Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 433/2023-T
Data da decisão: 2024-02-20  IRS  
Valor do pedido: € 21.657,60
Tema: IRS - Exclusão de tributação de mais-valias imobiliárias; conceito de habitação própria e permanente vs domicílio fiscal; prova da residência.
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Sumário:

  1. Para efeitos de exclusão da tributação das mais valias resultantes da venda de imóvel por reinvestimento noutro imóvel, consagrada no artigo 10.º, n.º 5 do Código do IRS, o imóvel alienado e o adquirido têm de ser destinados à habitação própria e permanente;
  2. O conceito de habitação própria permanente não equivale ao conceito de domicílio fiscal, sendo ilidível a presunção estabelecida no artigo 13.º, n.º 12, do Código do IRS, como resulta da letra da norma.
  3. O requisito da permanência na habitação deve ser entendido no sentido de habitualidade e normalidade, não se impondo uma cadência cronológica absoluta, impondo-se, apenas, para efeitos da exclusão tributária que o beneficiário aí organize as condições da sua vida normal e do seu agregado familiar, mas sem que uma intermitência, devidamente justificada, dê causa à tributação, arrendando, por si só, a exclusão.
  4. O conceito de habitação própria e permanente não exclui alguma intermitência na vivência no imóvel em causa, desde que essa intermitência seja justificada..

 

RELATÓRIO

A..., solteiro, maior, titular do NIF..., com domicílio fiscal no ..., nº ..., ..., ...-..., Ponta Delgada (doravante, o “Requerente”), veio nos termos e para os efeitos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 2, alínea a), 6.º, n.º 1 e 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante, “RJAT”), em conjugação com o artigo 99.º, alínea a) e o artigo 102.º, n.º 1, alínea e), ambos do Código de Procedimento e de Processo Tributário (doravante, “CPPT”), requerer a constituição do tribunal arbitral, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, a “Requerida” ou “AT”), tendo em vista a declaração de ilegalidade do ato de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) n.º 2023..., relativa ao exercício de 2021, e das conexas demonstrações de acerto de contas com o n.º 2023 ... e de juros compensatórios com o n.º 2023 ... (sendo doravante o conjunto dos três atos designado simplesmente como a “Liquidação”), das quais resulta um valor total a pagar de € 21.451,60.

De acordo com os artigos 5.º, n.º 2, alínea a) e 6.º, n.º 1, do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) designou como árbitro o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

O Tribunal Arbitral foi constituído no CAAD em 23 de agosto de 2023, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD.

Notificada para o efeito, a Requerida apresentou a sua Resposta em 11 de outubro de 2023, não tendo deduzido exceções mas pugnando pela  integral improcedência do pedido.

Foi realizada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT no dia 11 de dezembro de 2023, tendo sido inquiridas as testemunhas apresentadas pelo Requerente e, a final, notificadas as partes para apresentarem alegações.

O Requerente apresentou as suas alegações em 22 de dezembro de 2023 e a Requerida no dia 27 do mesmo mês.

Quanto à causa de pedir, o Requerente alega, em síntese, que:

Desde 2014 e até ao início de 2021 residiu habitualmente no imóvel sito na Rua ..., no Porto (melhor identificado abaixo no elenco de facto dados como provados), inicialmente com a sua avó e como cuidador desta e, após o falecimento desta, em 2016, ali manteve a sua habitação própria e permanente durante o processo de partilhas relativo à respetiva herança e até à data em que o mencionado imóvel foi vendido;

Tendo reinvestido o valor que obteve com a sobredita venda noutro imóvel, sito em Vila Nova de Gaia, também destinado a habitação própria e permanente, não compreende as razões pelas quais a Requerida lhe liquidou adicionalmente IRS, desconsiderando a exclusão de tributação prevista no artigo 10.º, n.º 5, do Código do IRS, com fundamento apenas no facto de o seu domicílio fiscal se encontrar, na data da alienação, registado na Região Autónoma dos Açores, defendendo ainda que a Liquidação se encontra ferida de vício de forma por falta de fundamentação;

 Já a Requerida opõe-se a tal entendimento porquanto entende, em síntese, que o Requerente não logrou provar, nem em sede de audição prévia, nem ao longo do presente processo, que efetivamente tenha mantido a sua habitação própria e permanente no imóvel alienado, sendo as diversas mudanças de domicílio fiscal registadas no sistema da AT conducentes à conclusão segundo a qual, na data de alienação, o Requerente não fixava a sua habitação própria e permanente nesse imóvel.

MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

No ano de 2014, o Requerente passou a residir com a sua avó no imóvel sito na Rua ..., n.º..., ...-...,  Porto, inscrito na matriz predial urbana da União de Freguesias de ... e ... (Porto) sob o artigo ..., que era propriedade desta (o “Imóvel da Rua ...” ou “Imóvel Alienado”) – facto provado por depoimento de testemunhas e não contestado.

Até 2019, o Requerente pernoitava no referido Imóvel grande parte dos dias da semana, tomando as suas refeições, preparando e servindo refeições à sua avó, cuidando da sua higiene, roupa, bens, por si e como cuidador de sua avó – facto provado pelos depoimentos de parte e testemunhas.

Em 2016, tendo falecido a proprietária, o Requerente tornou-se cabeça de casal da respetiva herança e adquiriu por sucessão uma quota-parte de 25% do Imóvel da Rua...– facto admitido por acordo.

O Requerente manteve-se na posse do Imóvel da Rua ... durante o processo de partilhas da mencionada herança, mantendo-se a residir no mesmo com o seu agregado familiar, constituído pela companheira e filha – facto resultante do depoimento de parte e das várias testemunhas, em particular da segunda.

Em 2019 o Requerente foi contratado, como piloto, pela companhia de aviação B..., S. A., com sede na Rua ..., nº ... –..., ...-...Ponta Delgada – facto resultante da Resposta e do depoimento de parte.

Por força das suas funções, o Requerente passou a residir, durante os períodos em que estava a trabalhar, em Ponta Delgada, Açores – facto resultante do depoimento de parte e das testemunhas e não contestado.

O seu agregado familiar mantinha-se a residir no Imóvel da Rua ... ainda que, em algumas alturas, tenha por optado passar tempo num imóvel da propriedade da segunda testemunha aquando das ausências profissionais do Requerente, por força da situação de conflito com os restantes herdeiros da avó do Requerente – facto resultante do depoimento de parte e dos de ambas as testemunhas inquiridas.

Por exigência da entidade patronal e aconselhado por contabilista, nessa altura, o Requerente alterou o seu domicílio fiscal registado para uma morada em Ponta Delgada – facto resultante do depoimento de parte e, apenas quanto à alteração do domicílio, da Resposta.

O Requerente passava os dias seguidos de folgas, fins de semana em que não trabalhasse e férias no Imóvel da Rua... – facto resultante da instrução e provado por depoimentos de parte e das testemunhas.

No ano de 2020, em que por força da pandemia de COVID-19 foram suspensas praticamente todas as ligações aéreas, o Requerente praticamente não trabalhou e passou o ano no Imóvel da Rua ... com o seu agregado familiar – facto resultante da instrução e provado através do depoimento da segunda testemunha inquirida.

O Requerente alterou o seu domicílio fiscal para o Imóvel da Rua ... em 14 de janeiro de 2021, situação registal tributária que se manteve até 22 de fevereiro de 2021 – facto admitido por acordo.

O Requerente manteve a sua habitação própria e permanente no Imóvel da Rua ... até 14 de janeiro de 2021 – provado através da prova testemunhal.

Em 15 janeiro de 2021 o Requerente adquiriu uma quota-parte da fração B do imóvel inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ..., concelho de Vila Nova de Gaia sob o artigo..., pelo montante de € 162.500,00 (o “Imóvel de...” ou “Imóvel Adquirido” – facto admitido por acordo.

Tendo alterado o seu domicílio fiscal para o Imóvel Adquirido em 22 de fevereiro de 2021 – facto admitido por acordo.

E voltado a alterar o domicílio fiscal em 30  de março de 2021 para uma morada em Ponta Delgada, na Região Autónoma dos Açores – facto admitido por acordo.

O Imóvel da Rua ... foi vendido em 17 de maio de 2021, pelo preço de € 650.000 – facto admitido por acordo.

Da sobredita alienação coube ao Requerente um valor de € 162.500, correspondente à sua quota parte de 25% na compropriedade do imóvel.

Em 9 de maio de 2022 o Requerente entregou a declaração Mod. 3 de IRS na qual, com relevância para os autos, declarou:

ser residente na Região Autónoma dos Açores;

No anexo A, ter obtido rendimentos do trabalho dependente pagos pela B..., S. A no montante de € 56.076,50;

No anexo F, ter obtido rendimentos prediais no valor total de € 39.173,22, decorrentes de imóveis localizados na freguesia com o código fiscal ... (que corresponde à União das Freguesias de ..., ... (... e...) e ..., concelho de Santo Tirso, distrito do Porto);

No campo 4001 do anexo G ter alienado, em 2021, pelo preço de € 162.500,00, uma quota-parte de 25% do Imóvel da Rua ..., que havia adquirido em 2016 por € 55.755;

No campo 4002 do anexo G ter alienado, em 2021, pelo preço 75.000,00 uma quota-parte de 50% do prédio inscrito na matriz predial urbana da freguesia de..., concelho do Porto, sob o artigo ..., que havia adquirido em 1998 por € 12.469,85;

No quadro 5A do anexo G, pretender reinvestir a totalidade do valor de € 162.500 na aquisição de imóvel sem recurso ao crédito; e,

Ter reinvestido tal valor no ano da declaração na aquisição de 56,04% do Imóvel de ... .

(factos constantes da Resposta e da Declaração Mod. 3 junta aos autos, tendo sido comprovados pela análise da mesma).

Não foram declarados outros rendimentos – facto instrumental resultante da Declaração Mod. 3 junta aos autos.

 Com base na declaração Mod. 3 apresentada naqueles termos, foi efetuada em 16 de maio de 2022 a liquidação de IRS n.º 2022 ..., no âmbito da qual foi apurado o montante de imposto a pagar de € 11.251,72 – facto admitido por acordo.

Em 17 de maio de 2022 o Serviço de Finanças de Ponta Delgada iniciou um procedimento de divergências por considerar que o Requerente residia na Região Autónoma dos Açores no ano de 2021, pelo que o Imóvel Alienado não poderia constituir habitação própria e permanente do sujeito passivo – facto admitido por acordo.

O Requerente foi notificado para o exercício de audição prévia às correções propostas, direito que veio a exercer em 1 de setembro de 2022 – facto admitido por acordo.

Tendo seguido o procedimento os seus trâmites, culminou o mesmo com a emissão da Liquidação impugnada, na qual em síntese, foi desconsiderado o reinvestimento, no Imóvel Adquirido, do valor de realização obtido pelo Requerente com a venda do Imóvel Alienado – facto admitido por acordo.

A.2. Factos dados como não provados

Não existem factos relevantes para a decisão que não tenham sido considerados provados.

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada 

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).  

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. art. 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT). 

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT, a prova testemunhal e o Processo Administrativo juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados. 

Não se deram como provadas nem não provadas as alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

Uma última nota quanto a esta matéria:

os factos ‎5a ‎10, bem como os factos ‎18.2a ‎18.5,  do elenco de factos dados como provados não foram expressamente alegados pelas partes nos articulados, mas constituem factos instrumentais face aos factos essenciais que sustentam a causa de pedir tal como formulada pelo Requerente, tendo inequivocamente resultado da instrução [cfr. o artigo 5.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Civil (“CPC”)].

Com efeito, como se decidiu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de julho de 2017, relativo ao processo n.º 442/15.7T8PVZ.P1.S1, “[m]antém-se actual a consideração de que «São factos instrumentais aqueles que, sem fazerem directamente a prova dos factos principais, servem indirectamente para prová-los, pela convicção que criam da sua ocorrência» – Acórdão este Supremo Tribunal de Justiça, de 18.5.2004 – Proc. 1570/04.

«O conceito de causa de pedir é delimitado pelos factos jurídicos dos quais procede a pretensão que o demandante formula, cumprindo às partes a alegação desses factos, apenas nos quais o juiz funda a sua decisão, embora possa atender, ainda que ex officio, aos instrumentais, que resultem da instrução e da discussão e aos que sejam complemento ou concretização de outros.

O juiz está limitado pelo princípio do dispositivo, mas a substanciação (ou consubstanciação) permite-lhe definir livremente o direito aplicável aos factos que lhe é lícito conhecer, buscando e interpretando as normas jurídicas» – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.5.2009 – Revista n.º 162/09.1YFLSB.

Os factos instrumentais, mesmo que não constem da alegação das partes podem ser tidos em consideração pelo julgador se resultarem da instrução da causa” (cit., sublinhados do signatário).

 Ora, o facto principal alegado pelo Requerente nos autos – ou seja, e em suma, de que desde 2014 sempre teve instalada a sua habitação própria e permanente no Imóvel Alienado até à data da alienação, sem que a mesma coincidisse com o domicílio fiscal registado junto da Autoridade Tributária – foi considerado provado por este tribunal essencialmente com base nos depoimentos de parte e das testemunhas.

Mas, com relevo para o sentido da decisão, desses depoimentos resultaram também uma série de factos – particularmente os mencionados ‎5a ‎10e ‎18.2a ‎18.5do elenco de factos dados como provados – que reforçam a convicção do tribunal porque, não sendo por si só suficientes para sustentar a causa de pedir, são pelo menos aptos a reforçar a probabilidade de que os factos principais alegados correspondem à verdade material, designadamente pela sua constância nos depoimentos obtidos, e tendo consequências na decisão final que abaixo se profere.

DO DIREITO

Tema a decidir e questão prévia sobre a fundamentação do ato tributário

O tema a decidir nos presentes autos tem sido objeto de centenas de decisões judiciais e arbitrais ao longo dos anos e pode resumir-se no seguinte: em caso de divergência entre o domicílio fiscal registado junto da AT e a alegada habitação própria e permanente do sujeito passivo, pode este beneficiar da exclusão de tributação de mais valias imobiliárias com origem na alienação de habitação própria e permanente e reinvestimento do valor de realização em imóvel com o mesmo destino, nos termos do artigo 10.º, n.º 5 do Código do IRS? E dada a presunção constante da primeira parte do artigo 13.º, n.º 12, do mesmo Código, quais os elementos que devem conduzir a que se considere ilidida a presunção?

A isto acresce uma terceira questão, mais recentemente tratada na jurisprudência e que é a de saber se o conceito de habitação própria e permanente se compadece com algum grau de intermitência na vivência no imóvel em causa.

Antes, contudo, de iniciar essa análise, há que deixar claro um tema prévio que baseia o enquadramento fáctico-jurídico que o signatário faz do processo aqui sob julgamento:

Do processo administrativo instrutor (o “PA”) resulta com clareza que o fundamento invocado pela AT, aqui Requerida, para desconsiderar a exclusão de tributação da mais valia aqui em causa cinge-se ao facto de entender que o Imóvel Alienado não constituía habitação própria e permanente do Requerente.

Com efeito, e apesar de enumerar, na notificação para efeitos do artigo 66.º do Código do IRS (junta ao PA), todos os requisitos legais para que possa operar a mencionada exclusão prevista no artigo 10.º, n.º 5, do Código do IRS (i.e. reinvestimento do valor de realização obtido com a alienação de uma habitação própria permanente em imóvel também destinado a habitação própria e permanente), na Notificação para Audição Prévia junta aos autos menciona a  AT, apenas, que “[a]pós análise verifica-se que em 2021 residiu na RAAçores, não sendo habitação própria permanente o imóvel alienado”, o que reitera na já mencionada notificação para efeitos do artigo 66.º do Código do IRS e na informação/despacho ao mesmo anexa.

Ou seja, da fundamentação da Liquidação aqui impugnada nada consta que coloque em causa a natureza de habitação própria e permanente do Imóvel Adquirido, i.e., aquele em que o Requerente declarou ter reinvestido o valor de realização obtido com a venda do Imóvel Alienado.

Ora, como como é sabido, “[a] fundamentação do acto tributário deve ser contextual e contemporânea da sua prática, não sendo permitida a invocação superveniente de fundamentos que, embora objectivamente existentes, não constam da motivação expressa do acto” – cfr., a título meramente exemplificativo e entre tantos outros, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (“STA”) proferido em 11 de dezembro de 2019, no âmbito do processo n.º 0859/04.2BEPRT.

Pelo que, em termos fácticos, apenas interessa ao presente processo saber se o Requerente teve ou não a sua habitação própria e permanente instalada no Imóvel Alienado (Imóvel da Rua...), dando-se por adquirido, porquanto a Requerida nunca o contestou, que efetivamente tivesse depois instalado a sua habitação própria e permanente no Imóvel Adquirido.

E daqui resulta um segundo corolário: o Requerente alega, no artigo 38.º do pedido de pronúncia arbitral, “que tal liquidação em si mesma, mas também a notificação que lhe foi realizada para efeitos de pretensa audição prévia e o pretenso procedimento que lhe terá antecedido, padecem, individualmente e no seu conjunto, de severos vícios de natureza formal que imporão, desde já, a procedência da presente reclamação / pedido de anulação – pronúncia arbitral”.

Não discute este Tribunal que a fundamentação da Liquidação podia, de facto, ser mais profunda ou extensa, sendo certo, de todo o modo, que indica as normas legais violadas e que dela consta o – único – facto que levou à correção do IRS a pagar pelo Requerente em 2021.

Contudo, é manifesto que quer no âmbito do procedimento administrativo, quer deste processo arbitral, o Requerente demonstrou entender perfeitamente o que estava em causa, tendo exercido todos os seus direitos de defesa e tendo tido oportunidade de juntar toda a documentação comprovativa que entendesse, sem que o tivesse feito.

Pelo que, sendo claro que o Requerente compreendeu bem os motivos que ditaram a realização da liquidação que lhe foi efetuada (como refere a Requerida na sua Resposta) e sendo jurisprudência assente que “pode dizer-se que um ato está fundamentado sempre que o administrado, colocado na sua posição de destinatário normal, fica devidamente esclarecido acerca das razões que o motivaram e, portanto, fica habilitado a impugná-lo” (v. os Acórdãos do STA proferidos em 4 de outubro de 2006, no processo n.º 90/06, 26 de maio de 2004, no processo n.º 742/03, 11 de fevereiro de 2009, no processo n.º 767/07),

Ainda que se verificasse algum vício de forma por insuficiente fundamentação dada a natureza sucinta da mesma, tal vício deve considerar-se sanado.

Assim sendo,

Da desconsideração da aplicação do n.º 5 do artigo 10.º do Código do IRS pela Requerida ao imposto a pagar pelo Requerente relativamente ao ano de 2021

Cumpre, então, face aos factos provados, apreciar e decidir a questão quanto ao mérito, o que faremos acompanhando de perto, em especial, a fundamentação das decisões arbitrais proferidas nos processos n.os 155/2022-T, 231/2022-T, 331/2022-T, 184/2023-T.

De acordo com o disposto no artigo 10.º, n.º 5 do Código do IRS, estão excluídos de tributação os ganhos provenientes da transmissão onerosa de imóveis destinados a habitação própria e permanente do sujeito passivo ou do seu agregado familiar, desde que verificadas, cumulativamente, as seguintes condições:

  1. O valor de realização, deduzido da amortização de eventual empréstimo contraído para a aquisição do imóvel, seja reinvestido na aquisição da propriedade de outro imóvel, de terreno para construção de imóvel e ou respectiva construção, ou na ampliação ou melhoramento de outro imóvel exclusivamente com o mesmo destino situado em território português ou no território de outro Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal;
  2. O reinvestimento previsto na alínea anterior seja efetuado entre os 24 meses anteriores e os 36 meses posteriores contados da data da realização;
  3. O sujeito passivo manifeste a intenção de proceder ao reinvestimento, ainda que parcial, mencionando o respetivo montante na declaração de rendimentos respeitante ao ano da alienação.

Tal como resulta da Resposta (e da informação anexa à notificação efetuada ao abrigo do artigo 66.º do Código do IRS constante do PA), entende a Requerida a este propósito que o conceito de “habitação própria e permanente” não coincide exatamente com o de domicílio fiscal do sujeito passivo, mas que, no caso concreto, dada a sucessão de moradas indicadas como domicílio fiscal, não deve ser desconsiderado o disposto no artigo 19.º da LGT, concluindo em face da divergência de moradas, pela não aplicação da exclusão de tributação decorrente do reinvestimento prevista no artigo 10.º, n.º 5 do Código do IRS.

Posto que, do ponto de vista literal, não existe qualquer correspondência entre a expressão “habitação própria e permanente”, “domicílio fiscal” e mesmo “residência habitual” a que se apela no artigo 17.º do Código do IRS, razão pela qual, adiante-se desde já, não procede a argumentação da Requerida.

Como resulta dos cânones interpretativos consagrados no artigo 9.º do Código Civil, “não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.“

Em consequência, atendendo-se literalmente ao disposto no n.º 5 do artigo 10.º do Código do IRS não tem a interpretação efetuada pela Requerida qualquer fundamento na letra da própria lei.

Também do ponto de vista teleológico, não existe qualquer fundamento para tributar os ganhos obtidos pelo Requerente decorrentes da venda da sua habitação própria e permanente, reinvestidos na compra de outra habitação própria e permanente, conquanto, a exclusão de tributação prevista no n.º 5 do artigo 10.º do Código do IRS “tem como objectivo favorecer a propriedade do imóvel destinado a habitação permanente.” - cfr. José Guilherme Xavier de Basto, in IRS – Incidência real e determinação dos rendimentos líquidos, Coimbra Editora, (Coimbra: 2007), p. 413.

Na verdade, o objetivo da exclusão é o de não onerar fiscalmente a efetivação do direito fundamental à habitação.

Como se referiu acima, não foi posto em causa pela Requerida que o Requerente tenha utilizado o produto da venda do Imóvel Alienado para adquirir um novo imóvel no mesmo ano (2021), para sua habitação própria e permanente.

O facto de o Requerente ter alterado o seu domicílio fiscal por diversas vezes ao longo dos anos não determina por si só a desaplicação do n.º 5 do artigo 10.º do Código do IRS, na medida em que tal norma apenas exige que as mais valias decorram de imóvel destinado a habitação própria e permanente e não de imóvel no qual esteja fixado o domicílio fiscal do sujeito passivo.

Sendo certo que, nos termos da norma resultante das disposições conjugadas dos n.os 14 e 15 do artigo 13.º do Código do IRS, tendo o sujeito passivo, aqui Requerente, logrado provar, através de qualquer meio (in casu, prova testemunhal), que na data da alienação tinha instalada a sua habitação própria e permanente no Imóvel Alienado, competia à Requerida demonstrar a falta de veracidade das informações obtidas através  daqueles meios de prova, o que não fez,

Limitando-se a fazer assentar a sua argumentação na multiplicidade de domicílios fiscais declarados pelo Requerente entre 2019 e 2021, o que aliás se traduziu nas perguntas da Requerida efetuadas às testemunhas em sede de inquirição, sempre no sentido de auscultar se estas sabiam qual era a morada declarada pelo Requerente para efeitos fiscais ou do Cartão do Cidadão.

Sobre a falta de coincidência entre o conceito de habitação própria e permanente e o conceito de domicílio fiscal a jurisprudência é vasta, podendo atentar-se, a título de exemplo, nos diversos acórdãos do TCA Sul, do STA e do STJ, bem como nas decisões arbitrais proferidas neste CAAD, citados na decisão arbitral proferida no processo n.º 231/2022-T da seguinte forma:

1 - Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, Proc. 373/17.6BESNT, de 30.09.2020: «O conceito de habitação própria permanente não equivale ao conceito de domicílio fiscal»;

2 – Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, Proc. 779/11.4BELLE, de 16.09.2019: «O requisito da permanência na habitação, deve ser entendido no sentido de habitualidade e normalidade, impondo-se para efeitos da exclusão tributária que o beneficiário aí organize as condições da sua vida normal e do seu agregado familiar. São atos demonstrativos da fixação do centro da sua vida pessoal a ocorrência de condições físicas, jurídicas e sociais, não se esgotando na ligação à circunscrição fiscal onde se situa o prédio ou na correspondência da habitação com o domicílio fiscal registado nos serviços de finanças»;

3 – Supremo Tribunal Administrativo, Proc. 1077/11.9BESNT 01448/17, de 14.11.2018: «O conceito de habitação própria e permanente não equivale ao conceito de domicílio fiscal»

4 – CAAD, Proc. 285/2018, de 22.01.2019: «No plano conceitual, nem a residência habitual se identifica com a residência permanente, nem o domicílio coincide com a morada, ou seja, o local onde a pessoa tem a sua habitação, tal como se pode inferir do artigo 82º do Código Civil.»

5 - Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido no âmbito do Proc. 590/11, de 23.11.2011: «o conceito de residência própria e permanente tem sido entendido no sentido de habitualidade e normalidade e não propriamente no sentido cronológico absoluto de estadia sem qualquer solução de continuidade»;

6 - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Fevereiro de 2009, no âmbito do processo 09A144: «É, no entanto, essencial que o centro de permanência estável e duradoura se situe num determinado local, que aí esteja instalado o seu lar, organizada a sua logística, onde convive, e da qual, sempre que se ausenta, o faz a título transitório, ou temporário, e com o propósito de regressar com estabilidade, por lá permanecer a sua economia doméstica e o seu agregado familiar»;

7 - Acórdão do STJ, de 18 de Dezembro de 2007, proferido no âmbito do proc. A4127: «residência permanente não significa residência única, sendo possível uma pessoa ter residências alternadas, onde vive interpoladamente, face a exigências da vida, desde que o faça com carácter de habitualidade e estabilidade»”.

Ao que acresce, como também se refere na mencionada decisão arbitral que “na interpretação da norma ater-nos ao princípio «Ubi Lex Non Distinguit Nec Nos Distinguere Debemus» para concluirmos que se a exclusão de tributação de mais-valias prevista no artigo 10.º, n.º 5 do Código do IRS pretendesse apenas abranger os imóveis onde estivesse registado o domicílio fiscal dos alienantes, o Legislador deveria ter exprimido expressamente tal entendimento, tal como o fez relativamente à isenção de IMI prevista no artigo 46.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF)”.

De todo o processado resultou, sem margem para dúvidas para este Tribunal, que independentemente de até ter, a dada altura, alterado o seu domicílio fiscal para o Imóvel da Rua ..., o Requerente residiu de facto no mencionado imóvel, tendo ali organizado a base da sua vida e do seu agregado familiar, apenas ali não se encontrando quando, por inerência das suas funções profissionais de piloto alocado a uma companhia aérea com base na Região Autónoma dos Açores, se deslocava fisicamente para a mencionada região.

Tendo sido absolutamente claro e constante nas inquirições do Requerente e das testemunhas (feitas pelo mandatário do Requerente, pela representante da Requerida e pelo próprio Tribunal) que quando não se encontrava a trabalhar, o Requerente conduzia toda a sua vida no Imóvel Alienado, encontrando-se no mesmo aos fins de semana, folgas ou férias,

E, com especial relevância do ponto de vista da convicção do Tribunal durante o tempo em que os voos estiveram suspensos por força da pandemia de COVID-19, ao longo do ano de 2020, tendo o Imóvel de ... (em que foi reinvestido o valor de realização obtido com a venda do Imóvel Alienado) sido adquirido no início do ano de 2021.

Ou seja, a habitação própria e permanente e a residência habitual do Requerente e do seu agregado familiar encontrava-se no Imóvel da Rua ... pelo menos até à aquisição do Imóvel de ..., sendo certo que, quanto a este último, não contesta a AT que tenha constituído habitação própria e permanente do Requerente.

Ora, a circunstância de o Requerente manter a sua base de trabalho nos Açores com as condições inerentes ao facto de ser piloto numa companhia área baseada naquele Arquipélago, não obsta a que se considere que a sua habitação própria e permanente esteja situada em Portugal Continental.

Ou seja, o Imóvel da Rua ..., no Porto, deve considerar-se como habitação própria e permanente do Requerente para efeitos de exclusão de tributação da mais-valia por reinvestimento nos termos do artigo 10.º, n.º 5, do Código do IRS, com todas as legais consequências.

Adicionalmente, conforme se decidiu no acórdão do STA de 2 de fevereiro de 2023, proferido no processo n.º 126/11.5BELRS, que se fundou, entre o mais, na jurisprudência já estabelecida nos acórdãos do mesmo Supremo Tribunal relativos aos processos n.os 0164/13, de 17 de fevereiro de 2021, 0482/11.5BELRS, de 26 de outubro de 2022, e 114/15.2BELLE, de 1 de julho 2020, a intermitência (até necessária) na utilização do imóvel em que se encontra estabelecida a habitação própria e permanente não arreda, por si só, a aplicação da exclusão de tributação a que nos vimos referindo.

Com efeito, como se sumariou no mencionado acórdão e para o que releva no caso dos autos, “I - Para efeitos de exclusão da tributação das mais valias consagradas no artigo 10.º, nº5 do CIRS, o imóvel de “partida” e o de "chegada" têm de ser destinados à habitação própria e permanente; II - O conceito de habitação própria permanente não equivale ao conceito de domicílio fiscal […]; IV - O requisito da permanência na habitação, deve ser entendido no sentido de habitualidade e normalidade, mas sem qualquer cadência cronológica absoluta, impondo-se, apenas, para efeitos da exclusão tributária que o beneficiário aí organize as condições da sua vida normal e do seu agregado familiar, mas sem que uma intermitência, devidamente justificada, possa demandar e legitimar a tributação, arrendando, per se, a aduzida exclusão. V - Da residência, necessária, intercalada em outra morada não pode inferir-se, que existe uma interrupção do nexo de ligação e de causalidade entre o “imóvel de partida” e o “imóvel de chegada” que impede o preenchimento da previsão normativa da isenção, porquanto, devidamente justificada e inteiramente concatenado com razões de segurança, integridade física e salubridade (cit., sublinhados do signatário).

E idêntica linha de raciocínio foi desenvolvida na decisão arbitral de 27 de fevereiro de 2023, proferida no processo n.º 331/2022-T, num caso com contornos factuais de alguma maneira semelhantes ao presente, em que um dos Requerentes também foi colocado em trabalho na Região Autónoma dos Açores enquanto o agregado familiar se manteve  no distrito do Porto, tendo sido dado por provada a habitação própria permanente do agregado num determinado imóvel que nem sempre correspondeu, em concreto e no período analisado pelo tribunal, ao local onde esse mesmo agregado dormia e fazia refeições, por força de razões logísticas.

Tudo visto, e encontrando-se claro para este Tribunal que o Requerente logrou provar que, pelo menos em 2020 e até 14 de janeiro do ano de 2021, a sua habitação própria e permanente (e do seu agregado familiar) se encontrava estabelecida no Imóvel Alienado, anula-se integralmente a Liquidação aqui impugnada, ou seja, a liquidação de IRS n.º 2023 ..., relativa ao exercício de 2021, e as conexas demonstrações de acerto de contas com o n.º 2023 ... e de juros compensatórios com o n.º 2023 ..., por erro sobre os pressupostos de facto e vício de violação de Lei, em especial do artigo 10.º, n.º 5, do Código do IRS.

Esta anulação e a inerente conclusão de que, no exercício de 2021, o Requerente manteve habitação própria e permanente em Portugal Continental, poderá ter eventuais efeitos ao nível da determinação do local da residência em território português, nos termos do artigo 17.º do Código do IRS, sendo certo, contudo, que tal não é objeto do presente processo, pelo que não deve este tribunal pronunciar-se sobre tal tema.

DA DECISÃO

Termos em que, pelos fundamentos acima desenvolvidos, decide este Tribunal Arbitral julgar integralmente procedente o pedido, concretamente anulando a liquidação de IRS n.º 2023 ..., relativa ao exercício de 2021, e as conexas demonstrações de acerto de contas com o n.º 2023 ... e de juros compensatórios com o n.º 2023 ..., por erro sobre os pressupostos de facto e vício de violação de Lei, em especial do artigo 10.º, n.º 5, do Código do IRS, com as consequências legais, e condenando a Requerida, integralmente, nas custas do processo.

VALOR DO PROCESSO

Fixa-se o valor do processo em € 21.451,60 nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.  

CUSTAS

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 1.224 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar em 100% pela Requerida, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.   

 

Notifique-se.

Lisboa, 20 de fevereiro de 2024

O Árbitro,

 

João Taborda da Gama