Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 228/2020-T
Data da decisão: 2021-03-24  IRC  
Valor do pedido: € 280.660,21
Tema: IRC – Tributações autónomas. Despesas não documentadas. Art. 88.º, n.º 1 do CIRC. Ónus da prova. Métodos indiretos.
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DECISÃO ARBITRAL

 

                Os árbitros Alexandra Coelho Martins (árbitro presidente), Marisa Almeida Araújo e Elisabete Flora Louro Martins Cardoso (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o presente Tribunal Arbitral, constituído em 6 de agosto de 2020, acordam no seguinte:

 

                I.             RELATÓRIO

 

A A..., LDA., sociedade com sede na ..., ..., ...-... .., com o número único de matrícula e de pessoa coletiva ..., adiante também designada por “Requerente”, veio requerer a constituição de tribunal arbitral e deduzir pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), na redação vigente.

 

Pretende a Requerente que o Tribunal declare a ilegalidade, com a consequente anulação, da liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) relativa a tributação autónoma emitida sob o n.º 2020..., com referência ao período de 2018, no valor de € 280.660,21 (que inclui a importância de € 4.598,50 de juros compensatórios), e condene a AT ao pagamento de juros indemnizatórios calculados sobre a quantia a restituir, nos termos do artigo 43.º da Lei Geral Tributária (“LGT”) e do artigo 61.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”).

 

Como fundamentos da ação arbitral, a Requerente invoca a inexistência de facto tributário relativo às alegadas “despesas não documentadas” sujeitas a tributação autónoma e erro nos pressupostos de facto e de direito, por errónea quantificação e qualificação dos factos tributários e por violação do princípio da especialização e da periodização dos exercícios. A título subsidiário, requer que seja declarada a fundada dúvida, quer na quantificação do facto tributário, quer, ainda, no tocante à imputação temporal das “despesas não documentadas” ao exercício de 2018.

 

É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.

 

Em 17 de abril de 2020, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação, com a notificação da AT em 23 de abril de 2020.

 

Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As Partes, notificadas dessa designação em 7 de julho de 2020, não manifestaram vontade de a recusar.

 

O Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 6 de agosto de 2020.

 

                Em 30 de setembro de 2020, a Requerida apresentou a Resposta e juntou cópia do processo administrativo (“PA”). Defende-se por impugnação e pugna pela improcedência e consequente absolvição de todos os pedidos.

 

Por despacho de 6 de outubro de 2020, o Tribunal Arbitral determinou a dispensa da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, por desnecessária, atendendo a que não foi requerida a produção de prova testemunhal, nem invocada ou identificada matéria de exceção, concedendo às Partes a oportunidade de se pronunciarem, querendo.

 

Em 26 de outubro de 2020, o Tribunal Arbitral determinou a notificação das Partes para apresentação de alegações facultativas e sucessivas, fixando como prazo para prolação da decisão arbitral a data limite prevista no artigo 21.º, n.º 1 do RJAT. A Requerente foi ainda advertida em relação ao pagamento prévio da taxa arbitral subsequente.

 

                Requerente e Requerida optaram por não apresentar alegações.

 

Por despacho de 1 de fevereiro de 2021, o Tribunal determinou a prorrogação do prazo de prolação da decisão, nos termos do artigo 21.º, n.º 2 do RJAT, resultante da interposição de férias judiciais e da complexidade da análise da matéria de facto

 

                SÍNTESE DA POSIÇÃO DA REQUERENTE

 

A Requerente suscita diversos vícios que, na sua perspetiva, invalidam o enquadramento preconizado pela AT de “despesas não documentadas” em relação às divergências verificadas entre o saldo de Caixa e os efetivos meios monetários da sociedade, pressuposto da sujeição a tributação autónoma, à taxa de 50%, nos termos do artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC.

 

São esses vícios, a saber:

a)            A incorreção no apuramento efetuado pela Requerida do saldo da conta Caixa, a 17 de dezembro de 2018. Segundo a Requerente não se percebe a razão pela qual foram utilizados os saldos veiculados pelos fornecedores a essa data para corrigir os movimentos de regularização da conta de fornecedores por contrapartida de Caixa a 31 de dezembro de 2018, uma vez que entre essas duas datas ocorreram diversos pagamentos a fornecedores;

b)           A influência de valores transitados de exercícios anteriores no saldo contabilístico de 2018 da conta Caixa;

c)            O caráter fictício dos valores registados na conta Caixa, por esta enfermar de múltiplos erros, inexatidões, omissões e atrasos de lançamento que, segundo a Requerente, também já eram evidentes em exercícios anteriores;

d)           A diferença de caixa está justificada por circunstâncias diversas, nomeadamente o registo de cheques sem provisão, não tendo o saldo de caixa correspondência com efetivas disponibilidades financeiras na esfera da Requerente;

e)           A violação do ónus da prova, por parte da Requerida, que não logrou demonstrar a existência das despesas, o seu montante e o momento em que foram efetuadas, nos termos do artigo 74.º da LGT;

f)            A mera divergência do saldo da conta Caixa não constitui um facto sujeito à incidência de imposto (tributação autónoma – IRC), pois tal corresponderia à  aplicação de uma presunção – a de que a inexistência de numerário na caixa social corresponde a despesas (não documentadas) – desprovida de suporte legal, pois apenas teria cabimento num procedimento de avaliação indireta, nos termos dos artigos 87.º e seguintes da LGT;

g)            A não diminuição do resultado líquido do exercício pelas alegadas despesas;

h)           A inobservância do princípio da especialização e da periodização do lucro tributável (cf. artigos 8.º e 18.º do Código do IRC), pois as despesas, qualificáveis como factos tributários de natureza instantânea, já poderiam ter ocorrido em exercícios anteriores, não obstante as regularizações indevidas da conta Caixa poderem ter ocorrido eventualmente em 2018;

i)             A fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, nos termos do artigo 100.º, n.º 1 do CPPT.

 

SÍNTESE DA POSIÇÃO DA REQUERIDA

 

Por seu turno, a Requerida sustenta a manutenção do ato de liquidação, tendo em conta que:

(a)          A Requerente não fez prova dos factos alegados, designadamente: (i) em que medida o saldo da conta Caixa não correspondia à realidade das existências em numerário ou outros meios monetários, não contestando sequer a quantificação da divergência entre o saldo da conta e os montantes que deviam estar disponíveis em Caixa e não se encontravam à data da contagem física, e (ii) as anomalias e irregularidades praticadas na contabilidade que poderiam afetar o apuramento e controlo do lucro tributável e afastar a presunção prevista no artigo 75.º, n.º 1 da LGT;

(b)          A sujeição a tributação autónoma das “despesas não documentadas” não depende da sua prévia contabilização como gastos, de modo a afetar negativamente o resultado do exercício, referindo-se o artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC à tributação de despesas e não de gastos;

(c)          A Requerente colocou na AT o ónus de demonstrar a efetiva ocorrência das “despesas não documentadas”, as datas e montantes dos correspondentes exfluxos financeiros, ou seja, justamente aquilo que só a própria se encontraria em condições de provar;

(d)          Nestas circunstâncias, fazer recair sobre a AT o ónus de provar despesas em relação às quais inexistem documentos comprovativos e registos contabilísticos dos exfluxos monetários, redundaria numa probatio diabolica;

(e)          Dentro dos limites que a sua atuação lhe permitiria, a AT cumpriu o ónus da prova dos pressupostos de aplicação do artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC, ao demonstrar a divergência entre o saldo contabilístico da conta Caixa e as existências reveladas pela contagem física e ao solicitar os documentos justificativos da diferença apurada, que não lhe foram facultados;

(f)           O entendimento de alguma jurisprudência de que as “despesas não documentadas” não têm destinatário conhecido, dada a inexistência de documentos discriminativos da forma, local, data, pessoas em que foram realizados e, em simultâneo, de que não se pode prescindir da demonstração da efetiva ocorrência dessas “despesas não documentadas”, só pode interpretar-se, sob pena de contradição, como sendo dirigido a despesas reveladas como tal na contabilidade, em que se torna possível rastrear os montantes e as datas dos exfluxos financeiros, o que não sucede no caso da Requerente;

(g)          Neste caso, como a Requerente incumpriu a obrigação de contabilizar as despesas, a demonstração da sua ocorrência reconduz-se à verificação da falta de meios financeiros detetada pela contagem física, em determinado momento, e é esta verificação que gera o momento da ocorrência do facto tributário, para efeitos do disposto no artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC;

(h)          Se as despesas não estão documentadas não é possível aferir sobre o destino, datas, locais e beneficiários dos meios financeiros não encontrados na esfera empresarial, logo é factual e juridicamente impossível aplicar-lhes o princípio da especialização dos exercícios e da periodização do lucro tributável, enunciado no artigo 18.º, n.º 1 do Código do IRC, que assenta no critério de competência económica;

(i)           No caso de “despesas não documentadas”, dado o desconhecimento da natureza e origem das operações subjacentes, o facto gerador da tributação autónoma só fica evidenciado na data da contagem física e, consequentemente, só pode ser imputado ao exercício de 2018;

(j)           Afrontaria a própria natureza e as finalidades de dissuasão e sancionatória adstritas à tributação autónoma das “despesas não documentadas” premiar fiscalmente os contribuintes que se eximem da obrigação básica de contabilização e/ou declaração daquele tipo de despesas;

(k)          A quantificação das “despesas não documentadas” não teve por base meros indícios ou presunções próprias do procedimento de avaliação indireta, regulado nos artigos 87.º e seguintes da LGT, tendo resultado do confronto direto da contagem física com os elementos contabilísticos;

(l)           A existência de fundada dúvida, nos termos do artigo 100.º, n.º 1 do CPPT, sobre o exercício em que ocorreram as “despesas não documentadas” não pode proceder, desde logo porque o artigo 18.º, n.º 1 do Código do IRC é inaplicável, pois o critério de imputação das despesas ligado ao ato do dispêndio fica prejudicado quando as despesas não estão registadas como tal na contabilidade, nem são facultados registos de entrada e saídas de meios monetários, tendo de aferir-se ao momento em que foi detetada a falta dos meios monetários;

(m)        A alegação de que nos exercícios anteriores já se verificava tal situação não foi comprovada pela Requerente. A regra do artigo 100.º, n.º 1, do CPPT não se pode aplicar, pois pressupõe algum tipo de produção de prova suscetível de lançar luz sobre os motivos na origem da saída de meios monetários e datas em que ocorreram, o que a Requerente não logrou fazer;

(n)          Não se verificando erro imputável aos serviços na liquidação do tributo, que decorreu diretamente da lei, não deve ser reconhecido à Requerente qualquer direito a juros indemnizatórios.

 

II.            SANEAMENTO

 

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria para conhecer do ato de liquidação de IRC [tributações autónomas] impugnado, atenta a conformação do objeto do processo, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, todos do RJAT.

 

As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

A ação é tempestiva, tendo o pedido de pronúncia arbitral sido apresentado em 16 de abril de 2020, dentro do prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, contado do termo do prazo para pagamento da liquidação de IRC impugnada, fixado em 5 de março de 2020, de acordo com a remissão operada para o artigo 102.º, n.º 1 do CPPT (aplicando-se, neste caso, a respetiva alínea a)).

Não foram identificadas questões que obstem ao conhecimento do mérito.

 

                III.          FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

 

                1.            MATÉRIA DE FACTO PROVADA

 

Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que se julgam provados:

 

A.           A sociedade A..., LDA., aqui Requerente, tem por objeto a atividade de comércio por grosso de fruta e produtos hortícolas e está inscrita sob o CAE 46311 – cf. Relatório de Inspeção Tributária (“RIT) junto pela Requerente como Documento 4. 

B.            A Requerente foi objeto de uma ação inspetiva para controlo declarativo, realizada ao abrigo da Ordem de Serviço OI2019..., ao período de 2018, de âmbito parcial – IRC, tendo em vista a comprovação e verificação / contagem de caixa – cf. RIT junto pela Requerente como Documento 4. 

C.            No âmbito do referido procedimento inspetivo e com relevância para a matéria em apreciação nos autos, relativa à tributação autónoma de “despesas não documentadas” em relação ao período 2018, os Serviços de Inspeção procederam, em 17 de dezembro de 2018, à contagem dos valores em caixa da Requerente, nas instalações desta, na presença e com a anuência do sócio-gerente – cf. RIT junto pela Requerente como Documento 4. 

D.           Nessa contagem, apurou-se a existência de fundos monetários (em numerário) na importância de € 5.197,65, tendo, à data, o sócio-gerente declarado que não existiam valores em caixa fora das instalações da Requerente e, ainda, que não existia fundo fixo de caixa e que naquele dia [17 de dezembro de 2018] não tinha sido retirado qualquer valor da caixa para pagamento a fornecedores/credores diversos – cf. RIT junto pela Requerente como Documento 4. 

E.            Na referida data, a Requerente exibiu aos serviços de inspeção o livro de atas, não constando do mesmo qualquer deliberação de distribuição de lucros ou de pagamento dos mesmos a título de adiantamento – cf. RIT junto pela Requerente como Documento 4. 

F.            Por forma a apurar a veracidade dos valores contados em caixa em 17 de dezembro de 2018, os serviços de inspeção aguardaram o encerramento da contabilidade referente ao ano 2018 e a entrega da correspondente Declaração de Rendimentos Modelo 22 e da Declaração Anual de Informação Contabilística e Fiscal (IES/DA), para o que foi ampliado o prazo do procedimento inspetivo, ao abrigo do artigo 36.º, n.º 3 do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária (“RCPITA”) – cf. RIT junto pela Requerente como Documento 4.

G.           Da análise dos elementos posteriormente disponibilizados pela Requerente com referência ao ano 2018, constatou-se que, a 31 de dezembro de 2018, o saldo da conta 111 – Caixa apresentado no balancete era de € 221,27, na sequência de regularizações efetuadas de saldos de fornecedores, por contrapartida da conta SNC 111 – Caixa, a crédito, assim como das contas SNC 12101 (...), 12103 (...), 12104 (...) e 12109 (...). Foram também regularizadas as contas de clientes e as contas 12109 (...), 12111 (...) e 12113 (...) por contrapartida da conta 111 – Caixa, a débito – cf. RIT junto pela Requerente como Documento 4.

H.           O saldo credor das contas de fornecedores apresentado pela Requerente, em 31 de dezembro de 2018, era de € 62.403,14, tendo os serviços de inspeção verificado que nos pagamentos a fornecedores tinha sido debitada a conta de fornecedores por contrapartida, a crédito, da conta Caixa, não apresentando, porém, os registos contabilísticos n.ºs 1200277 (diário 22) e 1200280 (diário 22) qualquer documento de suporte comprovativo dos pagamentos – cf. RIT junto pela Requerente como Documento 4.

I.             Neste contexto, os serviços de inspeção efetuaram uma circularização aos principais fornecedores da Requerente e solicitaram o extrato de conta corrente do ano 2018 para apurar os documentos pendentes de pagamento à data de 17 de dezembro de 2018, constatando que, apesar de na contabilidade da Requerente várias contas de fornecedores não apresentarem saldo em dívida, ou apresentarem mesmo um saldo inferior, aquela tinha documentos pendentes para pagamento àqueles fornecedores à data de 17 de dezembro de 2018 – cf. RIT junto pela Requerente como Documento 4.

J.             De acordo com os saldos comunicados pelos fornecedores à data da contagem, os serviços de inspeção procederam à correção do saldo de Caixa relativamente aos lançamentos n.ºs 1200277 e 1200280, apurando uma correção total de € 544.103,11, conforme resumido no quadro infra, reportado a 17 de dezembro de 2018 – cf. RIT junto pela Requerente como Documento 4:

Quadro

Correções efetuadas pela AT ao saldo de caixa relativas a fornecedores

(em euros)

                Contabilidade

(Crédito)             Correção             Total

lançamento n.º 1200277              -756.597,74        175.903,10          -580.694,64

lançamento n.º 1200280               -1.404.097,31     368.200,01          -1.035.897,30

Total      -2.160.695,05     544.103,11          -1.616.591,94

 

K.            No que se refere aos clientes, a Requerente facultou aos serviços de inspeção a listagem de liquidações discriminativa dos recibos emitidos aos clientes no ano de 2018, com base na qual se determinou ter sido recebido por aquela, até 17 de dezembro de 2018, o montante total de € 3.518.909,88 – cf. RIT junto pela Requerente como Documento 4.

L.            Como a Requerente tinha registado o débito de caixa por contrapartida de clientes no valor total de € 3.547.695,74, os serviços de inspeção corrigiram a diferença, na importância de € 28.785,86, para refletir os recebimentos efetivos dos clientes – cf. RIT junto pela Requerente como Documento 4.

M.          Foram ainda corrigidos pelos serviços de inspeção os lançamentos a débito e a crédito do mês de dezembro com data posterior à da contagem efetuada, perfazendo a correção de € 30.330,64, a débito, e de € 72.113,21, a crédito, nos termos do quadro seguinte – cf. RIT junto pela Requerente como Documento 4:

Quadro

Correção pela AT do saldo de caixa relativa a documentos com data posterior a 17.12.2017

(em euros)

                Contabilidade    Corrigido             Correção

A débito              46.377,43             16.046,79            30.330,64

A crédito             103.307,37          31.194,16            72.113,21

Total                                     41.782,57

 

N.           Assim, o saldo contabilístico da conta SNC 111 – Caixa apurado pelos serviços de inspeção com referência a 17 de dezembro de 2018, data da contagem física de Caixa, foi de € 557.321,09, como explicitado no quadro seguinte – cf. RIT junto pela Requerente como Documento 4:

     (em euros)

Descrição            Valor

1. Saldo contabilístico em 2018-12-31

2. Movimentos a débito após 2018-12-17

3. Movimentos a crédito após 2018-12-17

4. Dívida aos fornecedores em 2018-12-17

5. Recebimento de clientes em 2018-12-17          221,27

30.330,64

72.113,21

544.103,11

28.785,86

6. Saldo contabilístico em 2018-12-17 (1-2+3+4-5)          557.321,09

 

O.           Uma vez que o valor do saldo contabilístico de Caixa da Requerente, a 17 de dezembro de 2018, era de € 557.321,09 (após as referidas retificações efetuadas pela AT), e o valor contado a essa data se cifrou somente em € 5.197,65, constataram os serviços de inspeção uma divergência, por diferença em caixa, de € 552.123,44 – cf. RIT junto pela Requerente como Documento 4. 

P.            Pelo que a AT considerou que a diferença de caixa, de € 552.123,44 devia ser tributada autonomamente à taxa de 50%, ao abrigo do artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC, dada a ausência de justificação para a sua existência e o destino de tal montante, resultando em imposto a pagar de € 276.061,72, o que propôs no projeto de correções – cf. RIT junto pela Requerente como Documento 4. 

Q.           A Requerente tem diversos cheques sem provisão, com data de validade entre 2014 e 2015, emitidos pelos clientes B..., Lda. e C..., Lda., no valor total de € 26.439,12, os quais foram devolvidos na compensação do Banco de Portugal em 2014 – cf. Documento 9 junto pela Requerente. 

R.            O saldo contabilístico da conta Caixa da Requerente em 2016 cifrou-se em € 81.038,00 e em 2017 em € 135.895,95 – cf. Documentos 6 e 7 juntos pela Requerente. 

S.            Na sequência do procedimento inspetivo em apreço, a Requerente foi notificada do projeto de correções, para exercer o direito de audição, tendo optado por não o fazer, tendo-se o mesmo convolado em definitivo – cf. RIT junto pela Requerente como Documento 4.  

T.            Subsequentemente, foi a Requerente foi notificada da liquidação adicional de IRC n.º 2020..., datada de 15 de janeiro de 2020, referente ao período 2018, no valor de € 280.660,21, que contém o valor de € 276.061,72 relativo a tributação autónoma e de € 4.598,50 de juros compensatórios (conforme demonstração da liquidação de juros n.º 2020...), com data limite de pagamento de 5 de março de 2020 – cf. Documentos 1 a 3 juntos pela Requerente. 

U.           A Requerente procedeu ao pagamento da liquidação adicional de IRC (tributação autónoma) e juros, na importância global de € 280.660,21, em 5 de março de 2020 – cf. Documento 10 junto pela Requerente.

V.           Em discordância com a liquidação adicional de tributação autónoma (IRC) e juros compensatórios relativa ao período de 2018, supra identificada, a Requerente apresentou no CAAD, em 16 de abril de 2020, o requerimento de constituição do Tribunal Arbitral que deu origem ao presente processo – cf. registo de entrada do pedido de pronúncia arbitral (“ppa”) no SGP do CAAD.

 

               

2.            FACTOS NÃO PROVADOS

 

Com relevo para a decisão, não se provou que a contabilidade enfermava de diversos erros, inexatidões, omissões e atrasos nos lançamentos, ao ponto de não ter qualquer fidedignidade e que as despesas, a terem ocorrido, se teriam verificado, em grande medida, em exercícios anteriores a 2018 (artigos 20.º, 26.º, 27.º, 29.º, 31.º, 35.º, 37.º, 39.º, 49.º e 50.º do ppa).

 

Também não se provou que os saldos da conta Caixa não correspondiam, em grande parte, a efetivas disponibilidades financeiras, quer em 2018, quer em anos anteriores (artigos 33.º e 48.º do ppa).

 

A Requerente faz alegações genéricas e levanta hipóteses especulativas, sem, contudo, concretizar um específico erro e/ou irregularidade que na situação vertente se tivesse efetivamente verificado. 

 

Por outro lado, a evidência de cheques sem provisão emitidos pelos clientes da Requerente em 2014 e devolvidos na compensação do Banco de Portugal, também em 2014, quatro anos antes do período de tributação aqui em causa, nada acrescenta sobre a divergência da conta Caixa apurada a 17 de dezembro de 2018.

 

Não foram identificados outros factos que devam considerar-se não provados.

 

3.            MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO

 

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal de se pronunciar sobre todas as alegações das Partes.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas Partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.

 

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com as regras da experiência (artigo 607.º do CPC). Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (como sucede, por exemplo, com a força probatória plena dos documentos autênticos, nos termos do disposto no artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.

 

Nestes termos, a matéria de facto foi fixada e a convicção dos árbitros formou-se com base nas peças processuais das Partes e na análise crítica dos documentos juntos por estas aos autos, conforme referenciado em relação a cada facto julgado assente.

 

                IV.          FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

 

                1.            QUESTÕES A DECIDIR

 

As questões em análise prendem-se com:

(i)           O enquadramento a título de “despesas não documentadas” da divergência apurada pela Requerida, de € 552.123,44 (€ 557.321,09 – € 5.197,65), no âmbito do procedimento de inspeção ao período de 2018, entre o montante apurado na contagem física da conta de Caixa da Requerente em 17 de dezembro de 2018 (€ 5.197,65) e o saldo contabilístico da mesma conta (€ 557.321,09), nos termos do disposto no artigo 88.º n.º 1 do Código do IRC, e a consequente tributação à taxa de 50%;

(ii)          A aferição do critério temporal definidor dessa tributação;

(iii)         A aplicabilidade, no caso concreto, do regime dos métodos indiretos de tributação; e

(iv)         Os juros indemnizatórios.

 

                2.            ENQUADRAMENTO DAS “DESPESAS NÃO DOCUMENTADAS”

 

A matéria a decidir nesta ação tem sido objeto de profuso debate na jurisprudência arbitral, acompanhando-se aqui a posição perfilhada nas decisões dos processos n.ºs 213/2020-T e 235/2020-T, de 3 de dezembro e de 20 de outubro de 2020, respetivamente.

 

Neste âmbito, o artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC, na redação da Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, dispõe o seguinte:

 

“Artigo 88.º

Taxas de tributação autónoma

1 — As despesas não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50 %, sem prejuízo da sua não consideração como gastos nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º-A.”

 

                Esta disciplina tributária teve como antecedente a tributação das então denominadas “despesas confidenciais ou não documentadas”, que foi iniciada pelo artigo 4.º do Decreto-lei n.º 192/90 de 9 de junho, à taxa autónoma de 10%, incrementada para 25% pelo artigo 29.º da Lei n.º 39-B/94 de 27 de dezembro (Lei do Orçamento do Estado – “LOE” – para 1995).

 

Mais tarde, o artigo 6.º da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, aditou ao Código do IRC o artigo 69.º-A que, sob a epígrafe “Taxas de tributação autónoma”, passou a integrar esta matéria no Código, determinando a respetiva tributação à taxa agravada de 50%, ao abrigo do seu n.º 1. Foi simultaneamente revogada, pelo artigo 7.º, nº 11 daquela Lei [n.º 30-G/2000], a norma avulsa constante do artigo 4.º do citado Decreto-lei n.º 192/90.

                Com a Lei n.º 67-A/2007, de 31 de dezembro (LOE para 2008), foi eliminada a referência a despesas confidenciais, passando o artigo 81.º (atual artigo 88.º) do Código do IRC a contemplar apenas a expressão “despesas não documentadas”, mantendo-se a taxa de 50%.

 

A eliminação das despesas confidenciais do elenco dos factos sujeitos a tributação autónoma, mantendo-se, no entanto, o mesmo regime de tributação sob a categoria de “despesas não documentadas”, das quais as primeiras são um subconjunto, limitou-se a remover uma redundância, pois a despesa confidencial é também uma despesa não documentada, sendo “duvidoso que a distinção entre as duas figuras tenha tido alguma relevância no nosso regime fiscal enquanto existiu”, como assinala a decisão arbitral n.º 7/2011-T, de 20 de setembro de 2012 (ponto 12).

 

                Neste âmbito, convém também notar que a tributação autónoma incide sobre distintas tipologias de despesas, com diferentes objetivos e “as considerações a respeito de certo tipo de tributações autónomas, podem não ser pertinentes e válidas relativamente a outro tipo de tributações autónomas” (cf. decisão arbitral proferida no processo n.º 256/2018, de 12 de fevereiro de 2019).

 

                Como salienta o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 27 de setembro de 2017, no processo n.º 0146/16, há que ter “presente o tipo de tributações autónomas em causa […], uma vez que, como veremos adiante, sob esta denominação cabem realidades com teleologia e finalidade distintas, a reclamarem tratamento diverso. Desde logo, porque a par das tributações autónomas sobre gastos, as mais frequentes, existem também tributações autónomas sobre rendimentos. Mas também, e essencialmente, porque há tributações autónomas que podem ser deduzidas para efeitos de determinação do lucro tributável e outras insuscetíveis de dedução” – em idêntico sentido vide os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 21 de março de 2012, processo n.º 0830/11, e de 31 de março de 2016, processo n.º 0505/15.

 

Refere ainda o aresto citado [processo n.º 0146/16] que as “tributações autónomas, inicialmente previstas como meio de combater a evasão e fraude fiscais, designadamente as despesas confidenciais e não documentadas, reportavam-se a encargos fiscalmente não dedutíveis; ulteriormente, na prossecução da obtenção de receita fiscal, o seu âmbito foi progressivamente alargado a despesas cuja justificação do ponto de vista empresarial se revela duvidosa e a despesas que podem configurar uma atribuição de rendimentos não tributados a terceiros, relativamente às quais a dedutibilidade só era admitida se acompanhada pela tributação autónoma. […] “a ratio legis parece ser, não só a de obviar à erosão da base tributável e consequente redução da receita fiscal, mas também a de tributar (na esfera de quem os distribui) rendimentos que de outro modo não conseguiriam ser tributados na esfera jurídica dos seus beneficiários.”

 

A respeito da análise de uma questão de retroatividade no domínio fiscal (que não está em discussão nos presentes autos) também o Tribunal Constitucional se pronuncia sobre a caracterização da tributação autónoma de “despesas não documentadas”, fazendo-o nos seguintes moldes:

 

“[…] estamos perante despesas que são incluídas na contabilidade da empresa, e podem ter sido relevantes para a formação do rendimento, mas não estão documentadas e não podem ser consideradas como custos, e que, por isso, são penalizadas com uma tributação de 50%. A lógica fiscal do regime assenta na existência de um presumível prejuízo para a Fazenda Pública, por não ser possível comprovar, por falta de documentação, se houve lugar ao pagamento do IVA ou de outros tributos que fossem devidos em relação às transações efetuadas, ou se foram declarados para efeitos de incidência do imposto sobre o rendimento os proventos que terceiros tenham vindo a auferir através das relações comerciais mantidas com o sujeito passivo do imposto. Para além disso, a tributação autónoma, não incidindo diretamente sobre um lucro, terá ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afetar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de ilicitude penal ou de menor transparência fiscal.” – acórdão do Tribunal Constitucional n.º 18/2011, de 12 de janeiro de 2011.

 

Com relevância para a determinação da natureza da tributação autónoma, afirma ainda o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 197/2016, de 13 de abril de 2016, que “A introdução do mecanismo de tributação autónoma é justificada, por outro lado, por se reportar a despesas cujo regime fiscal é difícil de discernir por se encontrarem numa «zona de interseção da esfera privada e da esfera empresarial» e tem em vista prevenir e evitar que, através dessas despesas, as empresas procedam à distribuição oculta de lucros ou atribuam rendimentos que poderão não ser tributados na esfera dos respetivos beneficiários, tendo também o objetivo de combater a fraude e a evasão fiscais (SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 3.ª edição, Coimbra, pág. 407).

Para além disso, a tributação autónoma, embora regulada normativamente em sede de imposto sobre o rendimento, é materialmente distinta da tributação em IRC, na medida em que incide não diretamente sobre o lucro tributável da empresa, mas sobre certos gastos que constituem, em si, um novo facto tributário (que se refere não à perceção de um rendimento mas à realização de despesas). E, desse modo, a tributação autónoma tem ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afetar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de menor transparência fiscal, e é explicada por uma intenção legislativa de estimular as empresas a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afetem negativamente a receita fiscal.

Naquelas situações especiais elencadas na lei, o legislador optou, por isso, por sujeitar os gastos a uma tributação autónoma como forma alternativa e mais eficaz à não dedutibilidade da despesa para efeitos de determinação do lucro tributável, tanto mais que quando a empresa venha a sofrer um prejuízo fiscal, não haverá lugar ao pagamento de imposto, frustrando-se o objetivo que se pretende atingir que é o de desincentivar a própria realização desse tipo de despesas. […] como se fez notar, o IRC e a tributação autónoma são impostos distintos, com diferente base de incidência e sujeição a taxas específicas. O IRC incide sobre os rendimentos obtidos e os lucros diretamente imputáveis ao exercício de uma certa atividade económica, por referência ao período anual, e tributa, por conseguinte, o englobamento de todos os rendimentos obtidos no período de tributação. Pelo contrário, na tributação autónoma em IRC - segundo a própria jurisprudência constitucional -, o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa, caracterizando-se como um facto tributário instantâneo que surge isolado no tempo e gera uma obrigação de pagamento com caráter avulso. Por isso se entende que estamos perante um imposto de obrigação única, por contraposição aos impostos periódicos, cujo facto gerador se produz de modo sucessivo ao longo do tempo, gerando a obrigação de pagamento de imposto com caráter regular (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 310/2012).

Como é de concluir, a tributação autónoma, embora prevista no CIRC e liquidada conjuntamente com o IRC para efeitos de cobrança, nada tem a ver com a tributação do rendimento e os lucros imputáveis ao exercício económico da empresa, uma vez que incidem sobre certas despesas que constituem factos tributários autónomos que o legislador, por razões de política fiscal, quis tributar separadamente mediante a sujeição a uma taxa predeterminada que não tem qualquer relação com o volume de negócios da empresa (acórdão do STA de 12 de abril de 2012, Processo n.º 77/12).”

 

Resulta das considerações expostas que as tributações autónomas têm diversas finalidades além da reditícia, destacando-se no caso das “despesas não documentadas”, a de prevenção da fraude e evasão fiscais (anti abuso) e a sancionatória ou penalizadora, associadas ao facto de, provavelmente, ou em muitos casos, aquelas despesas terem conexão com a distribuição de proventos que não serão tributados na esfera dos beneficiários (embora devessem sê-lo), ou que escapam à tributação em IVA, presumindo-se o inerente prejuízo para a Fazenda Pública e a desigualdade na repartição dos encargos públicos. A que acresce, eventualmente, poderem respeitar a atuações ilícitas, designadamente a práticas ilegais de corrupção.

 

                Ressalta notória a finalidade anti elisiva da tributação autónoma das “despesas não documentadas” e a clara afirmação de que estas, ao contrário do que alega a Requerente, não têm de ser despesas que em termos contabilísticos afetam o resultado do exercício, diminuindo-o, como seria o caso se tivessem sido simultaneamente contabilizadas como gastos dedutíveis.

 

Existem, de facto, algumas situações em que a dedução fiscal do gasto é pressuposto da incidência de certas tipologias de tributações autónomas, mas no caso específico das “despesas não documentadas” tal não sucede. Pelo contrário, conforme referido no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo no citado processo n.º 146/16, as “despesas não documentadas” (anteriormente também designadas de “confidenciais”) reportam-se a encargos fiscalmente não dedutíveis.

 

                Interessa recordar que os conceitos de despesa e de gasto não são sinónimos, nem do ponto de vista contabilístico, nem na perspetiva fiscal. As despesas são saídas de recursos financeiros do património de uma entidade ou organização e podem referir-se a gastos (que incluem, nos termos do artigo 23.º do Código do IRC, “perdas” e “ajustamentos”) ou a outras realidades, como, por exemplo, investimentos. Ou seja, há despesas que não são relativas a (ou qualificáveis como) gastos. E, por outro lado, se em regra os gastos supõem um desembolso financeiro, i.e., uma despesa, tal não significa que não existam múltiplos gastos que não têm associada qualquer despesa, pelo menos diretamente, como as depreciações e amortizações, as perdas por imparidade ou as provisões, entre outras.

 

                A hipótese de incidência constante do artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC sujeita a tributação autónoma as “despesas” e não os “gastos”, sem prejuízo de o mesmo dispêndio poder preencher em simultâneo os dois conceitos, de despesa e de gasto. Como prescrito naquela norma, o facto de a despesa não ser considerada como gasto fiscalmente dedutível ao abrigo do artigo 23.º-A, n.º 1, alínea b) do Código do IRC (que determina a não dedução, como componente negativa do lucro tributável, das “despesas não documentadas”) não prejudica a tributação autónoma.

 

                Ainda sobre a desnecessidade de tais despesas afetarem o resultado líquido como requisito sine qua non da sua tributação autónoma, no sentido que se acompanha, fundamenta a decisão arbitral n.º 235/2020-T, de 20 de outubro de 2020:

 

“Defende a Requerente a interpretação de que «as despesas são todos os valores despendidos pelo sujeito passivo, ou seja, por definição, implicam sempre um desembolso financeiro ou um exfluxo de meios financeiros a favor de terceiro; – uma despesa implica sempre a saída efetiva de fundos do sujeito passivo e, consequentemente, uma diminuição do seu património; tais despesas, em termos contabilísticos, teriam que afetar o resultado líquido do exercício, diminuindo-o, o que manifestamente não acontece no exercício de 2018».

É manifesto que não é assim. Trata-se de petição de princípio. Apenas seria assim caso a Requerente tivesse contabilizado as despesas não documentadas, para refletir as saídas de caixa. Não as contabilizou, e por isso apresenta os saldos da conta 11-Caixa que apresenta. E como não as contabilizou, não fez diminuir o resultado líquido do exercício.

Aliás, como bem se consagra em jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, a lei não faz depender a tributação autónoma baseada em despesas não documentadas da sua relevância como gastos para determinação do lucro tributável, como pode ver-se pelo acórdão do STA de 31-03-2016, processo n.º 0505/15:

As despesas em questão são tributadas apenas porque são efetuadas, havendo mesmo a cargo do contribuinte a obrigação de as tornar aparentes na sua declaração de rendimentos. Se todas ou parte delas poderiam ter sido consideradas como custos da empresa para efeitos da determinação do seu lucro tributável, aumentando a despesa fiscal com a consequente diminuição do lucro tributável, e a empresa por decisão consciente, ou esquecimento, não as considerou desse modo na sua declaração de rendimentos, nem por isso, elas perdem a sua natureza de despesas tributáveis em sede de tributação autónoma, que, por definição é uma tributação destacável da tributação em sede de IRC.

Assim, na linha desta jurisprudência, é de entender – e também o entende este tribunal arbitral – que as despesas não documentadas a que se refere o artigo 88.º, n.º 1, do CIRC reconduzem-se a saídas de meios financeiros do património da empresa sem um documento de suporte que permita apurar o seu destino ou o seu beneficiário. Este entendimento é o que mais bem garante o sentido útil e a finalidade regulatória do preceito em causa, portanto o entendimento que adequadamente valora o elemento finalístico da lei.”

 

À face do exposto, ao contrário do que argumenta a Requerente, afigura-se clara a desnecessidade de as “despesas não documentadas” afetarem o resultado líquido como requisito constitutivo da tributação autónoma.

 

                3.            EXISTÊNCIA DAS DESPESAS E ÓNUS DA PROVA

 

                O significado de “despesas não documentadas” reconduz-se a saídas de meios financeiros do património empresarial, por movimentação da conta caixa ou de contas bancárias (onde esses meios financeiros estavam registados), desprovidas de suporte documental.

 

                Na situação sub iudice, analisando a factualidade provada, verifica-se uma divergência, que a Requerente assume, entre o montante efetivamente apurado na contagem física da conta de Caixa da Requerente, de € 5.197,65, e o saldo da conta Caixa que, conforme apurado pela AT à mesma data (17 de dezembro de 2018), era de € 557.321,09, correspondendo a diferença a € 552.123,44.

 

                Deste modo, não pode deixar de concluir-se no sentido da verificação de uma saída de valores monetários da sociedade, que deve ser qualificada como dispêndio ou desembolso não documentado, atendendo à inexistência de qualquer de suporte documental e/ou registo contabilístico, que especifique (i) a natureza, (ii) a origem, (iii) a finalidade e volume de despesas incorridas e (iv) a identificação do respetivo beneficiário. É precisamente a inexistência de prova documental (que suporte a despesa) que determina a aplicação do conceito de “despesas não documentadas” e a consequente aplicação da taxa de tributação autónoma prevista no disposto no artigo 88.º do Código do IRC.

 

                Como refere a decisão arbitral n.º 235/2020-T numa situação similar, a ausência dos meios financeiros que a conta 11-Caixa evidenciava, conjugada com a não contabilização de qualquer saída, configura, para os efeitos da lei, uma despesa não documentada. Fundamenta este aresto arbitral, com o qual se concorda, nos seguintes moldes:

                “À face da experiência comum, é de presumir que os meios financeiros que estão contabilizados na conta 11-Caixa e na conta 21-Clientes deviam estar no património da empresa, pois é essa existência que justifica a contabilização. Por outro lado, se esses meios financeiros não foram encontrados, justifica-se, à face da experiência comum, a presunção de que saíram dele, pois esta é a explicação normal para meios financeiros que deviam estar num património deixarem de estar.

                A Requerente aventa que a diferença entre os saldos em causa e a realidade dos meios financeiros existentes no património da empresa poderá dever-se a erros e irregularidades contabilísticas, mas não esboça sequer a respetiva prova, pelo que não há qualquer razão para afastar a presunção natural de aqueles meios financeiros existiam no património da empresa e foi-lhes dado destino desconhecido.

                Por outro lado, os valores elevados dos saldos de caixa mantidos e crescendo durante vários anos, atingindo mais de duas centenas de milhar de euros, não são compatíveis, em termos de razoabilidade e normalidade, com meros erros, incorreções ou irregularidades contabilísticas, pelo que a respetiva atribuição a erros e irregularidades não se afigura minimamente credível. De qualquer forma, o ónus da prova dos alegados erros e irregularidades recai sobre a Requerente, por força do disposto no artigo 74.º, n.º 1, da LGT, pelo que a falta de prova que permite concluir pela sua existência tinha de ser valorada no procedimento tributário e no presente processo contra a Requerente. De resto, é a Requerente que está em melhor posição probatória, dispondo ou devendo dispor dos elementos documentais e materiais necessários e suficientes para justificar as saídas de valores da empresa e evitar a incidência de tributação autónoma.

                Por isso, há fundamento factual para a conclusão subjacente à liquidação impugnada, de que se está perante «despesas não documentadas», para efeitos do artigo 88.º, n.º 1, do CIRC, consubstanciadas por saída de meios financeiros da empresa sem documentos de suporte que permitam concluir pelo destino que lhes foi dado.

Não tem aqui aplicação, quanto à existência do facto tributário gerador da tributação autónoma, o preceituado no artigo 100.º, n.º 1, do CPPT, pois apenas é aplicável quando exista «fundada dúvida» e, neste caso, não se vislumbram razões que abalem a presunção de terem ocorrido despesas não documentadas a que conduzem as presunções referidas.

[…]

Acresce que, ao não contabilizar tais despesas – daí, o saldo elevado da conta 11-Caixa – a Requerente torna opacas as saídas de caixa, as quais podem ter tido lugar por mero esvaziamento dos meios monetários gerados pelas prestações de serviços de restauração, como torna opacas as datas em que tal ocorreu.”

 

                Também na situação em causa nos autos, a Requerente não demonstrou quaisquer erros no lançamento das suas disponibilidades monetárias a débito na conta 11-Caixa, passíveis de abalar a credibilidade dos correspondentes registos contabilísticos, devendo assumir-se que, conforme por aquela contabilizado, tais valores chegaram a ingressar na sua esfera patrimonial. Posto isto, os subsequentes dispêndios ocorridos e não registados na contabilidade da Requerente configuram, como já afirmado, “despesas não documentadas”, enquadráveis no artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC. 

 

                Por outro lado, a demonstração nestes autos da existência de cheques sem provisão dos clientes da Requerente, no valor total de € 26.439,12, devolvidos na compensação do Banco de Portugal em 2014, quatro anos antes do período de tributação em análise, e cujo prazo validade expirava em 2015, não indicia qualquer erro na contabilização dos ingressos na conta Caixa, ou nas disponibilidades financeiras constatadas com referência a 2018.

 

                Acresce que não assiste razão à Requerente quando questiona o procedimento adotado pela Requerida para ajustar o saldo da conta Caixa à data da contagem física (nomeadamente por utilização dos saldos veiculados pelos fornecedores reportados a 17 de dezembro de 2018, para corrigir os movimentos de regularização da conta de fornecedores por contrapartida de Caixa à data de 31 de dezembro de 2018). Com efeito, a Requerida, para apurar o saldo de Caixa, teve de partir das declarações fiscais apresentadas pela Requerente, cujos efeitos se reportam a 31 de dezembro desse ano, e retirar as operações e regularizações efetuadas após 17 de dezembro, data a que foi feita a contagem física, para permitir a comparabilidade dos dados (existências físicas versus saldo contabilístico) no mesmo dia.

 

                Defende ainda a Requerente que é à Requerida que, nos termos do disposto no artigo 74.º da LGT, cabe o ónus da prova da efetiva ocorrência das despesas, incluindo o montante e momento em que a despesa foi incorrida. No que respeita a esta questão, de novo não se concorda com a posição defendida pela Requerente.

 

O artigo 74.º n.º 1 da LGT prevê que “O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque”. Contudo, o disposto no artigo 74.º n.º 1 da LGT, que tem de ser lido em conjugação com a presunção do artigo 75.º da LGT, reflete, no domínio tributário, a regra geral do ónus da prova do artigo 342.º do Código Civil.

 

Nas palavras do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 10 de março de 2016 (processo n.º 12843/15): “II – O ónus da prova, que não se confunde com um dever de provar, é um instituto de direito material regulado nos artigos 342º ss do Código Civil atual, que pode ser definido como a regra de julgamento da causa segundo a qual, num contexto processual onde sobressaem os princípios do inquisitório (artigo 411º do Código de Processo Civil) e da aquisição processual (artigo 413º do Código de Processo Civil), a parte (autor ou réu) que invoque a seu favor uma situação jurídica tem contra si o risco de não serem adquiridos no processo os factos positivos ou negativos que, segundo a lei material, são idóneos a fazer nascer a situação jurídica favorável invocada, ficando, assim, essa parte processual sujeita à improcedência da sua pretensão no caso de insuficiência da aquisição processual dos factos fundamentadores da situação jurídica invocada”.

 

No caso concreto, a divergência registada é uma diferença de facto entre o montante efetivamente apurado na contagem física da conta de Caixa da Requerente e o saldo contabilístico da mesma conta, ou seja, a Requerida não põe em causa a credibilidade dos elementos descritos no saldo contabilístico da conta de Caixa da Requerente. Tendo a Requerida constatado esta divergência (de facto) no âmbito do procedimento de inspeção, nos termos do disposto no artigo 342.º n.º 2 do Código Civil (e do artigo 74.º n.º 1 da LGT), cabia à Requerente, quer no âmbito do procedimento de inspeção, quer no dos presentes autos, carrear elementos de prova que justificassem o desvio do saldo da dita conta em face dos efetivos fundos monetários disponíveis, afastando a prova da Requerida, sob pena de não o fazendo soçobrar na sua pretensão.

 

Pelo exposto, uma vez que a Requerente não apresentou qualquer prova (i) dos elementos essenciais das despesas suportadas, e (ii) de erros no lançamento das suas disponibilidades monetárias a débito na conta 11-Caixa, passíveis de abalar a credibilidade dos correspondentes registos contabilísticos do saldo dessa conta (a mera especulação das possíveis razões da diferença entre o montante efetivamente apurado na contagem física da conta de Caixa e o saldo contabilístico da mesma não constituem qualquer elemento de prova que permita a este Tribunal afastar as conclusões do Relatório de Inspeção), a Requerente fica, naturalmente, sujeita à improcedência do pedido deduzido.

 

                O que vem referido também é válido no que respeita à eventual aplicação do disposto no artigo 100.º, n.º 1 do CPPT. Secunda-se aqui a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo no sentido de que a dúvida fundada sobre a existência e quantificação do facto tributário, que determina a aplicação do disposto no artigo 100.º, n.º 1 do CPPT, tem de resultar da prova produzida nos autos pela parte onerada com o ónus da prova (que no caso concreto é a Requerente): “IV - Sempre que da prova produzida resulte a fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, deverá o ato impugnado ser anulado (artº 100º, nº 1 do CPPT).” – v. acórdão de 1 de junho de 2011, processo n.º 211/11. Não tendo sido produzida prova pela Requerente que permitisse suscitar a dúvida fundada sobre a existência das “despesas não documentadas”, não tem este tribunal arbitral amparo legal para convocar a estatuição do citado artigo 100.º, n.º 1 do CPPT.

 

                4.            A AFERIÇÃO DO CRITÉRIO TEMPORAL DEFINIDOR DESSA TRIBUTAÇÃO

 

                Para a Requerente, o saldo contabilístico de 2018 da conta Caixa já vinha influenciado significativamente pelos valores que transitaram dos exercícios anteriores, nomeadamente de € 81.038,00, em 2016, e de € 135.895,95, em 2017.

 

                Todavia, além de não ter sido demonstrada a influência do saldo de anos anteriores, ónus que, nos moldes acima mencionados, recaía sobre a Requerente, se o fosse (que não foi), não tinha a virtualidade de justificar a totalidade da divergência encontrada pela Requerida no âmbito do procedimento de inspeção tributária em 17 de dezembro de 2018, no montante de € 552.123,44, numa situação em que a Requerente alega que no final do ano de 2017 o saldo da Caixa era de € 135.895,95.

 

                A tributação autónoma das “despesas não documentadas”, apesar de inserida do Código do IRC, apresenta uma natureza particular, sublinhada pela jurisprudência constitucional acima citada: o seu facto gerador corresponde à realização da despesa, e não ao lucro, e é um facto tributário instantâneo, gerador de uma obrigação única (obrigação de pagamento com caráter avulso), e não de formação sucessiva como o IRC.

 

                Sem prejuízo do exposto, às tributações autónomas em sede de IRC aplicam-se todos os regimes do Código deste imposto que não sejam incompatíveis com a sua natureza, precisamente porque formalmente inseridas no mesmo, como decorre o artigo 23.º-A, n.º 1, alínea a) do referido Código. É o que sucede com as regras relativas à apresentação de declarações (artigos 117.º, n.º 1, alínea b) e 120.º do Código do IRC), à autoliquidação, à liquidação adicional e todas as outras que sejam necessárias para a sua aplicação. Deste modo, como salienta a decisão arbitral n.º 235/2020, a liquidação das tributações autónomas tem de ser efetuada relativamente ao período fiscal em que ocorreram as despesas a elas sujeitas.

 

                Porém, não revestindo a tributação autónoma a natureza de um imposto periódico afigura-se que não lhe é aplicável o princípio da anualidade e da especialização dos exercícios que pressupõe a abrangência de um período prolongado de formação do facto tributário [o exercício], que em Portugal corresponde, em regra, ao ano civil (artigos 8.º, n.º 1 e 18.º, n.º 1 do Código do IRC).

 

                O momento da tributação das despesas deve, desta forma, aferir-se com base no critério de “competência de caixa”. O tax point reporta-se à data em que ocorreu a saída de Caixa (o desembolso), sendo as despesas imputadas ao período (exercício) em que essa data se inscreve, assim se articulando com o regime de periodização do IRC. Todavia, nos casos em que os sujeitos passivos, incumprindo os seus deveres declarativos, omitem a contabilização das saídas de caixa, como sucede na situação vertente, é inviável a determinação da data de saída de caixa, pelo que terá de recorrer-se como indicador supletivo à data da contagem física de Caixa.

 

                Segue-se, novamente, a fundamentação da decisão arbitral n.º 235/2020-T que convoca o disposto no n.º 2.3 do “Anexo - Sistema de Normalização Contabilística” , constante do Decreto-Lei n.º 158/2009, de 13 de julho, em relação ao regime de acréscimo (periodização económica): “2.3.1 - Uma entidade deve preparar as suas demonstrações financeiras, exceto para informação de fluxos de caixa, utilizando o regime contabilístico de acréscimo (periodização económica).”

                Argumenta-se aí que “as demonstrações financeiras são preparadas segundo o regime da periodização económica, ou seja o regime de acréscimo, exceto para a informação de fluxos de caixa – à qual portanto tal regime expressamente se não aplica. Para movimentações de caixa, o regime que resta é o da sua reflexão com base na saída (ou na entrada).

E assim deveria ter sido, caso a Requerente as tivesse contabilizado. Aplicar-se-ia aquilo que a AT denomina por critério de ‘competência de caixa’.

Não o fez. Não contabilizou saídas. Pode legitimamente deduzir-se, com base na experiência, que utilizou, de facto, o que na literatura técnica sobre ‘economia não registada’ (também dita ‘informal’), se designa por ‘caixa aberta’, vindo depois alegar, sem ensaio sequer de o procurar demonstrar ou provar, a existência de erros e incorreções.

Não o tendo feito, não tendo contabilizado as saídas de caixa, a verificação do facto gerador da tributação autónoma, que são as despesas não documentadas, fica evidenciada na data da contagem física de caixa.”

 

Conclui-se, desta forma, não assistir razão à Requerente relativamente ao momento temporal a que se reporta o facto gerador, não tendo aquela logrado demonstrar que as saídas de Caixa em causa ocorreram em anos anteriores (sendo que relativamente a uma parte do saldo da conta Caixa tal seria impossível, pois o saldo de cada um dos dois anos anteriores era substancialmente inferior).

 

                Também não tem aqui aplicação o regime da fundada dúvida previsto no artigo 100.º, n.º 1 do CPPT, pois não foi produzida qualquer prova pela Requerente sobre a realização dos dispêndios em períodos distintos daquele em causa [ano 2018], que permitisse suscitar tal dúvida sobre o momento de efetivação das “despesas não documentadas”.

 

Conclui-se, assim, ser correta a consideração, pela AT, das “despesas não documentadas” no período de 2018, a que respeita o saldo divergente objeto de contabilização e no qual se constatou, em 17 de dezembro desse ano, por contagem física, a falta de correspondência entre as disponibilidades monetárias e o saldo registado na contabilidade.

 

5.            DA APLICABILIDADE AO CASO DO REGIME DOS MÉTODOS INDIRETOS

 

                Alega a Requerente ser manifesto que a sua contabilidade, no que se refere aos lançamentos da conta Caixa e aos respetivos saldos credores, apresenta anomalias e irregularidades que lhe retiram a presunção de verdade e fidedignidade, pelo que a Requerida não poderia fundar a tributação autónoma na presunção de verdade da contabilidade e deveria ter alicerçado a correção num procedimento de avaliação indireta, ao abrigo do disposto nos artigos 87.º e seguintes da LGT.

 

                No que respeita a esta última questão, de igual modo, não assiste razão à Requerente.

 

                Dispõe o artigo 104.º, n.º 2 da CRP que “[a] tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real”. Por conseguinte, a aplicação das regras de avaliação indireta é subsidiária em relação à aplicação das regras de avaliação direta (avaliação da matéria coletável com base na contabilidade), conforme preceitua o artigo 85.º da LGT. As regras de avaliação indireta só podem ser aplicadas se existirem elementos de prova suficientes que permitam ao Tribunal afirmar que “a liquidação não pode assentar nos elementos fornecidos pelo contribuinte e que o recurso àquele método [tributação por métodos indiretos] se tornou a única forma de calcular o imposto” (v. os acórdãos do Tribunal Central Administrativo Norte, de 7 de junho de 2018, processo n.º 0389/12.9BEVIS, e de 3 de outubro de 2018, processo n.º 320/14.7BEPRT).

                In casu, não estando em causa a credibilidade da contabilidade da Requerente e encontrando-se disponíveis os elementos necessários à correta determinação do imposto, não estão reunidos os pressupostos legais de que depende o recurso a métodos indiretos, que são subsidiários dos métodos diretos e implicam necessariamente que seja inexequível a quantificação direta e exata da matéria tributável, de acordo com artigo 87.º, n.º 1, alínea b), conjugado com o artigo 88.º, ambos da LGT. Na situação vertente, a quantificação não era impossível e resultou da forma mais fiável que se pode equacionar: a contagem física e direta dos valores monetários na disponibilidade da Requerente.

 

                Partindo do saldo contabilístico da conta Caixa, a diferença resultante da contagem física representa o total dos desembolsos indocumentados que foram feitos pela Requerente – base de incidência da tributação autónoma prevista no artigo 88.º n.º 1 do Código do IRC.

 

                O facto de não se saber a que despesas respeita a base de incidência não constitui requisito de enquadramento na modalidade de avaliação indireta, que é sempre uma última ratio. Dir-se-á até que, em geral, as “despesas não documentadas” não são cognoscíveis, pretendendo o legislador tributar de forma agravada, mas sempre por via da avaliação direta, essa mesma opacidade, por aquilo que ela pode representar (e provavelmente representa).

 

                A falta de transparência relativa ao destino do dispêndio não constitui pressuposto da aplicação de métodos indiretos, que se prende antes com a dificuldade em alcançar a base tributável, o quantum. Ora essa, como vimos, foi objeto de quantificação direta, pela contagem física levada a efeito pela AT, na presença do representante legal da Requerente, nada havendo a censurar à correção meramente aritmética, através de avaliação direta, que lhe foi efetuada, pois não foram identificados motivos para desconsiderar a contabilidade e não se encontram reunidos os demais pressupostos previstos no artigo 87.º da LGT.

 

                À face do exposto, não se julgam verificados os vícios imputados pela Requerente ao ato tributário de liquidação adicional de IRC, relativo a tributação autónoma e inerentes juros compensatórios, razão pela qual a sua pretensão tem de improceder.

 

                6.            JUROS INDEMNIZATÓRIOS

 

O direito a juros indemnizatórios deriva do pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido por erro imputável aos serviços, de acordo com o disposto no artigo 43.º, n.º 1 da LGT, e depende do ganho de causa da Requerente, o que não se verificou na situação em análise.

 

Nestes termos, improcede o pedido de condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, por falta de preenchimento dos pressupostos contidos no artigo 43.º, n.º 1 da LGT, quer em relação ao erro imputável aos serviços, quer ao pagamento de prestação tributária em excesso.

 

* * *

Por fim, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria inútil – cf. artigo 608.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

V.           DECISÃO

 

                De harmonia com o supra exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral, com as legais consequências.

 

VI.          VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em € 280.660,21 correspondente ao valor da liquidação de IRC e juros compensatórios respeitante à tributação autónoma aqui impugnada – cf. artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por remissão do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), em consonância com o disposto no artigo 306.º, n.º 2 do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

VII.         CUSTAS

 

                Custas no montante de € 5.202,00, a cargo da Requerente, por decaimento, de acordo com a Tabela I anexa ao RCPAT e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT, 4.º, n.º 5 do RCPAT e 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 24 de março de 2021

 

Os Árbitros,

 

Alexandra Coelho Martins

Marisa Almeida Araújo

Elisabete Flora Louro Martins Cardoso