Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 410/2023-T
Data da decisão: 2023-11-13   Outros 
Valor do pedido: € 307.900,69
Tema: Contribuição sobre o Sector Rodoviário (CSR). Direito de União Europeia. Competência dos tribunais arbitrais. Ineptidão da petição. Legitimidade
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DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Conselheiro Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Dra. Sílvia Oliveira e Prof.ª Doutora Marta Vicente, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formarem Tribunal Arbitral, constituído em 14-08-2023, acordam no seguinte:

 

1. Relatório

 

1.º A..., S.A., titular do número único de pessoa coletiva ..., com sede em ..., ..., ...-... ... (doravante, abreviadamente designada por «A...»),

2.º B..., S.A.  (anteriormente designada por C..., Lda.) titular do número único de pessoa coletiva..., com sede em ..., ...-..., ...-... ... (doravante, abreviadamente designada por «B...»),

 

(doravante, abreviadamente designadas, em conjunto, por «Requerentes»)

apresentaram pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), tendo em vista a declaração da «ilegalidade dos atos de repercussão da CSR consubstanciados nas faturas referentes ao gasóleo rodoviário e a gasolina adquiridos pelas Requerentes no decurso do período compreendido 2019 e 2022, e, bem assim, das correspondentes liquidações de CSR praticadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira com base nas DIC submetidas pelas respetivas fornecedoras de combustíveis, determinando-se, nessa medida, a sua anulação, com as demais consequências legais, designadamente, com o reembolso a requerente de todas as quantias suportadas a esse título, acrescidas dos respetivos juros indemnizatórios».

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “AT” ou simplesmente “Administração Tributária”).

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 05-06-2023.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 25-07-2023, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados das alíneas a) e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 14-08-2023.

A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, em 01-10-2023, na qual suscitou as seguintes excepções:

– ineptidão da petição inicial por falta de objecto;

– intempestividade do pedido de revisão oficiosa;

– ilegitimidade das Requerentes (e, em caso afirmativo, necessidade de intervenção principal da D... S.A.);

– incompetência relativa do Tribunal Arbitral por falta de vinculação da AT.

 

Para além disso, a AT defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.

Por despacho de 02-10-2023, foi decidido dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e alegações, com possibilidade de as Requerentes responderem, no prazo de 10 dias, às excepções suscitadas (tendo este prazo sido posteriormente prorrogado).

As Requerentes apresentaram, em 26-10-2023, resposta às excepções.

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT.

As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

Importa apreciar prioritariamente as excepções, começando pela de incompetência, que é de conhecimento prioritário [artigo 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT]

 

2. Matéria de facto

2.1. Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

 

  1. As Requerentes são sociedades de direito português, com sede e direcção efetiva em Portugal;
  2. A D... S.A. (doravante, «D... »), a E..., Lda. (doravante, «E... »), a F..., S.A. (doravante, «F...») e a G... Gmbh (doravante, «G...») são empresas que comercializam combustíveis;
  3. Durante o período compreendido entre 2019 e 2022, as Requerentes adquiriram às referidas fornecedoras de combustíveis gasolina e gasóleo rodoviário (Docs. 1 a 5).;
  4. A A... a adquiriu à D... no período entre Janeiro de 2019 e Maio de 2022, 1.433,30 litros de gasolina e 288.710,88 litros de gasóleo rodoviário tendo suportado com essas aquisições € 32.171,60 a título de Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR) (documentos n.ºs 1 e 3 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);
  5. A A... adquiriu à E... no período entre Janeiro de 2019 e Junho de 2022, 1.489.600,00 litros de gasóleo rodoviário tendo suportado com essas aquisições
    € 165.345,60 a título de CSR (documentos n.ºs 2 e 3 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos e processo administrativo);
  6. A B... adquiriu à F... e à G..., no período compreendido entre Janeiro de 2019 e Dezembro de 2022, 994.440,61 litros de gasóleo rodoviário e 6,65 litros de gasolina, tendo, nessa medida, suportado, a título de CSR, a quantia global de
    € 110.383,49 (Documentos n.ºs 4 e 5 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);
  7. A D... e a F... apresentaram à Autoridade Tributária e Aduaneira declarações de introdução no consumo referentes aos períodos das facturas de aquisição indicadas pelas Requerentes (artigo 21.º da Resposta);
  8. A E... e a G... não apresentaram à Autoridade Tributária e Aduaneira qualquer declaração de introdução no consumo relativa às vendas referidas (artigo 21.º da Resposta);
  9. A F... vendeu à G... o combustível que esta vendeu à B..., repercutindo nas vendas a totalidade do valor correspondente à CSR que entregou a Estado de acordo com as liquidações de ISP efectuadas à F... pela Autoridade Tributária e Aduaneira (documento n.º 1 junto com a resposta às excepções);
  10. A G... relativamente às vendas de combustível em Portugal, repercutiu nos seus Clientes um valor correspondente à CSR suportada pela G... aquando da aquisição do referido combustível à F... (documento n.º 2 junto com a resposta às excepções);
  11. Em 31-01-2023, a A... apresentou um pedido de revisão oficiosa «das liquidações de CSR praticadas pela Administração Tributária e Aduaneira, refletidas nas referidas faturas emitidas pela D... S.A., referentes à gasolina e ao gasóleo rodoviário adquirido pela REQUERENTE no período compreendido entre janeiro de 2019 e Maio de 2022, constituindo, assim, o objecto do presente pedido os referidos actos antecedentes e consequentes» (documento n.º 6 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido e processo administrativo);
  12. Em 31-01-2023, a A... apresentou um pedido de revisão oficiosa «das liquidações de CSR praticadas pela Administração Tributária e Aduaneira, refletidas nas referidas faturas emitidas pela E..., Lda., referentes ao gasóleo rodoviário adquirido pela REQUERENTE no período compreendido entre janeiro de 2019 e junho de 2022, constituindo, assim, o objecto do presente pedido os referidos actos antecedentes e consequentes» (documento n.º 7 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido e processo administrativo);
  13. Em 31-01-2023, a B... apresentou um pedido de revisão oficiosa «das liquidações de CSR praticadas pela Administração Tributária e Aduaneira, refletidas nas referidas faturas emitidas pela F... S.A e pela G... GMBH, referentes à gasolina e ao gasóleo rodoviário à mesma adquiridos pela REQUERENTE no período compreendido entre janeiro de 2019 e junho de 2022, constituindo, assim, o objecto do presente pedido os referidos actos antecedentes e consequentes» (documento n.º 8 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  14. Os pedidos de revisão oficiosa não foram decididos até 02-06-2023, data em que as Requerentes apresentaram o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.

 

2.2. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto

 

2.2.1. Os factos foram dados como provados com base nos documentos que se indicaram.

 

2.2.2. Não se provou que a E... e a G... sejam sujeitos passivos de ISP ou CSR nem que tenham apresentado à AT declarações de introdução no consumo (DIC), nos períodos a que se referem as facturas que constam dos documentos n.ºs 3 e 5 juntos com o pedido de pronúncia arbitral.

Na verdade, a AT diz que «nem E..., nem a G... são sujeitos passivos de ISP/CSR, pelo que não existem quaisquer DICs introduzidas no consumo pelos referidos operadores económicos que, eventualmente, serão intermediários na cadeia de distribuição de combustíveis» (artigo 21.º da Resposta) e nenhuma prova foi apresentada de que tenham apresentado qualquer DICs e tenham sido emitidas quaisquer liquidações de CSR relativamente às vendas que efectuaram.

 

2.2.3. Não se provou quais as liquidações de CSR que a AT emitiu relativamente ao combustível adquirido pelas Requerentes nos períodos a que se referem as facturas juntas aos autos.

As Requerentes no pedido de pronúncia arbitral requereram que a AT fosse notificada para juntar aos autos, para além da cópia do processo administrativo, «todos os demais documentos respeitantes a matéria do presente processo arbitral de que é a mesma detentora, em particular as liquidações de CSR aqui impugnadas».

No entanto, a AT garantiu na sua Resposta que «não é possível determinar a ligação entre as mesmas e qualquer liquidação ou liquidações concretas» (artigo 20.º).

No entanto, não questionando a AT que a D... e a F... tenham apresentado declarações de introdução no consumo relativas ao combustível nem que tenham pagado a CSR correspondente, não se considera provado que a AT não possa identificar as liquidações que ela própria emitiu em nome da D... e da F..., nos períodos a que se reportam as facturas.

Na verdade, a liquidação da CSR era efectuada nos termos do Código dos Impostos Especiais de Consumo (CIEC) (artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º 55/2007 de 31 de Agosto, na redacção vigente em 2018/2019, introduzida pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro), e para os combustíveis em causa no âmbito de um fornecimento nacional, a introdução no consumo devia ser formalizada através da declaração de introdução no consumo (DIC), que deve ser processada até ao final do dia útil seguinte àquele em que ocorra a introdução no consumo(artigo 10.º, n.ºs 1 e 3, do CIEC).

Por isso, conhecidas as datas da introdução no consumo, afigura-se que não será inviável para a AT apurar qual a DIC que corresponde a cada uma das facturas e a liquidação que emitiu com base nessa DIC.

 

2.2.4. No que concerne à repercussão da CSR nas Requerentes, afigura-se que, para além das declarações apresentadas pela F... e G..., deve considerar-se provada por presunção, já que não é contrariada por qualquer meio de prova, nos casos em que se está perante vendas de combustíveis efectuadas por sujeitos passivos de CSR ou por empresas comercializadoras que adquiriram a sujeitos passivos os combustíveis que recenderam às Requerentes.

Na verdade, a existência de repercussão do tributo no consumidor final numa situação em que a lei pretende que ela exista, como sucede com a CSR, tem de se presumir, à face das regras da experiência que os árbitros devem aplicar na fixação da matéria de facto, nos termos da alínea c) do artigo 16.º do RJAT, pois trata-se de uma situação normal, que corresponde ao andamento natural das coisas, quod plerumque accidit.

Neste contexto, deve dizer-se que a presunção de repercussão quando esta está prevista na lei e não há qualquer facto que permita duvidar da correspondência do facto presumido à realidade, não é incompatível com o Direito da União, designadamente à face do Despacho do TJUE de 07-02-2022, proferido no processo C-460/21.

O que aí se refere, relativamente a prova de uma situação de enriquecimento sem causa, que constitui excepção ao direito ao reembolso de quantias cobradas em violação do Direito da União,  é que «o direito da União exclui assim que se aplique toda e qualquer presunção ou regra em matéria de prova destinada a fazer recair sobre o operador em causa o ónus de provar que os impostos indevidamente pagos não foram repercutidos noutras pessoas e que visem impedir a apresentação de elementos de prova destinados a contestar uma pretensa repercussão (Acórdão de 21 de setembro de 2000, Michaïlidis, C-441/98 e C-442/98, EU:C:2000:479, n.º 42)».

Isto é, o que o TJUE considera incompatível com o Direito da União é a utilização exclusiva de uma presunção de repercussão para prova de uma situação excepcional de enriquecimento sem causa, derivada de omissão de repercussão, impedindo ao operador que devia fazer a repercussão a apresentação de elementos de prova destinados a demonstrar que não ocorreu.

Mas, no caso em apreço, o que está em causa não é a prova de uma situação de excepção, mas sim a prova da situação normal e não há obstáculos a que seja apresentada prova de que a repercussão não ocorreu. O que sucede, é que nenhuma prova foi apresentada que permita entrever que a repercussão não tenha ocorrido.

 

2.2.5. No entanto, relativamente à E... não se provou sequer que seja sujeito passivo de imposto sobre os produtos petrolíferos (ISP) e consequentemente de CSR (artigo 4.º, n.º 1, da Lei n.º 57/2007, de 31 de Agosto), nem que tenha apresentado DICs, nem que tenha adquirido a qualquer sujeito passivo de ISP que tenha apresentado DICs, o combustível que vendeu à A... .

Nestas condições, e quanto àquela entidade, não se considera provado que o valor da CSR tenha sido repercutido na A... .

 

3. Questões da competência

 

3.1. Questão da incompetência relativa do tribunal arbitral em razão da matéria

 

A Requerida, na sua Resposta, suscitou a excepção da incompetência relativa do Tribunal Arbitral em razão da matéria porquanto entende “a espécie tributária da CSR é qualificada como contribuição financeira e não como imposto, encontrando-se, assim, excluída da arbitragem tributária, por força do disposto nos artigos 2.º e 3.º do RJAT (…) e do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, pelas quais a vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais se reporta apenas à apreciação de pretensões relativas a impostos, não abrangendo os tributos que devam ser qualificados como contribuição”.

E, neste âmbito, reitera a Requerida que “(…) quanto à natureza jurídica da CSR, não se suscitam dúvidas de que a mesma, à luz do direito aplicável à data dos factos, constitui uma contribuição financeira, distinguindo-se, assim, do imposto” considerando que existe “(…) um vínculo entre o destino dado às receitas da CSR e o motivo específico que levou à sua criação, a rede rodoviária nacional a cargo da IP [que] é financiada pelos seus utilizadores (princípio do utilizador-pagador), e apenas subsidiariamente pelo Estado (…) constituindo receita própria da IP”, entendendo a Requerida que “(…) a CSR [é] uma contraprestação/contrapartida pela utilização dos serviços prestados pela IP aos utentes/utilizadores das vias rodoviárias, em nome do Estado, por força das bases da referida concessão (…)”.

Nestes termos, defende a Requerida que “(…) a sindicância dos atos de liquidação de CSR está fora do âmbito das matérias suscetíveis de apreciação em sede arbitral, verificando-se a exceção dilatória que se traduz na incompetência material do tribunal arbitral, a qual prejudica o conhecimento do mérito da causa, devendo determinar a absolvição da Entidade Requerida da instância (…)”.

Neste âmbito, as Requerentes vieram alegar, em síntese, que a CSR “(…) assenta em dois propósitos estruturalmente distintos: um primeiro, de simples arrecadação de receita (consistente na indicada remuneração da Infraestruturas de Portugal, S.A., enquanto entidade gestora da rede rodoviária nacional) e, um segundo, de comutação da utilização da referida rede”.

Assim, entendem as Requerentes que “(…) a CSR consubstancia uma prestação devida pelo grupo de presumíveis utilizadores da rede rodoviária nacional (identificados por via do seu consumo de combustível) na medida em que essa utilização dê origem a presumíveis maiores despesas de gestão da respetiva rede rodoviária, preenchendo, (…) por esta via, o conceito de contribuição especial” e, por isso, “(…) ser perspetivada como um verdadeiro imposto, quer em sede constitucional, quer, consequentemente, em sede infraconstitucional”.

Em consequência, entendem as Requerentes que se impõe “(…) concluir que todos os atos tributários relacionados com a CSR (…) serão plenamente arbitráveis nos termos dos artigos 2.º da Portaria n.º 112- A/2011, de 22 de março, e 2.º do RJAT, improcedendo, em conformidade, a exceção de incompetência material invocada pela AT”.

 

Cumpre analisar a eventual procedência/improcedência desta excepção.

 

A este respeito, e seguindo de muito perto a posição assumida no Acórdão proferido no âmbito do processo P 113/2023-T, de 15-07-2023 (da qual foi signatária uma das Árbitros deste TAC) adianta-se, desde já, que entende este Tribunal Arbitral que improcede a excepção da incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria para apreciar o mérito do pedido arbitral, tendo em consideração os argumentos que, a seguir, se apresentam.

Com efeito, a competência contenciosa dos Tribunais Arbitrais em matéria de arbitragem tributária, tal como resulta do artigo 2º do RJAT, compreende a apreciação de pretensões que visem a “declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta” e a “declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais”.

O artigo 4º, nº 1, do RJAT faz ainda depender a vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos Tribunais Arbitrais de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que deverá estabelecer, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos.

E o diploma que, em execução desse preceito, define o âmbito e os termos da vinculação da Autoridade Tributária à jurisdição dos Tribunais Arbitrais que funcionam no CAAD é a Portaria nº 112-A/2011, de 22 de março, que no seu n.º 2, sob a epígrafe “Objeto de vinculação”, e com a alteração resultante da Portaria nº 287/2019, de 3 de setembro, dispõe o seguinte:

 

Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objeto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com exceção das seguintes:

a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;

b) Pretensões relativas a atos de determinação da matéria coletável e atos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indiretos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;

c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indiretos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação;

d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efetuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira;

e) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade da liquidação de tributos com base na disposição antiabuso referida no n.º 1 do artigo 63.º do CPPT, que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos do n.º 11 do mesmo artigo”.

 

A referência a serviços e organismos que se vinculavam à jurisdição arbitral era feita para a Direcção-Geral dos Impostos e a Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo, que foram, entretanto, extintas, tendo-lhes sucedido a Autoridade Tributária e Aduaneira (aqui designada por Requerida).

A Portaria n.º 112-A/2011, também chamada Portaria de vinculação, fixa um segundo nível de delimitação das pretensões que poderão ser sujeitas à jurisdição arbitral mas, tratando-se de um mero regulamento de execução, a Portaria não poderia ir além do estabelecido na lei quanto ao âmbito de competência material dos Tribunais Arbitrais, podendo estabelecer restrições quanto ao âmbito da vinculação à arbitragem tributária, mormente por referência ao tipo de litígios e ao valor do processo.

A este propósito, o acórdão proferido no Processo n.º 48/2012-T, de 06-07-2012, depois seguido por diversos outros arestos, consignou o seguinte:

 

A competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é, em primeiro lugar, limitada às matérias indicadas no artigo 2.º, n.º 1, do [RJAT].

Numa segunda linha, a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é também limitada pelos termos em que Administração Tributária se vinculou àquela jurisdição, concretizados na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, pois o artigo 4.º do RJAT estabelece que «a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos.

Em face desta segunda limitação da competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, a resolução da questão da competência depende essencialmente dos termos desta vinculação, pois, mesmo que se esteja perante uma situação enquadrável naquele artigo 2.º do RJAT, se ela não estiver abrangida pela vinculação estará afastada a possibilidade de o litígio ser jurisdicionalmente decidido por este tribunal arbitral”.

 

Assim, a Portaria de vinculação, aparentemente, estabelece duas limitações: (i) refere-se a pretensões “relativas a impostos”, de entre aquelas que se enquadram na competência genérica dos Tribunais Arbitrais e (ii) a impostos cuja administração esteja cometida à Autoridade Tributária.

Nestes termos, terá assim de se concluir que a vinculação se reporta a qualquer das pretensões mencionadas no artigo 2.º, n.º 1, do RJAT que respeitem a impostos (com a exclusão de outros tributos) e a impostos que sejam geridos pela Autoridade Tributária.

A constitucionalização das contribuições financeiras resultou da alteração introduzida no artigo 165.º, n.º 1, alínea i), da Lei Fundamental, pela revisão constitucional de 1997, que autonomizou as contribuições financeiras a favor das entidades públicas como uma terceira categoria de tributos.

Por outro lado, a LGT passou a incluir, entre os diversos tipos de tributos, os impostos e outras espécies criadas por lei, designadamente as taxas e as contribuições financeiras a favor das entidades públicas, definindo, em geral, os pressupostos desses diversos tipos de tributos no subsequente artigo 4.º.

Neste âmbito, a doutrina tem caracterizado as contribuições financeiras como um tertium genus de receitas fiscais, que poderão ser qualificadas como taxas colectivas, na medida em que visam retribuir os serviços prestados por uma entidade púbica a um certo conjunto ou categoria de pessoas.

A este respeito, como referem Gomes Canotilho/Vital Moreira, “a diferença essencial entre os impostos e estas contribuições bilaterais é que aqueles visam financiar as despesas públicas em geral, não podendo, em princípio, ser consignados a certos serviços públicos ou a certas despesas, enquanto que as segundas, tal como as taxas em sentido estrito, visam financiar certos serviços públicos e certas despesas públicas (responsáveis pelas prestações públicas de que as contribuições são contrapartida), aos quais ficam consignadas, não podendo, portanto, ser desviadas para outros serviços ou despesas”.[1]

 

Neste sentido, as contribuições são tributos (com uma estrutura paracomutativa), dirigidos à compensação de prestações presumivelmente provocadas ou aproveitadas pelos contribuintes, distinguindo-se das taxas que são tributos rigorosamente comutativos e que se dirigem à compensação de prestações efetivas.[2]

Por outro lado, o Tribunal Constitucional tem também reconhecido a existência dessas diferentes categorias jurídico-tributárias (designadamente para efeito de extrair consequências quanto à competência legislativa), admitindo que as taxas e outras contribuições de carácter bilateral só estão sujeitas a reserva parlamentar quanto ao seu regime geral, mas não quanto à sua criação individual e quanto ao regime concreto, podendo portanto ser criadas por diploma legislativo governamental e reguladas por via regulamentar desde que observada a lei-quadro.[3]

 

Ou seja, não há dúvida que as contribuições financeiras se distinguem dos impostos.

 

Analisando a contribuição em apreço (Contribuição de Serviço Rodoviário - CSR), criada pela Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, a mesma visa financiar a rede rodoviária nacional [a cargo da EP - Estradas de Portugal, E. P. E. (artigo 1.º), que, entretanto, passou a denominar-se Infraestruturas de Portugal, S.A. (IP)], sendo que o financiamento da rede rodoviária nacional a cargo desta entidade é assegurado pelos respetivos utilizadores e, subsidiariamente, pelo Estado, nos termos da lei e do contrato de concessão aplicável (artigo 2.º).

A referida contribuição corresponde à contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis, e constitui uma fonte de financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da IP no que respeita à respetiva conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento, ainda que a exigência da contribuição não prejudique a eventual aplicação de portagens em vias específicas ou o recurso da entidade concessionária a outras formas de financiamento (artigo 3.º).

Esta contribuição incide sobre a gasolina e o gasóleo rodoviário sujeitos ao imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos e dele não isentos (artigo 4.º, n.º 1) e é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo (artigo 5.º, n.º 1).

O produto da CSR constitui receita própria da actualmente denominada IP (artigo 6.º).

A actividade de conceção, projecto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional, que é objecto de financiamento através da CSR foi atribuída, em regime de concessão, à EP - Estradas de Portugal, E. P. (agora denominada IP) e, pelo Decreto-Lei n.º 380/2007, de 13 de novembro, que aprovou as bases da concessão e nas quais se prevê que, entre outros rendimentos, essa contribuição constitui receita própria dessa entidade (Base 3, alínea b)).

Por outro lado, naquelas bases da concessão é estabelecido, como uma das obrigações da concessionária, a prossecução dos “objetivos de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental” (Base 2, n.º 4, alínea b)).

Assim, à luz do regime jurídico sucintamente descrito, dificilmente se poderia concluir que a CSR constitui uma contribuição financeira.

Como se refere no Acórdão proferido no âmbito do Processo n.º 304/2022-T, de 05-01-2023, a CSR não tem como pressuposto uma prestação, a favor de um grupo de sujeitos passivos, por parte de uma pessoa coletiva.

A contribuição é estabelecida a favor da EP - Estradas de Portugal, E. P. E. (artigo 3.º, n.º 2), agora denomina IP, sendo essa mesma entidade a titular da receita correspondente (artigo 6.º).

No entanto, os sujeitos passivos da contribuição (as empresas comercializadoras de produtos combustíveis rodoviários) não são os destinatários da atividade desenvolvida por aquela entidade, a qual consiste na “conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento” da rede de estradas (artigo 3.º, n.º 2).

Por outro lado, nada permite afirmar que a responsabilidade pelo financiamento da atividade administrativa que se encontra atribuída à IP é imputável aos sujeitos passivos da contribuição, que são as empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários.

Quando é certo que o artigo 2.º da Lei n.º 55/2007 declara expressamente que o “financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP - Estradas de Portugal, E.P. E. (...) é assegurado pelos respetivos utilizadores e, subsidiariamente, pelo Estado, nos termos da lei e do contrato de concessão aplicável.”

Nestes termos, o financiamento da rede rodoviária nacional é assegurado pelos respectivos utilizadores, que são os beneficiários da actividade pública desenvolvida pela EP - Estradas de Portugal, E. P. E. (agora IP), verificando-se, no entanto, que a contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, que, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do CIEC, são os “depositários autorizados” e os “destinatários registados”.

Não existindo, deste modo, qualquer nexo específico entre o benefício emanado da actividade da entidade pública titular da contribuição e o grupo dos sujeitos passivos.

Adicionalmente, refira-se ainda que o regime jurídico da CSR não é equiparável ao previsto para a Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético (CESE).

Com efeito, a CESE, criada pela Lei do Orçamento do Estado para 2014, é considerada como uma contribuição extraordinária que tem “por objetivo financiar mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do sector energético, através da constituição de um fundo que visa contribuir para a redução da dívida tarifária e para o financiamento de políticas sociais e ambientais do sector energético”, incidindo sobre as pessoas singulares ou coletivas que integram o sector energético nacional.

A receita obtida é consignada ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Sector Energético (FSSSE), criado pelo Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9 de Abril, com o objectivo de estabelecer mecanismos que contribuam para a sustentabilidade sistémica do sector energético, designadamente através da contribuição para a redução da dívida e ou pressão tarifárias e do financiamento de políticas do sector energético de cariz social e ambiental, de medidas relacionadas com a eficiência energética, de medidas de apoio às empresas e da minimização dos encargos financeiros para o Sistema Elétrico Nacional (artigo 11.º).

Assim sendo, a CESE tem por base uma contraprestação de natureza grupal, na medida em que constitui um preço público a pagar pelo conjunto de pessoas singulares ou colectivas que integram o sector energético nacional à entidade à qual são consignadas as receitas.

Não se reconduz à taxa stricto sensu, visto que não incide sobre uma prestação concreta e individualizada que a Administração dirija aos respectivos sujeitos passivos, nem preenche o requisito de unilateralidade que caracteriza o imposto, uma vez que não tem como finalidade exclusiva a angariação de receita, nem se destina à satisfação das necessidades financeiras do Estado, antes se pretendendo que o sector energético contribua para a cobertura do risco sistémico que é inerente à sua actividade.

Nestes termos, a CESE trata-se de um tributo de carácter comutativo, embora baseado numa relação de bilateralidade genérica ou difusa que, interessando a um grupo homogéneo de destinatários e visando prevenir riscos a este grupo associados, se efectiva na compensação de eventual intervenção pública na resolução de dificuldades desse sector, assumindo assim a natureza jurídica de contribuição financeira.

E, tendo em consideração o acima exposto, essa caracterização não é extensiva à CSR, pelo que não é aplicável, ao caso em análise, a jurisprudência arbitral que veio declarar a incompetência do Tribunal Arbitral ratione materiae para a apreciação de litígios que tinham como objeto a CESE (como é o caso do Acórdão proferido no âmbito do Processo n.º 714/2020-T, de 12-07-2021).

 

A este acervo de argumentos acresce ainda um outro.

 

Segundo a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a qualificação de uma tributação, um imposto, uma taxa ou um direito, à luz do Direito da União Europeia, compete ao Tribunal de Justiça, em função das caraterísticas objetivas de imposição, independentemente da qualificação que lhe é dada pelo direito nacional (cf. Istituto di Ricovero e Cura a Carattere Scientifico (IRCCS) — Fondazione Santa Lucia, processo C-189/15, acórdão de 18 de janeiro de 2017, §29; e Test Claimants in the FII Group Litigation, processo C-446/04, acórdão de 12 de dezembro de 2016, §107, entre outros).

É certo que, no processo arbitral que motivou o pedido de reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça (Processo n.º 564/2020-T), o Tribunal qualificou a CSR como um imposto, formulando as questões prejudiciais com base nesse pressuposto. Parece-nos, todavia, que na decisão em que culminou esse pedido de reenvio – o Despacho do Tribunal de Justiça de 07 de fevereiro de 2022 Vapo Atlantic, processo C-460/21, – o Tribunal de Justiça, para além de não colocar em causa essa qualificação, assume, para efeitos do artigo 1 da Diretiva 2008/118, um conceito funcional ou autónomo de imposto indireto. Tal conceito abrange quaisquer “imposições” indiretas que, pelas suas caraterísticas estruturais e teleológicas, não tenham um “motivo específico” na aceção da diretiva e possam, por conseguinte, privar o imposto especial de consumo harmonizado (no caso português, o ISP) de “todo o efeito útil” (par. 26 do Despacho Vapo Atlantic, já mencionado).

Dito de outro modo, para o Tribunal de Justiça, o tributo instituído pela lei portuguesa – e que este designou por “contribuição” – constitui um imposto porquanto, em virtude do desenho escolhido pelo legislador português, representa uma imposição indireta sem motivo específico e como tal sucetível de frustrar os desideratos de harmonização positiva subjacentes à Diretiva 2008/118. Foi o legislador português que, não obstante classificar o tributo como “contribuição”, definiu a respetiva incidência subjetiva em termos análogos à do ISP (artigo 5 da Lei n.º 55/2017, de 31 de agosto), colocando-se assim, independentemente da qualificação para que eventualmente apontasse a (inconstante) jurisprudência constitucional nacional, no âmbito de aplicação do artigo 1, n.º 2 da Diretiva 2008/118. 

Portanto, mesmo que, à luz da jurisprudência do Tribunal Constitucional português, a CSR houvesse de ser qualificada como uma contribuição financeira (inconstitucional, desde já se avança), nem por isso ela – tal como está desenhada – deixaria de ser um imposto indireto na aceção da Diretiva. Isto sob pena de os Estados-membros poderem, em função da maior ou menor criatividade constitucional em termos de tributos públicos, frustrar os propósitos de harmonização e de neutralidade no plano dos impostos indiretos sobre o consumo.

Destarte, atentos os princípios da interpretação conforme e do primado do Direito da União Europeia (consagrado no artigo 8, n.º 4 da CRP, tal como interpretado pelo Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 422/2020), há que considerar que os dispositivos legais que regulam a CSR devem ser interpretados no sentido de que consagram um imposto indireto sobre o consumo de produtos petrolíferos.

 

Face ao exposto, improcede a alegada excepção da incompetência relativa do Tribunal Arbitral em razão da matéria suscitada pela Requerida.

 

3.2. Excepção da incompetência absoluta do tribunal arbitral em razão da matéria

 

Por outro lado, alega ainda a Requerida que caso “(…) se entenda ser o tribunal competente para apreciar a legalidade desta contribuição financeira, mais se dirá que sempre existiria a incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria, por outra via” uma vez que “(…) resulta do teor do pedido de pronúncia arbitral, e sua fundamentação, que o que as Requerentes suscitam junto desta instância arbitral é a legalidade do regime da CSR, no seu todo”.

Com efeito, segundo entende a Requerida, “(…) ao sustentar o seu pedido de declaração de ilegalidade dos atos de liquidação de CSR, não obstante com fundamento na sua desconformidade face ao direito europeu, as Requerentes vêm questionar todo o regime jurídico desta contribuição, conforme resulta, do PPA” porquanto “no seu articulado, as Requerentes põem em causa, não uma, ou mais normas da Lei n.º 55/2007, de 31/08, e demais legislação atinente a esta contribuição, mas o regime da CSR, in totum, fazendo referência às motivações da própria lei e à sua estrutura” pretendendo “(…) suscitar questão referente à apreciação da legalidade do regime da CSR previsto na lei em vigor, o qual, considerado desconforme com o direito europeu, é apresentado como fundamento do pedido de declaração de ilegalidade dos atos de liquidação na parte relativa à CSR”.

Assim, entende a Requerida que “(…) no presente pedido de pronúncia arbitral, as Requerentes vêm suscitar uma questão que se prende com a natureza e conformidade jurídico-constitucional do regime jurídico da CSR, plasmado na Lei n.º 55/2007 (…) e (…) na restante legislação, incluindo o Decreto-Lei n.º 380/2007, de 13/11, e Decreto-Lei n.º 91/2015, de 29/05 (…)” o que, segundo entende a Requerida, “(…) extravasa o âmbito da Ação Arbitral prevista no RJAT (…), o qual não consente o escrutínio sobre a integridade de normas emanadas no exercício da função político legislativa do Estado (…).

Alega a Requerida que, com base nestes argumentos, se verifica a incompetência material do Tribunal Arbitral, que consubstancia uma exceção dilatória impeditiva do conhecimento do mérito da causa, o que implica a absolvição da Requerida da instância.

Neste âmbito, as Requerentes vieram alegar, em síntese, que “[h]á (…) fundamentos que são invocáveis tanto como fundamento de oposição à execução fiscal como de impugnação judicial. Estão nestas condições a (…) ilegalidade abstrata da liquidação, por a ilegalidade não residir no ato que faz aplicação da lei ao caso concreto, mas residir na própria lei cuja aplicação é feita. Cabem aqui os casos de normas que violam regras de hierarquia superior como as normas constitucionais ou de direito comunitário ou internacional vigente em Portugal (…) ou leis de valor reforçado (…) ou mesmo normas legislativas de direito ordinário quando é feita aplicação de normas regulamentares. A ilegalidade é abstrata porque, afetando a própria lei, não depende do ato que faz a sua aplicação em concreto. Estando prevista como fundamento de oposição à execução fiscal, esta ilegalidade abstrata constitui também um vício de violação de lei, pois a liquidação terá feito aplicação de uma norma que não é válida à face de uma regra de hierarquia superior”.[4]

Em consequência, entendem as Requerentes que se verifica que, “(…) no caso concreto, contrariamente ao que vem pressuposto nos artigos 119.º a 133.º da resposta da AT, as Requerentes não visam através da presente ação arbitral a impugnação (ou, mais concretamente, a declaração da invalidade) de quaisquer atos legislativos, mas, tão-somente, suscitar a (in)validade dos atos de repercussão de CSR praticados à luz de um regime comprovadamente desconforme com o direito da União (o regime da CSR), configurando este um caso paradigmático de ilegalidade abstrata suscetível de ser apreciado por qualquer Tribunal, entre os quais o presente Tribunal Arbitral”.

 

Uma vez mais cumpre analisar a eventual procedência/improcedência da excepção suscitada.

 

Neste âmbito, e continuando a adoptar a posição assumida no âmbito do Processo nº 113/2023-T, de 13-07-2023, refira-se, desde já, que entende este Tribunal Arbitral que improcede também esta excepção da incompetência absoluta do Tribunal Arbitral em razão da matéria para apreciar o mérito do pedido arbitral, porquanto a arguição da excepção pela Requerida assenta num evidente equívoco.

Com efeito, as Requerentes formularam um pedido de pronúncia arbitral (na sequência da formação da presunção de indeferimento tácito dos pedidos de revisão oficiosa apresentados (em 31 de Janeiro de 2023, junto da Alfândega do Jardim do Tabaco e da Alfândega de Setúbal), relativos à declaração de ilegalidade dos actos de liquidação de CSR praticados pela Requerida (com base nas Declarações de Introdução no Consumo («DIC») submetidas pelas fornecedoras de combustíveis) e, bem assim, relativos aos consequentes actos de repercussão da referida CSR consubstanciados nas faturas referentes à gasolina e ao gasóleo rodoviário adquiridos, pelas Requerentes, àquelas entidade fornecedoras, no período compreendido entre 2019 e 2022, tendo invocando como causa de pedir, a desconformidade do regime da CSR com o previsto na Diretiva 2008/118, do Conselho, de 16 de Dezembro de 2008, não tendo sido suscitada a inconstitucionalidade de qualquer das normas do respectivo regime jurídico.

Mas ainda que o tivessem feito, importa assinalar que a Constituição admite o controlo difuso de constitucionalidade pelos tribunais (artigo 204.º) e prevê o recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que recusem a aplicação de norma com fundamento na sua inconstitucionalidade ou apliquem norma cuja constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo (artigo 280.º, n.º 1).

A desaplicação de normas pelos tribunais, por iniciativa oficiosa ou por iniciativa das partes, corresponde a uma forma de fiscalização concreta de constitucionalidade para que os tribunais têm competência própria, não se confundindo com a competência do Tribunal Constitucional, que intervém em sede de recurso de constitucionalidade ou no âmbito da fiscalização abstracta da constitucionalidade (artigo 281.º da CRP).

Por outro lado, o referido artigo 204.° da Constituição, ao admitir o controlo difuso da constitucionalidade, refere-se genericamente aos tribunais, não distinguindo entre Tribunais Estaduais e Tribunais Arbitrais, e o artigo 280.°, ao definir o âmbito da fiscalização concreta de constitucionalidade, admite o recurso de constitucionalidade relativamente a decisões dos tribunais, referindo-se a decisões de quaisquer tribunais.

E, como o Tribunal Constitucional tem também vindo a afirmar, os Tribunais Arbitrais (necessários ou voluntários) são também tribunais, dispondo do poder-dever de verificar a conformidade constitucional de normas aplicáveis no decurso de um processo arbitral e de recusar a aplicação das que considerem inconstitucionais.[5]

Como facilmente se compreenderá, ainda que tivesse sido suscitada, no pedido de pronúncia arbitral, a inconstitucionalidade de qualquer das normas do regime da CSR, nada obstava a que o Tribunal Arbitral se pronunciasse sobre a questão de constitucionalidade no âmbito do controlo difuso a que se refere o artigo 204° da Constituição.

No caso, estando em causa a desconformidade do regime da CSR com a o regime previsto na Diretiva 2008/118, do Conselho, de 16 de Dezembro de 2008, não pode deixar de concluir-se, do mesmo modo, pela competência contenciosa do Tribunal Arbitral para a apreciação do litígio.

Com efeito, as normas de direito europeu derivado, como normas de direito internacional convencional, vigoram diretamente na ordem jurídica interna com a mesma relevância das normas de direito interno, vinculando imediatamente o Estado e os cidadãos (artigo 8.º da Constituição).

A impugnação judicial de um acto de liquidação pode ser deduzida com fundamento em qualquer ilegalidade (artigo 99.º do CPPT), nada permitindo distinguir entre a ilegalidade resultante de normas de direito interno ou de direito internacional convencional.

Torna-se assim claro que não existe qualquer obstáculo a que o Tribunal Arbitral se pronuncie sobre o fundamento de ilegalidade dos actos de liquidação baseado em desconformidade do regime da CSR com o previsto na Diretiva Europeia acima referida, sendo, nestes termos, considerada improcedente a alegada excepção de incompetência absoluta do Tribunal Arbitral em razão da matéria.

 

4. Questão da ineptidão do pedido de pronúncia arbitral

 

A AT defende que o pedido de pronúncia arbitral é inepto por as Requerentes não identificarem os actos que são objecto do pedido arbitral, como exige a alínea b) o n.º 2 do artigo 10.º do RJAT.

Diz a AT, em suma, que «a não identificação do ato ou atos tributários objeto do pedido de pronúncia arbitral, compromete irremediavelmente a finalidade da petição inicial», pois, «ao não ser possível a identificação do/s ato/atos de liquidação não é possível sindicar a respetiva legalidade, pelo que nunca poderia o tribunal determinar a respetiva anulação total ou parcial».

As Requerentes defendem, em suma, que os actos em que se contém a repercussão da CSR sobre a Requerente «se encontram devidamente identificados no pedido de pronúncia arbitral, recaindo sobre AT o ónus de identificação das antecedentes liquidações de CSR praticadas pela própria AT e notificadas aos respetivos sujeitos passivos (as quais foram posteriormente, objeto de repercussão)».

O artigo 98.º, n.º 1, alínea a), do CPPT, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, indica como uma das nulidades insanáveis em processo judicial tributário, a ineptidão da petição inicial.

Não indicando o CPPT as situações em que se deve entender que ocorre ineptidão da petição inicial, há que fazer apelo ao CPC, que é de aplicação subsidiária, nos termos do artigo 2.º, alínea e), daquele Código, e também o é no âmbito do processo arbitral tributário, por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

            No artigo 186.º, n.º 1, do CPC, indicam-se as seguintes situações de ineptidão da petição inicial:

a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;

b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;

c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.

 

O n.º 3 do mesmo artigo estabelece que «se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial».

No caso em apreço é manifesto que a ineptidão arguida pela AT não se enquadra nas referidas alíneas b) e c), pelo que só se pode aventar o seu enquadramento na alínea a).

No que concerne à alínea a), não se estando perante uma situação de falta do pedido ou de causa de pedir, apenas se poderá enquadrar a arguição no conceito de inteligibilidade.

No entanto, percebe-se o que pretendem as Requerentes com os pedidos que formulam:

– declarar «a ilegalidade dos atos de repercussão da CSR consubstanciados nas faturas referentes ao gasóleo rodoviário e a gasolina adquiridos pela requerente no decurso do período compreendido entre 2019 e 2022»;

– declarar a ilegalidade das correspondentes liquidações de CSR praticadas pela AT com base nas DIC submetidas pelas respetivas fornecedoras de combustíveis;

– anular essas liquidações nessa medida;

– obter o reembolso das quantias suportadas a esse título, acrescido de juros indemnizatórios.

 

Como resulta da matéria de facto fixada, as facturas de venda de combustíveis juntas aos autos incluem o montante da CSR que a D... e a F... pagaram ao Estado, que a F... repercutiu parcialmente na G... e que estas três empresas repercutiram nas Requerentes, pelo que são, por essa via, apuráveis os montantes cuja anulação as Requerentes pretendem.

A eventual dificuldade que a AT possa ter para identificar as liquidações que ela própria emitiu aos fornecedores de combustíveis relacionadas com as facturas em causa, é um problema de organização dos seus serviços, pelo que é ela própria quem deve suportar os seus hipotéticos inconvenientes

Por outro lado, como se referiu na fundamentação da decisão da matéria de facto, a liquidação da CSR era efectuada com base nas DIC, que deviam ser processadas até ao final do dia útil seguinte àquele em que ocorra a introdução no consumo (artigo 10.º, n.ºs 1 e 3, do CIEC), pelo que se afigura que era possível à AT apurar qual a DIC relacionada com cada factura e a respectiva liquidação que emitiu.

Para além disso, a falta de indicação das liquidações pelas Requerentes está perfeitamente justificada, pois elas foram emitidas pela AT às empresas que apresentaram as DICs e não foram notificadas às Requerentes.

Neste contexto, não era exigível às Requerentes que identificassem as liquidações que a AT emitiu com base nas vendas de combustíveis em causa, nem essa identificação é necessária para apurar a legalidade da cobrança de CSR ínsita nas facturas em causa.

A exigência de identificação das liquidações, numa situação deste tipo, em que o repercutido não tem possibilidade de as identificar e a identificação não é imprescindível para apurar a legalidade da cobrança de CSR ínsita nas facturas, seria incompaginável com o princípio constitucional da proporcionalidade e o direito à tutela judicial efectiva garantido pelos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP, pois inviabilizaria a possibilidade prática de as Requerentes impugnarem contenciosamente actos que lhe aplicam tributação e lesam as suas esferas jurídicas.

Pelo exposto, improcede a excepção da ineptidão do pedido de pronúncia arbitral.

 

5. Questão da tempestividade do pedido de revisão oficiosa e do pedido de constituição do tribunal arbitral

           

A AT defende, em suma, que

– «tudo leva a crer que, muito provavelmente, os pedidos de RO e, consequentemente, o pedido arbitral não seriam sequer tempestivos»;

– não existiu qualquer erro de direito imputável aos serviços que permita aplicação do prazo de 4 anos para a revisão oficiosa, previsto na 2.ª parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT;

– aos actos de liquidação de CSR aplica-se o regime especial previsto nos artigos 15.ºe 16.º do Código dos Impostos Especiais sobre o Consumo (CIEC), que é de três anos.

 

As Requerentes defendem o seguinte, em suma:

– «a fundamentação da exceção de intempestividade que se analisa acaba por se reduzir a uma mera insinuação ou juízo probabilístico»;

– estão sujeitas ao regime geral todas as matérias atinentes aos meios e prazos de reação para contestar este tributo;

– o «erro imputável aos serviços» «concretiza qualquer ilegalidade, não imputável ao contribuinte, mas à Administração, compreendendo o erro material ou o erro de facto, como também o erro de direito»;

– «havendo erro de direito na liquidação, por aplicação de normas nacionais que violem o direito comunitário [em concreto, como estava em causa nesse aresto, normas de diretiva europeia] e sendo ela efetuada pelos serviços, é à administração tributária que é imputável esse erro»;

– a Administração Tributária tem o dever de revogar actos ilegais, dentro do período definido na pare final do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, como lhe impõem os artigos 18.º e 266.º, n.º 2, da CRP.

 

5.1. Tempestividade do pedido de constituição do tribunal arbitral

 

Os pedidos de revisão oficiosa foram apresentados em 31-01-2023 tendo por objecto a impugnação de CSR cobrada em facturas emitidas entre 2019 e 2022.

Não houve decisão do pedido de revisão oficiosa até 02-06-2023, data em que a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral.

Nos termos do artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, o prazo para apresentação do pedido de constituição do tribunal arbitral é de 90 dias, contado a partir dos factos previstos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, quanto aos actos susceptíveis de impugnação autónoma.

O indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa formou-se em 31-05-2023, quatro meses após a apresentação do pedido, nos termos dos n.ºs 1 e 5 do artigo 57.º da LGT.

Assim, é manifesta a tempestividade do pedido de constituição do tribunal arbitral apresentado em 202-06-2023.

 

5.2. Tempestividade do pedido de revisão oficiosa

 

No que concerne à intempestividade do pedido de revisão oficiosa, a AT reconhece que não há elementos para a afirmar, defendendo que «a falta de identificação do ato/atos de liquidação em discussão impede, igualmente, de aferir da tempestividade do chamado “pedido de revisão oficiosa da liquidação” formulado pela Requerente. É que, a contagem do prazo para a apresentação do referido pedido, inicia-se a partir do termo do prazo de pagamento do imposto, tendo por referência a data do ato de liquidação (global)» (artigo 63.º da Resposta).

Mas, afirma ainda a AT que «tomando por referência o prazo indicado pela Requerente, as aquisições no “período compreendido 2019 e 2022”, em 31/01/2023, data em que foram apresentados os pedidos de revisão oficiosa ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, há muito que se encontrava ultrapassado o prazo da reclamação graciosa (de 120 dias a contar do termo do prazo do pagamento do ISP/ CSR), previsto na 1ª parte do nº 1 do artigo 78.º da LGT».

Defende ainda a AT que «apenas os sujeitos passivos que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do respetivo imposto possuem legitimidade para solicitar o reembolso do imposto pago, devendo o pedido ser apresentado no prazo de três anos a contar da data da liquidação do imposto, cfr. art.º 15.º, nºs 2 e 3 do CIEC».

No entanto, como defendem as Requerentes, o prazo para apresentação do pedido de revisão oficiosa era o de quatro anos, com fundamento em erro imputável aos serviços, previsto na parte final do n.º 1 do artigo 78.º da LGT.

Na verdade, como há muito vem entendendo uniformemente o Supremo Tribunal Administrativo, «havendo erro de direito na liquidação, por aplicação de normas nacionais que violem o direito comunitário e sendo ela efectuada pelos serviços, é à administração tributária que é imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte. Por outro lado, esta imputabilidade aos serviços é independente da culpa de qualquer dos seus funcionários ao efectuar liquidação afectada por erro» já que «a administração tributária está genericamente obrigada a actuar em conformidade com a lei (arts. 266°, n.° 1 da CRP e 55° da LGT), pelo que, independentemente da prova da culpa de qualquer das pessoas ou entidades que a integram, qualquer ilegalidade não resultante de uma actuação do sujeito passivo será imputável a culpa dos próprios serviços» (acórdão de 12-12-2001, processo n.º 026.233, cuja jurisprudência é reafirmada nos acórdãos de 06-02-2002, processo n.º 026.690; de 13-03-2002, processo n.º 026765; de 17-04-2002, processo n.º 023719; de 08-05-2002, processo n.º 0115/02; e 22-05-2002, processo n.º 0457/02; de 05-06-2002, processo n.º 0392/02; de 11-05-2005, processo n.º 0319/05; de 29-06-2005, processo n.º 9321/05; de 17-05-2006, processo n.º 016/06; e 26-04-2007, processo n.º 039/07; de 21-01-2009, processo n.º 771/08; de 22-03-2011, processo n.º 01009/10; de 14-03-2012, processo n.º 01007/11; de 05-11-2014, processo n.º 01474/12; de 09-11-2022, processo n.º 087/22.5BEAVR; de 12-04-2023, processo n.º 03428/15.8BEBRG).

No caso em apreço, é manifesto que os erros imputados aos actos impugnados não são imputáveis às Requerentes, pois não tiveram qualquer intervenção no procedimento de liquidação.

Pelo exposto, o prazo para apresentação de pedido de revisão oficiosa era de quatro anos, pelo que foi apresentado tempestivamente.

 

6. Questão da ilegitimidade da Requerente e invocada necessidade de intervenção provocada da D..., S.A. e da F...

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira defende, em suma, que

– «apenas, o sujeito passivo que declarou os produtos para consumo a quem foi liquidado o imposto e que efetuou o correspondente pagamento, reúne condições (e pode identificar os atos de liquidação), para solicitar em caso de erro, a revisão desses atos de liquidação com vista ao reembolso dos montantes cobrados (artigo 15º e 16º do CIEC)»;

– «os requerentes de reembolso que não correspondem à entidade responsável pela introdução dos produtos no consumo e pelo pagamento da CSR, carecem de legitimidade para solicitar a anulação das referidas liquidações com fundamento em erro e consequente reembolso do montante correspondente (artigo 16.º)»;

– «no âmbito destes impostos, de acordo com o estatuído no artigo 15.º e 16.º do CIEC, os múltiplos adquirentes dos produtos não são considerados com legitimidade para efeitos de solicitação da revisão do ato tributário e consequente reembolso do imposto, estando tal possibilidade restringida, independentemente do tipo de erro ou da situação que motive o reembolso, ao sujeito passivo (aquele que declara para consumo e paga o imposto que deve em nome e por conta próprios) e que poderá, ou não, no momento da venda, ter transferido parte ou a totalidade desse encargo para outros intervenientes na cadeia comercial (distribuidores, grossistas, retalhistas, consumidores finais)»;

– «é esse, aliás, o sentido que se pode retirar do entendimento sufragado pelo despacho proferido pelo TJUE em 07/02/2022, no Procº C-460/21, ao reconhecer a legitimidade do sujeito passivo do imposto, ao reembolso do imposto indevidamente liquidado, por violação do direito da União Europeia, que não tenha sido repercutido a jusante»;

– «quem integra e é parte da relação tributária subjacente à liquidação contestada é o sujeito passivo, nos termos definidos nos artºs 4.º, 15.º e 16.º do CIEC e do artº 5.º da Lei n.º 55/2007»;

– «as Requerentes quando adquirem combustível aos seus fornecedores, sujeitos passivos do ISP/CSR, estabelecem uma relação comercial de direito privado entre empresas, à qual a administração tributária é estranha, para efeitos do que aqui se discute, que é a liquidação do ISP/CSR e o reembolso da CSR alegadamente repercutida no custo de aquisição de combustível»;

– a AT poderia ver-se na contingência de, para além de ter de restituir elevados montantes cobrados a titulo de CSR, bem como dos correspondentes juros, no período que medeia entre 2018 e 2022, aos sujeitos passivos/devedores de imposto, ter ainda de entregar/restituir o mesmo montante a outras entidades que aleguem ter suportado a CSR por via da repercussão;

– «Caso o Tribunal arbitral considere que as ora Requerentes gozam de legitimidade para a interposição do presente pedido de pronúncia arbitral, o que apenas por mero dever de raciocínio se concede, vem a AT suscitar o incidente de intervenção principal provocada da D..., S.A. e da F... .», pois é este «sujeito passivo, o único que tem legitimidade para pôr em crise o ato ou atos de liquidação, identificando-os».

 

A Requerente defende o seguinte, em suma:

 

– o regime especial consagrado nos sobreditos artigos 15.º e 16.º do CIEC não é aplicável à CSR, pela simples, mas definitiva, razão de que que a remissão para o CIEC opera, exclusivamente, quanto às matérias de liquidação, cobrança e pagamento da CSR, deixando-se de fora – i.e., sujeitando ao respetivo regime geral – todas as restantes matérias, entre as quais as atinentes aos meios e prazos de reação para contestar este tributo;

– qualquer interpretação que conclua pela inexistência do direito dos repercutidos legais (como é o caso das Requerentes) a recorrer ao procedimento de revisão oficiosa regulado no artigo 78.º da LGT – ou que, considerando ser aplicável à CSR o regime especial de reembolso previsto nos artigos 15.º e 16.º do CIEC (o que, não obstante, não se admite), exclua os repercutidos legais do respetivo âmbito subjetivo de aplicação – violaria, de forma grosseira, os princípios constitucionais do acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, por não acautelar os direitos dos repercutidos (artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa), e da igualdade, por discriminar negativamente os repercutidos relativamente aos demais sujeitos da relação jurídico-tributária de repercussão legal (artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa), sendo um tal sentido interpretativo, por esse motivo, materialmente inconstitucional;

– a multiplicidade de intervenientes no circuito económico de venda e de revenda de combustíveis é irrelevante para este efeito, posto que a aplicação correta da jurisprudência do TJUE, cotejada com os efeitos do contencioso de anulação vigente no plano doméstico, será sempre suficiente para, sem mais, eliminar qualquer situação de duplicação de reembolsos e inerente enriquecimento sem causa;

– a jurisprudência do TJUE invocada pela AT tem como pressuposto as situações em que não há repercussão da CSR, o que não é caso dos autos;

– caso se entenda que as Requerentes, enquanto repercutidos legais de CSR, se encontram excluídas do âmbito de aplicação subjetivo do regime vertido no artigo 78.º da LGT – ou, bem assim, do regime especial de reembolso previsto nos artigos 15.º e 16.º do CIEC, caso se considere ser esse o regime aplicável à CSR – então, sempre se terá de concluir que o ordenamento jurídico doméstico não confere qualquer meio de reação às entidades repercutidas para obterem, eficazmente, a restituição do tributo que tenham indevidamente suportado em violação do direito da União;

– nos casos em que o ordenamento jurídico doméstico não confira ao repercutido a apontada faculdade (direito) de obter a restituição do tributo indevido diretamente junto das autoridades nacionais, esse direito dever-lhe-á, não obstante, ser atribuído por força do princípio da efetividade sempre que «esse comprador [repercutido, não] possa exercer uma ação civil de repetição do indevido contra o sujeito passivo e que o reembolso do imposto indevido, por parte deste último, não seja, na prática, impossível ou excessivamente difícil.

 

O regime da CSR, na versão anterior à Lei n.º 24-E/2022, de 30 de Dezembro, foi criado tendo em vista a repercussão nos consumidores das quantias cobradas a esse título pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos.

Na verdade, no artigo 2.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto (na redacção da Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro, vigente em 2018 e 2019) estabelece-se que «o financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da IP, S. A., tendo em conta o disposto no Plano Rodoviário Nacional, é assegurado pelos respetivos utilizadores e, subsidiariamente, pelo Estado, nos termos da lei e do contrato de concessão aplicável» e no n.º 3 do mesmo artigo (na redacção inicial) estabelece-se que «a contribuição de serviço rodoviário constitui a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis».

  Como se refere no despacho do TJUE de 07-02-2022, processo n.º C-460/21,

«39 A obrigação de reembolsar os impostos cobrados num Estado-Membro em violação das disposições da União conhece apenas uma exceção. Com efeito, sob pena de conduzir a um enriquecimento sem causa dos titulares do direito, a proteção dos direitos garantidos na matéria pela ordem jurídica da União exclui, em princípio, o reembolso dos impostos, direitos e taxas cobrados em violação do direito da União quando seja provado que o sujeito passivo responsável pelo pagamento desses direitos os repercutiu efetivamente noutras pessoas».

«42 Por conseguinte, um Estado-Membro só se pode opor ao reembolso de um imposto indevidamente cobrado à luz do direito da União quando as autoridades nacionais provarem que o imposto foi suportado na íntegra por uma pessoa diferente do sujeito passivo e quando o reembolso do imposto conduzisse, para este sujeito passivo, a um enriquecimento sem causa. Daqui resulta que, se só tiver sido repercutida uma parte do imposto, as autoridades nacionais só estão obrigadas a reembolsar o montante não repercutido»

43 «... a questão da repercussão ou da não repercussão em cada caso de um imposto indireto constitui uma questão de facto que é da competência do órgão jurisdicional nacional, cabendo a este último apreciar livremente os elementos de prova que lhe tenham sido submetidos».

 

Como decorre desta jurisprudência, há uma obrigação de a Administração Tributária reembolsar os tributos cobrados em violação do Direito de União a quem efectivamente os suportou, pelo que no caso de tributos susceptíveis de repercussão, a titularidade do direito ao reembolso dependerá de ela ter sido ou não concretizada.

Assim, não se coloca a questão da plúrima possibilidade de reembolso pela Autoridade Tributária e Aduaneira, pois, no caso de ter havido repercussão, apenas o repercutido tem direito ao reembolso.

 No caso em apreço, ocorreu efectivamente repercussão completa da CSR cobrada pela D... S.A. e pela F... (a cobrada por esta última foi parcialmente repercutida na revendedora G... e por esta na B...) pelo que apenas cada uma das Requerentes é titular do direito ao reembolso repercutido nas vendas de combustível que adquiriu.

É corolário desta jurisprudência do TJUE que, no caso de ter havido repercussão, apenas o repercutido tem legitimidade para impugnar os actos que a concretizem ou os que a antecedam, pois apenas o repercutido é afectado na sua esfera jurídica pelo acto lesivo e o substituto só terá legitimidade na medida em que não tenha repercutido integralmente o tributo que suportou nessa qualidade.

É essencialmente este o regime que no artigo 132.º do CPPT se prevê para os casos de impugnação em caso de substituição com retenção na fonte, que deve considera-se aplicável, por analogia, a todos os casos de substituição. ( [6] ) Na verdade, como foi esclarecido na redacção do n.º 2 do artigo 20.º da LGT introduzida pela Lei n.º 7/2021, de 26 de Fevereiro, ao dizer que «a substituição tributária é efetivada, designadamente, através do mecanismo de retenção na fonte do imposto devido», a retenção na fonte do imposto devido é apenas uma das formas de substituição tributária. ( [7] )

Assim, no caso em apreço, tendo havido repercussão do tributo, são os repercutidos quem tem legitimidade para impugnar os actos que afectaram as suas esferas jurídicas, no exercício do direito de impugnação de todos os actos lesivos que lhe é constitucionalmente garantido (artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP).

Essa legitimidade é assegurada, a nível do direito ordinário, tanto a nível procedimental como processual, pelos artigos 18.º, n.º 4, alínea a), 54.º, n.º 2, 65.º e 95.º, n.º 1, da LGT, conjugados com os n.ºs 1 e 4 do artigo 9.º do CPPT, aplicáveis aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, na medida em que reconhecem legitimidade procedimental e processual a quem for titular de um interesse legalmente protegido.

De qualquer modo, a intervenção provocada nem seria admissível no contencioso arbitral tributário, pois a intervenção nos processos arbitrais, como é próprio deste tipo de processos, assenta em manifestações de vontade das partes, seja através da apresentação voluntária de um pedido de constituição do tribunal arbitral ou um requerimento de intervenção espontânea, no caso dos sujeitos passivos, quer através de vinculação genérica, no caso da AT.

Pelo exposto, improcede a excepção da ilegitimidade e indefere-se o requerimento de intervenção provocada.

 

7. Questão da violação do Direito da União

 

A Directiva n.º 2008/118/CE, do Conselho, de 16 de Dezembro, que estabelece o regime geral dos impostos especiais de consumo que incidem directa ou indirectamente sobre o consumo de produtos energéticos (além de doutros) estabelece no n.º 2 do seu artigo 1.º que «os Estados-Membros podem cobrar, por motivos específicos, outros impostos indirectos sobre os produtos sujeitos a impostos especiais de consumo, desde que esses impostos sejam conformes com as normas fiscais da Comunidade aplicáveis ao imposto especial de consumo e ao imposto sobre o valor acrescentado no que diz respeito à determinação da base tributável, à liquidação, à exigibilidade e ao controlo do imposto, regras estas que não incluem as disposições relativas às isenções».

A questão de mérito que é objecto do processo é a de saber se a CSR e compatível com o Direito da União Europeia, designadamente se tem um “motivo específico” na aceção do artigo 1.º, n.º 2, da Diretiva n.º 2008/118/CE, do Conselho, de 16 de Dezembro.

As Requerentes, baseando-se no Despacho do TJUE de 07-02-2022, proferido no caso Vapo Atlantic, Proc. C-460-2 defendem, em suma, que a CSR não prossegue “motivos específicos”, na acepção do artigo 1.°, n.° 2, da Diretiva 2008/118, na medida em que as suas receitas têm essencialmente como fim assegurar o financiamento da rede rodoviária nacional, não podendo considerar-se como suficiente, para estabelecer uma relação direta entre a utilização das receitas e um “motivo especifico”, os objetivos genéricos de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental», consubstanciando, por conseguinte, todos os atos tributários praticados ao seu abrigo, designadamente os atos objeto do presente pedido pronúncia arbitral, violam o direito da Unido Europeia.

A AT defende, em suma, o seguinte:

– o acórdão do TJUE de 05 de março, proferido no Proc.º C-553/13, no qual a
Requerente sustenta o seu pedido de revisão oficiosa, diz respeito a uma taxa criada por
regulamento, cuja forma de tributação e objetivo subjacente à sua criação, em nada se
assemelha à CSR;

– existe um vínculo entre o destino dado às receitas da CSR e o motivo específico que levou à sua criação, através da Lei nº 55/2007, tendo em consideração que:

a. Esta lei atribui a concessão da rede rodoviária nacional à EP-Estradas de Portugal, EPE (artigo 9.º), atual Infraestruturas de Portugal, IP, S.A. remetendo a sua definição para decreto-lei;

b. Estabelece que a rede rodoviária nacional a cargo da Infraestruturas de Portugal, IP, S.A. é financiada pelos seus utilizadores (princípio do utilizador-pagador), e apenas subsidiariamente pelo Estado (artigo 2.º);

c. Determina que a CSR constitui a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, medida através do consumo de combustíveis (artigo 3.º n.º 1, que concretiza o princípio acima referido);

d. Prescreve que a CSR constitui fonte de financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da Infraestruturas de Portugal, IP, S.A. (artigo 3.º n.º 2);

e. Estabelece que o produto da CSR constitui receita própria da Infraestruturas de Portugal, IP, S.A. (artigo 6.º);

f. O Decreto-lei n.º 380/2007, de 13/11, que definiu as bases da referida concessão, prevê a CSR entre as fontes de financiamento do concessionário Infraestruturas de Portugal, IP, S.A.

– sendo a CSR uma receita própria da Infraestruturas de Portugal, IP, S.A., a questão dos objetivos/finalidades subjacentes à mesma, terá de ser analisada à luz do Decreto-Lei n.º 380/2007, que atribui àquela entidade a concessão do financiamento, conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional e que aprova as bases da concessão;

– existem objetivos/finalidades subjacentes à atividade da Infraestruturas de Portugal, IP, S.A.;

– no n.º 4 da alínea b) da Base 2 das Bases da concessão que constam do Anexo I ao Decreto-Lei n.º 30872008, de 13 de Novembro, é claramente referido que a concessionária deve prosseguir os objetivos de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental referidos no quadro II anexo às presentes bases;

– a Base 12, que estabelece as obrigações de informação da concessionária, ao longo de todo o período da concessão, estatui que a concessionária se compromete a fornecer informação sobre sinistralidade;

– a Base 42, estatui que:

1 - A concessionária deve manter um contínuo controlo dos níveis de sinistralidade registados na concessão e promover a realização de auditorias anuais aos mesmos.

2 - A concessionária deve propor ao InIR, em consequência dos resultados das auditorias anuais a que se refere o número anterior, medidas tendentes à redução dos níveis de sinistralidade, propondo, do mesmo modo, o regime de eventual comparticipação do concedente na respetiva implementação, sem prejuízo das demais especificações legais na matéria”.

– a concessionária fica sujeita a um regime de penalidades específico;

– são inclusive definidos objetivos de redução de sinistralidade, com recurso a indicadores de atividade relacionados com a segurança rodoviária;

– são definidos objetivos de sustentabilidade ambiental;

– o invocado “motivo específico” para a “razão de ser” da CSR, também se consubstancia em objetivos ambientais e de redução de sinistralidade, verificando-se o condicionalismo contestado pela Requerente e não estando por isso em causa despesas gerais ou com finalidades puramente orçamentais.

 

Como diz a Requerente, a questão da compatibilidade da CSR com o Direito da União Europeia foi apreciada no Despacho do TJUE de 07-02-2022, proferido no caso Vapo Atlantic, Processo C-460-21, no âmbito de um reenvio prejudicial.

Como tem sido pacificamente entendido pela jurisprudência e é corolário da obrigatoriedade de reenvio prejudicial prevista no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (que substituiu o artigo 234.º do Tratado de Roma, anterior artigo 177.º), a jurisprudência do TJUE tem carácter vinculativo para os Tribunais Nacionais, quando tem por objecto questões de Direito da União Europeia (neste sentido, entre muitos, podem ver-se os seguintes Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo: de 25-10-2000, processo n.º 25128, publicado em Apêndice ao Diário da República de 31-1-2003, p. 3757; de 7-11-2001, processo n.º 26432, publicado em Apêndice ao Diário da República de 13-10-2003, p. 2602; de 7-11-2001, processo n.º 26404, publicado em Apêndice ao Diário da República de 13-10-2003, p. 2593).

A supremacia do Direito da União sobre o Direito Nacional tem suporte no n.º 4 do artigo 8.º da CRP, em que se estabelece que «as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático».

Assim, há que acatar o decidido no Despacho do TJUE de 07-02-2022, proferido no caso Vapo Atlantic, Processo C-460-21, que constitui a mais recente decisão do TJUE sobre os requisitos do «motivo específico» a que alude o artigo 1.º, n.° 2, da Diretiva 2008/118/CE.

A resposta à referida questão que foi dada no Despacho do TJUE de 07-02-2022, processo n.º C-460/21, é a de que «o artigo 1.º, n.º 2, da Diretiva 2008/118/CE do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo e que revoga a Diretiva 92/12/CEE, deve ser interpretado no sentido de que não prossegue «motivos específicos», na aceção desta disposição, um imposto cujas receitas ficam genericamente afetadas a uma empresa pública concessionária da rede rodoviária nacional e cuja estrutura não atesta a intenção de desmotivar o consumo dos principais combustíveis rodoviários».

Refere-se nesse Despacho, além do mais, o seguinte:

(...)

 

19 Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 1.º, n.º 2, da Diretiva 2008/118 deve ser interpretado no sentido de que prossegue «motivos específicos», na aceção desta disposição, um imposto cujas receitas ficam genericamente afetadas a uma empresa pública concessionária da rede rodoviária nacional e cuja estrutura não atesta a intenção de desmotivar o consumo dos principais combustíveis rodoviários.

 20 Há que começar por salientar que esta disposição, que visa ter em conta a diversidade das tradições fiscais dos Estados-Membros nesta matéria e o frequente recurso às imposições indiretas para a execução de políticas não orçamentais, permite que os Estados-Membros estabeleçam, além do imposto especial de consumo mínimo, outras imposições indiretas que prossigam uma finalidade específica (Acórdãos de 4 de junho de 2015, Kernkraftwerke Lippe-Ems, C-5/14, EU:C:2015:354, n.º 58, e de 3 de março de 2021, Promóciones Oliva Park, C-220/19, EU:C:2021:163, n.º 48).

 21 Em conformidade com a referida disposição, os Estados-Membros podem cobrar outros impostos indiretos sobre os produtos sujeitos a impostos especiais de consumo desde que estejam preenchidos dois requisitos. Por um lado, estes impostos devem ser cobrados por motivos específicos e, por outro, estas imposições devem ser conformes com as normas fiscais da União aplicáveis ao imposto especial de consumo e ao imposto sobre o valor acrescentado no que diz respeito à determinação da base tributável, bem como à liquidação, à exigibilidade, ao controlo do imposto, regras estas que não incluem as disposições relativas às isenções.

 22 Estes dois requisitos, que visam evitar que outras imposições indiretas entravem indevidamente as trocas comerciais, revestem assim caráter cumulativo, como decorre da própria redação do artigo 1.º, n.º 2, da Diretiva 2008/118 (v. Acórdão de 5 de março de 2015, Statoil Fuel & Retail, C-553/13, EU:C:2015:149, n.º 36, e, por analogia, Acórdão de 25 de julho de 2018, Messer France, C-103/17, EU:C:2018:587, n.º 36).

 23 No que respeita ao primeiro dos referidos requisitos, único visado pela primeira questão prejudicial, decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça que um motivo específico na aceção desta disposição não é uma finalidade meramente orçamental (Acórdão de 5 de março de 2015, Statoil Fuel & Retail, C-553/13, EU:C:2015:149, n.º 37).

 24 No entanto, uma vez que qualquer imposto prossegue necessariamente uma finalidade orçamental, o simples facto de um imposto ter um objetivo orçamental não é suficiente, enquanto tal, sob pena de esvaziar de substância o artigo 1.º, n.º 2, da Diretiva 2008/118, para excluir que se possa considerar que esse imposto tem também um motivo específico, na aceção da referida disposição (Acórdão de 5 de março de 2015, Statoil Fuel & Retail, C-553/13, EU:C:2015:149, n.º 38 e jurisprudência referida).

 25 Assim, para se considerar que prossegue um motivo específico, na aceção da referida disposição, um imposto deve visar, por si só, assegurar a finalidade específica invocada, de tal forma que exista uma relação direta entre a utilização das receitas e a finalidade da imposição em causa (v., neste sentido, Acórdãos de 5 de março de 2015, Statoil Fuel & Retail, C-553/13, EU:C:2015:149, n.º 41, e de 25 de julho de 2018, Messer France, C-103/17, EU:C:2018:587, n.º 38).

 26 Além disso, embora a afetação predeterminada do produto de um imposto ao financiamento do exercício, pelas autoridades de um Estado-Membro, de competências que lhes foram atribuídas possa constituir um elemento a tomar em consideração para identificar a existência de um motivo específico, essa afetação, que decorre de uma simples modalidade de organização interna do orçamento de um Estado-Membro, não pode, enquanto tal, constituir uma condição suficiente, uma vez que qualquer Estado-Membro pode decidir impor, independentemente da finalidade prosseguida, a afetação do produto de um imposto ao financiamento de determinadas despesas. Se assim não fosse, qualquer finalidade poderia ser considerada específica, na aceção do artigo 1.º, n.º 2, da Diretiva 2008/118, o que privaria o imposto especial de consumo harmonizado instituído por esta diretiva de qualquer efeito útil e violaria o princípio segundo o qual uma disposição derrogatória, como a do artigo 1.º, n.º 2, deve ser objeto de interpretação estrita (Acórdão de 5 de março de 2015, Statoil Fuel & Retail, C-553/13, EU:C:2015:149, n.º 39 e jurisprudência referida).

 27 Por último, não existindo semelhante mecanismo de afetação predeterminada das receitas, só se pode considerar que um imposto que incide sobre produtos sujeitos a impostos especiais de consumo prossegue um motivo específico, na aceção do artigo 1.º, n.º 2, da Diretiva 2008/118, se esse imposto for concebido, no que respeita à sua estrutura, nomeadamente, à matéria coletável ou à taxa de tributação, de modo a influenciar o comportamento dos contribuintes num sentido que permita realizar o motivo específico invocado, por exemplo, através da tributação significativa dos produtos considerados para desencorajar o respetivo consumo (Acórdão de 5 de março de 2015, Statoil Fuel & Retail, C-553/13, EU:C:2015:149, n.º 42 e jurisprudência referida).

 28 Quando é submetido ao Tribunal de Justiça um pedido de decisão prejudicial por meio do qual se pretende que seja declarado se uma imposição instituída por um Estado-Membro prossegue um motivo específico, na aceção do artigo 1.º, n.º 2, da Diretiva 2008/118, a função do Tribunal de Justiça consiste mais em esclarecer o órgão jurisdicional nacional sobre os critérios cuja aplicação permitirá a este último determinar se essa imposição prossegue efetivamente essa finalidade do que em proceder ele próprio a essa avaliação, e isto tanto mais quando o Tribunal de Justiça não dispõe necessariamente de todos os elementos indispensáveis para esse efeito (v., por analogia, Acórdãos de 7 de novembro de 2002, Lohmann e Medi Bayreuth, C-260/00 a C-263/00, EU:C:2002:637, n.º 26, e de 16 de fevereiro de 2006, Proxxon, C-500/04, EU:C:2006:111, n.º 23).

 29 No caso em apreço, importa salientar, em primeiro lugar, como resulta da jurisprudência referida no n.º 26 do presente despacho, que, embora a afetação predeterminada do produto da CSR ao financiamento, pela concessionária da rede rodoviária nacional, das competências gerais que lhe são atribuídas possa constituir um elemento a tomar em consideração para identificar a existência de um motivo específico, na aceção do artigo 1.º, n.º 2, da Diretiva 2008/118, essa afetação não pode, enquanto tal, constituir um requisito suficiente.

 30 Em segundo lugar, para se considerar que prossegue um motivo específico, na aceção desta disposição, a CSR deveria destinar-se, por si só, a assegurar os objetivos de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental que foram atribuídos à concessionária da rede rodoviária nacional. Seria esse o caso, nomeadamente, se o produto deste imposto devesse ser obrigatoriamente utilizado para reduzir os custos sociais e ambientais especificamente associados à utilização dessa rede que é onerada pelo referido imposto. Seria então estabelecida uma relação direta entre a utilização das receitas e a finalidade da imposição em causa (v., neste sentido, Acórdãos de 27 de fevereiro de 2014, Transportes Jordi Besora, C-82/12, EU:C:2014:108, n.º 30, e de 25 de julho de 2018, Messer France, C-103/17, EU:C:2018:587, n.º 38).

 31 Em terceiro lugar, como resulta do n.º 14 do presente despacho, é certo que a Autoridade Tributária sustenta que existe uma relação entre a afetação das receitas geradas pela CSR e o motivo específico que levou à instituição deste imposto, uma vez que o decreto-lei que atribuiu a concessão da rede rodoviária nacional à IP impõe a esta última que trabalhe em prol, por um lado, da redução da sinistralidade nessa rede e, por outro, da sustentabilidade ambiental.

 32 No entanto, como foi salientado no n.º 15 do presente despacho, resulta da decisão de reenvio que o produto do imposto em causa no processo principal não se destina exclusivamente ao financiamento de operações que supostamente concorrem para a realização dos dois objetivos mencionados no número anterior do mesmo despacho. Com efeito, as receitas provenientes da CSR destinam-se, mais amplamente, a assegurar o financiamento da atividade de conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional.

 33 Em quarto lugar, os dois objetivos atribuídos à concessionária da rede rodoviária nacional portuguesa estão enunciados em termos muito gerais e não deixam transparecer, à primeira vista, uma real vontade de desencorajar a utilização quer dessa rede quer dos principais combustíveis rodoviários, como a gasolina, o gasóleo rodoviário ou o gás de petróleo liquefeito (GPL) automóvel. A este respeito, é significativo que o órgão jurisdicional de reenvio destaque, na redação da sua primeira questão prejudicial, que as receitas geradas pelo imposto são genericamente afetadas à concessionária da rede rodoviária nacional e que a estrutura deste imposto não atesta a intenção de desmotivar um qualquer consumo desses combustíveis.

 34 Em quinto lugar, o pedido de decisão prejudicial não contém nenhum elemento que permita considerar que a CSR, na medida em que incide sobre os utilizadores da rede rodoviária nacional, foi concebida, no que respeita à sua estrutura, de tal modo que dissuade os sujeitos passivos de utilizarem essa rede ou que os incentiva a adotar um tipo de comportamento cujos efeitos seriam menos nocivos para o ambiente e que seria suscetível de reduzir os acidentes.

 35 Por conseguinte, sem prejuízo das verificações que caberá ao órgão jurisdicional de reenvio efetuar atendendo às indicações que figuram nos n.ºs 29 a 34 do presente despacho, as duas finalidades específicas invocadas pela Autoridade Tributária para demonstrar que a CSR prossegue um motivo específico, na aceção do artigo 1.º, n.º 2, da Diretiva 2008/118, não se distinguem de uma finalidade puramente orçamental (v., por analogia, Acórdão de 27 de fevereiro de 2014, Transportes Jordi Besora, C-82/12, EU:C:2014:108, n.ºs 31 a 35).

 36 Atendendo às considerações precedentes, há que responder à primeira questão que o artigo 1.º, n.º 2, da Diretiva 2008/118 deve ser interpretado no sentido de que não prossegue «motivos específicos», na aceção desta disposição, um imposto cujas receitas ficam genericamente afetadas a uma empresa pública concessionária da rede rodoviária nacional e cuja estrutura não atesta a intenção de desmotivar o consumo dos principais combustíveis rodoviários.

 

A CSR, na versão da Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, vigente em 2018/2019, visa financiar a rede rodoviária nacional a cargo da EP - Estradas de Portugal, E. P. E. (actual Infraestruturas de Portugal, S.A., nos termos do Decreto-Lei n.º 91/2015, de 29 de Maio), sendo o financiamento assegurado primacialmente pelos respetivos utilizadores, como contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, utilização essa que é verificada pelo consumo dos combustíveis (artigos 2.º e 3.º da Lei n.º 55/2007).

A CSR foi estabelecida constitui uma fonte de financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP - Estradas de Portugal, E. P. E., no que respeita à respectiva concepção, projecto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento (artigo 3.º, n.º 2, daquela Lei).

O produto da CSR constitui uma receita própria da Infraestruturas de Portugal, S.A. e o financiamento da rede rodoviária nacional apenas subsidiariamente é assegurado pelo Estado (artigos 2.º e 6.º da Lei n.º 55/2007). 

A actividade de financiamento, conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional foi atribuída, em regime de concessão, à EP - Estradas de Portugal, E. P. E. (agora Infraestruturas de Portugal, S.A.) pelo Decreto-Lei n.º 380/2007, de 13 de Novembro, em que se prevê que, entre outros rendimentos, a CSR constitui receita própria dessa entidade [Base 3, alínea c) do Anexo I, na redacção do Decreto-Lei n.º 44-A/2010, de 5 de Maio, a que corresponde a alínea b) na redacção inicial].

Uma das obrigações da concessionária, é a prossecução dos “objetivos de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental referidos no quadro II do anexo às presentes bases” [Base 2, n.º 4, alínea b) do Anexo I ao Decreto-Lei n.º 380/2007].

No quadro II do anexo apenas se estabelece, na Parte I, alguns objetivos de redução de sinistralidade por referência a certos indicadores de atividade (número de pontos negros, gravidade dos acidentes nas travessias urbanas, número de vítimas mortais), e, na Parte II, alguns objetivos de sustentabilidade ambiental em vista a assegurar, tendencialmente, os indicadores ambientais que aí são referenciados.

Assim, como se concluiu no referido Despacho do TJUE de 07-02-2022, proferido no caso Vapo Atlantic, Processo C-460-21, as receitas provenientes da CSR destinam-se essencialmente a assegurar o financiamento da rede rodoviária e têm uma finalidade puramente orçamental.

Como se refere no acórdão arbitral de 14-06-2023, proferido no processo n.º 24/2023-T, «nem a estrutura do tributo permite concluir pela existência de intenção de desmotivar o consumo dos combustíveis. E, por outro lado, a finalidade específica que poderia justificar a criação da CSR de modo a poder considerar-se conforme o direito europeu é apresentada em termos muito genéricos, não tendo sido sequer feita a prova – que incumbia à Autoridade Tributária - de que tenham sido cumpridos os objetivos de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental, que se encontram definidos no quadro II do anexo às bases da concessão».

Pelo exposto, a CSR, na versão da Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, vigente em 2018/2019, «não prossegue “motivos específicos”, na acepção do artigo 1.°, n.° 2, da Diretiva  2008/118, na medida em que as suas receitas têm essencialmente como fim assegurar o financiamento da rede rodoviária nacional, não podendo considerar-se como suficiente, para estabelecer uma relação direta entre a utilização das receitas e um “motivo específico”, os objetivos genéricos de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental» (acórdão arbitral citado).

Consequentemente as liquidações emitidas pela AT à D... e à F..., que estão subjacentes à cobrança por estas de CSR às Requerentes, enfermam de vício de violação de lei, decorrente da ilegalidade, por incompatibilidade das normas dos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 4.º e 5.º da Lei n. 55/2007, de 31 de Agosto, nas redacções vigentes em 2018/2019, com o artigo 1.º, n.º 2, da Diretiva 2008/118/CE do Conselho, de 16 de Dezembro de 2008.

Esta ilegalidade justifica a anulação das liquidações, nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.

 

8. Questões de conhecimento prejudicado

 

 

Resultando do exposto a declaração de ilegalidade das liquidações de CSR subjacentes às facturas juntas aos autos, por vício que impede a sua renovação, fica prejudicado, por ser inútil (artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC), o conhecimento dos restantes vícios que lhes são imputados pelas Requerentes.

Na verdade, o artigo 124.º do CPPT, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, do RJAT, ao estabelecer uma ordem de conhecimento de vícios, pressupõe que, julgado procedente um vício que assegura a eficaz tutela dos direitos dos impugnantes, não é necessário conhecer dos restantes, pois, se fosse sempre necessário apreciar todos os vícios imputados ao acto impugnado, seria indiferente a ordem do seu conhecimento.

Pelo exposto, não se toma conhecimento dos restantes vícios imputados pelas Requerentes.

 

9. Reembolso de quantia paga e juros indemnizatórios

 

Como resulta da matéria de facto fixada:

– a A... adquiriu à D... no período entre Janeiro de 2019 e Maio de 2022, 1.433,30 litros de gasolina e 288.710,88 litros de gasóleo rodoviário tendo suportado com essas aquisições € 32.171,60 a título de Contribuição de Serviço Rodoviário;

– a B... adquiriu à F... e à G..., no período compreendido entre Janeiro de 2019 e Dezembro de 2022, 994.440,61 litros de gasóleo rodoviário e 6,65 litros de gasolina, tendo, nessa medida, suportado, a título de CSR, a quantia global de € 110.383,49.

 

 

9.1. Competência para apreciar pedidos de reembolso

 

A AT não questiona a aquisição destas quantidades nem a correspondência à realidade das facturas apresentadas pelas Requerentes, mas questiona que os tribunais arbitrais que funcionam no CAAD tenham competência para «pronunciar-se sobre a restituição de valores/montantes, por conta da declaração de ilegalidade ou anulação de atos de liquidação, o que só pode ser determinado em sede de execução da decisão».

O artigo 24.º, n.º 1, do RJAT estabelece o seguinte:

 

1 - A decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, alternativa ou cumulativamente, consoante o caso:

 

a) Praticar o acto tributário legalmente devido em substituição do acto objecto da decisão arbitral;

 

b) Restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito;

 

c) Rever os actos tributários que se encontrem numa relação de prejudicialidade ou de dependência com os actos tributários objecto da decisão arbitral, designadamente por se inscreverem no âmbito da mesma relação jurídica de imposto, ainda que correspondentes a obrigações periódicas distintas, alterando-os ou substituindo-os, total ou parcialmente;

 

d) Liquidar as prestações tributárias em conformidade com a decisão arbitral ou abster-se de as liquidar.

 

Como resulta da conjugação do corpo no n.º 1 com a sua daquele alínea b) a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, "restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito", o que está em sintonia com o preceituado no art. 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 29.º do RJAT] que estabelece, que "a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei».

Embora o art. 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão "declaração de ilegalidade" para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira directriz, que "o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária".

Entre essas competências incluem-se a de, na sequência de anulação do acto de que é objecto de impugnação judicial, proferir condenação da «Administração Tributária a restituir o imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios», como é entendimento jurisprudencial pacífico do Supremo Tribunal Administrativo ( [8] ).

Como se diz no acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 06-08-2017, processo  n.º 06112/12, «o princípio da tutela jurisdicional efectiva com consagração constitucional (cfr.artº.268, nº.4, da Constituição da República) somente é alcançado se as sentenças puderem ter todos os efeitos necessários e aptos a proteger o direito ou interesse apreciado pelo Tribunal, assim não podendo limitar-se à mera anulação do acto tributário e podendo o processo de impugnação revestir uma natureza condenatória, caso o contribuinte solicite não só a anulação do acto tributário, mas também a devolução do montante pago acrescido dos respectivos juros» e que «o princípio da economia processual que exige que se ponha fim ao litígio utilizando do processo judicial tudo o que puder ser aproveitado para basear uma decisão do Tribunal de onde sai logo uma definição da situação tributária concreta sob análise que não careça de qualquer nova pronúncia da Administração Tributária».

No mesmo sentido da competência dos tribunais arbitrais para condenação em reembolso de quantias indevidamente pagas e juros indemnizatórios tem vindo a decidir uniformemente o Tribunal Central Administrativo Sul, como pode ver-se pelos acórdãos de 25-06-2019, processo n.º 044/18.6BCLSB, de 22-05-2019, processo 7/18.1BCLSB, de 30-03-2023, processo n.º 153/21.4BCLSB.

O regime legal do reconhecimento de indemnizatórios confirma este entendimento.

Na verdade, o processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de actos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do art. 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que "são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido" e do art. 61.º, n.º 4 do CPPT (na redacção dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a que corresponde o n.º 2 na redacção inicial), que "se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea".

Assim, o n.º 5 do art. 24.º do RJAT, ao dizer que "é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário", deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral, o que tem ínsita a possibilidade de reconhecimento do direito a reembolso da quantia paga indevidamente paga, que é pressuposto da existência daqueles juros.

Por isso, os tribunais arbitrais que funcionam no CAAD são competentes para condenar em reembolso de quantias pagas e juros indemnizatórios, quando existem no processo elementos suficientes para isso e, pelo menos, quando não se divisem divergências justificadas das partes quanto ao seu montante, como entendeu o Tribunal Central Administrativo Sul, no citado acórdão de 22-05-2019, processo n.º 07/18.1BCLSB (quando «não discerne (ainda que com eventual erro de julgamento) discordância das partes quanto a esse montante»).

O valor da CSR nos anos de 2018 e 2019 era de € 111/1000 por litro para o gasóleo rodoviário e de € 87/1000 por litro para a gasolina.

Por isso, conclui-se que a A... pagou indevidamente a quantia e € 32.171,60 e a B... pagou indevidamente € 110.383,49.

A AT não questiona as aquisições documentadas pelas facturas, nem indica quaisquer outros valores em alternativa.

Por isso, nada obsta a que seja apreciado o pedido de reembolso.

 

9.2. Apreciação do pedido de reembolso e juros indemnizatórios

 

Pelo que se referiu, como consequência da anulação parcial das liquidações há lugar a reembolso das quantias indevidamente pagas, no montante de € 32.171,60 à A... e de
€ 110.383,49 à B... .

Quanto a juros indemnizatórios, o artigo 43.º da LGT estabelece o seguinte, sobre juros indemnizatórios, no que aqui interessa:

Artigo 43.º

Pagamento indevido da prestação tributária

1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

2 – Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.

3. São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:

a) Quando não seja cumprido o prazo legal de restituição oficiosa dos tributos;

b) Em caso de anulação do acto tributário por iniciativa da administração tributária, a partir do 30.º dia posterior à decisão, sem que tenha sido processada a nota de crédito;

c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.

d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.

4. A taxa dos juros indemnizatórios é igual à taxa dos juros compensatórios.

(...)

 

No caso em apreço está-se perante uma situação enquadrável na alínea d) do n.º 3 deste artigo 43.º, pois a anulação das liquidações baseia-se na ilegalidade das normas dos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 4.º e 5.º da Lei n. 55/2007, de 31 de Agosto, nas redacções vigentes em 2018/2019, com o artigo 1.º, n.º 2, da Diretiva 2008/118/CE do Conselho, de 16 de Dezembro de 2008.

Por isso, as Requerentes têm direito a juros indemnizatórios que devem ser contados, relativamente a cada pagamento, desde a data em que foi efectuado, até integral reembolso ao respectivo Requerente, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.

 

10. Decisão

 

De harmonia com o exposto acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

  1. Julgar improcedentes as excepções suscitadas pela AT;
  2. Julgar parcialmente procedente o pedido de pronúncia arbitral;
  3. Declarar a ilegalidade das normas dos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 4.º e 5.º da Lei n. 55/2007, de 31 de Agosto, nas redacções vigentes em 2018/2019, com o artigo 1.º, n.º 2, da Diretiva 2008/118/CE do Conselho, de 16 de Dezembro de 2008, e recusar a sua aplicação;
  4. Anular parcialmente as liquidações de CSR subjacentes às facturas indicadas nos documentos n.ºs 3 e 5 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, emitidas pela D..., pela F... e pela G..., bem como os actos de repercussão consubstanciados em cada uma destas facturas;
  5. Julgar parcialmente procedente o pedido de reembolso de quantias indevidamente pagas formulado pela Requerente A..., quanto ao valor de € 32.171,60 e condenar a Administração Tributária a pagar-lhe essa quantia;
  6. Julgar procedente o pedido de reembolso de quantias indevidamente pagas formulado pela Requerente B..., quanto ao valor de € 110.383,49 e condenar a Administração Tributária a pagar-lhe essa quantia;
  7. Julgar procedente o pedido de juros indemnizatórios e condenar a AT a pagá-los às Requerentes nos termos referidos no ponto 9.2. deste acórdão;
  8. Absolver a AT dos pedidos na parte restante (€ 165.345,60).

 

11. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 307.900,69, indicado pelas Requerentes sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

12. Custas

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 5.508,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da A... na percentagem de 53,7% e a cargo da AT na percentagem de 46,3%.

 

 

13. Notificação do Ministério Público

 

Notifique-se o Ministério Público, nos termos do artigo 17.º, n.º 3, do RJAT.

 

 

Lisboa, 13-11-2023

 

Os Árbitros

 

(Jorge Lopes de Sousa)

(Relator)

(vencido quanto à questão da competência por falta de vinculação,

nos termos da declaração anexa)

 

(Sílvia Oliveira)

 

 

(Marta Vicente)

 

 

 

Declaração de voto de vencido

 

Votei vencido quanto a questão da competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD á apreciação da legalidade de actos de liquidação de Contribuição de Serviço Rodoviário, pelas seguintes razões:

 

O artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, que autorizou o Governo a legislar no sentido de instituir a arbitragem como forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária, fixou como possível âmbito da arbitragem «os actos de liquidação de tributos, incluindo os de autoliquidação, de retenção na fonte e os pagamentos por conta, de fixação da matéria tributável, quando não dêem lugar a liquidação, de indeferimento total ou parcial de reclamações graciosas ou de pedidos de revisão de actos tributários, os actos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação, os actos de fixação de valores patrimoniais e os direitos ou interesses legítimos em matéria tributária».

O Decreto-Lei n.º 10/2011 (RJAT), emitido ao abrigo da autorização legislativa, não estendeu o âmbito da jurisdição arbitral tributária a todo o tipo de litígios permitidos pela autorização legislativa, limitando a competência dos tribunais arbitrais à «declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta», à «declaração de ilegalidade de actos de determinação da matéria tributável, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais» e à «apreciação de qualquer questão, de facto ou de direito, relativa ao projecto de decisão de liquidação, sempre que a lei não assegure a faculdade de deduzir a pretensão referida na alínea anterior».

A Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, restringiu ainda mais o âmbito da arbitragem tributária, eliminado a possibilidade de recurso à arbitragem para declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando dêem origem à liquidação de qualquer tributo, e para apreciação de qualquer questão, de facto ou de direito, relativa ao projecto de decisão de liquidação.

No entanto, o artigo 4.º, n.º 1, do RJAT, ao estabelecer que «a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça», veio admitir que, no âmbito das competências dos tribunais arbitrais, o âmbito da arbitragem tributária fosse limitado de harmonia com a vinculação.

Foi em concretização deste desígnio legislativo que foi emitida a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, que definiu o «objecto da vinculação» e os «termos da vinculação» da seguinte forma:

 

Artigo 1.º

Vinculação ao CAAD

 

     Pela presente portaria vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam, nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, no CAAD — Centro de Arbitragem Administrativa os seguintes serviços do Ministério das Finanças e da Administração Pública:

a) A Direcção -Geral dos Impostos (DGCI); e

b) A Direcção -Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo (DGAIEC).

 

Artigo 2.º

Objecto da vinculação

 

     Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com excepção das seguintes:

a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;

b) Pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;

c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indirectos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação; e

d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efectuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira.

 

Artigo 3.º

Termos da vinculação

 

     1 – A vinculação dos serviços e organismos referidos no artigo 1.º está limitada a litígios de valor não superior a € 10 000 000.

     2 – Sem prejuízo dos requisitos previstos no Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, a vinculação dos serviços referidos no artigo 1.º está sujeita às seguintes condições:

a) Nos litígios de valor igual ou superior a € 500 000, o árbitro presidente deve ter exercido funções públicas de magistratura nos tribunais tributários ou possuir o grau de mestre em Direito Fiscal;

b) Nos litígios de valor igual ou superior a € 1 000 000, o árbitro presidente deve ter exercido funções públicas de magistratura nos tribunais tributários ou possuir o grau de doutor em Direito Fiscal.

     3 – Em caso de impossibilidade de designar árbitros com as características referidas no número anterior cabe ao presidente do Conselho Deontológico do CAAD a designação do árbitro presidente.

 

            Desta legislação e regulamentação conclui-se que houve uma preocupação em limitar o âmbito da arbitragem tributária:

– na alínea a) do n.º 4 do artigo 124.º da Lei de autorização legislativa admitia-se a possibilidade de nela ser incluída a generalidade dos litígios relativos a liquidação de tributos (inclusivamente os praticados pelos contribuintes) e de fixação de valores patrimoniais que podem ser apreciados em processo de impugnação judicial e o reconhecimento de direitos e interesse legítimos em matéria tributária;

– no artigo 2.º do RJAT não se incluiu na arbitragem tributária o reconhecimento de direitos e interesse legítimos em matéria tributária e estabeleceu-se no artigo 4.º, que a vinculação da Administração Tributária, que se reconduz a definição do âmbito da arbitrabilidade de litígios deveria ser efectuada por portaria;

– com a Lei n.º 64-B/2011, impôs-se que na portaria se indicassem o tipo e o valor máximo dos litígios, o que tem como corolário que nem todos os litígios abrangidos pelo artigo 2.º, n.º 1, do RJAT;

– a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, limitou a vinculação aos serviços da Administração Tributária estadual e aos tribunais «que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida», com várias excepções.

 

A intenção legislativa de restringir o âmbito da arbitragem tributária em relação ao que foi permitido pela autorização legislativa resulta com evidência destes diplomas e é explicada pelas justificadas dúvidas que, no início da arbitragem tributária, se suscitavam sobre o possível inadequado funcionamento de um meio inovador de resolução de litígios em matéria tributária, bem patentes nas preocupações sentidas pelo Senhor Conselheiro Santos Serra, Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, na sessão de apresentação do novo regime de arbitragem fiscal, que ocorreu em Lisboa, no dia 14-12-2010:

 

Assim, e logo à partida, é preciso que o regime de arbitragem tributária ora constituído consiga afastar receios de que, por via da arbitragem, as partes consigam contornar as imposições legais que sobre si recaem, e que façam letra morta dos princípios da legalidade e da igualdade entre contribuintes em matéria tributária, com a capacidade negocial diferenciada das partes a sobrepor-se ao princípio da tributação de acordo com a sua real capacidade contributiva.[9]

A consciência dos riscos como fundamento das limitações do âmbito foi expressamente explicada pelo Senhor Prof. Doutor Sérgio Vasques (que desempenhava as funções de Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais ao tempo em que foram emitidos o Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, e a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março), em texto publicado na Newsletter n.º 1 do CAAD:

 

A arbitragem tributária, tal como contemplada no Regime da Arbitragem Tributária veio a apresentar âmbito mais estreito relativamente ao que figurava na autorização legislativa do orçamento do estado para 2010, pela consciência de que esta era, e continua a ser, uma experiência inovadora que não vai sem os seus riscos. Foi também com precaução que a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, através da qual se vinculou a administração tributária ao regime, impôs vários limites desde logo atendendo à especificidade e ao valor das matérias em causa, associando-se deste modo a Administração Fiscal a este mecanismo de resolução alternativa de litígios nos estritos termos e condições estabelecidos na Portaria». [10]

 

Nos litígios em matéria de direito tributário está em causa o interesse público primacial de um Estado de Direito, que é a obtenção de receitas imprescindíveis ao próprio funcionamento global do Estado, o que justifica que na vinculação se tomassem cautelas.

A arbitragem tributária poderia vir a ser um meio generalizado alternativo de resolução de litígios fiscais, mas, antes de serem dadas provas reiteradas da qualidade e isenção das suas decisões, a necessidade de protecção do interesse público e de assegurar a efectividade dos princípios essenciais da legalidade e da igualdade tributária que o enformam nesta matéria recomendava em 2011 e recomenda actualmente que se avance com cuidado, sem entusiasmos desmedidos, não deixando ao arbítrio dos cidadãos a opção livre e ilimitada por esse meio de resolução de litígios.

Essa cautela é especialmente aconselhada quando, por razões de celeridade, se optou por restringir os meios de impugnação e recurso das decisões arbitrais e, por isso, é menor do que nos tribunais tributários a viabilidade de correcção de possíveis erros de julgamento que sejam lesivos do interesse público.

Por isso se justificava em 2011 e se justifica ainda hoje que haja limitações ao acesso à arbitragem tributária, de forma de compatibilizar a utilização deste meio opcional de acesso à justiça com a obrigação estadual de proteger o interesse público, assegurar a legalidade e igualdade tributária e a arrecadação de receitas imprescindíveis para o funcionamento do Estado.

A esta luz, o artigo 4.º, n.º 1, do RJAT, ao estabelecer que o âmbito da vinculação seria definido por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, atribui-lhes um poder discricionário, para definirem a amplitude da vinculação da forma como entendam que melhor se prossegue o conjunto de interesses públicos cuja concretização está em causa, definição esta que não pode dispensar, naturalmente, a avaliação da verificação da existência das condições de ordem material e humana necessárias para a implementação deste novo regime.

Neste contexto em que havia uma evidente intenção de restringir o âmbito inicial da arbitragem tributária em relação à amplitude permitida pela lei de autorização legislativa, sendo consabido que a Constituição da República Portuguesa (CRP) e a Lei Geral Tributária (LGT) aludem a vários tipos de tributos, que designam como «impostos», «taxas» e «contribuições financeiras» [artigos 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP] e 3.º, n.ºs 2 e 3, da LGT], a inclusão da palavra «impostos» na expressão «apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida» contrastando com a referência mas abrangente a «actos de liquidação de tributos» que foi usada na alínea a) do n.º 4 do artigo 24.º da Lei n.º 3-B/2010 (autorização legislativa) para definir o âmbito da autorização, tem de ser interpretada expressão precisa da restrição que se pretendeu efectuar.

Na verdade, assente que a intenção legislativa era restringir o âmbito da jurisdição arbitral, se foi utilizada uma expressão com alcance restritivo para indicar o âmbito da restrição, tem de pressupor-se, presumindo que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (como impõe o n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil), que se pretendeu restringir nos precisos termos, se não houver razões que imponham que se conclua que houve alguma deficiência na expressão do pensamento legislativo. Uma norma com alcance restritivo deve, em princípio, ser interpretada em termos estritos e não extensivamente, pois a ampliação do seu alcance estará presumivelmente ao arrepio do pensamento legislativo que a interpretação jurídica visa reconstituir (artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil).

Como se escreve no Acórdão n.º 539/2015, do Tribunal Constitucional:

«As contribuições financeiras constituem um tertium genus de receitas fiscais, que poderão ser qualificadas como taxas coletivas, na medida em que compartilham em parte da natureza dos impostos (porque não têm necessariamente uma contrapartida individualizada para cada contribuinte) e em parte da natureza das taxas (porque visam retribuir o serviço prestado por uma instituição pública a certo círculo ou certa categoria de pessoas ou entidades que beneficiam coletivamente de um atividade administrativa) (Gomes Canotilho/Vital Moreira, em “Constituição da República Portuguesa Anotada”, I vol., pág. 1095, 4.ª ed., Coimbra Editora).

As contribuições distinguem-se especialmente das taxas porque não se dirigem à compensação de prestações efetivamente provocadas ou aproveitadas pelo sujeito passivo, mas à compensação de prestações que apenas presumivelmente são provocadas ou aproveitadas pelo sujeito passivo, correspondendo a uma relação de bilateralidade genérica. Preenchem esse requisito as situações em que a prestação poderá beneficiar potencialmente um grupo homogéneo ou um conjunto diferenciável de destinatários e aquelas em que a responsabilidade pelo financiamento de uma tarefa administrativa é imputável a um determinado grupo que mantém alguma proximidade com as finalidades que através dessa atividade se pretendem atingir (sobre estes aspetos, Sérgio Vasques, ob. cit., pág. 221, e Suzana Tavares da Silva, em “As taxas e a coerência do sistema tributário”, pág. 89-91, 2.ª edição, Coimbra Editora)».

 

Por outro lado, quando foi emitida a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, em que o Governo definiu o âmbito da vinculação à arbitragem tributária, a Autoridade Tributária e Aduaneira já administrava tributos com a designação de «contribuição» (designadamente, desde 2008, a contribuição de serviço rodoviário que aqui está em causa, e tinha já sido criada pelo artigo 141.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a contribuição sobre o sector bancário), pelo  que não se pode aventar, com pertinência, que não se colocasse, no momento da emissão daquela Portaria, a necessidade esclarecer com  rigor se o âmbito da vinculação abrangia ou não tributos com a designação de «contribuições».

A intenção governamental de afastar da vinculação à arbitragem tributária as  pretensões relativas a contribuições é confirmada pela alteração efectuada ao artigo 2.º da  Portaria n.º 112-A/2001 pela Portaria n.º 287/2019, de 3 de Setembro, em que se manteve a referência restritiva a «impostos», em momento em que a Autoridade Tributária e Aduaneira já administrava vários tributos com  a designação de «contribuições», como, além da CSR e da contribuição sobre o sector bancário, a contribuição extraordinária sobre o setor energético (criada pelo artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro) e a contribuição extraordinária sobre a indústria farmacêutica  (criada pelo artigo 168.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro).

Por outro lado, utilizando a Constituição e a Lei designações específicas para classificar os vários tipos de tributos, terá de se presumir também que, para efeito da definição das competências dos tribunais arbitrais, se pretendeu aludir à classificação que a legislativamente foi adoptada em relação a cada tributo e não à que o intérprete poderá considerar-se mais apropriada, como base em considerações de natureza doutrinal. A classificação de tributos especiais, designadamente para apurar se devem ser ou não tratados constitucionalmente como impostos é, frequentemente, uma tarefa complexa, objecto de abundante jurisprudência do Tribunal Constitucional. Não há qualquer razão para crer, em termos de razoabilidade, que o legislador, que tem de se presumir que consagrou a solução mais acertada (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), tivesse optado por impor indagações com esse nível de dificuldade, incerteza de resultados e morosidade para definição da competência dos tribunais arbitrais, em vez de optar pela identificação clara e segura dos tributos a que pretendeu aludir através da designação que legislativamente foi considerada adequada que, além do mais, se compagina melhor com a celeridade de decisões que se visou atingir com a criação da arbitragem tributária.

Para além disso, nem se pode aceitar, à face da presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), que fosse atribuída à CSR a designação de «contribuição» se legislativamente se pretendesse que ela fosse considerada como um «imposto» e não como uma das «demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas» a que aludem o artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP e o artigo 3.º, n.º 2, da LGT. A expressão do pensamento em termos adequados faz-se necessariamente através da expressão correcta e não uma outra que o dissimule.

Assim, em boa hermenêutica, é de concluir que o artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, quando se refere a «impostos», está a reportar-se apenas aos tributos a que legalmente é atribuída tal designação (como, por exemplo, o IVA, o IRC e o IRS) e àqueles que, embora tenham outra designação, a própria lei explicitamente considerada «impostos» (como sucede com as «contribuições especiais que assentam na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma actividade», que o n.º 3 do artigo 4.º da LGT identifica e expressamente considera «impostos»). E, paralelamente, aquele artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 não se estará a reportar a tributos que pela lei são denominados como «taxas» ou «contribuições financeiras a favor das entidades públicas», que não se enquadrem na definição das referidas «contribuições especiais», mesmo que, após análise aprofundada das suas características pelo tribunal previamente definido como competente, se possa concluir que devem ser considerados como impostos especiais, designadamente para efeitos de aplicação das exigências constitucionais relativas a impostos.

No caso da CSR, é manifesto que não se está perante uma «contribuição especial» enquadrável no conceito definido no n.º 3 do artigo 4.º da LGT, pois não assenta «na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma actividade», pelo que não há suporte literal mínimo para que seja considerada, na perspectiva legislativa, um dos «impostos» a que alude o artigo 2.º da Portaria n.º 112-/2011.

Por outro lado, da relegação da definição do âmbito da vinculação para diploma de natureza regulamentar depreende-se que, subjacente à restrição que se pretendeu efectuar estarão também razões pragmáticas relacionadas com a criação das condições práticas para implementação do novo regime, que normalmente se reservam para diplomas de natureza executiva, como são as relativas à disponibilidade de meios humanos da Administração Tributária com formação adequada para a representarem adequadamente nos processos tributários que exijam formação mais especializada. Neste caso, pelas limitações ao âmbito da jurisdição arbitral que se fazem nas alíneas c) e d) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, quanto a litígios relacionados com matéria aduaneira, entrevê-se que estarão razões desse tipo subjacentes a essas restrições à arbitrabilidade de litígios.

Tendo o poder discricionário para definir o âmbito da vinculação sido atribuído aos membros do Governo indicados no artigo 4.º, n.º 1, da Portaria n.º 112-A/2011 e não aos tribunais arbitrais, não podem estes substituir-se àqueles na definição do âmbito da jurisdição arbitral. Desde logo porque os tribunais não possuem o conhecimento de todos os elementos de natureza operacional que podem ter levado os membros do Governo que emitiram a Portaria n.º 112-A/2011. E, depois, porque foi a esses membros do Governo e não aos tribunais arbitrais que a lei atribuiu o poder de definir o âmbito da vinculação.

Pelo exposto, a interpretação correcta, alicerçada no teor literal deste artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 e nas regras interpretativas que constam do n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil, mas tendo também em conta as «circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada» (artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil), é a de que se pretendeu restringir a vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD a litígios em que estejam em causa tributos legislativamente classificados como impostos ou explicitamente como tal considerados (como sucede com as «contribuições especiais» referidas no n.º 3 do artigo 4.º da LGT), com as excepções arroladas naquela norma.

Assim, é de concluir que não é abrangida pela vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira, a apreciação de litígios que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas à CSR.

Como bem diz a Requerente e pelo que se refere no acórdão arbitral proferido no processo n.º 146/2019-T, a falta de vinculação não implica incompetência absoluta, em razão da matéria, a que alude o artigo 16.º do CPPT, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, pois a competência para apreciação da generalidade de actos de liquidação de tributos se insere nas competências dos tribunais arbitrais definidas no artigo 2.º do RJAT.

Mas, está-se perante incompetência relativa por falta do acordo necessário para a constituição de tribunal arbitral, a que se reporta o artigo 18.º da Lei de Arbitragem Voluntária [Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT e artigo 181.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos ( [11] )], acordo esse que, relativamente à arbitragem tributária, é genericamente exigido e definido no que concerne à Autoridade Tributária e Aduaneira através da vinculação, prevista no artigo 4.º do RJAT.

Tendo esta incompetência sido arguida tempestivamente, na Resposta (artigo 18.º, n.º 4, da LAV), tem de concluir-se que procede, com esta fundamentação, a excepção de incompetência suscitada pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

Esta interpretação do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 é compaginável com a Constituição, como já decidiu o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 545/2019, de 16-10-2019, proferido no processo n.º 1067/2018.

 

            Lisboa, 13-11-2023

O Árbitro

 

 

 

 

(Jorge Lopes de Sousa)

 

 

 

 



[1] Neste âmbito, vide Constituição da República Portuguesa Anotada, I vol., 4ª edição, Coimbra, pág. 1095.

[2] Nesta matéria, vide Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, Coimbra, 2015, pág. 287.

[3] Cfr., entre outros, o Acórdão n.º 365/2008, de 02-07-2008 (Relator Conselheiro João Cura Mariano).

[4] Neste sentido, citam as Requerentes JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, 6.ª edição, 2011, p. 709.

[5] Neste âmbito, vide, entre outros, o Acórdão nº 181/2007, de 8 de Março de 2007 (Processo n.º 343/2005).

[6] Como, no essencial, entendeu o Supremo Tribunal Administrativo no acórdão de 06-09-2023, processo n.º 067/09.6BELR, identificando «o princípio segundo o qual tem direito ao reembolso o substituto em caso de entrega em excesso e o substituído em caso de pagamento ou retenção em excesso».

[7] Como já era entendimento doutrinal anterior, como pode ver-se em CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 7.ª edição, 2012, página 255, SÉRGIO VASQUES, Manual de Direito Fiscal, 2011, página 333, e ANA PAULA DOURADO, Direito Fiscal – Lições, 2016, página 73.

[8] Proferindo condenações deste tipo em processos de impugnação judicial, podem ver-se, entre muitos, os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo: de 21-09-2016, processo n.º 0571/13; de 08-03-2017, processo n.º 0298/13; de 22-03-2017, processo n.º 0165/13; de 29-03-2017, processo n.º 0164/13; e de 31-01-2018, processo n.º 01157/17.

[9] Texto reproduzido no Guia da Arbitragem Tributária, 2.ª edição, página 192.

[10] Publicado em https://www.caad.pt/files/documentos/newsletter/Newsletter-CAAD_out_2011.pdf.

[11] No sentido da aplicação subsidiária da Lei de Arbitragem Voluntária à arbitragem tributária, pode ver-se, entre vários, o acórdão do Pleno do Supremo Tribunal Administrativo de e 21-04-2021, processo n.º 101/19.1BALSB.