desconsideração da personalidade fiscal da sociedade transparente, o recurso abusivo e artificioso a uma forma societária tendo em vista o aproveitamento da personalidade colectiva, recorrendo à imputação fiscal, aos respectivos sócios, dos lucros daquela (art. 6º do CIRC); sendo que uma desconsideração de outro tipo pode decorrer, precisamente, da aplicação da CGAA, quando as formas societárias sejam instrumentalizadas a esquemas de elisão fiscal: por exemplo, quando se convertam em puros mecanismos de emissão e recepção de facturas e pagamentos sem qualquer materialidade, constituídas apenas para servir o interesse de desviar dos cofres públicos receitas tributárias, ou para funcionarem como passos numa elisão “step by step”.

A interposição da C... na distribuição dos lucros da D..., conferindo-lhes a aparência de reembolsos de dívidas, consistiu na utilização de um expediente abusivo, razão pela qual deve considerar-se verificado o elemento “meio”. A finalidade, de que trataremos de seguida, é a obtenção da vantagem fiscal; o “meio” é a prossecução desse resultado “por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas”, conforme previsto no artigo 38º, 2 da LGT.

Daí a importância de se concluir que o “método” ou “fórmula” utilizados pelos Requerentes, e que resultaram na obtenção de vantagens fiscais, foram estruturados tendo em vista a obtenção daquele fim, permitindo inferir-se a artificialidade dos meios utilizados.

E a importância de se concluir que o conjunto de operações que resultaram nas entregas de meios monetários, sob a forma de pagamentos não-tributados, aos Requerentes, por conta do crédito gerado sobre a C... em resultado de um mútuo desnecessário, são desprovidos de substância e racionalidade económica, à luz das circunstâncias e indícios fácticos evidenciados nos presentes autos.

E a importância, ainda, de se concluir que, do conjunto de operações realizadas, na específica configuração adoptada, não resultaram quaisquer sinergias operacionais, financeiras ou de gestão, que tenham beneficiado o Grupo AA..., na sua configuração já existente – não se descortinando, nem sequer nos argumentos expendidos pelos Requerentes ou nos depoimentos das testemunhas, qualquer propósito comercial ou financeiro válido que permitisse justificar as referidas operações, nomeadamente o sobre-endividamento e subcapitalização congénitos da C..., mas tão só argumentos que se revelam insuficientes perante os demais elementos fácticos carreados aos autos.

Esta falta de substância económica é evidenciada pela circunstância, já aludida, de os Requerentes terem alienado parte do capital que detinham em sociedades do Grupo AA... a uma sociedade do próprio Grupo, sociedade de que os próprios Requerentes são accionistas. Apesar de a sociedade adquirente e alienada serem entidades juridicamente distintas, a verdade é que se encontram especialmente relacionadas, designadamente quanto ao respectivo controlo fáctico e económico, que era exercido pelas mesmas pessoas, entre elas os Requerentes.

No fundo, os Requerentes– na qualidade de vendedores –, acabaram por conceder crédito a si próprios – agora actuando na qualidade de accionistas da sociedade adquirente das participações sociais. A artificialidade do sobre-endividamento e da subcapitalização congénitos da C... torna-se, à luz dessa circunstância, muito evidente.

Outro indício da ausência de racionalidade económica está no facto de os pagamentos de dívida efectuados pela C... serem única e exclusivamente controlados pelos accionistas, que determinaram o momento e o montante dos reembolsos. Note-se que só a existência daquele especial domínio dos controladores do Grupo AA... sobre todas as entidades em causa, permite justificar que a venda das participações à C... tenha sido feita sem estipulações contratuais que seriam expectáveis em ambientes de transacções entre partes não-relacionadas – sendo óbvio que jamais aqueles termos contratuais seriam estipulados com uma contraparte que, como a C..., não tinha estrutura, nem recursos financeiros próprios suficientes, para solver o montante de que ficou devedora – sendo que as amortizações daquela dívida ficaram asseguradas, desde o início, pela certeza de que todos os lucros da D...  seriam distribuídos à SGPS acabada de constituir.

No fundo, uma estipulação puramente artificial, artificiosa, sem risco, com as mesmas pessoas a titulares de todas as entidades e interesses envolvidos, uma espécie de “negócios consigo mesmos”, com alguns “veículos” interpostos.

E é isso que, no final, explica que, apesar de ser formalmente a holding de topo do Grupo, a C... SGPS nunca tenha distribuído dividendos comensuráveis com o valor dos pagamentos “da dívida” aos seus accionistas.

Quanto a todas estas situações, é importante sublinhar, ainda, que se afigura irrelevante o modo segundo o qual foi concretizado o controlo e a utilização das sociedades do Grupo AA..., tendo em vista o propósito económico final dos Requerentes, e demais accionistas, de obterem pagamentos feitos por conta da dívida da C...: quer isto dizer que não afasta a anti-juridicidade da conduta, ou o seu carácter artificioso e abusivo, o facto de a instrumentalização das sociedades do Grupo ter sido decidida pelos controladores do Grupo AA... na sua qualidade de accionistas, de ex-accionistas, de administradores ou de credores das dívidas de qualquer das sociedades componentes do Grupo.

E assim é, porque se está perante um Grupo que interage de forma concertada no seu seio, tendo em vista a obtenção de um propósito comum. Por isso se criou, no topo do Grupo, uma “SGPS-veículo”, a qual, embora sem exercer uma actividade efectiva de gestão, serviu de “meio” para parquear participações sociais e permitir a distribuição de lucros, sob as “vestes” de pagamentos de dívida não sujeitos a tributação, que de outra forma seriam directamente tributados na esfera dos Requerentes enquanto distribuições de dividendos.

Por outro lado, e como já referido, não foi feita qualquer prova séria e atendível, pelos Requerentes, de que a constituição da C... SGPS, na forma e condições em que ela ocorreu, tivesse deveras visado a “reestruturação e racionalização da actividade do grupo AA...” (sendo revelador que em peças processuais os Requerentes usem ainda a designação “Grupo AA...”), ou a agregação em si de “todo o valor da gestão estrutural e estratégica desse grupo de empresas”.

Tudo isto são considerações estritamente conclusivas, cuja aderência à realidade não foi demonstrada, até porque a factualidade carreada aos autos evidenciou que o Grupo AA... se encontrava instalado no mercado, e era um caso de sucesso no seu sector de actividade, não sendo verosímil que tal cenário se invertesse diametralmente pela simples ausência de uma SGPS, para mais subcapitalizada e sobre-endividada – isto quando existia, estava disponível e deverá presumir-se que era conhecida, dos Requerentes e demais accionistas, a “via jurídica comum” de constituição de uma SGPS através das entradas dos sócios – sendo que o dever de contribuir com bens ou serviços é um dos essentialia negotii do contrato de sociedade (art. 980º do Código Civil), incluindo as sociedades comerciais (art. 20º do CSC), e portanto uma verdadeira e efectiva entrada por parte do sócio é condição básica para a sua participação social – sendo que os empréstimos à sociedade, mesmo quando efectuados por um sócio, não são, em sentido técnico-jurídico, entradas na sociedade.

Apesar de os Requerentes procurarem suportar a substância económico-comercial de cada um dos passos da “step by step transaction”, a verdade é que, como já deixámos claro, o objecto do abuso identificado pela AT não se refere ao “tipo” contratual isoladamente considerado, mas sim à operação como um todo – uma “dividend-stripping transaction” que, como já abundantemente demonstrámos, culminou na constituição de um crédito sobre a C..., o que permitiu aos Requerentes receber valores monetários sob a forma de pagamentos, por conta da dívida gerada, que não foram objecto de qualquer tributação, ao contrário do que sucederia com o negócio jurídico de idêntico fim económico, especificamente a normal distribuição de dividendos.

Em suma, através da transmissão de acções entre sociedades por si detidas, os Requerentes passaram a deter indirectamente os mesmos activos que anteriormente detinham directamente, sem sujeição a qualquer tributação, criando concomitantemente um saldo a seu favor, que permitiu transformar o pagamento de dividendos, ou de adiantamentos por conta dos lucros, sujeitos a tributação em sede de IRS, na amortização de uma dívida, evitando a incidência de qualquer tributação.

Do ponto de vista das sociedades do Grupo A..., estas operações também não revelam qualquer substância económica e comercial, já que em termos práticos a D... continuou a ser a “cash cow” do Grupo, enquanto que a C..., que manteve uma actividade de gestão e operacional pouco significativa, ou inexistente, se limitou a “parquear” participações sociais e a dedicar-se quase exclusivamente à gestão da dívida contraída perante os Requerentes e demais accionistas, ou seja, a receber lucros provenientes da D... e a transferi-los para os Requerentes já “transformados” em reembolsos de dívida.

No momento de prestarem depoimento, a maioria das testemunhas desconhecia até o local da sede da C..., e limitavam-se a falar das actividades da D...– o que se compreende.

Concluindo: a opção das empresas por estes esquemas, induzida ou não por terceiros, sem que haja previamente um pedido de informação vinculativa, ou uma comunicação às autoridades tributárias, implica sempre o risco de aplicação da CGAA, em regra assumido com base num cálculo de probabilidades, risco esse que não pode deixar de correr contra quem os utiliza.

Pelo exposto, conclui-se que se encontra preenchido o elemento “meio”.

 

IV. B. 8. 2: Elemento resultado.

 

Quanto ao elemento “resultado”, cumpre essencialmente aferir se a estrutura jurídica utilizada pelos Requerentes, nos termos que resultam da factualidade dada como provada, teve, ou não, como consequência a redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios.

Para o efeito, haverá que ter em consideração que uma vantagem fiscal corresponde a uma “qualquer situação pela qual, em virtude da prática de determinados actos, se obtém uma carga tributária mais favorável ao contribuinte do que aquela que resultaria da prática dos actos normais e de efeito económico equivalente, sujeitos a tributação. Assim estamos perante uma comparação entre os ónus fiscais normalmente suportados e os evitados com a actuação produzida. Se de tal análise resultar uma efectiva diferença, aritmética ou de outra natureza, que seja objectivamente vantajosa para o contribuinte, ter-se-á por verificado este requisito[7].

Dito de outro modo, cabe comparar a tributação que ocorreu em sede de IRC na esfera da sociedade C... com aquela que seria devida em sede de IRS na esfera pessoal dos Requerentes, relativamente aos rendimentos pagos pela C... . Vimos já que, caso os rendimentos pagos pela D... à sociedade C... tivessem ingressado directamente na esfera dos Requerentes, a tributação já não seria realizada em sede de IRC, mas sim em sede de IRS: conclui-se, por isso, que os mesmos rendimentos teriam sido sujeitos a uma carga tributária manifestamente mais elevada se o imposto, ao invés de ter sido apurado na esfera da C... com base nas regras do IRC, tivesse sido determinado, directa e pessoalmente, na esfera jurídica dos Requerentes, com base nas regras do IRS.

Não pode deixar de se reconhecer, por evidente, que o regime fiscal que, com o conjunto de operações realizado, os Requerentes, e demais accionistas da C..., conseguiram alcançar, se apresenta como manifestamente vantajoso em relação ao tratamento fiscal que seria aplicável, caso se tivesse realizado o acto normal de distribuição de dividendos da D...: os mesmos dividendos que, desde o início e nos anos subsequentes, são a fonte das receitas que revertem, sob outras vestes, a favor dos accionistas da C..., e através desta.

Na verdade, a obtenção de mais-valias não-tributadas (cfr., à data dos factos, o art. 10.º, n.º 2, al. a) do CIRS e o art. 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88 de 30 de Novembro, que aprovou o CIRS), por via da configuração da dívida de preço da alienação das acções em vez da obtenção de dividendos tributados (art. 5.º, n.º 2, al. h) e art. 71.º, n.º 1, al. c) do CIRS), implica uma clara evitação de tributação, pois esta teria lugar caso se tivesse procedido à entrega directa aos sócios, a título de lucros distribuíveis, dos montantes que foram estabelecidos como contrapartida da aquisição de acções pela SGPS – sendo que deve notar-se, e sublinhar-se, que a distribuição directa de dividendos aos accionistas é pressuposto genérico de constituição e existência das sociedades anónimas (cfr. art. 294.º do Código das Sociedades Comerciais).

Ora, é precisamente esta comparação da obtenção de fluxos financeiros por via da dívida de preço da C..., resultante de actos de transmissão de acções da D..., com a obtenção de fluxos financeiros por via da distribuição de dividendos provenientes directamente desta mesma sociedade D..., que releva decisivamente para a constatação do dito elemento “resultado”: os ex-accionistas da D... deixaram de receber directamente dividendos da D..., porque a alienaram a uma SGPS de que eles próprios são accionistas, e ao mesmo tempo credores, pelo que, durante um período (incluindo o que releva para os autos), foram reembolsados desse crédito com receitas geradas… pelos dividendos da D... .

Se aqueles dividendos tivessem sido distribuídos anteriormente à transmissão das acções em favor da SGPS, os mesmos seriam objecto de tributação às taxas liberatórias na esfera dos respectivos accionistas, e na proporção das participações detidas. Assim, o resultado da criação da SGPS é que os mesmíssimos fluxos que determinariam o pagamento de dividendos passaram a alimentar o “serviço da dívida” – o que autoriza a conclusão de que a distribuição de dividendos, que podia ser directa – e não havia nenhuma razão económica, comercial ou empresarial a desaconselhar que continuasse a ser directa –, passou simplesmente a ser indirecta, mediata e dissimulada.

Na verdade, por força destas operações de aquisição de acções da D..., a SGPS ficou onerada com uma dívida, por um mútuo correspondente ao preço das acções adquiridas, para com os seus accionistas / mutuantes, o que permite a estes, à medida que a sociedade D... foi distribuindo dividendos à C..., obter as quantias que resultariam destes mesmos dividendos, caso estes lhes tivessem sido distribuídos directamente pela sociedade D... .

Em suma, os Requerentes, e demais accionistas da C..., colocaram-se na posição de credores desta, com o que os fluxos financeiros resultantes de dividendos distribuídos pela D... à C... não chegam aos Requerentes, e demais accionistas desta, como dividendos sujeitos a tributação em IRS, mas unicamente sob a forma de reembolso de créditos, sem tributação em IRS.

Surge, pois, aqui uma equivalência de resultados não-fiscais – a obtenção, pelos accionistas pessoas singulares da SGPS, dos montantes pecuniários disponíveis na sociedade D... – sem equivalente oneração tributária; logrando atingir, por via da constituição de uma dívida imputada à SGPS, um resultado económico equivalente à distribuição de dividendos na D..., sem incidência da tributação em sede de IRS, que de outro modo, e normalmente, seria devida.

Entende-se, pois, que se mostra verificado o elemento “resultado”, dado que, se o direito às quantias reconhecidas aos accionistas da D..., por via da aquisição de acções desta sociedade pela C..., tivesse sido alcançado por via normal da distribuição de dividendos, os montantes colocados à disposição pela D... seriam objecto de tributação em IRS na esfera dos accionistas.

O facto de, no futuro, passado o prazo de “amortização”, os rendimentos da C... poderem chegar aos Requerentes sob forma de dividendos, ou já o terem sido entretanto, não desmente, antes confirma, que no período de referência não houve distribuição de resultados da C...– ou seja, não se produziu o resultado que seria de esperar do funcionamento normal de uma genuína SGPS, e que se traduziria em rendimentos tributáveis em sede de IRS de cada um dos seus accionistas pessoas singulares.

Além de que a simples admissão de que, findo o período de “amortização”, poderia, ou poderá, ocorrer, ou ocorreu, uma distribuição de resultados da C... em favor dos Requerentes, já revela, em si mesma, uma vantagem fiscal para efeitos de aplicação da CGAA, subsumível à referência legal constante do artigo 38º, 2 da LGT ao “diferimento temporal de impostos”, porquanto a tributação estaria a ser diferida, por “parqueamento” de rendimentos e retenção / descaracterização de lucros, para o momento que os Requerentes entendessem ser conveniente (lembrando que foram eles mesmos que arbitrariamente fixaram o prazo de 15 anos para a “amortização”).

O diferimento tributário, lembremos, corresponde à exclusão de tributação de certos rendimentos, por um ou mais anos: há uma clara vantagem fiscal atribuída ao sujeito beneficiado, traduzida numa injustiça comparativa relativamente àqueles que não lograram diferir a tributação.

Conclui-se que foi obtida uma carga tributária objectivamente mais favorável, por comparação com a tributação que seria devida com a prática dos actos ou negócios normais e de efeito económico equivalente, isto é, ou com as entradas dos sócios na SGPS, a serem remunerados como dividendos, ou com a não-interposição da SGPS entre os Requerentes e os lucros a que teriam direito como accionistas da D..., razão pela qual se considera verificado o elemento “resultado”.

Acrescente-se que, no “momento zero” do esquema elisivo, a venda das participações sociais na D... à C... não foi objecto de tributação em sede de IRS, porque não se encontravam sujeitas a imposto as mais-valias geradas com a alienação de participações cuja titularidade tivesse sido adquirida antes de 1 de Janeiro de 1989, conforme previsto no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, para além de que as participações detidas há mais de 12 meses estavam igualmente excluídas de tributação por força do disposto no artigo 10º, 2, a) do CIRS, na redacção vigente à data dos factos.

Sucede que, como referimos, a C... não dispunha de capitais próprios suficientes, nem de activos, nem de rendimentos gerados pela sua actividade operacional que permitissem solver a dívida constituída perante os Requerentes e demais accionistas. A C... passou a receber dividendos provenientes da D..., o que, à luz do regime de “participation exemption” resultante dos artigos 51º e 97º, 1, c) do CIRC, permitiria igualmente que os dividendos distribuídos não fossem sujeitos a tributação em sede de IRC, tal como não era sujeita a IRS a “amortização” da dívida contraída pela C...  junto dos Requerentes e demais accionistas: ou seja, estava montado um conjunto de operações, “construções ou séries de construções”, que permitiram a distribuição de rendimentos sem sujeição a qualquer tributação, seja em sede de IRC, seja em sede de IRS.

Ora, antes do “momento zero” do esquema elisivo, os sócios, e depois accionistas, da D..., eram tributados em IRS pelos dividendos distribuídos por esta a eles – sendo que materialmente os montantes de dividendos, ou de adiantamentos por conta de lucros, continuaram a chegar aos ex-accionistas da D... – o que comprova que o esquema montado teve por objectivo a vantagem fiscal do desenho adoptado no “momento zero” do esquema elisivo.

Em suma, na dimensão do elemento “resultado”, torna-se patente que, com o esquema de planeamento fiscal agressivo montado, que “transformou” lucros em amortizações de mútuo, foi afastada a tributação sobre os lucros que ocorreria com a respectiva disponibilização, uma vantagem de natureza fiscal que não seria obtida sem tal “dividend-stripping transaction”.

É da artificialidade do esquema total, e não da não autenticidade de cada um dos actos praticados no desenvolvimento dessa “montagem”, que derivou a inegável vantagem de não haver tributação dos lucros que teriam sido colocados à disposição dos requerentes na ausência do abuso.

Considera-se, pois, preenchido o elemento “resultado”.

 

IV. B. 8. 3: Elemento intelectual.

 

Passando ao denominado elemento “intelectual”, que respeita à motivação fiscal do contribuinte, no sentido de que os actos ou negócios jurídicos praticados foram essencial, ou principalmente, dirigidos à obtenção de uma vantagem fiscal, impõe-se concluir que se encontra preenchido tal elemento na situação sub judice.

Trata-se de saber, neste ponto, se a obtenção de um resultado fiscalmente vantajoso, e de um resultado não-fiscal equivalente, foi “tax driven”, isto é, se resulta, do esquema adoptado, que existiu a deliberação de fazer o resultado fiscal prevalecer sobre o resultado não-fiscal – se, na redacção do art. 38º, 2 da LGT, os actos ou negócios jurídicos praticados foram “essencial ou principalmente dirigidos, (...) à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos (...) ou à obtenção de vantagens fiscais”.

Não se trata de apurar intenções no plano subjectivo – o que, na ausência de uma confissão dos próprios autores do esquema elisivo, constituiria uma prova diabólica –, mas sim de recorrer a indícios e a juízos de razoabilidade e normalidade, a regras comuns de experiência, ao conhecimento da forma como se desenvolvem habitualmente os actos e negócios jurídicos, e nomeadamente os actos societários.

Como se estabelece no acórdão do STA de 12 de Janeiro de 2022, no Proc. n.° 02507/15.6BEBRG,

A prova exigida no âmbito da aplicação da CGAA não pode ser uma prova diabólica (...), ou seja, a AT não tem de provar uma intencionalidade "abusiva" do sujeito passivo. Quer isto dizer que não é exigível que a AT faça prova de que o sujeito passivo optou pela construção que conduz ao aforro fiscal (...) para, intencionalmente, evitar a solução que estaria sujeita a tributação (...). Basta que a AT faça prova de que a operação realizada não tem um propósito racional à luz do ordenamento jurídico mobilizado – basta, no caso, provar que a operação não se enquadra nas razões que o direito societário apresenta (...) – e que, por isso, o seu propósito se esgota no aforro fiscal a que conduz. Feita esta prova, os pressupostos do artigo 38.º, n.º 2 da LGT devem considerar-se preenchidos”.

Ora, não foram dadas como provadas as motivações económicas e empresariais que os Requerentes alegaram como base determinativa da realização do conjunto de operações em causa.

Como assinalava Saldanha Sanches, “às empresas, e apenas às empresas, compete a escolha dos meios específicos pelos quais realizarão os seus negócios: necessário é que exista, como motivo para a sua escolha, não uma certa via de obtenção de uma poupança fiscal contra a intenção expressa da lei, mas, sim, o que pode considerar-se uma razão comercial legítima. A operação deve ser capaz de resistir ao business purpose test”, o qual “nada mais é do que uma razão comercial legítima tal como pode vir a ser demonstrada pelo sujeito passivo, em particular, no caso de este ter adoptado uma via pouco habitual[8].

Justamente, nas operações em causa não se encontram razões comerciais legítimas, mas acham-se apenas objectivos de eliminação da carga fiscal.

Efectivamente, não razões empresariais ou económicas, mas só a motivação fiscal de transformação de dividendos tributáveis em mais-valias não tributáveis, de modo a não sujeitar os Requerentes e demais accionistas da C... a tributação em IRS pelos rendimentos auferidos com base nos lucros da sociedade D..., por mera interposição da C... SGPS no fluxo de rendimentos gerados e distribuídos pela D..., depois de uma “aquisição” artificiosa da D... pela C..., em condições em que esta não dispunha de recursos financeiros suficientes, pelo que ficou em dívida para com os alienantes da acções da D..., que simultaneamente são os accionistas da própria C... e passaram a ser seus credores, auferindo rendimentos pessoais titulados como reembolsos desses créditos concedidos à C..., e não como distribuição de dividendos desta, não obstante os citados reembolsos se apoiarem, por sua vez, na distribuição de dividendos da D... à C... .

Assim, falecendo a demonstração da presença de genuínas razões de estratégia empresarial, não obstante terem sido abundantemente alegadas pelos Requerentes e mencionadas em depoimentos testemunhais, emerge decisivamente, como motivação subjacente às operações realizadas, o objectivo de poupança fiscal conseguido pelos ex-accionistas da D..., e actuais accionistas da C..., em relação aos dividendos que seriam normalmente distribuídos pela D...– ou, em resultado de uma constituição menos anómala da SGPS, seriam distribuídos pela C... .

O apuramento da motivação fiscal tem de fazer-se na base de factos objectivos, insista-se.

Ora, é imediata e directa a apreensão, com base num juízo de razoabilidade e de normalidade, a que, naturalmente, não são alheios os Requerentes e demais accionistas da C..., do evidente ganho fiscal, em sede de tributação em IRS de todos eles, que resultaria desta operação de “conversão” de dividendos tributados em mais-valias e em reembolsos de dívidas não-tributados.

Como tal, os comportamentos adoptados pelos Requerentes na “dividend-stripping transaction” não podem deixar de ter-se por reveladores da intenção essencial de redução da carga fiscal.

Dito de outra forma: de acordo com as regras da lógica e da experiência comum, não se afigura verosímil que, na estruturação jurídica da operação de constituição da C..., da venda das acções da D... à C..., e do endividamento da C... em razão da aquisição de tais acções, os Requerentes, e demais envolvidos nesses esquemas, não tenham tido consciência, ou ponderado, por qualquer forma, a conveniência e favorabilidade fiscal resultante do modelo adoptado – um modelo contra-intuitivo e anómalo à luz do direito societário e da prática empresarial.

Em suma, não se tendo provado a existência de motivos económicos não-fiscais na determinação das condutas que foram adoptadas pelos Requerentes, não se pode senão concluir que a motivação essencial dessas condutas, em conformidade com a verificação do elemento “resultado”, residiu na obtenção da vantagem fiscal consistente na eliminação da tributação em IRS incidente sobre os dividendos resultantes dos lucros da D..., a qual seria devida, sem aquelas condutas, pela directa distribuição dos lucros.

Prestemos novamente, além disso, a devida atenção à pouca, ou nenhuma, relevância qualitativa e quantitativa da actividade empresarial prosseguida pela C..., ao desconhecimento revelado em relação a ela por colaboradores da D...  que depuseram neste processo, a limitação da sua presença física ao uso gracioso de instalações da D..., para inferirmos legitimamente que, mesmo que alguma actividade comercial autónoma tenha sido por desenvolvida pela C..., o que certamente terá sido tão residual que nem sequer se detecta, tal facto não explica a necessidade da criação de uma SGPS como mais uma sociedade no já complexo universo do grupo de empresas D..., não se vislumbrando razões económicas ou comerciais válidas para a “montagem” de que fez parte a criação da C... – mas unicamente razões fiscais.

A conclusão de que os Requerentes não eram alheios aos ganhos fiscais decorrentes da interposição da C... na distribuição de dividendos resulta ainda, de forma mais flagrante, da insuficiência dos restantes motivos não-fiscais que alegadamente determinaram o sentido da estruturação da operação.

Conforme se desenvolveu anteriormente na apreciação do elemento “meio”, os Requerentes não lograram demonstrar um ganho económico-empresarial efectivo que tivesse resultado da opção pelos “empréstimos” à C..., em alternativa às entradas dos sócios no capital da C...com os mesmos activos que aqueles “empréstimos” permitiram “adquirir” pela C... – sendo que essa aquisição, pela própria C..., não segue qualquer lógica económico-empresarial, além de que, insistamos de novo, viola preceitos básicos quanto à forma de constituição jurídica de sociedades em geral, e de sociedades comerciais em particular.

Por conseguinte, e tendo também presente o que se mencionou a respeito do elemento “resultado”, a falta de motivação e razoabilidade económico-empresarial da interposição de um ente societário na operação – a C... –, evidencia, por si só, que o factor determinante foi a obtenção de um ganho fiscal. Mas, ainda que se admitisse como comprovada alguma valia nas motivações invocadas pelos Requerentes, a verdade é que as vantagens delas resultantes sempre seriam manifestamente inferiores, incomensuravelmente menores, do que a vantagem fiscal obtida com a interposição formal e artificial de um ente societário.

Da concatenação dos elementos “resultado” e “meio” conclui-se, para lá de qualquer dúvida razoável, pela proeminência da motivação fiscal sobre outros aspectos substanciais que pudessem ter potenciado a interposição da C... nos negócios jurídicos celebrados pelos Requerentes com a D... .

Nestes termos, conclui-se que o conjunto encadeado de negócios jurídicos celebrados com a intervenção da sociedade C... foi essencial, ou principalmente, dirigido à finalidade de obtenção de uma vantagem fiscal, pelo que se encontra verificado o elemento “intelectual”.

Não resta senão concluir que as operações praticadas pelos Requerentes, quando analisadas de acordo com um filtro de razoabilidade e normalidade económica, comercial e empresarial, não revelam um propósito racional à luz do ordenamento jurídico, razão pela qual se julga, com as exigíveis segurança e certeza, que a motivação e o ganho fiscal das operações foram determinantes face a outros motivos ou ganhos que se alega terem existido.

Encontrando-se, consequentemente, verificado o elemento “intelectual”.

 

IV. B. 8. 4: Elemento normativo.

 

Com o elemento “normativo”, cabe aferir se a actuação dos Requerentes, que visou a obtenção de uma vantagem fiscal através da utilização de meios abusivos e artificiais, é, ou não, objecto de censura pelo ordenamento jurídico-tributário.

Note-se que o elemento normativo não resulta de forma expressa do teor literal do artigo 38º, 2, da LGT, mas sim da desconformidade, com a ratio legis, com o espírito da lei e com os princípios do sistema fiscal, do resultado obtido através do acto abusivo.

Significa isto que a verificação do elemento “normativo” não depende da identificação de uma norma impositiva violada pelo contribuinte, mas tão só a validação de que a conduta, apesar de ser civil ou comercialmente lícita, foi orientada para a obtenção abusiva de um ganho fiscal em sentido contrário ao visado pelo sistema jurídico-tributário globalmente considerado, razão pela qual é objecto de reprovação normativo-sistemática.

Na formulação legal vigente à data dos factos, não havia uma proibição expressa de um determinado esquema abusivo – mas era muito evidente, na teleologia do art. 38º, 2 da LGT, o propósito de sancionar comportamentos elisivos, ou seja, comportamentos que só aparentemente são legais, que se escondem sob operações artificiais, às quais não subjaz uma verdadeira razão económica – uma artificialidade que o Direito não tolera.

Como já se sublinhou, um esquema elisivo pode ser uma sequência de actos não-proibidos – porque o que releva é que o resultado dessa sequência determina a censura jurídico-fiscal da actuação do contribuinte.

Por outro lado, não esqueçamos que a ponderação do dito elemento “normativo”, no qual se joga a reprovação jurídico-sistemática da vantagem obtida, tem de acompanhar necessariamente a verificação do elemento “meio”, não podendo ser dele separada. É que é dogmaticamente inaceitável, em homenagem à unidade axiológica do ordenamento jurídico-tributário, pretender que, não obstante observados todos os elementos – “meio”, “resultado” e “intelectual” – próprios da cláusula geral antiabuso, seria possível não se corroborar o dito elemento normativo.

Como se entendeu no acórdão arbitral proferido no Proc. n.º 315/2014-T, 11 de Abril de 2015:

um ultrapassado e hoje inadmissível positivismo conceptualista poderia propiciar tal entendimento, do qual derivaria que se poderia reconhecer, ao mesmo tempo e sem contradição, a adopção pelo contribuinte de atos ou negócios jurídicos artificiosos, com abuso de formas jurídicas ou em fraude à lei, e a não reprovação ou aceitação dessa conduta pelo ordenamento jurídico. Deste modo, a autonomização do elemento normativo pode ser útil em ordem à explicitação destas matérias, mas dogmaticamente, para efeitos de resolução dos casos concretos, tem que se ter em conta que ele não é senão a destilação do segmento normativo do art. 38.º, n.º 2 da LGT que respeita aos meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas” em que se consubstancia, afinal, o elemento meio”.

Vimos também que o uso anómalo das formas jurídicas resulta da contradição entre a finalidade da disciplina tributária concedida a certas estruturas negociais e a utilização concreta que delas é efectuada, quando ocorram esquemas negociais que ocultem os seus verdadeiros propósitos e aos quais seja dada uma utilização manifestamente anómala face à prática jurídica comum – casos em que surge um resultado fiscal assistemático, porque alheio aos fins visados pela normatividade impositiva, como em casos em que especificamente a roupagem jurídica adoptada visou, simplesmente, retirar lucros e reservas disponíveis da sociedade, sem a tributação inerente.

Dado que se depara, assim, com a prática de actos artificiosos ou fraudulentos, com abuso das formas jurídicas, pois, ainda que por actos jurídicos formalmente lícitos, se actua materialmente contra os valores do ordenamento jurídico-tributário – no caso a sujeição de rendimentos de capitais à tributação devida nos termos do CIRS – incorre-se, assim, numa prática abusiva de evitação fiscal, pelo que tem de se considerar preenchido o elemento “normativo”, dada a reprovação normativo-sistemática da actuação levada a cabo.

É, na verdade, inquestionável a intenção legislativa de tributar em sede de IRS, como rendimentos de capitais na Categoria E (arts. 1º e 5º do CIRS), “os lucros das entidades sujeitas a IRC colocados à disposição dos respectivos associados ou titulares, incluindo adiantamentos por conta de lucros”.

Recordemos que os actos e negócios realizados entre os Requerentes, a D... e a C... constituem actos anómalos, dado que não visaram qualquer propósito económico-prático que não a eliminação dos impostos que seriam devidos caso tivesse lugar a via normal de uma directa distribuição de dividendos aos accionistas.

A reprovação normativa da vantagem fiscal obtida resulta, pois, directa e imediatamente, do regime fiscal aplicável aos dividendos colocados à disposição de pessoas singulares, pois a actuação artificiosa e fraudulenta de alienação de acções e configuração de dívida de preço com recurso a uma SGPS enquanto entidade relacionada com os Requerentes e demais accionistas dela, como forma de distribuição “encapotada”, “oblíqua” ou “indirecta” de dividendos, encontra-se, evidentemente, ao arrepio do programa normativo que resulta da disciplina de tributação dos rendimentos de capitais no CIRS (isto para não recorrermos de novo às normas de direito societário que definem a normalidade das soluções jurídicas na constituição de sociedades).

Também o elemento “normativo” se considera, pois, como verificado.

Por um lado, o legislador não pretendeu pôr à disposição dos contribuintes uma opção fiscal entre vias igualmente legítimas, nem tão pouco criou uma lacuna consciente de tributação: pretendeu, sim, tributar os lucros distribuídos aos sócios, vendo este desiderato contornado pelo esquema criado para o efeito, com lesão de princípios estruturantes do sistema fiscal, de um dever de solidariedade que envolve o dever de contribuir, de uma sã concorrência empresarial, e de objectivos socioeconómicos plasmados na Constituição, valores cuja promoção e salvaguarda é dificultada, ou impossibilitada, por práticas de planeamento fiscal agressivo.

Por outro lado, o juízo de censura que atinge estas práticas é hoje, na era “anti-BEPS”, e tendo em conta a evolução do direito europeu, muito mais forte. Essa maior severidade não visa pôr em causa a liberdade de estabelecimento das empresas, nem a liberdade de circulação de capitais, nem eventuais efeitos produzidos fora do campo tributário, e essa uma das razões pelas quais a aplicação da CGAA comina somente a ineficácia, ou seja, a desconsideração e inoponibilidade à AT dos esquemas abusivos, destruindo as vantagens abusivas e repondo a tributação devida que o esquema abusivo procurou afastar – sem interferir na validade (ou invalidade) extra-tributária de qualquer dos actos praticados no desenvolvimento da “montagem” abusiva.

Outras consequências negativas da aplicação da CGAA correrão por conta e risco dos envolvidos no esquema abusivo, sendo certo que, como mencionámos antes, o Direito Fiscal coloca ao dispor dos contribuintes formas de prevenir a aplicação da CGAA, como a comunicação do esquema negocial e o pedido de informação vinculativa prévia.

Em suma, o facto de os Requerentes terem utilizado um meio desprovido de razões económico-empresariais válidas, isto é, um meio artificial e abusivo, com o objectivo proeminente de obter uma vantagem fiscal, implica que o comportamento em causa é anti-jurídico e merecedor de reprovação normativo-sistemática.

A estas considerações que, sem mais, implicam a verificação do elemento “normativo”, acresce o facto de, no presente caso, ser notória a contrariedade da actuação dos Requerentes, face aos princípios e propósitos do ordenamento jurídico-tributário: se não existisse uma reprovação normativo-sistemática de tais práticas abusivas que atentam contra o espírito e os princípios do sistema fiscal, então estaria aberta a porta a que nenhum sócio ou accionista fosse tributado em sede de IRS por rendimentos gerados pelos seus próprios investimentos, já que bastaria, para o efeito, interpor um ente societário adequadamente “endividado” pela aquisição (economicamente desnecessária, e apoiada em mútuo) dos referidos investimentos dos sócios ou accionistas como pessoas individuais.

Ora, de novo: é evidente que existe uma intenção do legislador de tributar em sede de IRS as operações nas quais se visem distribuir lucros, ou adiantamentos por conta de lucros, tanto assim que este tipo de rendimentos se encontra tipificado no art. 5º, 2 h) do CIRS – pelo que dificilmente se compreenderia, ou admitiria, que, pelo simples facto de tal distribuição ter sido “encoberta” por uma diferente “roupagem nominal” com o intuito de obtenção de vantagens fiscais, o ordenamento se abstivesse de tributar tais realidades.

Visto que se encontram preenchidos os demais elementos que constam da previsão da norma do art. 38º, 2 da LGT, e existindo uma intenção clara de tributação das operações que teriam sido praticadas se não fosse a actuação elisiva dos Requerentes, é forçoso concluir que também se encontra verificado o elemento “normativo”.

 

IV. B. 8. 5: Estatuição, ou elemento sancionatório.

 

Já o dissemos: não obstante ser, por vezes, autonomizado, o elemento “sancionatório” é, contudo, mais uma consequência do que um pressuposto da aplicação da CGAA, sendo o efeito da verificação cumulativa dos demais pressupostos que desencadeiam a estatuição da norma.

Vimos que os quatro pressupostos estão preenchidos, e que a norma existe: logo, está igualmente verificado o elemento sancionatório.

Lembremos apenas que o denominado efeito “sancionatório” da aplicação desta cláusula prevista no art. 38º, 2 da LGT é, com salvaguarda de eventuais efeitos civis, a desconsideração, apenas no âmbito tributário, das vantagens fiscais que tiverem sido indevidamente obtidas pelos contribuintes.

Significa isto que, verificados os demais elementos da CGAA, terá a AT de efectuar a tributação de acordo com as normas aplicáveis na ausência dos actos ou negócios jurídicos artificiosos ou fraudulentos, não se alcançando as vantagens fiscais pretendidas, ou destruindo-se as vantagens eventualmente alcançadas (art. 38º, 1 da LGT).

Foi precisamente isto que ocorreu no presente caso, tendo-se limitado a AT a dar estrito cumprimento ao disposto na referida norma, desconsiderando para o efeito a interposição da C... na distribuição dos proveitos gerados no grupo AA..., e determinando, consequentemente, a tributação que ocorreria em sede de IRS se a referida distribuição tivesse sido feita directamente aos Requerentes.

Não se desconsiderou a estrutura societária da C... para todos os efeitos tributários (como se se tratasse de “levantar o véu corporativo”), mas apenas as consequências fiscais da utilização artificial, e destituída de substância económica, dessa forma societária em relação às transacções enquadradas pelo conjunto contratual celebrado pelos Requerentes, e outros accionistas da C...; transacções que foram objecto de correcção de modo a não se produzirem as vantagens fiscais indevidas, e a verificar-se a tributação correspondente à materialidade das operações “encobertas” pelo esquema elisivo.

Assim sendo, consideram-se igualmente verificados os requisitos de que dependia a cominação do efeito “sancionatório”, de sujeição das operações objecto de sindicância nos presentes autos à tributação que resultaria das normas aplicáveis caso estas não tivessem sido praticadas pelos Requerentes, salvaguardando-se naturalmente efeitos civis que se tenham produzido.

 

IV. B. 9. Conclusão

 

Como, em face do exposto, este Tribunal reconhece no conjunto dos actos indicados uma actuação de evitação fiscal abusiva, uma “dividend-stripping transaction”, conclui-se, deste modo, pela legalidade da actuação da AT, ao aplicar, no caso, a cláusula antiabuso contida no n.º 2 do art. 38.º da LGT, porquanto os Requerentes, com o conjunto de operações de criação da C..., de alienação da D... à C... e de endividamento da C... perante os Requerentes e demais accionistas, utilizaram meios artificiosos, com abuso das formas jurídicas, em ordem exclusivamente à não-tributação de dividendos resultantes de lucros da sociedade D..., o que não seria alcançado sem a adopção daqueles meios.

Por tudo o que se referiu, julga este Tribunal verificados todos os elementos de que dependia a aplicação da CGAA pela AT, improcedendo os vícios alegados pelos Requerentes a este respeito; pelo que os actos de liquidação de IRS contestados nos presentes autos são legais, e devem manter-se enquanto tais na ordem jurídica, tal como o deve a decisão de indeferimento das reclamações graciosas apresentadas contra elas.

Termos em que se julga improcedente a questão suscitada quanto à falta dos pressupostos necessários à aplicação da cláusula geral antiabuso consagrada pelo n.º 2 do art. 38.º da LGT; entendendo-se, pelo contrário, que a AT fez um uso legítimo da margem de apreciação que lhe é reconhecida pela CGAA, aplicando a CGAA de modo conforme à lei.

Improcedem, assim, os pedidos formulados pelos Requerentes.

 

IV.C. – Questões prejudicadas.

 

Foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, pela ordem disposta pelo art. 124º do CPPT, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria inútil – art. 608º do CPC, ex vi art. 29º, 1, c) e e) do RJAT.

 

IV.D. – Aplicação uniforme do Direito.

 

Na fundamentação da decisão, e em obediência ao princípio geral consagrado no art. 8º, 3 do Código Civil, seguimos de perto as decisões arbitrais proferidas no CAAD, nos Processos n.os 377/2014-T, 690/2016-T, 324/2017-T, 407/2019-T, 860/2021-T e 44/2022-T[9].

 

V. Decisão

 

Nos termos expostos, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

  1. Julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral;
  2. Manter na ordem jurídica as liquidações de IRS referentes aos anos de 2017 e 2018 n.os 2021..., 2021..., 2021... e 2021... e a decisão de indeferimento das reclamações graciosas dos procedimentos n.os ...2022... e ...2022...;
  3. Absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira de todos os pedidos;
  4. Condenar os Requerentes no pagamento das custas do processo.

 

VII. Valor do processo

 

Fixa-se o valor do processo em € 232.365,59 (duzentos e trinta e dois mil, trezentos e sessenta e cinco euros e cinquenta e nove cêntimos), nos termos do disposto no art.º 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi art.º 29.º, 1, a), do RJAT e art.º 3.º, 2, do Regulamento de Custas nos Processo de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

VIII. Custas

 

Custas no montante de € 4.284,00 (quatro mil, duzentos e oitenta e quatro euros) a cargo dos Requerentes (cfr. Tabela I, do RCPAT e artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, do RJAT).

 

Lisboa, 22 de Fevereiro de 2024

 

Os Árbitros

 

Fernando Araújo

(relator, por vencimento)

 

Arlindo José Francisco

 

Luís Ricardo Farinha Sequeira

(vencido, nos termos da declaração que junta)

 

Admitindo o caráter controverso que o tema da Cláusula Geral Anti Abuso (CGAA) quase sempre convoca (porventura por constituir uma das limitações mais relevantes à liberdade de gestão empresarial e bem assim de liberdades de iniciativa económica e de empresa, liberdades essas com assento constitucional nos art°s.61º, 80º, al. c), e 86º) e com todo o respeito pela decisão do coletivo, não consigo secundar a mesma, quer quanto à seleção da factualidade provada, quer quanto à sua respetiva apreciação e concomitante aplicação jurídica que de tal acervo probatório factual decorre, com as consequências daí advenientes para o sentido da decisão que ora faz vencimento.  

 

Desde logo, entendo que a decisão desconsidera – em termos de prova selecionada enquanto provada - o facto essencial que considero provado e a partir do qual se desenvolve todo o enredo factual relevante para a apreciação da legalidade dos atos tributários e o qual se reconduz à premência dos acionistas do grupo empresarial em causa encontrarem uma solução de governação que não pusesse em causa a congruência do exercício da atividade económica do grupo, as quais, encimadas por uma mesma marca, se encontravam dispersas por diferentes sociedades, detidas em distintas proporções por um núcleo de acionistas, com perspetivas e atuação no mercado diferenciadas 

 

Assim, a operação em apreço – constituição de uma Sociedade Gestora de Participações Sociais (SGPS) e respetiva aquisição das participações na D... Lisboa e D... Porto reconduz-se a uma operação de reestruturação de grupo empresarial, fundada na necessidade de desbloqueio de problemas governação da estrutura empresarial bicéfala –D... Lisboa e D... Porto - e dessincronizada entre os seus respetivos acionistas com as consequências operacionais e de mercado de uma mesma marca – a D... – as quais ficaram evidenciadas testemunhalmente, dessincronia essa de atuação de uma mesma marca no mercado que tinham por base as diferentes perspetivas dos acionistas que influenciavam a gestão das sociedades D... Lisboa e D... Porto e concomitantemente, prejudicavam uma atuação congruente no mercado da marca de um mesmo leque de bens e serviços que ambas comercializavam. 

 

 Atento o problema de base – não fiscal - que na perspetiva dos acionistas se impunha resolver a bem de uma congruente atuação no mercado de uma mesma marca, impôs-se ultrapassar a situação, criando uma SGPS, na qual se agregassem numa participação unificada por acionista ao nível desta, desbloqueando assim as dissonâncias até aí existentes entre os diferentes acionistas que influenciavam a gestão da D... Lisboa e da D...Porto.

 

Tal solução permitiu assim a clarificação da posição acionista de cada um dos titulares de participação na SGPS e assim permitiu uma unicidade estratégica de política de atuação empresarial da marca no mercado para todas as sociedades do grupo, o que até aí não sucedia, dada a diferente composição e influência na gestão de distintos acionistas nas sociedades  D... Lisboa e D... Porto, as quais constituíam os veículos operacionais essenciais no desenvolvimento da atividade do grupo e da marca em apreço no mercado nacional.

 

Deste modo, o rearranjo acionista pela criação de uma sociedade gestora de tais participações foi apta a permitir uma definição acionista e de uma só linha e política estratégica e orientadora quanto à atuação daquele grupo empresarial, assim permitindo desbloquear os problemas que a operação das referidas D...’s tinham de congruência em matéria de atuação no mercado.

 

Ora, a este respeito, a decisão incorre em erro de seleção e apreciação destes factos, não os relevando para a base factual considerada provada, acomodando-os, ainda que por defeito, apenas e só a título de invocação (anunciada), o que, por ausência de aderência para com a realidade da efetiva prova carreada para os autos pelas testemunhas inquiridas, entendo não poder secundar.

 

Dessa indevida circunscrição quanto aos factos tidos por provados decorre uma consequente interpretação e aplicação do quadro normativo relativo à CGAA que não posso acompanhar, como tentarei sintetizar infra.

 

A Cláusula Geral Anti-abuso prevista no artigo 38.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária visa desconsiderar os efeitos fiscais resultantes de operações (1)sem fundamento económico, (2)artificialmente construídas com (3)propósitos essenciais de elisão fiscal.

 

 A CGAA perfila-se assim como instrumento que permite à administração fiscal tornar tributariamente ineficaz uma determinada opção (acto ou negócio) do contribuinte, instrumento esse para cuja aplicação o legislador conferiu especiais exigências, como sejam as relativas a um procedimento específico que decorre dos termos do art.º 63.º do CPPT (na redação à época vigente) e bem assim em matéria de fundamentação.

 

Citando-se aqui, pelo seu poder de síntese sobre esta temática, a jurisprudência do Tribunal Central Administrativo do Sul, no processo n.º 963/07.5 BELSB, de 25.112021 , segundo a qual “Esta disposição legal exige, pois, um especial dever de fundamentação por parte da AT, nestes casos.

Nas palavras de Saldanha Sanches(1)“[d]a fundamentação devem constar a descrição da ‘verdadeira substância económica’ do acto jurídico realizado, a indicação dos elementos que demonstrem o fim único ou principal da operação (redução da carga fiscal), a tributação que seria devida se fosse feito o outro acto ou negócio jurídico com ‘substância económica equivalente’ e, também, a descrição dos actos ou negócios que contêm a tal ‘substância económica equivalente’”.

Seguindo a sistematização de Gustavo Lopes Courinha(2),são os seguintes os elementos ou pressupostos de aplicação da CGAA:

a) Elemento meio;

 

b) Elemento resultado;

 

c) Elemento intelectual;

 

d) Elemento normativo.

 

O mesmo A. ainda densifica o elemento sancionatório, consubstanciado na efetivação da CGAA.”

 

Assim, a questão decidendi trazida aos autos coloca-se em saber, se se encontram preenchidos todos os supra mencionados elementos em ordem à requalificação tributária das operações em causa, por via da aplicação da CGAA, análise essa baseada na fundamentação coligida e transposta pelo sujeito ativo da relação jurídico-tributária para o respetivo RIT.

 

Impondo-se assim aquilatar, em primeiro lugar, se a operação de reestruturação empresarial seria apta a cumprir o desiderato anunciado para o qual foi executada e se é provida de um racional não-fiscal e substância económico-empresarial consentânea com a finalidade para a qual foi levada a efeito, entendendo que quanto a estas duas questões dever ser a resposta positiva, ou seja, a de que operação executada se realizou a coberto de um propósito económico-empresarial determinado, que considero provado e que o modelo de estruturação eleita pelos Requerentes é apto a cumprir essa mesma finalidade não fiscal.

 

Sem prejuízo do exposto, sempre se imporia aquilatar da eventual artificialidade da forma revestida pela operação em apreço e da eventual primacial finalidade fiscal associada a tal solução, em ordem a testar o preenchimento dos diversos elementos, prima facie, o elemento meio.

 

Sendo que e a este respeito, o RIT omitiu qualquer referência quanto àquele que em seu entendimento seria, no caso e nas concretas circunstâncias em que se encontrava o grupo empresarial e os Requerentes, a solução próxima de idêntico fim económico em causa.

 

E tal apreciação impunha-se por força do ónus que sobre a Requerida recai de preencher, em primeiro lugar, o elemento meio, o que no caso passaria por demonstrar que a estruturação da operação era artificiosa ou inusitada face à finalidade visada, o que se logra, atento o disposto no n.º 2 do artigo 38º da LGT, com o evidenciar daquela ou daquelas que seriam as opções de estruturação mais próximas e naturais para almejar similar propósito económico (não-fiscal) pretendido pelos Requerentes.  

 

E a partir da evidenciação daquela que seria, no entender da Requerida, a via mais natural com idêntica finalidade económica, em segundo lugar, saber se tal operação de reestruturação do grupo empresarial seria ou não esdrúxula na sua arquitetura por imperativos de evitação fiscal, quando comparada com outras opções de reestruturação que pudessem ser consideradas mais naturais e usuais, naquelas mesmas circunstâncias.

 

No tangente a estas questões, impõe-se ater, enquanto farol de uma fundamentação contextual, naqueles que foram os fundamentos em que se abrigam as liquidações arbitralmente impugnadas, constantes do relatório inspetivo (RIT) elaborado no âmbito do procedimento próprio com vista à aplicação da CGAA.

 

Neste conspecto,  desde já cabe relevar a circunstância de, não obstante se poder estar perante uma operação levada a efeito no domínio das relações especiais, ainda assim nenhum dos termos da operação de transmissão pelos Requerentes à SGPS das participações por aqueles detidas nas sociedades D... Lisboa e D... Porto terem sido postas em causa, isto é, a Requerida não questiona o valor pela qual teve lugar a transmissão dos valores mobiliários e nem sequer as respetivas condições (temporais) de pagamento desse preço. 

 

Não obstante e ainda assim, entendeu a Requerida ocorrer uma vantagem fiscal abusiva, por via da constituição da C... SGPS, na medida em que sem esta e subsequente transmissão dos títulos da D... Lisboa e D... Porto, ao invés de pagamento do preço pela transmissão das ações efetuada aos Requerentes, tais pagamentos constituiriam, por requalificação, dividendos ou adiantamentos por conta de lucros recebidos por estes, tipologia de rendimento esta sujeita a tributação à taxa liberatória, sem que se vislumbrasse da reorganização empresarial em causa (criação da SGPS) qualquer substância ou vantagem económica. (vide a este respeito, pontos II.5.2. e III.2. do RIT), sendo este o cerne e síntese do posicionamento vertido pela Requerida em ordem à fundamentação da aplicação da CGAA.

 

Como já supra se deixou demonstrado, da prova testemunhal produzida ficaram evidenciadas as vantagens e substância económica da reorganização empresarial tida lugar, no que à necessidade de desbloqueio da governação do grupo empresarial dizia respeito, pelo que não me é possível acompanhar o pressuposto no qual se baseou a Requerida e as asserções e conclusões quanto à inexistência de razões económicas (razões não-fiscais) válidas para a constituição de uma SGPS, ao contrário do secundado na decisão que faz vencimento.

 

Ante uma problemática de base de cariz não fiscal, pretendendo requalificar, no caso, por ineficácia, os efeitos fiscais da reorganização empresarial tida lugar, por via da aplicação da CGAA no que a estas tranches do pagamento do preço pela SGPS aos Requerentes concerne, impunha-se, como já referido, à Requerida efetuar um exercício de comparabilidade entre esta solução e outro qualquer modelo que pudesse entender ser a solução económico-empresarial próxima e mais natural, a fim de, assente em tal cenário próximo comparativo, testar a existência ou não de uma vantagem fiscal e eventualmente, a partir daí, lograr uma conclusão quanto à sua natureza abusiva no que tange à solução efetivamente levada a efeito pelos Requerentes.

 

Ao ab initio assumir, tal como assumiu através do RIT, a inexistência de pertinência económico-empresarial na constituição da SGPS e bem assim a ausência de substância quanto a eventuais vantagens económico-empresariais da mesma, assunção essa que a prova produzida não veio a corroborar, levou a Requerida à omissão de identificação sobre qual ou quais os atos ou negócios jurídicos com idêntico fim económico (relativamente àqueles que foram levados a efeito pelos Requerentes).

 

E decorrentemente, na não evidenciação do impacto fiscal decorrente dessa ou dessas opções com idêntica finalidade económica, quando comparadas com o impacto fiscal da opção trilhada pelos Requerentes, apenas assim se podendo aferir da existência ou não de uma vantagem fiscal (abusiva ou não), ou seja, se se poderia dar por verificado o elemento “resultado” em vista à aplicação da CGAA. 

 

Isto é, a Requerida não logrou explicitar que atos ou negócios jurídicos de fim económico equivalente àqueles que suportaram a reorganização empresarial tida lugar, muito menos a  demonstrar, comparadamente, a eventual vantagem fiscal adveniente dessa opção de estruturação face a esse ou esses atos ou negócios de idêntico fim, limitando-se antes a simplesmente  afirmar que não fora a constituição da SGPS e o pagamento do preço devido por esta aos Requerentes por transmissão dos valores mobiliários, tais fluxos financeiros entre a SGPS e os seus acionistas constituiriam distribuição de dividendos/adiantamentos por conta de lucros, sujeitos a tributação liberatória.

 

Em suma, na perspetiva da Requerida, a constituição da SGPS e subsequente aquisição por esta dos títulos das sociedades D... Lisboa e D...  Porto aos Requerentes constituíram uma operação destituída de substância e de vantagens económico-empresariais e nessa premissa bastou-se com o cenário de “eliminação” fiscal de tal operação, procedendo à simples comparação entre a reestruturação executada e um cenário sem qualquer fim económico-empresarial equivalente, em idênticos moldes e lógica de raciocínio procedendo em matéria de impacto fiscal decorrente da operação de reorganização empresarial levada a efeito versus um cenário sem qualquer reestruturação (mais natural ou próxima).

 

Concluindo o RIT que, sem reestruturação empresarial, tais fluxos financeiros entre a SGPS e os Requerentes configurariam distribuição de dividendos/adiantamento por conta de lucros, sujeitos a tributação à taxa liberatória, por contraposição à isenção à época legalmente vigente quanto às mais-valias geradas pela alienação de ações, assim dando por demonstrada a vantagem fiscal abusiva.

 

A circunstância da referida premissa invocada pela Requerida (destituição de substância económico-empresarial da constituição da SGPS) não se verificar elimina, consequentemente, o principal suporte invocado pela administração fiscal no raciocínio que seguiu quanto à aplicação da CGAA, conclusão que conduz, inexoravelmente, à constatação de que a aplicação desta é ilegal.

 

Do teor do n.º 2 do artigo 38º da LGT (na redação vigente à data dos factos em apreço) extrai-se a exigência no sentido de que sobre o sujeito ativo da relação tributária recai o ónus de explicitar a falta de fundamento económico da operação, a sua artificialidade e o propósito essencialmente fiscal (vantagem abusiva) desta, o que não poderá deixar de se efetuar através de um exercício de evidenciação comparada entre a vantagem assim obtida (operação reputada de abusiva) e aquela que adviria de atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico. 

 

Não o tendo logrado efetuar, nem com similar base comparativa tendo evidenciado a suposta vantagem fiscal decorrente de tal operação de reorganização, forçoso se torna concluir pela não verificação, desde logo, quer do elemento meio, quer do elemento resultado.

 

Quanto ao elemento meio, a verificação do mesmo pressupõe que o sujeito passivo utilize meios que configurem um abuso de formas jurídicas, o que implica a demonstração quanto à artificialidade ou feição inusitada que está na génese na constituição da SGPS (e subsequente aquisição por esta das participações sociais de sociedades comerciais do grupo empresarial) e respetiva finalidade económica por esta visada.

 

A este respeito, para além dos juízos essencialmente conclusivos constantes do RIT quanto à ausência de racionalidade ou vantagem económica do grupo, cumpre assinalar sendo apenas de relevar não se ter por impressiva a circunstância de a SGPS em causa poder não ter uma estrutura de meios humanos e materiais similar às sociedades comerciais, na medida em que estas desenvolvem diretamente atividades económicas, ao invés das SGPS, as quais “têm por único objeto contratual a gestão de participações sociais noutras sociedades, como forma indireta de exercício de atividades económicas”, (art. 1.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 495/88, de 30 de dezembro, com as alterações subsequentes, que estabelece o regime de tais sociedades).

 

Pelo contrário, afigura-se mais desajustada do padrão de habitualidade das SGPS, que estas e a SGPS em apreço possuíssem meios humanos e materiais, pelo menos dignos de relevo, para além dos membros dos órgãos estatutários, sendo as demais necessidades de back office, como sejam a área administrativa e contabilístico-financeira, típica e essencialmente asseguradas por meios humanos e materiais formalmente afetos ao grupo de empresas por esta detidas, situação inversa seria, ela sim, atípica, dada a natureza jurídica específica destas sociedades, pelo que tal circunstância nada aduz em concreto para qualquer labelo atinente à artificialidade imputada a tal reorganização e a tal sociedade.

 

Em suma, no que respeita ao elemento meio, não é possível alcançar os fundamentos que permitam concluir que a operação em análise careça de um fundamento não-fiscal válido e se revista de uma forma inusual, artificial, complexa, ou mesmo contraditória face àqueles que foram os fins económicos visados pelos Requerentes, desde logo pela circunstância objetiva de a partir do teor do RIT não decorrer qual ser o ato ou negócio jurídico de idêntico fim que pudesse, similarmente, acomodar as finalidades não fiscais invocadas e obtidas com a operação de reestruturação pelos Requerentes levada a efeito, omissão essa que não pode deixar de à Requerida ser imputável.

 

Já quanto ao elemento resultado, este apenas se pode ter por verificado através do desiderato primacial ou essencial  de obtenção de uma determinada vantagem fiscal, a qual é definível, nas palavras de Gustavo Lopes Courinha  como “qualquer situação pela qual, em virtude da prática de determinados atos, se obtém uma carga tributária mais favorável ao contribuinte do que aquela que resultaria da prática dos atos normais e de efeito económico equivalente, sujeitos a tributação. Assim, estaremos perante uma comparação entre os ónus fiscais normalmente suportados e os evitados com a atuação produzida. Se de tal análise resultar uma efectiva diferença (…) que seja objetivamente vantajosa para o contribuinte, ter-se-á por verificado este requisito".

 

Revertendo para o caso dos autos em apreço, como já supra se teve a oportunidade de relevar, a Requerida absteve-se de demonstrar a existência dessa mesma vantagem fiscal (abusiva), porquanto se absteve de, a montante, (identificar e) explicitar através de qualquer exercício comparativo entre o impacto fiscal da solução de reestruturação implementada e uma outra solução económico-empresarial que almejasse desiderato económico-empresarial equivalente e consequentemente os respetivos impactos fiscais decorrentes de uma e outra operações, pelo que, necessariamente, se tem de concluir também pelo não preenchimento do elemento resultado exigido pelo n.º 2 do artigo 38º da LGT.

 

Destarte, não tendo logrado a Requerida demonstrar a ausência de substância económica (não-fiscal) da operação, a sua eventual artificialidade e bem assim a essencialidade quanto ao fito de elisão tributária almejada por tal reestruturação, não me posso rever nos pressupostos da decisão que ora faz vencimento, pressupostos estes que viciam, inexoravelmente, as conclusões em que a mesma se alicerça. 

 

Pelo que, sendo pacificamente reconhecido pela jurisprudência e doutrina a exigência da reunião cumulativa dos cinco referidos elementos, sem necessidade de análise aos demais três requisitos de que dependeria um juízo de conformidade legal para a aplicação da CGAA, entendo estarem as decisões de indeferimento das reclamações graciosas em causa e respetivas liquidações em causa eivadas de vício de violação de lei, por não verificação dos requisitos ou elementos – meio e resultado - que dimanam do n.º 2 do artigo 38º da LGT, sendo devida a sua anulação das mesmas.

 

 

Luis Ricardo Farinha Sequeira

 



[1] Aproveitando a elaboração já levada a cabo na fundamentação da decisão do Processo nº 222/2020-T do CAAD.

[2] Sanches, Saldanha (2000), “Abuso de Direito em Matéria Fiscal: Natureza, Alcance e Limites”, CTF, 398, pp. 12ss.

[3] Courinha, Gustavo (2009), A Cláusula Geral Antiabuso no Direito Tributário - Contributos para a sua Compreensão, Coimbra, Almedina, pp. 165ss..

[4] Vasques, Sérgio (2011), Manual de Direito Fiscal, Coimbra, p. 315.

[5] Modigliani, F. & M.H. Miller (1963), “Corporate Tax Planning and the Cost of Capital: A Correlation”, American Economic Review, 53/3, 433-443.

[6] Cfr. Morais, Rui D. (2006), “Sobre a Noção de Cláusulas Antiabuso”, in Estudos Jurídicos e Económicos em Homenagem ao Prof. Doutor António de Sousa Franco, vol. III, Coimbra, Coimbra Editora, p. 888.

[7] Courinha, Gustavo (2009), A Cláusula Geral Antiabuso no Direito Tributário - Contributos para a sua Compreensão, Coimbra, Almedina, p. 172.

[8] Sanches, JL Saldanha (2006), Os Limites do Planeamento Fiscal, Coimbra, 2006, pp. 175-176.

[9] Processos n.os 377/2014-T (Jorge Lopes de Sousa, Carla Castelo Trindade e João Menezes Leitão), 690/2016-T (Fernanda Maçãs, Fernando Araújo e João Menezes Leitão), 324/2017-T (António Carlos dos Santos, Rui Duarte Morais e Manuel Pires), 407/2019-T (Fernanda Maçãs, Diogo Feio e Fernando Araújo), 860/2021-T (Carla Castelo Trindade, Tomás Cantista Tavares e João Menezes Leitão) e 44/2022-T (Carla Castelo Trindade, Tomás Castro Tavares e Sofia Ricardo Borges).