Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 215/2020-T
Data da decisão: 2021-01-08  IRC  
Valor do pedido: € 55.555,10
Tema: IRC – Período de Tributação diferente do ano civil; Facto tributário: Alteração de taxa do IRC; Aplicação da lei no tempo.
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SUMÁRIO:

 

1.            O IRC é um imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas, diretamente relacionado com a obtenção de um resultado positivo, de periodicidade anual, passível de tributação, ao qual é aplicada uma determinada taxa.

2.            O IRC é um imposto periódico de formação sucessiva, pelo que, o facto gerador, previsto no artigo 8.º do respetivo Código, é complexo produzindo-se de modo contínuo.

3.            A taxa de IRC, aplicável à matéria coletável das sociedades, no exercício de 2014, ao abrigo do disposto no artigo 87.º do respetivo Código, na redação dada pela Lei 2/2014, de 16 de janeiro (Reforma do IRC), era de 23%.

4.            Esta taxa sofreu uma alteração com a entrada em vigor, a 1 de janeiro de 2015, da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2015), reduzindo-a para 21%.

5.            Tendo em consideração que a Requerente adotou um período especial de tributação com início a 1 de julho de 2014 e término a 30 de junho de 2015, a taxa a aplicar à sua matéria coletável, no exercício de 2014, será de 23%, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 87.º do Código do IRC, na redação dada pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, em virtude de o artigo 14.º desta Lei que, determinou que as alterações legislativas efetuadas por este diploma legal fossem aplicáveis aos períodos de tributação que se iniciassem, ou aos factos tributários que ocorressem em ou após 1 de janeiro de 2014, não ter sido revogada pela entrada em vigor da Lei do Orçamento do Estado para 2015, a qual só tem aplicação aos factos tributários concretizados após essa data, pelo que, aquele artigo 14.º se mantinha em vigor à data do facto gerador (30 de junho de 2014).

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

1.            Em 6 de abril de 2020, A..., LDA , NIPC..., com sede na Av. ... n.º..., em Lisboa, doravante designada por “Requerente”, solicitou a constituição de Tribunal Arbitral e procedeu a um pedido de pronúncia arbitral, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), com vista à declaração de ilegalidade do ato de autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) do ano de 2014, do qual resultou um montante de imposto liquidado de € 647.359,65 (seiscentos e quarenta e sete mil, trezentos e cinquenta e nove euros e sessenta e cinco cêntimos), e da decisão no sentido do indeferimento do pedido de revisão oficiosa que apresentou contra o mesmo, bem como, a anulação parcial daquele ato, e respetivo reembolso, no montante de € 55.555,10 (cinquenta e cinco mil, quinhentos e cinquenta e cinco euros e dez cêntimos) e, por último, peticiona o pagamento de juros indemnizatórios

2.            A Requerente é representada, no âmbito dos presentes autos, pela sua mandatária, a Dr.ª B..., e a Requerida, a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada por AT) é representada pelas juristas, Dr.ª C... e Dr.ª D... .

3.            Verificada a regularidade formal do pedido apresentado, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º do RJAT, foi, o signatário, designado pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, que aceitou o cargo no prazo legalmente estipulado.

4.            O presente Tribunal foi constituído no dia 6 de agosto de 2020, na sede do CAAD, sita na Av. Duque de Loulé, n.º 72 A, em Lisboa, conforme comunicação do tribunal arbitral singular que se encontra junta aos presentes autos.

5.            A Requerida, depois de notificada para o efeito, apresentou a sua resposta e o respetivo processo administrativo, no dia 30 de setembro de 2020.

6.            O Tribunal, por despacho de 13 de outubro de 2020, constatando não existir necessidade de prova adicional, para além daquela que documentalmente já se encontra incorporada nos autos, não se vislumbrando necessidade das partes corrigirem as respetivas peças processuais, reunindo o processo todos os elementos necessários para prolação da decisão, por razões de economia e celeridade processual, da proibição da prática de atos inúteis, ao abrigo dos princípios de autonomia do Tribunal na condução do processo, da simplificação e informalidade processuais previstos nos artigos 19.º, n.º 2 e 29.º, n.º 2 do RJAT, entendeu ser de dispensar a realização da reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, bem como a apresentação de alegações.

7.            No despacho referido em 6. supra, o Tribunal determinou que a decisão final seria proferida até ao termo do prazo fixado no n.º 1 do artigo 21.º do RJAT e advertiu, por último, a Requerente que, até à data indicada, deveria proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente, e comunicar tal pagamento ao CAAD.

 

II. A Requerente sustenta o seu pedido, em síntese, no seguinte:

 

1.            A Requerente sustenta o seu pedido, no facto de, no ano de 2014, ter adotado um período de tributação não coincidente com o ano civil, o qual teve início a 1 de julho de 2014 e término a 30 de junho de 2015. Com efeito, e tendo em consideração que a taxa de IRC foi alterada, para 21%, através da Lei n.º 82-A/2014, de 31 de dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2015), com entrada em vigor a 1 de janeiro de 2015, defende a Requerente que deverá ser esta taxa a aplicar-se, ao ano de 2014, por nada constar naquela lei que o excecione.

 

2.            Peticionando, assim, a final, que seja: «(…) declarada a ilegalidade do indeferimento do pedido de revisão oficiosa supra melhor identificado e, bem assim, a ilegalidade parcial da autoliquidação de IRC, relativa ao exercício de 2014 da requerente terminado em 30.06.2015, no que respeita à não aplicação à matéria coletável do IRC da taxa de 21% em vigor, a 30 de junho de 2015 (data do termo do exercício de 2014 da requerente), com a sua consequente anulação nesta parte, atenta a manifesta ilegalidade da liquidação nesta parte, com todas as consequências legais, designadamente o reembolso à requerente do imposto suportado em excesso no montante de € 55.555,10, acrescidos de juros indemnizatórios à taxa legal contados, até integral reembolso, desde 1 de março de 2016.»

 

III. Na sua Resposta a Requerida, invocou, em síntese, o seguinte:

 

Rebate a Requerida os argumentos da Requerente, pugnando pela improcedência dos mesmos, concluindo, no sentido de que «os atos controvertidos são perfeitamente legais, devendo, como tal, manter-se na ordem jurídica.»

 

 IV. SANEAMENTO

 

O Tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2º e dos artigos 5º e 6º, todos do RJAT.

 

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas, encontram-se regularmente representadas e o processo não enferma de nulidades.

 

V. MATÉRIA DE FACTO

1.            Relativamente à matéria de facto, importa, antes de mais, salientar que o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e distinguir a matéria provada da não provada, tudo conforme o artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e o artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

 

2.            Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 511.º, n.º 1, do anterior CPC, correspondente ao artigo 596.º do atual CPC).

 

3.            Assim, atendendo às posições assumidas pelas partes nos respetivos articulados (pedido de constituição arbitral e alegações da Requerente e Resposta e alegações da Requerida), à prova documental e ao processo administrativo juntos aos autos, consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

 

b.            Factos dados como provados

 

1.            Com interesse para a decisão, dão-se por provados os seguintes factos:

 

A.           A Requerente é uma sociedade comercial com sede em território português que exerce, a título principal, atividade comercial, industrial ou agrícola. –

B.            A Requerente, quanto ao exercício de 2014, adotou um período de tributação não coincidente com o ano civil, o qual se iniciou em 1 de julho de 2014 e terminou a 30 de junho de 2015. – cfr. acordo das partes -;

C.            Com referência ao exercício de 2014, a Requerente apresentou, a 10 de novembro de 2015, declaração de IRC, modelo 22, à qual foi atribuído o n.º de identificação ...– cfr. Doc. n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral - ;

D.           No dia 18 de novembro de 2015, a Requerente, com referência ao mesmo exercício de 2014, apresentou uma declaração de substituição de IRC, modelo 22, à qual foi atribuído o n.º...– cfr. Doc. n.º 2 junto com o pedido de pronuncia arbitral - ;

E.            Na autoliquidação de imposto relativa ao exercício aqui em causa (2014), a Requerente apurou uma coleta de imposto correspondente a € 647.359,65 (seiscentos e quarenta e sete mil, trezentos e cinquenta e nove euros e sessenta e cinco cêntimos), – cfr. Docs. n.º 1 e 2 juntos com o pedido de pronúncia arbitral - ;

F.            A coleta referida em E. supra resultou da aplicação da taxa de IRC de 23% à matéria coletável no montante de € 2.777.755,23 (dois milhões, setecentos e setenta e sete mil setecentos e cinquenta e cinco euros e vinte e três cêntimos) – cfr. Docs. n.º 1 e 2 juntos com o pedido de pronúncia arbitral - ;

G.           No dia 8 de novembro de 2019, apresentou, junto da Direção de Finanças do Porto, um pedido de revisão oficiosa com referência à autoliquidação de IRC do exercício de 2014, o qual foi instaurado sob o n.º ...2019..., mediante o qual requeria a anulação parcial daquele ato, e o consequente reembolso no montante de € 55.555,10 (cinquenta e cinco mil, quinhentos e cinquenta e cinco euros e dez cêntimos) – cfr. Doc. n.º 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral -;

H.           O pedido de revisão oficiosa, seguindo a sua tramitação normal, veio a ser objeto de indeferimento por despacho da Senhora Diretora Adjunta da Direção de Finanças do Porto, atuando ao abrigo de subdelegação de competências, proferido a 22 de janeiro de 2020 – cfr. Docs. n.º 3 e 4 juntos com o pedido de pronúncia arbitral - ;

I.             No dia 6 de abril de 2020, a Requerente apresentou pedido de constituição do presente Tribunal Arbitral.

 

c.            Factos dados como não provados

Como referido, relativamente à matéria de facto dada como assente, o tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada tal como dispõe o artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e o artigo 607.º, n.ºs 2, 3 e 4, do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

 

Não existem factos dados como não provados, entendendo o presente Tribunal Arbitral que todos os factos dados como provados são os bastantes e relevantes para a apreciação do pedido.

 

VI- DO DIREITO

 

- Thema decidendum –

 

Posição da Requerente

 

1.            A questão de fundo dos presentes autos, face às posições assumidas e aos fundamentos alegados pelas partes nas suas peças processuais, consiste em saber qual(is) a(s) taxa(s) de IRC aplicável(éis) à matéria coletável da Requerente, no exercício de 2014, tendo em consideração, por um lado, que adotou um período especial de tributação com início  a 1 de julho de 2014 e término a 30 de junho de 2015, e por outro, que o n.º 1 do artigo 87.º do Código do IRC, que previa a aplicação da taxa de IRC de 23%, sofreu uma alteração legislativa, através da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2015), reduzindo tal taxa para 21%.

 

2.            Ora, sustenta a Requerente que, a Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro (a Lei do Orçamento do Estado para 2015) alterou a taxa geral de IRC, prevista no n.º 1 do artigo 87.º do respetivo Código, de 23% para 21%. Assim, tendo em consideração que a referida Lei entrou em vigor no dia 1 de janeiro de 2015, face ao estatuído no artigo 12.º da Lei Geral Tributária, por um lado, e no n.º 9 do artigo 8.º do Código do IRC, por outro, deve ser-lhe aplicada a taxa de 21%, porquanto «resulta claro da lei, conforme entendimento da doutrina e do próprio Tribunal Constitucional que, verificando-se o facto tributário em sede de IRC no último dia do período de tributação em causa (que, no caso o exercício em causa, correspondeu ao dia 30 de Junho de 2015), é a taxa vigente neste dia que terá de aplicar-se na determinação da matéria colectável daquele exercício. De onde resulta que, no caso em concreto, deveria ter-se-aplicado a taxa de 21% de IRC (em vigor no último dia do período de tributação correspondente ao exercício em causa - 30 de Junho de 2015 - , ao invés da taxa de 23% (que vigorou apenas até 31 de Dezembro de 2014), sendo que, por erro do sistema informático da AT, foi esta última taxa de 23%, imposta no apuramento (autoliquidação) do imposto devido pela requerente.»

 

3.            Mais aduz a Requerente que «recorrendo ao elemento histórico e reconstituindo o pensamento do legislador nos momentos em que anteriormente procedeu a alterações legislativas que resultaram também na alteração da taxa de IRC, verifica-se, sempre que o legislador pretendeu que a nova taxa de IRC se aplicasse apenas aos rendimentos  obtidos em períodos de tributação cujo início ocorresse após a entrada em vigor da nova lei (impedindo assim a aplicação da nova taxa de IRC aos períodos de tributação já iniciados anteriormente), ou que se aplicasse de acordo com um qualquer outro critério especial, fez questão de expressar tal vontade específica em disposição transitória aprovada para o efeito.»

 

4.            Menciona, a Requerente que «(…) a Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro (que procedeu à Reforma do IRC), reduziu ainda mais a taxa do IRC para 23%. Embora aqui o legislador não tenha estabelecido nenhuma norma transitória quanto à entrada em vigor daquela taxa de IRC de 23%, determinou em geral que as alterações legislativas introduzidas pelo diploma em causa fossem aplicáveis aos períodos de tributação que se iniciassem, ou aos factos tributários que ocorressem, em ou após 1 de janeiro de 2014 (sendo que com esta última expressão se regressa à regra geral da aplicabilidade da nova taxa a todos os exercícios fiscais que se concluam após a data de entrada em vigor da nova lei, ainda que se tenham iniciado anteriormente à mesma). Ora, como se vê, sempre que o legislador quis que a nova lei (a nova taxa de IRC) se aplicasse apenas a períodos de tributação iniciados após a respectiva entrada em vigor, ressalvou expressamente essas situações, acautelando as suas intenções. Se não o fez por referência à alteração legislativa que resultou na redução para 21% da taxa de IRC com efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2015, foi precisamente porque não era sua intenção aplicar aquela taxa apenas aos períodos de tributação que se iniciaram em ou após 1 de Janeiro de 2015. Donde valer a regra geral de que a nova taxa se aplica aos períodos de tributação cujo facto tributário se verificou em ou após 1 de Janeiro de 2015 (como sucede neste caso).»

 

5.            Concluindo no sentido de que «(…) verificando-se o facto gerador de IRC no último dia do período de tributação (cfr. cit. artigo 8.º, n.º 9, do CIRC), aquela taxa de 21% aplica-se aos períodos de tributação coincidentes com o ano civil que tenham início em 1 de Janeiro de 2015 e, bem assim, aos períodos de tributação não coincidentes com o ano civil cujo termo (verificação do facto tributário) ocorra após 1 de Janeiro de 2015.»

 

6.            Peticionando, a final, o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do disposto no artigo 43.º da LGT, considerando «ter-se por verificado erro imputável aos Serviços para efeitos de pagamento de juros indemnizatórios pelos prejuízos resultantes do pagamento de imposto em excesso.»

 

Posição da Requerida

 

7.            Por seu turno, defende a Requerida que «o IRC é devido em cada exercício, estando diretamente relacionado com a obtenção de um resultado positivo, passível de tributação, ao qual é aplicada uma determinada taxa. Não estando as taxas a aplicar previstas nas normas de incidência, são, ainda assim, um elemento essencial da relação jurídico-tributária, não se confundindo com a obrigação tributária, a qual se define no início do período de tributação, quando este não coincide com o ano civil, inexistindo neste caso qualquer controvérsia. Assim, a obrigação tributária que nasce depois da aprovação e publicação da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro, isto é, o disposto no n.º 1 do art.º 97.º do CIRC apenas se aplica aos períodos de tributação com início em ou após 01 de Janeiro de 2015.»

 

8.            Mais, aduz, a Requerida que «o IRC é devido por cada período económico, e, sendo um imposto periódico, o facto gerador produz-se de modo sucessivo, pelo decurso de um determinado período de tempo, em regra anual, tendendo a repetir-se no tempo, gerando para o contribuinte a obrigação de pagar. Ou seja, o facto gerador do imposto é complexo e de formação sucessiva ao longo de um ano. Deste modo, definida que esteja a incidência objetiva e subjetiva do imposto, o facto gerador não se confunde nem com a determinação da matéria coletável, nem com a taxa aplicável, as quais têm a sua própria autonomia conceptual, concretizando-se em momentos diferentes.»

 

9.            Concretizando, refere a Requerida que, no caso concreto «(…) no qual o ano de tributação de 2014 se inicia em 1 de Julho de 2014 e termina a 30 de Junho de 2015, devendo a taxa a aplicar ser a definida para o ano de 2014, sob pena de ferir o princípio da igualdade tributária, porquanto teríamos no mesmo exercício a aplicação de taxas diferentes, apenas pelo facto de terem sido definidos períodos de tributação diferentes e não por qualquer fator distintivo de criação de riqueza. Assim, a taxa a aplicar, independentemente de o ano de tributação começar em 01.01.2014 e terminar em 31.12.2014 ou começar em 01.07.2014 e terminar em 30.06.2015 (como sucede no caso em apreço), sempre será a definida para o exercício de 2014, inexistindo qualquer norma de direito transitório criadora de um regime de exceção como pretendido pela Requerente. Sob pena de se “saltar” um ano e nunca a Requerente ser tributada pela taxa que estava em vigor para o exercício de 2014.»

 

10.          Acrescenta, complementarmente, a Requerida que «(…) a taxa de IRC para o período de 2014 é de 23%, nos termos da redação em vigor para os períodos de tributação que se iniciassem em ou após 1 de janeiro de 2014, dada pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, que implementou a Reforma do IRC. De facto, em conformidade com o disposto no art.º 14.º daquela lei: “Sem prejuízo do disposto no artigo 8.º, a presente lei aplica-se aos períodos de tributação que se iniciem, ou aos factos tributários que ocorram, em ou após 1 de janeiro de 2014.» Ora não decorrendo da LOE de 2015 qualquer norma revogatória deste art.º 14.º, a sua redação encontrava-se em vigor em 31 de março de 2015 e por conseguinte a taxa de IRC para o período de tributação de 2014 era 23%, independentemente de coincidir ou não com o ano civil. E não se diga que a ausência de norma transitória consubstancia uma revogação daquela disposição».

 

11.          E conclui, no sentido de que, «para o período de tributação de 2014, a taxa de IRC é de 23%, para todos os sujeitos passivos, quer iniciem em 01/01/2014, quer em data posterior ao seu período tributário»., considerando, assim, «que os atos controvertidos são perfeitamente legais, devendo, para tal manter-se na ordem jurídica.»

 

12.          No que respeita ao peticionado pagamento juros indemnizatórios, sustenta a Requerida que «não podendo ser imputado aos serviços da AT erro que, por si, tenha determinado o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, não pode senão concluir-se no sentido de que não são devidos juros indemnizatórios nos termos do artigo 43.º da LGT, aliás em consonância com a jurisprudência do STA.»

 

Apreciação, ponderação dos argumentos de facto e de direito

 

13.          Como consabidamente referem, Requerente e Requerida, as questões a decidir nos presentes autos foram já objeto de análise de diversas decisões arbitrais, de que faremos alusão infra.

 

14.          No entanto, cumpre, desde já, aludir que o presente Tribunal adotará e transportará para o processo em apreciação nestes autos, os fundamentos de direito apresentados na decisão do Tribunal Arbitral Coletivo, proferido no âmbito do processo n.º 893/2019-T, por considerar que faz a mesma uma ponderação e aplicação do Direito aos factos que o presente Tribunal considera a mais correta e assertiva, clara e transparente, totalmente adequada e apropriada, face à sua semelhança quanto à matéria em discussão e aos argumentos aduzidos pela Requerente e pela Requerida, neste e naquele processo. 

 

15.          Entretanto, primeiramente, faremos um breve enquadramento normativo do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC), e a sua evolução no tempo (até 2015, que aqui interessa).

Vejamos,

 

16.          O Código do IRC foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-B/88, de 30 de novembro, entrando em vigo no dia 1 de janeiro de 1989.

 

17.          Como veremos infra, o referido Código do IRC foi objeto de diversas alterações legislativas em prol da sua adaptação, adequação e ajuste à evolução dos tempos, e que aqui abordaremos no que interessa ao presente processo. Assim,

 

18.          Prevê o artigo 1.º do Código do IRC, sob a epígrafe “Pressuposto do imposto” que «[o] imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC) incide sobre os rendimentos obtidos, mesmo quando provenientes de atos ilícitos, no período de tributação, pelos respetivos sujeitos passivos, nos termos deste Código.”.

 

19.          O artigo 2.º do referido Código indica quem são os sujeito passivos do imposto (IRC), referindo na alínea a) do n.º 1 «[a]s sociedade comerciais ou civis sob a forma comercial, as cooperativas, as empresas públicas e as demais pessoas coletivas de direito público ou privado, com sede ou direção efetiva em território português;»

 

20.          O artigo 3.º do mesmo diploma, sob a epígrafe “Base do imposto”, dispõe na alínea a) do n.º 1 e o n.º 2, o seguinte:

«a) O lucro das sociedades comerciais ou civis sob a forma comercial, das cooperativas e das empresas públicas e o das demais pessoas coletivas ou entidades referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo anterior que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola;

2             -  “(…) o lucro consiste na diferença entre os valores do património líquido no fim e no início do período de tributação, com as correções estabelecidas neste Código.”

 

21.          O artigo 8.º sob o mote quanto ao “período de tributação”, alude que:

«1. O IRC (…) é devido por cada período de tributação, que coincide com o ano civil, sem prejuízo das exceções previstas neste artigo.

2. As pessoas coletivas com sede ou direção efetiva em território português, (…) podem adotar um período de imposto diferente do estabelecido no número anterior, o qual deve ser mantido durante, pelo menos, os cinco períodos de tributação imediatos.

(…)

9.O facto gerador do imposto considera-se verificado no último dia do período de tributação.”.

 

22.          Ora, a Requerente, ao abrigo deste quadro normativo, adotou um período especial de tributação com início a 01.07.2014 e término a 30.06.2015, data esta em que se verifica, conforme previsto no supramencionado n.º 9 do artigo 8.º do Código do IRC, o facto tributário gerador do imposto, por ser este o último dia do período de tributação em referência.

 

23.          Ora, a problemática que aqui nos ocupa tem a ver com a taxa de IRC aplicável à matéria coletável da Requerente, que adotou um período de tributação especial, no exercício de 2014, com início a 01.07.2014 e término a 01.07.2015, face à alteração do n.º 1 do artigo 87.º do Código do IRC, concretizada pela Lei n.º 82-B/2014, 31.12, (Lei do Orçamento do Estado para 2015), reduzindo-a de 23% para 21%.

 

24.          Com interesse faremos uma pequena abordagem quanto à evolução legislativa da taxa de IRC, desde a entrada em vigor do seu Código, bem como das normas transitórias quanto às mesmas, pelo seu manifesto interesse. Vejamos,

 

DIPLOMA            TAXA     NORMA TRANSITÓRIA/PRODUÇÃO DE EFEITOS

Decreto-Lei n.º 442-B/88, de 30.11          36,5%    -

Decreto-Lei n.º 44/98, 03.03       34%       Artigo 2.º «O presente diploma é aplicável aos períodos de tributação iniciados a partir de 1 de Janeiro de 1998, inclusive, com duração anual, com excepção da alteração introduzida no n.º 1 do artigo 69.º do Código do IRC que é aplicável aos rendimentos obtidos em períodos de tributação cujo início ocorra a partir de 1 de Janeiro de 1997.»

Lei n.º 3-B/2000, 04.04

(Lei do Orçamento do Estado para 2000)              32%       Artigo 41.º, n.º 3 «O disposto no n.º 1 do artigo 69.º do Código do IRC, com a redacção dada pela presente lei, é aplicável aos rendimentos obtidos em períodos de tributação cujo início ocorra a partir de 1 de Janeiro de 2000.

Lei n.º 109-B/2001, 27.12

(Lei do Orçamento do Estado para 2002)              30%       Artigo 32º, n.º 7 «O disposto no n.º 1 do artigo 80.º aplica-se aos rendimentos obtidos nos períodos de tributação cujo início ocorra a partir de 1 de Janeiro de 2002.

Lei n.º 107-B/2003, de 31.12

(Lei do Orçamento do Estado para 2004)              25%       Artigo 30.º, n.º 2 «O disposto no n.º 1 do artigo 80.º do Código do IRC aplica-se aos rendimentos obtidos nos períodos de tributação cujo início ocorra a partir de 1 de Janeiro de 2004»

Lei n.º 2/2014, 16.01

(Reforma do IRC)             23%       Artigo 14.º «Sem prejuízo do disposto no artigo 8.º, a presente lei aplica -se aos períodos de tributação que se iniciem, ou aos factos tributários que ocorram, em ou após 1 de janeiro de 2014.

Lei n.º 82-B/2014, 31.12

(Lei do Orçamento do Estado para 2015)              21%       Artigo 261.º «A presente lei entra em vigor no dia 1 de janeiro de 2015».

 

25.          Na verdade, a alteração legislativa a que daremos mais enfoque será naturalmente aquela que reduz a taxa de IRC de 23% - previsão da Lei 2/2014, de 16.01 – para 21% - Lei n.º 2-B/2014, de 31.12. - e os seus efeitos, para o exercício de 2014, atendendo a que a Requerente optou por um período de tributação “atípico” (diferente do ano civil) iniciado a 30.06.2014 e terminado a 01.07.2015, aplicável ao exercício de 2014.

 

26.          Com efeito, tendo em consideração a identidade da matéria em discussão nos presentes autos, bem como, dos argumentos tecidos por ambas as partes quanto à mesma, aproveitaremos e aqui reproduziremos para os devidos efeitos legais, com a devida vénia, o já apreciado e ponderado na, já anunciada, decisão arbitral do Tribunal Coletivo proferida no âmbito do processo n.º 893/2019-T, que acompanhamos na íntegra. O que fazemos face à sua percetível, clara e reluzente exposição argumentativa.

 

27.          Assim, no que respeita às posições assumidas em decisões arbitrais anteriores, e invocadas pela Requerente e Requerida, sobre a questão controvertida nos presentes autos, afere-se e segue-se o apreciado pela referida decisão arbitral do Tribunal Coletivo, acima referenciado, no sentido de que:

 

«16. A questão da determinação da Lei aplicável nos presentes autos foi submetida a apreciação e julgada por Tribunal arbitral singular, em 15 de Outubro de 2018, no âmbito do processo n.º 179/2018-T, processo esse invocado pela Requerente para fundamentar a sua pretensão.

Sucintamente, no âmbito desse processo considerou-se que, “ao contrário do que fez nos anteriores diplomas legais que alteraram a taxa de IRC, o legislador não estabeleceu na Lei do Orçamento de Estado para 2015 qualquer disposição transitória relativa à alteração da taxa de IRC e à sua aplicação temporal”. Neste sentido, caberia “atender às regras gerais sobre a aplicação no tempo da lei fiscal”, nomeadamente ao artigo 12.º, n.º 1 da LGT que dispõe que “As normas tributárias aplicam-se aos factos posteriores à sua entrada em vigor, não podendo ser criados quaisquer impostos retroactivos”. Uma vez que naquele processo o facto tributário do período de tributação de 2014 se gerou após a entrada em vigor da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro (a Lei do Orçamento do Estado para 2015), considerou aquele Tribunal arbitral que seria aplicável a taxa de 21% e não a taxa de 23% que havia sido introduzida pela Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro.

A este respeito, arguiu-se ainda que não seria possível extrair a conclusão de que “(…) na verdade, apenas por mero lapso o legislador não estabeleceu uma norma transitória na Lei do Orçamento de Estado para 2015, sendo sua intenção que a nova taxa de IRC se aplique apenas aos períodos de tributação iniciados depois de 01/01/2015.”, dado que tal solução seria contrária ao disposto no artigo 9.º, n.º 3 do Código Civil segundo o qual o “intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.

Em síntese, o legislador teria “pretend[ido] a imediata aplicação da nova taxa a todos os períodos de tributação iniciados em 01/01/2015, após 01/01/2015 ou em curso a 01/01/2015.”.

 

Por seu turno, foi submetida a apreciação e julgada questão análoga à dos presentes autos por Tribunal arbitral singular, em 20 de Dezembro de 2019, no âmbito do processo n.º 412/2019-T, processo esse invocado pela Requerente nas suas alegações para fundamentar a sua pretensão.

Em termos sucintos, defendeu-se no seio desse processo que “diferentemente do que aconteceu anteriormente, o legislador da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro, não previu nenhuma solução específica sobre o âmbito de aplicação temporal da nova taxa geral de IRC que foi instituída.”, pelo que “o âmbito de aplicação temporal da alteração à taxa geral do IRC (…) tem de ser determinado a partir das regras gerais de interpretação da lei e de aplicação das leis no tempo”. Neste sentido, invocou-se naquele processo que o artigo 12.º da LGT constitui a norma de âmbito genérico sobre a aplicação da Lei tributária no tempo, decorrendo do seu n.º 1 que “a norma tributária apenas se aplica aos atos ou factos ocorridos no seu domínio temporal de vigência”. Contudo, no caso de factos tributários de formação sucessiva, caberia aplicar o n.º 2 daquele mesmo preceito que determinava que a Lei nova apenas seria aplicável ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor, sendo assim a lei tributária aplicada segundo uma regra pro rata temporis.

Não obstante, defendeu-se que em virtude de a LGT “não possui[r] qualquer valor reforçado e, precisamente por se situar no mesmo nível hierárquico, é sempre suscetível de ser derrogada por qualquer disposição legal posterior; mais, importa ainda ter presente a relação entre lei geral e lei especial (…)”. Deste modo, “atento o disposto no artigo 8.º, n.º 9, do Código do IRC e a configuração aí dada ao facto gerador do imposto, afigura-se-nos que o legislador consagrou uma solução particular quanto à aplicação da Lei fiscal no tempo e à retroatividade; entendemos, assim, que vigora neste âmbito uma regra especial que resolve diretamente os problemas de sucessão de normas fiscais no tempo e que afasta a aplicação da regra geral constante do artigo 12.º, n.º 2, da LGT.”.

E tal solução não seria contrária à proibição constitucional da retroactividade das normas fiscais, constante do artigo 103.º, n.º 3 da CRP, na medida em que a aplicação da Lei nova a todo o período de tributação (ainda que, em bom rigor, o facto tributário apenas se verificasse no último dia daquele) sempre seria mais favorável ao contribuinte, de tal modo que a aplicação da taxa de 21% ao exercício de 2014 “não s[eria] contrári[a] à segurança jurídica e, portanto, não viola[ria] a tutela da confiança do contribuinte”. A seu título, também não seria violado o princípio da igualdade, na medida em que a aplicação de taxas diferentes ao período de tributação de 2014 seria justificada pela diferente situação jurídica verificada quanto aos diversos sujeitos passivos tributados naquele exercício, “uma vez que o facto gerador do imposto ocorre em momentos temporais diferentes quanto a uns e a outros”.

Em síntese, a “tributação deve[ria] ser efetuada em consonância com a lei em vigor no termo do período de tributação.”, pelo que seria aplicável a taxa de 21% introduzida pela Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro, no caso de o período tributário terminar após a sua introdução, porquanto o facto gerador de imposto já se verificaria ao abrigo da lei nova.

 

Pese embora aquelas duas decisões arbitrais, ainda que com fundamentos não inteiramente coincidentes, tenham dado razão à tese propugnada pela Requerente, a verdade é que no recente acórdão arbitral de 27 de Fevereiro de 2020, proferido no âmbito do processo n.º 411/2019-T, foi submetida a apreciação e julgada uma questão análoga à dos presentes autos, tendo-se decidido em sentido favorável à Requerida, sendo que este acórdão arbitral foi invocado pela Requerente nas suas alegações para fundamentar a sua pretensão.

Em termos concisos, defendeu-se no referido processo que a determinação da taxa aplicável ao período de tributação de 2014, cujo facto tributário apenas se verificou no decurso do ano civil de 2015, já após a entrada em vigor da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro, passaria por uma correcta interpretação do teor normativo do artigo 14.º da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, isto é, passaria por “(…) apurar se, e em que medida, a norma do supra-referido art.º 14.º estava, ou não em vigor, no dia 31 de Janeiro de 2015.”. Isto na medida em que “se se considerar que aquela norma vigorava a 31 de Janeiro de 2015, por força da mesma, ter-se-á de considerar que a taxa de imposto aplicável era, ainda, a instituída na Lei que a consagra.”, ou seja, continuaria a ser aplicável a taxa de 23% e não a taxa de 21% como defendido pela Requerente.

O artigo 14.º da referida lei dispunha que “Sem prejuízo do disposto no artigo 8.º, a presente lei aplica-se aos períodos de tributação que se iniciem, ou aos factos tributários que ocorram, em ou após 1 de janeiro de 2014”, tendo-se procurado no aresto em questão destrinçar o sentido e o alcance daquela norma.

Relativamente ao seu teor literal, referiu-se que se poderiam extrair diferentes conclusões. Por um lado, poderia concluir-se que “se aplicariam as normas da Lei 2/2014, relativamente aos factos tributários ocorridos a partir de 1 de Janeiro de 2014, mesmo que relativos ao exercício de 2013.”, o que seria o caso da Requerente naquele processo, uma vez que o seu período de tributação de 2013 terminou já na vigência daquela lei, altura em que se se verificou o facto tributário. Por outro lado, “situando-nos ainda no plano da letra da lei, também se poderia concluir que da mesma resultaria que as normas da Lei 2/2014, por força do seu art.º 14.º, se aplicariam aos exercícios e factos tributários, ocorridos nos exercícios e anos de 2015 e seguintes, e portanto, abrangendo o facto tributário em causa no presente processo arbitral, a menos que se concluísse que aquele artigo 14.º tivesse sido revogado”.

Não sendo o elemento literal da interpretação suficiente para determinar o alcance do preceito, caberia ter devidamente em consideração o seu elemento teleológico. Isto na medida em que, do ponto de vista lógico, interpretar a referida norma como sendo aplicável a todo e qualquer facto tributário verificado após a sua entrada em vigor tornaria a referência a “(…) períodos de tributação que se iniciem (…) em ou após 1 de janeiro de 2014.” desprovida de sentido, porquanto já estaria abrangida pela parte final do preceito que se refere “(…) aos factos tributários que ocorram, em ou após 1 de janeiro de 2014”. Deste modo, tendo em conta que “a Lei 2/2014 procede a alterações profundas em sede de IRC e, também, em sede de IRS, imposto estes cuja tributação assenta, por norma, em períodos de tributação, mas que, incidentalmente, podem impor tributação de factos tributários isolados (como seja no caso das tributações autónomas).”, as referências supra-referidas não deveriam ser interpretadas como estando numa relação de alternatividade, mas sim de subsidiariedade. Dito de outro modo, em termos porventura mais explícitos, “o que o art.º 14.º da Lei 2/2014 pretende dizer é que o disposto nesta lei se aplica aos períodos de tributação, quando esta assente naqueles, e aos factos tributários, quando a tributação não tenha por base aqueles.”.

Tendo agora em consideração o elemento sistemático, concluiu-se no âmbito do referido aresto que o preceito em análise, ao delimitar o âmbito de vigência temporal das disposições da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, teve “subjacente o propósito de dispor na matéria de modo distinto do que resultaria da aplicação da referida norma da LGT.”, ou seja, pretendeu afastar a aplicação das regras gerais quanto à aplicação da lei tributária no tempo, constantes do artigo 12.º da LGT.

Em suma, entendeu-se que “o art.º 14.º da Lei 2/2014 deverá ser interpretado como dispondo no sentido de que as normas daquela Lei se apliquem ao período de tributação de 2014, relativamente à tributação, em IRS ou IRC, que assente naquele, e aos factos tributários ocorridos em 2014, relativamente à tributação, também em IRS ou IRC, que não assente no período de tributação.”.

Por último, considerou-se naquele acórdão que o preceito normativo em análise ainda se encontrava em vigor no momento da verificação do facto tributário, isto é, no termo do período de tributação de 2014 que ocorreu no decurso do ano civil de 2015. E isto, ainda que a Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro, que introduziu a taxa de 21%, tenha entrado em vigor a 1 de Janeiro de 2015.

Tal conclusão deveu-se ao facto de “a Lei do Orçamento para 2015, não cont[er] nenhuma norma que revogue, expressamente, o disposto naquele art.º 14.º, sendo que, ausência de norma transitória, invocada pela Requerente, e notada na decisão arbitral supra-citada [a decisão arbitral proferida em 15 de Outubro de 2018, no âmbito do processo n.º 179/2018-T], não deverá, de per si, ter-se como evidenciadora de uma intenção revogatória.”. Na verdade, tendo em conta que o artigo 14.º disciplinava o âmbito temporal de todas as alterações normativas introduzidas pela respectiva lei, apenas seria possível que a Lei do Orçamento do Estado para 2015 tivesse revogado tácita e parcialmente aquela norma, no que respeitava à taxa de IRC aplicável. Contudo, tal decisão não seria passível de ser defendida em virtude da ligação entre o artigo 14.º da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, e o artigo 261.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro, ou seja, o facto de o primeiro se consubstanciar enquanto norma especial e o segundo enquanto norma de âmbito geral obstaria à referida hipótese de revogação parcial tácita.

Em síntese, caberia “conclui[r], nos termos expostos, que o art.º 14.º da Lei n.º 2/2014 se encontrava vigente a 31/01/2015, na parte em que impõe a aplicação do disposto naquela Lei à tributação em IRS e IRC que assente no período de tributação de 2014”.

 

28.          No que respeita à Lei aplicável e, naturalmente, à taxa aplicável ao período de tributação da Requerente que teve início a 01.07.2014 e término a 30.06.2015, talqualmente foi abordado e apreciado na supracitada decisão arbitral proferida no processo n.º 893/2019-T, com as devidas adaptações, expomos o seguinte:

 

«17. Uma vez percorridas as decisões arbitrais conhecidas que versaram sobre questões análogas ao caso ora em juízo, cumpre então decidir qual a Lei aplicável e, consequentemente, qual a taxa aplicável ao período de tributação de 2014 da Requerente que se iniciou em 1 de Abril de 2014 e terminou em 31 de Março de 2015.

Enquanto ponto de partida, e com o devido respeito pelas doutas decisões arbitrais proferidas no âmbito do processo n.º 179/2018-T, de 15 de Outubro de 2018, e no âmbito do processo n.º 412/2019-T, de 20 de Dezembro de 2019, adere-se à argumentação sufragada no âmbito do processo n.º 411/2019-T, de 27 de Fevereiro de 2020, porquanto se considera que é esta que concretiza uma correcta interpretação das normas aplicáveis e, consequentemente, uma correcta interpretação do Direito. Senão vejamos.

No decurso do seu pedido de pronúncia arbitral a Requerente invocou a favor da sua pretensão a decisão proferida no âmbito do processo n.º 179/2018-T, de 15 de Outubro de 2018, fazendo uso dos argumentos aí tecidos para justificar a aplicação ao exercício de 2014 da taxa de IRC de 21%. Para o efeito, referiu a Requerente que a Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro, não continha qualquer norma transitória que limitasse a sua produção de efeitos, sendo que o artigo 12.º, n.º 1 da LGT dispunha que as normas tributárias se aplicam aos factos posteriores à sua entrada em vigor. Neste sentido, tendo-se verificado o facto tributário gerador de imposto em 31 de Março de 2015, isto é, após a entrada em vigor daquela Lei, a taxa de IRC vigente naquela data seria a de 21%, devendo a mesma ser aplicada ao período de tributação da Requerente de 2014.

Ora, se é certo que o facto tributário ocorreu após a entrada em vigor daquela Lei, tal como já prontamente se referiu, a verdade é que a referida solução normativa não efectua o correcto enquadramento das normas aplicáveis. Desde logo, a serem aplicáveis as normas gerais em matéria tributária relativamente à aplicação da lei no tempo, sempre seria de aplicar o artigo 12.º, n.º 2 da LGT que consagra um critério pro rata temporis para os impostos periódicos, relativamente aos quais o facto tributário é de formação sucessiva. E a este respeito cumpre salientar que não obsta a tal consideração a circunstância de o facto tributário dever ser tratado enquanto uma realidade unitária, cuja verificação apenas se dá, nos termos do artigo 8.º, n.º 9 do Código do IRC, no último dia do período de tributação.

Conforme refere RUI DUARTE MORAIS, [In “Apontamentos ao Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas”, Reimpressão da edição de Novembro/2007, Almedian, 2009, p. 47] “(…) o IRC é um imposto periódico, ou seja, tem por base um facto gerador de carácter tendencialmente duradouro (a actividade da empresa) que (…) é – artificialmente – cindido em períodos (exercícios) para apuramento de resultados.  Sendo o facto gerador duradouro, coloca-se a questão do momento a considerar para determinar qual a lei que regerá a obrigação de imposto relativa a dado exercício. A resposta resultará, em princípio, do disposto no n.º 9 do art. 8.º: o facto gerador de imposto considera-se verificado no último dia do período de tributação. Ou seja, a lei fiscal aplicável será, por regra (admitindo a normal coincidência do exercício com o ano civil), a vigente em 31 de Dezembro. O que resulta coerente com a anualidade dos impostos (…).”.  (sic)

Neste sentido, o momento da verificação do facto gerador de imposto consiste no parâmetro aferidor do enquadramento tributário do sujeito passivo relativamente a cada um dos períodos de tributação, isto é, baliza no tempo o momento para a aferição e definição daquele enquadramento. Contudo, isso não significa que seja a norma constante do artigo 8.º, n.º 9 do Código do IRC que estabeleça e concretize, por si só, esse mesmo enquadramento legal.  Tal como se referiu no seio do processo n.º 412/2019-T, de 20 de Dezembro de 2019, no qual se dispôs que “Apesar de a LGT conter aqueles que são os grandes princípios ordenadores do sistema jurídico-tributário nacional, não possui qualquer valor reforçado e, precisamente por se situar no mesmo nível hierárquico, é sempre suscetível de ser derrogada por qualquer disposição legal posterior; mais, importa ainda ter presente a relação entre lei geral e lei especial e, concretamente, o princípio lex posterior generalis non derogat lei speciali priori.”. Neste sentido, considerou-se naquele aresto que as regras gerais em matéria de aplicação da lei no tempo constantes da LGT não seriam aplicáveis, uma vez que a vigência do artigo 8.º, n.º 9 do Código do IRC consistia numa norma especial em face do artigo 12.º, n.º 2 da LGT. Assim seria afastado o critério pro rata temporis, aplicando-se a lei nova a “todos os factos e situações ocorridos no período de tributação em que entra em vigor”, isto é, aplicando-se a Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro, bem como a taxa de 21% por ela consagrada ao exercício de 2014.

A referida solução jurídica não tem, em nossa opinião, em consideração a devida relação que se estabelece entre as leis potencialmente aplicáveis, efectuando um erróneo enquadramento jurídico. De facto, tal como se referiu, o artigo 8.º, n.º 9 do Código do IRC determina o momento da verificação do facto tributário para efeitos do enquadramento normativo da situação jurídica da Requerente quanto a um determinado período de tributação não consistindo, em si, o critério de determinação da lei aplicável. Esse será sempre determinado pelas normas tributárias vigentes potencialmente aplicáveis à situação do sujeito passivo.

No caso em apreço, como vimos, a Requerente adoptou um período especial de tributação que se iniciou em 1 de abril de 2014 e terminou em 31 de Março de 2015. A taxa aplicável é a que resulta, por vontade expressa do legislador, vazada na Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro.

Com efeito, o legislador quis que a taxa de imposto, constante do artigo 87.º, n.º 1 do Código do IRC e fixada em 23%, se aplicasse aos períodos de tributação, tais como o da Requerente, que se iniciaram em 2014 e completaram o seu ciclo de tributação anual, tornando-se exigíveis, em 2015. É neste sentido claro o teor do preceito ao dizer que “Sem prejuízo do disposto no artigo 8.º, a presente Lei aplica-se aos períodos de tributação que se iniciem, ou aos factos tributários que ocorram, em ou após 1 de janeiro de 2014”. (destacado nosso) O legislador, consciente de situações como a da Requerente, cujo período tributário não coincide com o ano civil, e para evitar situações de desigualdade, resolveu o problema colocando os ciclos tributários iniciados em 2014, mas que possam terminar em 2015, sob o mesmo regime jurídico, quanto à taxa aplicável. Esta técnica jurídica evitou que o legislador de 2015 tivesse necessidade de fixar qualquer norma transitória. 

Com efeito, o âmbito de proteção da Lei n.º 2/2014 não é minimamente contrariado pela Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro (a Lei do Orçamento do Estado para 2015), em concreto do seu artigo 192.º, em que a taxa geral do IRC constante do artigo 87.º, n.º 1 do Código do IRC foi fixada em 21%.

Na verdade, determina-se, no artigo 261.º daquele primeiro diploma legal que “A presente lei entra em vigor no dia 1 de janeiro de 2015.” Ou seja, resulta claro que esta norma visa aplicar-se apenas aos períodos tributários iniciados em 2015 (a um de janeiro ou posteriormente). O que não é manifestamente o caso da situação da Requerente, cujo período tributário se iniciou em 2014. 

Em suma, qualquer interpretação que pretenda fazer aplicar à situação em apreço o artigo 192 da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro, não tem na sua letra qualquer apoio.    

A interpretação ora sufragada, tal como consignado na Decisão arbitral proferida no processo n.º 411/2019-T, é a “que melhor se coaduna com os elementos clássicos da interpretação, uma vez que é a que melhor compatibiliza o teor literal, sistemático e teleológico do preceito. Veja-se, desde logo, que propugnar uma interpretação que não fixasse uma taxa de IRC de 23%, quanto aos actos regidos e dependentes do período de tributação de 2014 (como era o caso do facto gerador de imposto que apenas se verifica no término deste período), a par da fixação daquela mesma taxa para todos os demais actos tributários que se verificassem no decurso daquele exercício e que cuja verificação não assentasse ou necessitasse do culminar do período de tributação, seria propugnar uma interpretação desprovida de sentido, porquanto redundante.

De facto, “Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”, conforme estabelece o artigo 9.º, n.º 3 do Código Civil, pelo que se considera acertada a interpretação da norma que procura extrair as devidas consequências jurídicas quanto a cada uma das circunstâncias nela enunciadas, ao invés de tomar factos diversos expressamente definidos como tal pelo legislador como constituindo realidades idênticas às quais aplicam os mesmos efeitos jurídicos.

“Por último, cabe referir que tal solução em nada viola o princípio da igualdade tributária, uma vez que foi pretensão expressa do legislador que a taxa de 23% definida na Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, se aplicasse a todos os períodos de tributação de 2014, independentemente do seu início e do seu termo. Deste modo, não existe qualquer discriminação em face dos sujeitos passivos a quem seja aplicada a taxa de 21% definida pela Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro, na medida em que não estão em causa situações idênticas. Ainda que ambos os factos tributários se verifiquem após a entrada em vigor desta última lei, a verdade é que estão em causa períodos de tributação diferentes relativamente aos quais o legislador definiu taxas de imposto diferentes.” 

 

29.          Conclui, a decisão arbitral que escoltamos, no sentido que:

«18. Em face de tudo o exposto, conclui-se que o artigo 14.º da Lei n.º 2/2014 mantinha a sua vigência aquando da verificação do facto tributário em 31 de Março 2015, na parte em que determinava a aplicação da taxa de 23% à matéria colectável de IRC apurada por referência ao período de tributação de 2014, concluindo pela legalidade da actuação da AT, e pela consequente improcedência do pedido arbitral, incluindo os demais pedidos a ele acessórios.»

 

30.          Conclusão a que se chega, igualmente, no presente processo arbitral, escusando-nos de demais alongadas apreciações ou ponderações sobre a matéria, apenas referindo, pelo seu manifesto interesse que, a certeza e segurança jurídicas determinam que, quando se inicie um período de tributação, o contribuinte deva conhecer a taxa que lhe vai ser aplicada, por uma questão de transparência do sistema, e porque a taxa de determinado exercício é condição de diversos outros encargos fiscais que o contribuinte possa ter.

 

31.          Face a tudo quanto acima foi exposto, designadamente, quanto à manutenção em vigor do disposto no artigo 14.º da Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, à data da verificação do facto tributário, a 30.06.2015, nos presentes autos, é, também aqui aplicável a taxa de IRC de 23% à matéria coletável de IRC da Requerente, apurada com referência ao exercício de 2014.

 

32.          Nestes termos, improcedendo o pedido de pronúncia arbitral da Requerente fica prejudicado o conhecimento do peticionado pagamento de juros indemnizatórios, em virtude de o ato de autoliquidação sindicado nos presentes autos não padecer de qualquer ilegalidade, nem se encontrar o mesmo ferido de erro dos serviços da AT que o justifique.

 

VIII. DECISÃO

 

Pelos fundamentos factuais e jurídicos expostos, decide-se, assim, julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, manter-se o ato de autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas referente ao exercício de 2014, nos seus precisos termos.

 

Valor do Processo

Fixa-se o valor do processo em € 55.555,10 (cinquenta e cinco mil, quinhentos e cinquenta e cinco euros e dez cêntimos), nos termos artigo 97.º-A, n.º 1, c), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

Custas

Custas a cargo da Requerente, de acordo com o artigo 12.º, n.º 2 do RJAT, do artigo 4.º do RCPAT, e da Tabela I anexa a este último, que se fixam no montante de € 2.142,00 (dois mil, cento e quarenta e dois euros).

 

Notifique-se.

Lisboa, 8 de janeiro de 2021

 

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O Árbitro

Jorge Carita