Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 157/2020-T
Data da decisão: 2020-10-26  IRS  
Valor do pedido: € 160.682,55
Tema: IRS - Mais-valias. Incidência. Prédio rústico. Terreno para construção. Regime transitório.
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DECISÃO ARBITRAL

 

                Os árbitros Cons. Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Dra. Maria Alexandra Mesquita e Dr. Paulo Ferreira Alves (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 06-07-2020, acordam no seguinte:

               

                1. Relatório

 

A..., contribuinte fiscal n.º..., residente na Rua ..., n.º..., ...-... Évora (doravante apenas “Requerente”), veio, ao abrigo do disposto no Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”), apresentar pedido de pronúncia arbitral tendo em vista declaração de ilegalidade e anulação da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) relativa a 2012 com o n.º 2014..., de 25 de Janeiro de 2014, e da correspondente liquidação de juros compensatórios, das quais resultou um valor total a pagar de € 160.682,55, bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2014..., apresentada contra aquela liquidação, proferida pelo Diretor de Finanças de Évora em 20 de Dezembro de 2017 e, bem assim, da decisão de indeferimento do recurso hierárquico n.º ...2018... proferida pela Direção de Serviços do IRS em 2 de Dezembro de 2019.

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “AT” ou simplesmente “Administração Tributária”).

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 10-03-2020.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 06-07-2020, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados das alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 05-08-2020 (considerando a suspensão de prazos determinada pelo artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março).

A AT apresentou resposta, defendendo a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.

Por despacho de 22-10-2020, foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e alegações.

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT e é competente.

As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

 

2. Matéria de facto

 

2.1. Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

 

A)           Em 1977, a Requerente e o seu marido, B..., com quem era casada no regime da comunhão geral de bens, adquiriam, por sucessão hereditária de C..., o prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo..., ..., da freguesia da ..., concelho de Évora, designado ... e com a área de 4.6250 hectares, equivalente a 46.250m² (adiante simplesmente o “prédio” ou “...”) (Documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

B)           Por sucessão por óbito do seu marido (com o qual contraíra matrimónio sob o regime da comunhão geral de bens), ocorrida em 16-04-1995, a requerente viria, na sua qualidade de herdeira legitimária, e concorrendo à herança juntamente com duas filhas, a adquirir mais 1/6 daquele bem imóvel (como se infere da habilitação de herdeiros que consta do documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido), passando assim a deter 4/6 (equivalentes a 2/3) daquele prédio;

C)           Com a aprovação pela Assembleia Municipal de Évora, em 22 de janeiro de 1999 e 29 de Outubro de 1999, do Plano de Urbanização de Évora (3.ª revisão) (“PUE”), cujo Regulamento e plantas foram publicados em anexo à Resolução do Conselho de Ministros n.º 13/2000, de 24 de Fevereiro de 2000, o mesmo passou a abranger a área onde se situava o prédio de ... por ser considerada estratégica e prioritária para o desenvolvimento da cidade (artigos 80.º a 90.º do Regulamento do PUE de Évora publicado no Diário da República, I Série-B, n.º 74, de 28 de março de 2000).

D)           O prédio, que até então revestia natureza rústica para efeitos fiscais, passou a ser formalmente enquadrado na categoria urbana;

E)            Em virtude dessa circunstância, a Requerente, enquanto cabeça-de-casal da herança aberta por óbito do seu marido, B..., entregou aos serviços da administração tributária, em 11 de Dezembro de 2000, a declaração Modelo 129 para inscrição do prédio na matriz predial urbana (Documento n.º 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

F)            O prédio foi, então, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... da freguesia da ..., concelho de Évora, tendo sido feita menção expressa de que se tratava do prédio antes inscrito sob o artigo ..., ..., da mesma freguesia e do mesmo concelho (cf. Doc. n.º 3).

G)           Com a extinção da freguesia da ..., a inscrição matricial do referido prédio foi alterada para o artigo ... da freguesia de ..., concelho de Évora;

H)           Sob proposta da Câmara Municipal de Évora, a Assembleia Municipal, em sessão ordinária realizada a 11 de Maio de 2001, deliberou, por maioria, declarar a utilidade pública, com caráter de urgência, da expropriação dos terrenos necessários à construção da Variante ..., ligação entre a Variante à ... (...) e as ..., bem como os terrenos circundantes destinados à execução de edificações (Acta da reunião disponível para consulta em http://www... );

I)             Em reunião ordinária que teve lugar a 28 de Setembro de 2002, a Assembleia Municipal de Évora aprovou, por maioria, a proposta da Câmara Municipal de Évora de alteração da referida declaração de utilidade pública com vista à expropriação dos terrenos necessários à construção das ligações viárias, abdicando da expropriação dos terrenos necessários à construção da faixa adjacente à via em si, para edificações, e mantendo apenas a expropriação dos terrenos necessários à construção da via (Acta da reunião disponível para consulta em http://www...);

J)            Entre os terrenos a expropriar, ainda que apenas em parte, para a construção das referidas infraestruturas viárias no concelho de Évora estava o ...;

K)           A expropriação, por utilidade pública, de uma área do ... correspondente a 11.142m² (equivalente a 11.420 hectares) efectivamente ocorreu;

L)            Concretizando a sua intenção, o Município de Évora construiu uma via pública a atravessar o prédio de ..., que, assim, foi cortado em dois;

M)          A separação física do prédio de ... em dois por força da construção da via pública levou a que fossem desanexados do mesmo, os prédios descritos na Conservatória do Registo Predial de Évora sob os n.ºs ... e ..., com as áreas de 10.749m² e 22.739m², respectivamente (Documento n.º 4 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

N)           Prédios esses que, na sequência da entrega das declarações Modelo 1 de IMI pela cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de B..., foram inscritos na matriz predial urbana sob os artigos ... e ... da freguesia de ..., concelho de Évora (Documentos n.ºs 5 e 6 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);

O)           Por escritura pública outorgada em 10 de Abril de 2008, as únicas herdeiras de B..., a ora Requerente, enquanto cônjuge, e suas duas filhas, procederam à partilha dos bens da herança (Documento n.º 9 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

P)           Os dois prédios urbanos acima descritos que foram destacados do ... e que à data da partilha estavam inscritos na matriz predial sob os artigos ... e ... da freguesia de..., concelho de Évora, com os valores patrimoniais de € 898.990,00 e € 68.220,00, nesta ordem, foram adjudicados da seguinte forma:

(i) Na proporção de 5/6 para a ora Requerente;

(ii) Na proporção de 1/6 para a filha da Requerente, D...;

 

Q)           Por escritura pública de compra e venda celebrada no dia 19 de Julho de 2012, a ora Requerente e sua filha, D..., enquanto únicas proprietárias, venderam à E..., Lda., contribuinte fiscal n.º..., pelo preço total de € 1.281.175,00, o prédio urbano supra identificado com a área de 10.749m² que se encontrava inscrito na matriz sob o artigo ... da freguesia de ..., concelho de Évora (Documento n.º 10 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

R)           No dia 31 de Maio de 2013, a Requerente entregou a declaração anual de rendimentos Modelo 3 de IRS relativa a 2012 acompanhada dos anexos G e G1 para declarar os rendimentos obtidos neste ano com a venda de 5/6 do supra identificado prédio então inscrito na matriz sob o artigo ...;

S)            No anexo G (mais-valias e outros incrementos patrimoniais) a Requerente declarou os rendimentos correspondentes às percentagens do prédio adquiridas em 1995 em virtude do óbito do seu cônjuge (1/6) e em 2008 por partilha da herança deste último (1/6), declarando que havia adquirido cada uma daquelas quotas partes em março de 1995 e Dezembro de 2008, pelos valores de € 18.552,79 e € 149.831,67, respetivamente, e mencionando ainda que incorreu em despesas e encargos relativos à alienação e/ou aquisição dos 17% adquiridos em 2008 no montante de € 20.811,51;

T)            No anexo G1 entregue juntamente com aquela declaração foi mencionada como excluída de tributação a alienação pelo valor de € 640.587,51 de parte do mesmo imóvel adquirida em 02-01-1978 pelo montante de € 173,78;

U)           Em função da entrega da declaração mencionada no ponto 15 foi efectuada em nome da requerente em 26-06-2013 a liquidação de IRS no 2013..., no âmbito da qual foi apurado o montante de imposto a pagar de € 45.225,43;

V)           Em 02-09-2013, a Requerente pagou a quantia liquidada (documento n.º 11 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

W)          Entretanto, ainda em 2013 foi instaurado pelo Serviço de Finanças de Évora um procedimento interno para gestão de divergências detetadas na declaração Modelo 3 de IRS relativa a 2012 entregue pela Requerente no que tocava à alienação do imóvel;

X)           No âmbito desse procedimento, a Requerente foi notificada pelo Serviço de Finanças do ofício n.º..., de 18 de Outubro de 2013, que consta do documento n.º 12 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, em que se refere, além do mais o seguinte:

“Da análise efetuada à declaração de IRS, Modelo 3, do ano de 2012, com a identificação ..., constatou-se a existência da seguinte incorreção:  

Vão ser retiradas as despesas e encargos declaradas no anexo G, uma vez que não foram confirmadas. O prédio alienado foi adquirido como prédio urbano em Dezembro de 2000 (data da inscrição na matriz). 

Deste modo, fica V. Ex.ª notificado da intenção de se efetuarem as seguintes correções aos valores inscritos na referida declaração modelo 3:

 

Caso concorde, poderá, no mesmo prazo, apresentar declaração, de substituição, beneficiando da redução de coima prevista no art 29.º do RGIT. A correção oficiosa implica a instauração de processo de contra ordenação.

Mais se informa que, caso pretenda exercer o direito de audição prévia a que se refere o artigo 60º da Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro, poderá apresentar as suas alegações no prazo de 10 dias. junto do Serviço de Finanças de Évora, localizado na ..., nº ..., ...-... Évora.

 

Y)            Por intermédio do ofício do Serviço de Finanças de Évora n.º ..., de 20 de Janeiro  de 2014, a Requerente foi notificada que, no âmbito daquele procedimento interno de controlo, fora decidido admitir as despesas declaradas no anexo G apenas no montante de € 10.973,58, que correspondia ao IMT pago em 2008 e 2011 (Documento n.º 13 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

Z)            No ofício referido na alínea anterior refere-se ainda  seguinte:

Assim e tendo em atenção o determinado no artº. 46º do CIRS, e a interpretação da circular 16 de 14/09/1992 da DSIRS, e ainda tendo por base a data da inscrição do lote de terreno para construção urbana como prédio novo em 11.12.2000, na matriz predial da freguesia da ..., concelho de Évora sob o artigo ...º, o qual deu origem aos artigo ..., da freguesia de ..., e que por sua vez deu origem aos artigos ...ºe  ...º, da freguesia da mesma freguesia, não -poderá ser considerada aquisição do mesmo reportada à data da escritura de partilhas em 1977/e consequentemente o afastamento de tributação, uma vez que a realidade do prédio alienado é diferente da realidade do prédio que foi adquirido.

(...)

Nos valores para efeitos de englobamento da liquidação de IRS do ano de 2012, relativamente à contribuinte A..., para determinação do valor de aquisição, teremos que considerar dois momentos, ou seja a data em que o lote de terreno foi inscrito como prédio novo (Dezembro de 2000), relativamente a 4/6 do prédio inscrito sob o artigo  ... da freguesia da ... (Extinta), com o valor patrimonial de € 111.316,72, calculando-se o valor de acordo com a área correspondente ao artigo alienado e identificado pelo nº. ... da freguesia da ... (Extinta), e Abril de 2008, data da aquisição de 1/6 através da escritura de partilha lavrada em 10/04/2008. resultando assim os seguintes valores:

 

AA)        Em consequência deste procedimento foi elaborada em 02-01-2014, em nome da ora Requerente, uma declaração oficiosa modelo 3 de IRS concernente ao ano de 2012, junto à qual já não constava qualquer anexo G1 e em que do quadro 4 do anexo G constava agora a alienação de uma quota de 83,33% do prédio então inscrito sob o artigo ... da freguesia de ..., concelho de Évora pelo montante de € 1.067.645,80, constando ainda que aquela quota do referido prédio havia sido adquirida em Dezembro de 2000 pelo valor de € 92.763,94;

BB)         Em função da elaboração da declaração oficiosa mencionada no ponto 21 foi efetuada em nome da ora requerente em 11-01-2014 a liquidação de IRS no 2014..., no âmbito da qual foi apurado o montante de imposto a pagar de € 220.398,88 a qual acrescia a quantia de € 4.146,57 a título de juros compensatórios, o que perfez o montante total a pagar de € 224.545,55 (documento n.º 14 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

CC)         Entretanto, em 20-01-2014 foi elaborada, em nome da ora requerente, nova declaração oficiosa modelo 3 de IRS relativa ao ano de 2012, em anexo à qual também não constava qualquer anexo G1 e em que constava o seguinte:

•             Dos campos 401 e 402 do quadro 4 do anexo G junto a esta declaração constava a alienação de duas quotas do prédio então inscrito sob o artigo ...  da freguesia de ..., concelho de Évora;

•             Uma delas (correspondente a 66,67% daquele imóvel, adquirida em Dezembro de 2000 pelo montante de € 23.744,57) pela importância de € 854.116,59 - campo 401;

•             E a outra (correspondente a 16,66% do mesmo imóvel, adquirida em Abril de 2008, pelo montante de € 149.831,66), pela importância de € 213.529,15 – campo 402, sendo que, relativamente a esta quota-parte (de 16,66%), consta ter suportado despesas e encargos relativos à sua aquisição e/ou alienação no montante de € 10.973,58;

DD)        Em função da elaboração da declaração oficiosa mencionada na alínea anterior foi efetuada em nome da ora requerente em 25-01-2014 a liquidação de IRS n.º 2014..., no âmbito da qual foi apurado o montante de imposto a pagar de € 202.192,38, à qual acrescia a quantia de € 3.715,60 a título de juros compensatórios apurados na liquidação n.º 2014..., o que perfez o montante total a pagar de € 205.907,98 (fls.  58 da 1.ª parte do processo administrativo);

EE)         Em 30-01-2014, foi emitida a demonstração de acerto de contas n.º 2014..., que consta do documento n. 15 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, na qual foi apurado um valor a pagar de € 160.682,55 (documento n.º 15 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

FF)         A Requerente deduziu reclamação graciosa contra esta liquidação, a qual foi aberta

sob o n.º ...2014... e foi indeferida em 20-12-2017 (Documento n.º 17 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);.

GG)       A requerimento interpôs recurso hierárquico da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, recurso este que veio a ser indeferido por despacho de 02-12-2019;

HH)        Em 09-03-2020m a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.

 

2.2. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto

 

Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.

A fixação da matéria de facto baseia-se nos documentos indicados em cada um dos pontos da matéria de facto e no processo administrativo.

Não há controvérsia sobre a matéria de facto.

 

3. Matéria de direito

 

A questão que é objecto do processo é a de saber se incide IRS sobre mais-valias obtidas em 2012 provenientes da venda de 3/6 de um prédio rústico que:

•             foi adquirido pela Requerente em 1977, por sucessão hereditária;

•             manteve a natureza de prédio rústico até ao ano 2000, em que passou a ter a natureza de prédio urbano (terreno para construção), com a aprovação de um plano de urbanização que o abrangeu;

•             foi dividido, dando origem a dois prédios, em consequência de uma expropriação por utilidade pública parcial deliberada em 2002;

•             foi vendido um dos dois prédios (terreno para construção)  em 2012.

 

A Requerente defende, em suma, que os ganhos decorrentes da venda dos 3/6 do prédio rústico que adquiriu em 1977, que se mantinha como tal à data da entrada em vigor do CIRS e alienou, como terreno para construção, em 2012, não são abrangidos pela incidência do IRS, por força do disposto no artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro.

A Administração Tributária entende que esta norma não se aplica à situação referida, porque, em suma, houve alteração da natureza do prédio e o momento relevante para a aferição do ganho determinante da mais valia, para efeitos de tributação, é a data da transmissão onerosa do direito real sobre o bem imóvel.

Este artigo 5.º, na redacção inicial, estabelece o seguinte, no que aqui interessa:

 

Artigo 5.º

 

Regime transitório da categoria G

 

1 - Os ganhos que não eram sujeitos ao imposto de mais-valias, criado pelo código aprovado pelo Decreto-Lei 46373, de 9 de Junho de 1965, só ficam sujeitos ao IRS se a aquisição dos bens ou direitos de cuja transmissão provêm se houver efectuado depois da entrada em vigor deste Código.

 

O Decreto-Lei n.º 141/92, de 17 de Julho, deu a esta norma a seguinte redacção:

 

1 - Os ganhos que não eram sujeitos ao imposto de mais-valias, criado pelo código aprovado pelo Decreto-Lei n.º 46 673, de 9 de Junho de 1965, bem como os derivados da alienação a título oneroso de prédios rústicos afectos ao exercício de uma actividade agrícola ou da afectação destes a uma actividade comercial ou industrial, exercida pelo respectivo proprietário, só ficam sujeitos ao IRS se a aquisição dos bens ou direitos a que respeitam tiver sido efectuada depois da entrada em vigor deste Código.

 

A questão em apreço foi já apreciada muitas vezes pelo Supremo Tribunal Administrativo, sendo uniforme a jurisprudência no sentido da interpretação defendida pela Requerente.

Sem pretender ser exaustivo, foram proferidos nesse sentido os seguintes acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo:

 

– de 29-03-2006, processo 01213/05;

–  de 12-12-2006, processo n.º 01100/05;

–  de 06-06-2007, processo n.º 0179/07;

– de 13-02-2008, processo n.º 0763/07;

– de 29-10-2008, processo n.º 0539/08;

– de 04-02-2009, processo n.º 0872/08;

– de 27-01-2010, processo n.º 0969/09;

– de 02-06-2010, processo 0998/09;

– de 12-01-2012, processo n.º 0528/11;

– de 30-01-2013, processo 01072/12;

– de 02-07-2014, processo n.º 01396/13;

– de 10-09-2014, processo n.º 01381/13;

– de 12-02-2015, processo n.º 01266/13;

– de 08-07-2015, processo n.º 0584/15;

– de 20-05-2015, processo n.º 0149/15;

– de 21-10-2015, processo n.º 01339/14;

– de 14-10-2020, processo n.º 01152/10.7BELRS.     

 

                Trata-se de jurisprudência reafirmada por várias formações de juízes do Supremo Tribunal Administrativo, que se fora sucedendo ao longo de 16 anos, pelo que se trata, manifestamente, de jurisprudência consolidada, que os tribunais que julgam em 1.ª instância devem acatar, como se infere do facto de a lei nem sequer admitir recurso das decisões que a apliquem (artigo 284.º, n.º 3, do CPPT).

                Nesta linha, adopta-se, no essencial, a fundamentação do citado acórdão de 06-06-2007, proferido no processo n.º 0179/07.

                Como resulta do teor expresso do n. 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, que aprovou o CIRS, «os ganhos que não eram sujeitos ao imposto de mais-valias, criado pelo código aprovado pelo Decreto-Lei n.º 46373, de 9 de Junho de 1965, só ficam sujeitos ao IRS se a aquisição dos bens ou direitos de cuja transmissão provêm se houver efectuado depois da entrada em vigor deste Código».

                Este regime foi mantido pelo Decreto-Lei n.º 141/92, de 17 de Julho, no que aqui interessa.

                No que concerne a terrenos, o Código do Imposto de Mais-Valias apenas previa a tributação dos «ganhos realizados através» de «transmissão onerosa de terreno para construção» (artigo 1.º, n.º 1.º, daquele Código).

                No caso em apreço, há acordo das Partes no sentido de que, em 01-01-1989, data da  entrada em vigor do CIRC (artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 44A-A/88, de 30 de Novembro), o prédio adquirido em 1977 ainda se mantinha com a natureza de rústico, só passando a ser considerado terreno para construção a partir do ano 2000.

                Para que a transmissão do terreno referida nos autos fosse tributada em sede de IRS, era necessário que, antes da data da entrada em vigor do CIRS, o terreno em causa fosse qualificado como terreno para construção, pois só a valorização de terrenos com esta qualificação era tributada em sede de Imposto de Mais-Valias.

                Não valem, neste contexto de tributação em sede de mais-valias, considerações atinentes à materialidade económica das situações da valorização de terrenos agrícolas, derivada da sua transformação em terrenos de construção e a hipotética identidade com as situações de valorização de terrenos adquiridos e transmitidos como terrenos para construção.

                Na verdade, é patente pelo artigo 1.º do Código do Imposto de Mais-Valias que ele não tinha a vocação para tributar a generalidade das situações de valorização de bens que tem o CIRS.

                Aliás, o próprio Preâmbulo do Código do Imposto de Mais-Valias expressamente refere a deliberada restrição do âmbito de incidência do imposto, a título experimental, a algumas das situações de valorização de bens, alguns dos ganhos «trazidos pelo vento» e não todas as situações que poderiam abstractamente considerar-se equiparáveis.

                Com efeito, refere-se no ponto 2 desse Preâmbulo que «a ideia de que se partiu para traçar os limites do imposto foi a de considerar mais-valias os aumentos de valor dos bens que os contribuintes não produziram nem adquiriram para venda. É uma ideia decerto sujeita a reparos sob o ponto de vista teórico, mas que tem a vantagem de poder ser utilizada na prática. No entanto, resolveu-se aplicá-la, não a todos os bens naquelas condições, e sim apenas aos bens cujas mais-valias se verificam com maior frequência, são de maior vulto ou não oferecem dificuldades sérias de determinação. É o que acontece, sem dúvida, com os terrenos para construção; com os elementos do activo imobilizado das empresas (entre eles os trespasses e os alvarás) e os seus bens de rendimento; com o direito ao arrendamento dos escritórios e consultórios; com as quotas em sociedades e as acções». «Caem precisamente sob a alçada do imposto as mais-valias desses quatro grupos de bens. Mas fica a porta aberta para se alargar a base da incidência, trazendo-lhe outros bens com as respectivas mais-valias, muito embora só possa pensar-se em fazê-lo depois de colhida a experiência deste diploma e de bem delineados em vários sectores os contornos da evolução económica que está em curso».

                Por outro lado, o afastamento pelo artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88 da tributação em IRS, a título de mais-valias, dos ganhos obtidos com a transmissão de terrenos que, à data da entrada em vigor do CIRS, eram qualificados como prédios rústicos (e, por isso, estavam fora do âmbito de incidência do Código do Imposto de Mais-Valias) compreende-se pelo facto de, tendo-se optado pelo cálculo dos ganhos tributáveis a título de mais-valias com base na diferença entre o valor da aquisição e o valor da transmissão, a tributação em IRS da valorização de terrenos rústicos que haviam sido adquiridos antes da sua entrada em vigor incluiria, parcialmente, a aplicação retroactiva do novo regime de tributação a ganhos obtidos com a valorização dos prédios rústicos, pois forçosamente se iriam tributar, além dos ganhos correspondentes à valorização gerada na vigência do novo Código, também alguns correspondentes à valorização que, como prédios rústicos, pode ter tido ocorrido antes da sua entrada em vigor.

                Ora, essa aplicação retroactiva de normas de incidência tributária, que, a partir da revisão constitucional de 1997 é absolutamente proibida pela nova redacção dada ao artigo 103.º, n.º 3, da CRP, só era tolerável anteriormente em situações especiais em que estivesse em causa o interesse geral (  ), que não se verificavam, nem foram legislativamente invocadas quando entrou em vigor o CIRS, como se infere do afastamento da incidência de IRS sobre terrenos adquiridos antes da sua entrada em vigor.

                No caso em apreço, o terreno em causa foi adquirido como prédio rústico e era prédio rústico à data da entrada em vigor do CIRS, pelo que é de concluir que, em face do disposto no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, os ganhos obtidos com a sua transmissão não se inserem no âmbito de incidência do IRS.

                Não releva, para afastar este regime, o facto de o prédio ter sido dividido e vendido apenas um dos novos prédios resultantes da divisão, pois não houve qualquer aquisição desses novos prédios pela Requerente, na vigência do CIRS, que é o pressuposto da tributação de mais-valias.

                Pelo exposto, tem de se concluir que a liquidação impugnada enferma de vício de violação de lei, por erro de interpretação do artigo 5.º, n.º 1, do DL n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, que justifica a sua anulação nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.

                A liquidação de juros compensatórios tem como pressuposto a liquidação de IRS (artigo 35.º, n.º 8, da LGT) pelo que enferma do mesmo vício, pelo que também se justifica a sua anulação.

                As decisões da reclamação graciosa e do recurso hierárquico, que confirmaram a liquidação impugnada, enfermam do vício que afecta esta, pelo que também de justifica sua anulação.

              

                4. Decisão

 

Nestes termos acordam neste Tribunal Arbitral em:

A)           Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;

B)           Declarar ilegal e anular a decisão de indeferimento do recurso hierárquico n.º ...2018...;

C)           Declarar ilegal e anular a decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2014...;

D)           Declarar ilegal e anular a liquidação de IRS n.º 2014... e a liquidação n.º 2014..., de resultou um valor total a pagar de € 160.682,55, sendo € 156.966,95 respeitantes a imposto e € 3.715,60 a juros compensatórios;

 

5. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto nos artigos 305.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário e 3.º, n.º 2, do Regulamento de € 160.682,55.

 

6. Custas

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 3.672,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

              

Lisboa, 26-10-2020

 

Os Árbitros

 

(Jorge Lopes de Sousa)

(Maria Alexandra Mesquita)

(Paulo Ferreira Alves)