Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 167/2020-T
Data da decisão: 2021-03-08  ISV  
Valor do pedido: € 5.015,43
Tema: ISV – Componente ambiental; Violação do Direito da União Europeia.
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DECISÃO ARBITRAL

RELATÓRIO

1.            A..., NIF..., residente na Rua ..., ..., R/C, ...-... Serzedo (doravante, o “Requerente”), veio nos termos e para os efeitos dos artigos 2.º, n.º 2, alínea a), 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1, e 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante, “RJAT”), em conjugação com o artigo 99.º, alínea a), e o artigo 102.º, n.º 1, alínea f), e n.º 2, ambos do Código de Procedimento e de Processo Tributário (doravante, “CPPT”), requerer a constituição do tribunal arbitral, com a intervenção de árbitro singular, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, a “Requerida” ou “AT”), tendo em vista a declaração de ilegalidade  do ato de liquidação do Imposto Sobre Veículos (doravante, “ISV”), resultante da apresentação da Declaração Aduaneira de Veículo (doravante, “DAV”) n.º 2019/..., de 27.02.2020, praticado pelo Diretor da Alfândega do Freixieiro e, bem assim, a condenação da Requerida no reembolso do imposto indevidamente pago, no montante de €5.015,43, bem como no pagamento dos correspondentes juros indemnizatórios.

2.            De acordo com os artigos 5.º, n.º 2, alínea a), e 6.º, n.º 1, do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) designou como árbitro o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

3.            O Tribunal Arbitral foi constituído no CAAD, em 5 de agosto de 2020, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD.

4.            Notificada para o efeito, a Requerida apresentou a sua resposta em 4 de setembro de 2020.

5.            O prazo de decisão ficou suspenso por força da Lei n.º 4-B/2021, de 1 fevereiro, no âmbito da pandemia da doença COVID-19.

6.            A Requerente alegou, em síntese, que:

6.1.        Introduziu, em Portugal, um veículo automóvel de passageiros, usado, marca ..., modelo..., movido a gasóleo, destinado ao seu uso particular, com origem na Alemanha;

6.2.        O veículo tinha sido matriculado pela primeira vez no seu país de origem, em 13.05.2009;

6.3.        Procedeu à declaração aduaneira do referido veículo, tendo a AT liquidado o ISV no valor de €7.776,76, imposto que foi pago integralmente;

6.4.        Do valor liquidado, €4.358,08, correspondem à componente cilindrada e €6.687,24, à componente ambiental, contudo, relativamente à componente cilindrada, aquele valor foi deduzido pela quantia correspondente a 75% do seu montante, ou seja, €3.268,56, por força da redução resultante do número de anos de uso do veículo;

6.5.        Apesar de ter procedido ao pagamento do imposto liquidado, sem o qual não poderia legalizar o veículo para poder circular em Portugal, considera que a liquidação efetuada do ISV está ferida do vício de ilegalidade, no que respeita ao cálculo da componente ambiental ou CO2, já que a norma jurídica que esteve na base daquela liquidação – artigo 11.º do Código do ISV – viola o artigo 110.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (doravante, “TFUE”);

6.6.        O ISV incide, entre outros factos tributários, sobre a admissão de veículos tributáveis provenientes de outro Estado-Membro da União Europeia (“EU”);

6.7.        De acordo com a redação inicial do artigo 11.º do Código do ISV, no caso da admissão de veículos usados, aplicava-se no cálculo do imposto uma percentagem de redução conforme o número de anos do veículo. Redução essa equiparável à desvalorização comercial média dos veículos usados comercializados no mercado nacional;

6.8.        A desvalorização era crescente, tendo o seu início após o primeiro ano de uso e o seu termo no final do quinto ano de uso. Após o quinto ano, a percentagem de redução mantinha-se inalterada;

6.9.        O legislador nacional, à data da aprovação do ISV, considerou que os veículos usados admitidos em Portugal, provenientes de outros Estados-Membros da UE, apenas se desvalorizavam, relativamente aos veículos novos, após um ano de uso e que a partir do quinto ano não sofriam mais nenhuma desvalorização;

6.10.      Qualquer veículo novo, independentemente das suas características, se desvaloriza logo que é posto em circulação, pelo que, considerar-se que um veículo proveniente de um Estado-Membro só sofria uma desvalorização ao fim de um ano de uso, não respeitava a realidade do mercado automóvel e penalizava injustificadamente os veículos usados importados. O mesmo se diga, relativamente aos veículos com mais de cinco anos de uso, pois é sabido que um veículo com mais de cinco anos continua a desvalorizar-se nos anos seguintes;

6.11.      A desvalorização de um veículo com 6, 7 ou 10 anos de uso é necessariamente superior à de um veículo com 5 anos;

6.12.      Na redação inicial do artigo 11.º, esta redução apenas se aplicava à componente cilindrada dos veículos e não à componente ambiental (CO2);

6.13.      Neste sentido, regista-se um tratamento desigual e discriminatório dado aos veículos usados admitidos em Portugal, relativamente aos veículos usados, matriculados e comercializados em Portugal e que determinava que um veículo usado proveniente de outro Estado-Membro, pagasse mais ISV, relativamente aos veículos idênticos matriculados em Portugal, que se traduzia numa violação clara do disposto no artigo 110.º do TFUE;

6.14.      O legislador português, antecipando a instauração de uma ação de incumprimento pela Comissão Europeia, introduziu uma alteração legislativa, pondo assim termo à ilegalidade que tinha estado na origem do processo pela infração n.º 2009/2296;

6.15.      Com a referida alteração legislativa, ficou resolvida uma parte da ilegalidade, não ficando, contudo, sanada a ilegalidade que dizia respeito à desvalorização dos veículos até ao final do 1.º ano de uso e após os 5 anos de uso;

6.16.      Face à manutenção desta divergência entre os cálculos de ISV de veículos usados matriculados em Portugal e os veículos usados provenientes de outros Estados-Membros, a Comissão Europeia instaurou um novo processo que revestiu a natureza de ação por incumprimento contra a República Portuguesa, que correu termos sob o processo C-200/15;

6.17.      O Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) decidiu que: “[a] República Portuguesa, ao aplicar, para efeitos da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro estado-membro, introduzidos no território de Portugal, um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta uma desvalorização antes de estes atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do art. 11º do TFUE”;

6.18.      Na sequência deste acórdão que declarou o incumprimento pela República Portuguesa do artigo 110.º do TFUE, o legislador nacional introduziu uma nova alteração ao Código do ISV, através da Lei n.º 42/2006, de 27 de dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2017), concretizada através de uma nova redação do artigo 11.º do Código do ISV e da tabela D que integra esse mesmo artigo;

6.19.      O Estado Português respeitou o decidido pelo TJUE no referido acórdão, ao alargar as percentagens de redução ao primeiro ano de uso do veículo, prolongando-a até aos 10 e mais anos de uso;

6.20.      A par desta alteração, foi introduzida uma outra, bem mais gravosa para o cálculo do ISV, já que, com a nova redação, o artigo 11.º do Código do ISV voltou a limitar a aplicação das percentagens de redução apenas à componente cilindrada, excluindo-a da componente ambiental (emissão de CO2);

6.21.      Com esta alteração, o legislador retrocedeu ao ano de 2010 e voltou a pôr em vigor uma norma jurídica, que tinha sido já objeto de um processo instaurado pela Comissão Europeia e que esteve na base da alteração legislativa operada com a Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro (“Lei do Orçamento de Estado para 2011”);

6.22.      A norma atualmente em vigor e que esteve na base da liquidação do imposto pago viola frontalmente o artigo 110.º do TFUE, conforme foi já decidido pelo acórdão acima citado, pois permite que a AT cobre um imposto sobre os veículos importados, com base num valor superior ao valor real do veículo, onerando-os com uma tributação fiscal superior à que é aplicada aos veículos usados similares disponíveis no mercado nacional;

6.23.      Relativamente à componente cilindrada, o ISV foi liquidado pelo valor de €4.358,08 – €3.268,56 (redução de 75% pelo número de anos de uso), enquanto que, na componente ambiental, foi liquidado por €6.687,24, sem qualquer redução, quando deveria ter sido também aplicada a esta componente a redução de 75%, no valor de €5.015,43, baixando dessa forma o respetivo ISV para o valor de €2.761,33;

6.24.      A liquidação do ISV deve ser corrigida, reduzindo-se o valor do ISV a pagar para o valor de €2.761,33 (€7.776,76 – €5.015,43), devendo ser restituído o montante de €5.015,43 pago a mais, acrescido dos juros indemnizatórios devidos nos termos do artigo 43.º da Lei Geral Tributária (“LGT”).

7.            A Requerida, por outro lado, na resposta apresentada sustentou que:

7.1.        Foi apresentada a DAV n.º 2019/..., de 27.02.2020, da Alfândega de Freixieiro, por transmissão eletrónica de dados, para introdução no consumo do veículo, ligeiro de passageiros, da marca ..., modelo ..., usado, provenientes da Alemanha;

7.2.        Para efeitos de aplicação da tabela D prevista no artigo 11.º, n.º 1, do Código do ISV, o veículo insere-se no escalão da tabela de “Mais de 9 a 10 anos”, tendo-lhe sido aplicada a percentagem de redução correspondente, de 75%, conforme resulta da referida tabela. No Quadro E da DAV, atinente às características do veículo, consta, na casa 50, relativa à Emissão de Gases CO2, o valor de 149 g/km;

7.3.        O cálculo do imposto sobre veículos, que consta do Quadro R da DAV, foi efetuado com recurso à tabela A, aplicável aos veículos ligeiros de passageiros, e calculado o ISV atendendo à componente cilindrada e à componente ambiental, nos termos do artigo 7.º do Código do ISV, tendo, igualmente, sido deduzida a percentagem de redução correspondente, conforme o disposto na tabela D constante do artigo 11.º, n.º 1, do Código do ISV, prevista para os veículos usados, em função do número de anos de uso do veículo;

7.4.        A liquidação do imposto, relativa ao veículo identificado na DAV, foi efetuada em 19.02.2020, conforme indicado nos Quadros T e V da declaração, constando desta, igualmente, a identificação do ato de liquidação (n.º 2020/...), bem como a data, montante e termo final do prazo de pagamento (05.03.2020) e a identificação do autor do ato;

7.5.        O artigo 11.º do Código do ISV foi sujeito a várias alterações, tendo procedido ao alargamento das percentagens de redução da tabela D, tendo sido criado o escalão “Até um ano”, a que corresponde uma percentagem de redução de 10%, sendo ainda criados novos escalões a partir dos cinco anos de uso, com percentagens de redução que atingem os 80% para veículos com mais de 10 anos, permitindo estabelecer uma maior correspondência entre a desvalorização comercial média sofrida pelos veículos usados no mercado nacional e o seu nível de tributação, em sede de ISV, que na redação anterior se cifrava no máximo de 52% para veículos com mais de 5 anos de uso;

7.6.        No caso concreto, o imposto foi calculado de acordo com o previsto no artigo 7.º do Código do ISV, tendo sido aplicada uma redução para a componente ambiental nos termos deste artigo, não tendo sido aplicada outra/nova redução à componente ambiental porque tal redução não se encontra prevista no artigo 11.º do Código do ISV, ao contrário do estabelecido para a componente cilindrada, que prevê uma redução em função dos “anos de uso” de acordo com a tabela D;

7.7.        Tratando-se de veículo ligeiro de passageiros, usado, movido a gasóleo, com emissão de gases CO2, conforme indicado na respetiva DAV, os serviços aduaneiros efetuaram o cálculo do imposto devido, por aplicação da tabela A prevista no artigo 7.º, n.º 1, alínea a), recorrendo igualmente à aplicação da redução por anos de uso prevista na tabela D no n.º 1 do artigo 11.º do Código do ISV para a componente cilindrada, ou seja, o veículo foi tributado de acordo com os artigos 7.º, n.º 1, alínea a), e 11.º, n.ºs 1 e 3, do Código do ISV, em vigor;

7.8.        O artigo 11.º, n.º 3, do Código do ISV permite que “sempre que o sujeito passivo entenda que o montante do imposto apurado nos termos do n.º 1 excede o imposto calculado por aplicação da fórmula a seguir indicada, pode requerer ao director da alfândega, mediante o pagamento prévio de taxa a fixar por portaria do membro do governo responsável pela área das finanças, e até ao termo do prazo de pagamento a que se refere o nº 1 do artigo 27º, que a mesma seja aplicada à tributação do veículo, tendo em vista a liquidação definitiva do imposto (…)”, o que não veio a suceder no caso dos autos;

7.9.        Não obstante a alteração ao artigo 11.º do Código do ISV ter surgido após o acórdão proferido no processo n.º C-200/15, Comissão Europeia contra República Portuguesa, do TJUE, este não se pronuncia, em concreto, sobre a matéria em causa nos presentes autos, designadamente, quanto à questão da percentagem de redução de ISV aplicável a veículo usado incidir apenas sobre o elemento específico de tributação (Cilindrada), e não sobre a componente ambiental do ISV, limitando-se aquele a analisar a questão da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro Estado-Membro, introduzidos no território nacional, no sentido de afirmar que um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta a sua desvalorização antes destes atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos, não cumpre as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º do TFUE;

7.10.      Tal opção legislativa, pretendendo imprimir coerência entre a tributação dos veículos novos e veículos usados, não contraria o direito comunitário nem aquela decisão do TJUE, antes visa respeitar as orientações comunitárias em matéria de redução das emissões de CO2, tendo em vista o cumprimento das responsabilidades ambientais assumidas no âmbito do Protocolo de Quioto;

7.11.      A alteração ao artigo 11.º do Código do ISV nos moldes acima mencionados encontra-se, assim, também, em consonância com o disposto no artigo 1.º do mesmo código, que consagra o “Princípio da Equivalência”, nos termos do qual o ISV obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam nos domínios do ambiente, infraestruturas viárias e sinistralidade rodoviária, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária;

7.12.      A matéria em discussão extravasa, pois, a questão da legalidade da liquidação, que se repercute na esfera jurídica do Requerente, na medida em que o que está em causa não se cinge à mera liquidação de um tributo e anulação desse ato, mas a questões mais complexas, que têm na sua génese preocupações de ordem ambiental;

7.13.      As vertentes da justiça fiscal e a da proteção do meio ambiente constituem dois objetivos da prossecução de política fiscal a que se encontra adstrito o Estado Português, que se atingem gerindo o imposto, enquanto instrumento de política fiscal, de forma inversa;

7.14.      O modelo de tributação do ISV resultante da aprovação do Código do ISV pela Lei n.º 22-A/2007, de 29 de junho, foi norteado por preocupações ambientais com respeito pelas orientações emanadas pelas instâncias comunitárias e pelos compromissos assumidos no âmbito do Protocolo de Quioto e, mais tarde, pelo Acordo de Paris;

7.15.      O Protocolo de Quioto, tratado internacional ratificado pelo Estado Português, estabeleceu compromissos muito rígidos para a redução da emissão dos gases que agravam o efeito estufa, considerados, de acordo com a maioria das investigações científicas, como as causas do aquecimento global, passando, por conseguinte, a componente ambiental a ser determinante no cálculo do imposto que incide sobre os veículos novos e usados (estes com emissões elevadas, superiores às dos veículos novos), em obediência ao princípio do poluidor pagador, consagrado no Código do ISV e no TFUE, levando os consumidores a optar por automóveis com menores emissões de dióxido de carbono;

7.16.      O atual modelo de fiscalidade automóvel tem, pois, em vista assegurar a coerência entre a tributação de veículos novos e usados, na medida em que a aquisição de uns e de outros se rege pelos mesmos princípios de justiça fiscal e de respeito pelo meio ambiente;

7.17.      No âmbito da tributação automóvel, relativamente aos elementos sobre os quais assenta tal tributação, existe uma confusão de conceitos, que são, por natureza, distintos, não podendo estabelecer-se uma equiparação entre a componente cilindrada e a componente ambiental, nem, por isso, consequentemente, ver-lhe aplicados os mesmos critérios, até porque no caso da vertente ambiental, as razões que lhe estão subjacentes não coincidem com as que determinam a tributação que atende à cilindrada do veículo;

7.18.      Não pode deixar de se referir o estabelecido no artigo 191.º do TFUE, o qual tendo surgido depois do artigo 90.º do Tratado que instituiu a Comunidade Europeia (anterior artigo 110.º do TFUE), exige que se proceda a uma interpretação atualista, no que concerne ao enquadramento da questão sub judice, que deve atender aos elementos sistemático e teleológico, porquanto naquele dispositivo, afirma-se, expressamente, no n.º 1, que a política da União, no domínio do ambiente, contribuirá para a prossecução, entre outros, da preservação, da proteção e a melhoria da qualidade do ambiente, não podendo o artigo 110.º do TFUE ser interpretado nos termos defendidos pelo Requerente;

7.19.      A interpretação do artigo 110.º do TFUE deve ser efetuada à luz do disposto no artigo 191.º do mesmo Tratado, sob pena de conflitualidade e desarmonia entre as duas normas, a não ser que o TJUE, em sede de interpretação, venha defender a existência de tal violação e que a norma do artigo 110.º do TFUE tem valor superior ao previsto no artigo 191.º quanto à proteção e a melhoria da qualidade ambiental;

7.20.      Face ao previsto no artigo 11.º, n.º 1, do Código do ISV, constata-se que o legislador teve em consideração que a componente ambiental representa o custo do impacto ambiental, em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 3, do Código do ISV, também suportada pelos veículos novos, devendo a mesma ser entendida como um montante que os sujeitos passivos pagam ao Estado, destinado a compensar os efeitos nefastos que o veículo automóvel causa ao ambiente, sendo que esse montante é progressivo em função das emissões de dióxido de carbono;

7.21.      Quanto maior for o nível de emissões de dióxido de carbono do veículo, maior será o montante de imposto relativo à componente ambiental, no estrito cumprimento do princípio do poluidor pagador, como já se aludiu, estando esta filosofia do imposto em conformidade com o referido princípio da equivalência, consagrado no artigo 1.º do Código do ISV;

7.22.      Em nome da unidade e da coerência do modelo de tributação automóvel vigente em Portugal, a não aplicação da totalidade da componente ambiental aos veículos usados violaria os princípios supra referidos, tornando-se fonte de graves injustiças, já que beneficiaria claramente os veículos usados em detrimento dos novos, sem que, para tal, se encontrem razões válidas;

7.23.      Destinando-se a componente ambiental a compensar os efeitos nefastos de qualquer redução em função da depreciação comercial ou dos anos de uso do automóvel, dado que o potencial poluidor do automóvel não diminui com a sua idade, muito pelo contrário, agrava-se, como é do conhecimento comum, a mesma não deve ser objeto de qualquer redução pois representa o “custo de impacte ambiental”, sendo o seu objetivo orientar a escolha dos consumidores para uma maior seletividade na compra dos automóveis, em função do seu grau poluidor;

7.24.      No que concerne aos automóveis usados, não existem dúvidas que, quanto mais antigos, mais poluentes se tornam, e maiores serão as consequências nefastas para o meio ambiente, pretendendo-se orientar os consumidores na escolha de veículos com menores emissões de dióxido de carbono;

7.25.      A interpretação do disposto no artigo 110.º do TFUE não poderá deixar de ter em consideração os objetivos ambientais acima referidos, sob pena de se gerarem incoerências insustentáveis entre a política fiscal e a política ambiental;

7.26.      O pagamento da componente ambiental na totalidade não tem, pois, em vista restringir a entrada de veículos usados em Portugal, mas tão somente selecionar essa entrada, mediante a aplicação de critérios exclusivamente ambientais, não estando em causa a proteção da produção nacional, mas a proteção do ambiente, património do mundo e do qual depende a sobrevivência da espécie humana;

7.27.      O n.º 2 do artigo 191.º do TFUE, enfatiza o princípio do poluidor pagador ao postular que a “política da União no domínio do ambiente terá por objetivo atingir um nível de proteção elevado, tendo em conta a diversidade das situações existentes nas diferentes regiões da União. Basear-se-á nos princípios da precaução e da ação preventiva, da correção, prioritariamente na fonte, dos danos causados ao ambiente e do poluidor-pagador”;

7.28.      O modelo de fiscalidade automóvel vigente em Portugal está em sintonia com o espírito deste artigo, na medida em que a tributação das emissões de dióxido de carbono nos veículos novos e usados pode entender-se como uma ação preventiva, destinada a evitar a degradação do ambiente, sujeitando os consumidores ao pagamento de um montante de imposto que depende do grau poluidor do automóvel, no estrito cumprimento do princípio do poluidor pagador;

7.29.      Da interpretação do artigo 110.º do TFUE, em conjugação com a que resulta do artigo 191.º do mesmo Tratado, claramente se conclui que o modelo de tributação automóvel português, ao fazer incidir sobre os veículos ligeiros de passageiros, novos e usados, a componente ambiental, não pretende restringir a entrada de veículos em território nacional para proteger a produção nacional, mas, tão só, como se referiu, direcionar as escolhas dos consumidores para a aquisição de veículos com menores emissões de dióxido de carbono, isto é, mais “amigos do ambiente” tendo por fim último a proteção do ambiente, no estrito cumprimento dos princípios consagrados no artigo 191.º do TFUE;

7.30.      A aplicação do disposto no artigo 11.º do Código do ISV não obsta à admissão de veículos usados em território nacional, nem tampouco visa impedir a realização de negócios jurídicos de compra e venda de veículos automóveis pois são processadas, diariamente, inúmeras declarações aduaneiras de veículos, de regularização fiscal de veículos em território nacional, provenientes de outros Estados-Membros;

7.31.      De acordo com os dados atinentes ao número de matrículas atribuídas no período de 2010 a 2018, a veículos da categoria ligeiros, novos e importados usados, constata-se que, de acordo com os cálculos apresentados para 2018, a componente de usados ligeiros de passageiros é de 25% e o seu crescimento (relativo a 2017) foi de 14%, contra 2% apenas para os novos;

7.32.      Não existe qualquer obstáculo ao funcionamento do mercado interno, na medida em que, entre 2010 e 2018, o número de veículos usados matriculados em Portugal aumentou 219%, tendo, especificamente, entre 2017 e 2018, tido um crescimento de 13%, muito acima da taxa de crescimento da venda de veículos novos, que é de, apenas, 3%;

7.33.      O mercado dos veículos usados está a crescer 14%, enquanto que no mercado dos veículos novos se verifica uma estagnação, não podendo, pois, por esta via, afirmar-se que existe uma “imposição interna que proteja indiretamente outras produções”, pois, como se constata, face aos dados estatísticos, que não deixam dúvidas, não existe tal discriminação, não existindo, consequentemente, a invocada violação do artigo 110.º do TFUE;

7.34.      Procurou-se, como se viu, aplicar o princípio da equivalência consagrado no artigo 1.º do Código do ISV, bem como o princípio do poluidor pagador, já que, se o regime nacional atribuísse um desconto comercial à componente ambiental do ISV para veículos usados adquiridos noutro Estado-Membro da União Europeia, estaria a subverter por completo aquele princípio e a atribuir um alívio fiscal à admissão e importação de veículos usados mais poluentes;

7.35.      A componente ambiental do ISV existe para compensar um conjunto vasto de emissões poluentes dos veículos, incluindo o dióxido de carbono (CO2), o monóxido de carbono (CO), o óxido de azoto (NOx), hidrocarbonetos (HC), partículas (PM), hidrofluorocarboneto 134ª (HFC-134ª), metano (CH4), e protóxido de azoto (N2O).

7.36.      Não se trata de criar nenhum obstáculo ao regular funcionamento do mercado único, mas sim de respeitar os compromissos nacionais e internacionais assumidos pelo Estado Português em matéria de defesa do ambiente, bem como pelos Estados-Membros, no Acordo de Paris sobre as alterações climáticas, designadamente, a neutralidade carbónica em 2050;

7.37.      Atribuir a mesma percentagem à componente ambiental que é aplicada à componente cilindrada resulta num verdadeiro contrassenso, atenta a natureza diferente daquelas componentes, equivalendo a defender que, não obstante os veículos sejam mais velhos e emitam mais agentes poluentes, devem ter uma redução, que até é progressiva, em função dos anos, e que, consequentemente, apesar de mais poluentes, pagam menos imposto;

7.38.      Ainda que se considere que o sistema de tributação em vigor não é perfeito, aplicar a mesma percentagem de redução resulta claramente numa subversão da tributação da componente ambiental, resultando na atribuição de um benefício que incentiva os consumidores a utilizarem veículos mais poluentes;

7.39.      Ao atribuir, em resultado de tal aplicação, um desagravamento, que, no caso, redunda na atribuição de um verdadeiro benefício fiscal, tal interpretação não pode deixar de se considerar inconstitucional face ao disposto no artigo 103.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (“CRP”);

7.40.      Estando em causa matéria de elevada relevância social, e bem assim, a existência de disposições legais e objetivos de defesa ambiental definidos ao nível da União Europeia, internacional e nacional, não deve ser aplicada à componente ambiental a mesma redução que é aplicada à componente cilindrada no âmbito da tributação automóvel, concretamente no que se refere ao cálculo do imposto;

7.41.      Não se pode olvidar, igualmente, o estabelecido no artigo 66.º da CRP relativo ao Ambiente e Qualidade de Vida que consagra o direito de todos a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender;

7.42.      E, neste âmbito, a CRP impõe ao Estado, conforme resulta do artigo 66.º, n.º 2, assegurar o direito ao ambiente, a obrigação de prevenir e controlar a poluição e seus efeitos, promover a integração de objetivos ambientais nas várias políticas de âmbito sectorial, bem como assegurar que a política fiscal compatibilize desenvolvimento com proteção do ambiente e qualidade de vida (alíneas a), f) e h));

7.43.      O artigo 66.º, n.º 2, e, especificamente, a alínea h), da CRP, apontam para um direito fiscal do ambiente que utilize os impostos, taxas, benefícios fiscais como instrumentos formais que propiciem a proteção do ambiente;

7.44.      Tendo o artigo 11.º do Código do ISV sido alterado de acordo com o disposto na CRP em matéria ambiental, não pode ser afastado, ainda que com fundamento na aplicação, no direito interno, por via do artigo 8.º, n.º 4, da CRP, do artigo 110.º do TFUE, configurando a aplicação da interpretação, pugnada pelo Requerente, uma desaplicação do direito internacional - do artigo 191.º do TFUE, do Protocolo de Quioto e do Acordo de Paris - que vincula o Estado Português, por força do artigo 8.º da CRP, bem como uma violação do disposto no n.º 1, e alíneas a), f) e h), do n.º 2, do artigo 66.º e do n.º 2 do artigo 103.º da CRP;

7.45.      Na elaboração do Código do ISV foram considerados os referidos princípios constitucionais, estando subjacentes, designadamente, nos artigos 1.º e 11.º do Código do ISV, nos termos explanados, não podendo afastar-se a aplicação deste artigo, quanto à componente ambiental, sem mais, impondo-se que se afira a sua conformidade com os supra identificados comandos constitucionais, o que se requer;

7.46.      A liquidação de ISV, que aplicou o artigo 11.º do Código do ISV, foi efetuada em conformidade com a lei nacional e o direito comunitário, cumprindo, designadamente, o disposto nos artigos 110.º e 191.º do TFUE e nos artigos 66.º e 103.º da CRP. Mas, ainda que assim não se entenda, sempre se dirá que a interpretação do artigo 11.º do Código do ISV pugnada pelo Requerente sempre terá de se reputar de inconstitucional.

7.47.      No que concerne ao pedido de pagamento de juros indemnizatórios, diga-se que, ainda que venha a considerar-se que o pedido arbitral deva proceder, o que só por dever de raciocínio se concebe, não poderá, todavia, aquele proceder.

7.48.      O direito a juros indemnizatórios, consagrado no artigo 43.º da LGT, pressupõe que se apure a existência de erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida em montante superior ao legalmente devido. E, no caso concreto, não se verifica a existência de qualquer erro que possa ser imputável à AT.

7.49.      A liquidação em causa nos presentes autos decorreu exclusivamente da aplicação da lei em vigor, tendo aquela sido efetuada nos termos das normas aplicáveis, previstas no Código do ISV, que determinam a exigibilidade e, consequente, liquidação do imposto, o que nem sequer é posto em causa pelo Requerente.

7.50.      Estando a AT e os seus órgãos, vinculados, na sua atuação, ao princípio da legalidade, a AT agiu, sempre, em obediência àquele e em conformidade com o direito em vigor, não podendo ter agido de modo diverso, não devendo, consequentemente, ser-lhe atribuído qualquer erro que lhe seja imputável, nos termos do artigo 43.º da LGT.

MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

8.            A Requerente introduziu em Portugal o veículo automóvel de passageiros, usado, marca ..., movido a gasóleo, destinado ao seu uso particular;

9.            Para o efeito, foi apresentada a DAV n.º 2019/..., de 27.02.2020, da Alfândega de Freixieiro, por transmissão eletrónica de dados;

10.          O veículo tinha sido matriculado pela primeira vez no seu país de origem, Alemanha, em 13.05.2009, e tinha, antes da sua entrada em território nacional, percorrido 259.285 Km;

11.          Procedeu à declaração aduaneira do referido veículo, tendo a AT liquidado o ISV pelo valor de €7.776,76, imposto que foi pago integralmente;

12.          Do valor liquidado, €4.358,08, correspondem à componente cilindrada e €6.687,24, à componente ambiental;

13.          Relativamente à componente cilindrada, aquele valor foi deduzido pela quantia correspondente a 75% do seu montante, ou seja, €3.268,56, por força da redução resultante do número de anos de uso do veículo;

14.          O imposto liquidado foi pago.

A.2. Factos dados como não provados

15.          Não existem factos relevantes para a decisão que não tenham sido considerados provados.

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

16.          Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT). 

17.          Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

18.          Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT, a prova documental e o Processo Administrativo juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

19.          Não se deram como provadas nem não provadas as alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

DO DIREITO

20.          O regime do ISV encontra-se previsto, tal como referido, no Código do ISV.

21.          O artigo 11.º do Código do ISV, à data dos factos, dispunha que:

“1 - O imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados membros da União Europeia é objeto de liquidação provisória nos termos das regras do presente Código, com exceção da componente cilindrada à qual são aplicadas as percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respetiva, as quais estão associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional:

TABELA D

Tempo de uso   Percentagem de redução

Até 1 ano            10

Mais de 1 a 2 anos          20

Mais de 2 a 3 anos          28

Mais de 3 a 4 anos          35

Mais de 4 a 5 anos          43

Mais de 5 a 6 anos          52

Mais de 6 a 7 anos          60

Mais de 7 a 8 anos          65

Mais de 8 a 9 anos          70

Mais de 9 a 10 anos        75

Mais de 10 anos               80

2 - Para efeitos de aplicação do número anterior, entende-se por «tempo de uso» o período decorrido desde a atribuição da primeira matrícula e respectivos documentos pela entidade competente até ao termo do prazo para apresentação da declaração aduaneira de veículos.

3 - Sem prejuízo da liquidação provisória efetuada, sempre que o sujeito passivo entenda que o montante do imposto apurado dos termos do n.o 1 excede o imposto calculado por aplicação da fórmula a seguir indicada, pode requerer ao diretor da alfândega, mediante o pagamento prévio de taxa a fixar por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, e até ao termo do prazo de pagamento a que se refere o n.o 1 do artigo 27.º, que a mesma seja aplicada à tributação do veículo, tendo em vista a liquidação definitiva do imposto:

ISV=((V/VR) x Y) + C

em que:

 

ISV representa o montante do imposto a pagar;

 

V representa o valor comercial do veículo, tomando por base o valor médio de referência determinado em função da marca, do modelo e respetivo equipamento de série, da idade, do modo de propulsão e da quilometragem média de referência, constante das publicações especializadas do setor, apresentadas pelo interessado;

 

VR é o preço de venda ao público de veículo idêntico no ano da primeira matrícula do veículo a tributar, tal como declarado pelo interessado, considerando-se como tal o veículo da mesma marca, modelo e sistema de propulsão, ou, no caso de este não constar de informação disponível, de veículo similar, introduzido no mercado nacional, no mesmo ano em que o veículo a introduzir no consumo foi matriculado pela primeira vez;

 

Y representa o montante do imposto calculado com base na componente cilindrada, tendo em consideração a tabela e a taxa aplicável ao veículo, vigente no momento da exigibilidade do imposto;

 

C é o «custo de impacte ambiental», aplicável a veículos sujeitos à tabela A, vigente no momento da exigibilidade do imposto, e cujo valor corresponde à componente ambiental da referida tabela.

4 - Na falta de pedido de avaliação formulado nos termos do número anterior presume--se que o sujeito passivo aceita como definitiva a liquidação do imposto feita por aplicação da tabela constante do n.º 1”.

 

22.          O artigo 110.º do TFUE dispõe que:

"Nenhum Estado-Membro fará incidir, direta ou indiretamente, sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, direta ou indiretamente, sobre produtos nacionais similares.

Além disso, nenhum Estado-Membro fará incidir sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas de modo a proteger indiretamente outras produções”.

23.          A redação do artigo 11.º, n.º 1, do Código do ISV foi introduzida pela Lei n.º 42/2016, de 27 de dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2017), e surgiu no contexto do Acórdão do TJUE (Sétima Secção) de 16 de junho de 2016, emitido no processo C-200/15 relativo à ação de incumprimento interposta pela Comissão Europeia contra a República Portuguesa, na qual se declarou a desconformidade da anterior redação desta disposição com o artigo 110.º do TFUE, nos seguintes termos:

"A República Portuguesa, ao aplicar, para efeitos da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro estado-membro, introduzidos no território de Portugal, um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta uma desvalorização antes de estes atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do art. 11º do TFUE (…)Este artigo (110º do TFUE) é violado sempre que a imposição que incide sobre o artigo importado e a que incide sobre o produto nacional similar são calculados de forma diferente e segundo modalidades diferentes que conduzam, ainda que apenas em certos casos, a uma imposição superior do produto importado (acórdão de 22 de fevereiro de 2001, Gomes Valente, C-393/98, EU: C:2001:109, nº 21; de 19 de setembro de 2002, Tulliasiames e Siilin, C-101/00, EU: C:2002:505, nº  53; e de 20 de setembro de 2007, Comissão/Grécia, C-74/06, EU:C:2007:534, nº 25)” (nº 24 dos fundamentos do acórdão). Assim, a cobrança, por um Estado-Membro, de um imposto sobre os veículos usados provenientes de outro Estado-membro é contrária ao artigo 110º. do TFUE, quando o montante do imposto, calculado sem tomar em conta a depreciação real do veículo, exceda o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional (v., designadamente, acórdãos de 9 de março de 1995, Nunes Tadeu, C-345/93, EU:C:1995:66, n.º 20, e de 22 de fevereiro de 2001, GomesValente, C-393/98, EU:C:2001:109, n.º 23)” (nº 25 dos fundamentos do acórdão).“ (…) Mais precisamente, um Estado-Membro não pode cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares, disponíveis no mercado nacional. O valor do veículo usado importado utilizado pela Administração como base de tributação deve refletir fielmente o valor de um veículo similar já registado no território nacional (v. acórdão de 20 de setembro de 2007, Comissão/Grécia, C-74/06, EU:C:2007:534, n.ºs 27 e 28 (…) ".

24.          Sucede, porém, que a atual redação do artigo 11.º do Código do ISV mantém uma diferenciação com os valores do ISV aplicáveis aos veículos nacionais, e que constam do artigo 7.º do Código do ISV e tabelas anexas, dado que o legislador, em conformidade com o acima referido acórdão do TJUE, alargou as percentagens de redução ao primeiro ano de uso do veículo, prolongando-a até aos 10 e mais anos de uso, mas introduziu uma outra alteração diferenciadora em relação aos veículos com origem noutros Estados-Membros, com impacto no cálculo do ISV, uma vez que a atual redação do artigo 11.º Código do ISV limita a aplicação das percentagens de redução apenas à componente cilindrada, excluindo-a da componente ambiental (emissão de CO2), ao contrário do que sucede com os veículos usados já matriculados no território nacional.

25.          Desta feita, a jurisprudência do CAAD tem decidido uniformemente que a atual redação do artigo 11.º do Código do ISV viola o disposto no artigo 110.º do TFUE (cfr. as decisões dos processos 572/2018-T, 346/2019-T, 348/2019-T, 350/2019-T, 459/2019-T, 660/2019-T ou 293/2020-T, este último que seguiremos de perto).

26.          As normas de Direito da União Europeia, no caso o artigo 110.º do TFUE, têm efeito direto e primado sobre o Direito nacional, não podendo assim, sem mais, ser contrariadas por legislação doméstica.

27.          Entendemos, contudo, que existe uma violação do artigo 110.° do TFUE sempre que o montante de imposto que incide sobre um veículo usado proveniente de outro Estado-Membro exceda o montante residual do referido imposto incorporado no valor dos veículos usados similares já matriculados no território nacional.

28.          Por outro lado, quanto à justificação apresentada pela Requerida que a diferenciação na tributação resulta de razões ambientes, a mesma não pode proceder. Como se escreveu na Decisão no processo 660/2019-T "decorre da jurisprudência do TJUE e da própria sistemática do TFUE que, ao contrário do que indica a AT, a norma do artigo 110.º do TFUE é imperativa e sobrepõe-se às normas de cariz ambiental do artigo 191.º do TFUE. Assim, ainda que um EM utilize componente ambientais na determinação do cálculo do regime de tributação de veículos, nunca poderá, com base nessa componente, agravar a tributação de veículos usados provenientes de outros EM face aos veículos usados já matriculados em território nacional". Tal "equivale a dizer que não decorre da legislação aplicável que as regras e princípios ambientais constantes do artigo 191.º do TFUE e artigo 66.º da CRP prevaleçam sobre a regra do artigo 110.º do TFUE que é imperativa para os EM".

29.          É, assim, ilegal a liquidação de ISV impugnada, tendo razão o Requerente nesta questão.

30.          Por outro lado, veio ainda a Requerida alegar que a desaplicação do artigo 11.º do Código do ISV resulta numa violação do princípio da legalidade consagrado no artigo 266.º da CRP e do disposto nos artigos 20.º, n.ºs 1 e 4, 66.º, e 266.º, todos da CRP, i.e., violação dos princípios do Estado de Direito ambiental e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva.

31.          Em todo o caso, nos termos do artigo 8.º, n.º 4, da CRP, "as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático".

32.          Desta forma, não é assim possível aos tribunais, salvo em caso de violação dos princípios fundamentais do Estado de direito democrático, recusar a aplicação de normas de Direito da União Europeia, invocando disposições de Direito Interno Português.

JUROS INDEMNIZATÓRIOS

33.          O Requerente solicita ainda o pagamento de juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43.º da LGT, resultando do seu número 1 que "quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido".

34.          Podemos entender ainda que, como decorre do artigo 24.º, n.º 5, do RJAT, o direito a juros indemnizatórios pode ser reconhecido em processo arbitral. Ter-se-á, no entanto, de determinar se houve ou não erro imputável aos serviços.

35.          Como já se referiu, a AT tinha pleno conhecimento da jurisprudência existente no sentido da interpretação da incompatibilidade do artigo 11.º do Código do ISV com o artigo 110.º do TFUE.

36.          Estamos assim, neste caso, perante uma atuação por parte da AT que se traduz num “erro imputável aos serviços”, conforme consta do artigo 43.º da LGT.

37.          Atendendo ao estabelecido no artigo 61.º do CPPT e tendo sido verificada a existência de erro imputável aos serviços da AT, do qual resultou pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido (cfr. artigo 43.º, n.º 1, da LGT), entendemos que o Requerente tem direito a juros indemnizatórios à taxa legal, que serão contados desde a data do pagamento do imposto, até ao integral reembolso dessa mesma quantia.

DA DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

a)            Julgar procedente o pedido de anulação parcial da liquidação de ISV resultante da DAV n.º 2019/..., de 27.02.2020, da Alfândega de Freixieiro, anulando-se parcialmente a referida liquidação no valor de €5.015,43;

b)           Julgar procedente o pedido de reembolso do ISV, condenando-se a Requerida a pagar ao Requerente a quantia de €5.015,43, acrescida dos correspondentes juros indemnizatórios desde o pagamento indevido até ao efetivo reembolso.

VALOR DO PROCESSO

O valor da causa é fixado em €5.015,43 (cinco mil e quinze euros e quarenta e três cêntimos), nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária. 

CUSTAS

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €612,00, nos termos da Tabela I do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida.  

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 8 de março de 2021.

 

O Árbitro,

Leonardo Marques dos Santos