Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 214/2020-T
Data da decisão: 2020-12-07  IRS  
Valor do pedido: € 9.232,13
Tema: IRS – Tributação de Mais-valias Imobiliárias; Valor de aquisição; Contrato de Locação Financeira.
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DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

 

O árbitro Vera Figueiredo, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o presente Tribunal Arbitral, constituído em 06-08-2020, decide nos termos que se seguem:

I.             RELATÓRIO

1.            A..., com o número de identificação fiscal n.º..., com domicilio fiscal na Rua ..., n.º..., ..., ..., ...-..., Cascais, adiante designado como “Requerente”, vem ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 10.º e 13.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (“RJAT”) requerer a constituição de tribunal arbitral e submeter pedido de pronúncia arbitral, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante designada como “Requerida” ou “AT”), e que tem por objeto a anulação da liquidação de IRS relativa ao ano de 2016 com o n.º 2018..., confirmada pela decisão da reclamação graciosa com o n.º de processo ...2018..., com a consequente restituição da quantia de € 9.232,13, acrescida de juros desde a data do pagamento e de custas processuais.

2.            O pedido de constituição de Tribunal Arbitral foi apresentado pelo Requerente em 07-04-2020, tendo sido aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e notificado à Requerida em 23-04-2020.

3.            Mediante despacho da Subdiretora Geral, datado de 24-06-2020, notificado ao Requerente através do Ofício n.º ... de 06-07-2020, a Requerida, ao abrigo do disposto no artigo 13.º do RJAT, revogou parcialmente o ato tributário sindicado nos presentes autos:

 

4.            Na mesma data, foi o Requerente notificado pelo Presidente do CAAD para nos termos do artigo 13.º n.º 2 do RJAT, informar se pretendia o prosseguimento do procedimento arbitral.

5.            O Requerente não se pronunciou sobre o prosseguimento do procedimento arbitral, no prazo previsto no artigo 13.º n.º 2 do RJAT.

6.            O Requerente optou por não designar árbitro, tendo, nos termos do artigo 6.º n.º 1 e do artigo 11.º n.º 1 do RJAT, o Conselho Deontológico designado o árbitro do Tribunal Arbitral Singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo legalmente estipulado.

7.            As partes foram devidamente notificadas da nomeação em 07-07-2020, não tendo manifestado vontade de recusar a mesma.

8.            Em conformidade com o disposto no artigo 11.º n.º 1 alínea c) do RJAT, o Tribunal Arbitral Singular ficou constituído em 06-08-2020.

9.            Em 07-08-2020, a Requerida foi notificada do despacho proferido pelo Tribunal Arbitral, ao abrigo do disposto no artigo 17.º n.º 1 do RJAT, para apresentar resposta, solicitar a produção de prova adicional e remeter o processo administrativo.

10.          A Requerida juntou aos autos a sua resposta em 16-09-2020, na qual se defendeu por exceção, alegando a falta de objeto do pedido arbitral dada a revogação parcial do ato de liquidação em 24-06-2020, e, por impugnação, pugnando pela manutenção da liquidação de IRS do ano fiscal de 2016 e pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral.

11.          Na mesma data, a Requerida juntou aos autos o processo administrativo.

12.          Ao abrigo dos princípios da autonomia na condução do processo, da celeridade, da simplificação e informalidade processuais (artigos 16.º, 19.º e 29.º do RJAT), mediante despacho datado de 21-09-2020, o Tribunal Arbitral dispensou a realização da reunião prevista no artigo 18.º n.º 1 do RJAT, concedendo um prazo de 15 dias (prazo sucessivo) para as partes apresentarem as suas alegações, iniciando-se o prazo do Requerente com a notificação do referido despacho e o prazo da Requerida com a notificação da apresentação das alegações do Requerente, ou com o decurso do prazo de 15 dias. Mais consignou que a data estimada para a prolação da decisão arbitral seria o dia 16-11-2020, devendo o Requerente efetuar o pagamento da taxa arbitral subsequente até àquela data e proceder à sua respetiva comunicação ao CAAD.

13.          O Requerente apresentou alegações escritas em 09-10-2020, nas quais se defendeu da exceção alegada pela Requerida na resposta, alegando que impugnou a liquidação na totalidade, pelo que a anulação parcial da liquidação pela AT não poderia configurar uma exceção perentória, reiterando os argumentos aduzidos no pedido de pronúncia arbitral.

14.          A Requerida, por seu turno, apresentou alegações escritas em 21-10-2020, nas quais manteve na integra todo o teor da sua Resposta, demonstrativo da inexistência de qualquer ilegalidade do ato impugnado, e pedindo que fosse declarada a total improcedência do pedido, com a manutenção do ato e absolvendo-se a Requerida do pedido.

15.          Em 13-11-2020, o Tribunal Arbitral, considerando a complexidade da questão decidenda, notificou as partes do adiamento da data estimada para a prolação da decisão arbitral, a qual seria emitida no prazo previsto no artigo 21.º n.º 1 do RJAT, ou seja, até 05-02-2020.

 

II.            SANEAMENTO

16.          O presente Tribunal Arbitral considera-se regularmente constituído para apreciar o litígio (artigo 5.º n.º 1 e n.º 2, artigo 6.º n.º 1 e artigo 11.º do RJAT).

17.          As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas (artigos 3.º, 6.º e 15.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, ex vi artigo 29.º n.º 1 alínea a) do RJAT).

18.          Não foram alegadas outras questões prévias, para além das decididas nos presentes autos, que obstem à decisão de mérito.

 

III.          MATÉRIA DE FACTO

 

A.           Factos dados como provados

19.          Com interesse para a decisão da causa, dão-se como provados os seguintes factos, que não foram contestados pela Requerida:

a)            Em 28-05-1999 foi celebrado um contrato de locação financeira (doravante “leasing”) entre a B..., Lda., e o Banco C..., S.A., relativamente à fração autónoma designada pela letra A do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o número..., freguesia da ..., inscrito na mesma freguesia sob o artigo ..., com o valor inicial de € 103.368,41, sendo  o valor de € 99.759,58 relativo à compra do imóvel e o valor de €3.608,83 relativo a Imposto de Sisa.

b)           Em 10-05-2006, foi celebrado entre o Banco C..., S.A., a B..., Lda, e D..., um contrato de cessão da posição contratual, nos termos do qual aquela sociedade cedeu a este último a sua posição contratual no contrato de leasing.

c)            Por sua vez, em 20-06-2007, foi celebrado entre o Banco C..., S.A., D... e E..., um contrato de cessão da posição contratual, nos termos do qual aquele cedeu a este último a sua posição contratual no contrato de leasing.

d)           E..., viria a falecer em em 21-07-2008, sendo o Requerente e o irmão F..., NIF..., os seus únicos herdeiros.

e)           Em 27-11-2009, o Requerente e o irmão celebraram com o Banco C..., S.A., uma escritura de compra e venda, através da qual adquiriram a fração autónoma, acima identificada, pelo preço residual de € 9.975,96:

 

f)            Em 31-05-2016, o Requerente e o irmão venderam a referida fração autónoma pelo preço de €225.000,00.

g)            O Requerente apresentou a sua declaração modelo 3 de IRS em 30-05-2017, tendo declarado no respetivo Anexo G a alienação do imóvel supra identificado:

 

h)           A submissão da declaração de IRS n.º ... e declarações subsequentes (n.º ... de 03-05-2018), deram origem a processos de divergência relacionados com “a alienação de imóveis não declarada ou a necessidade de comprovação dos valores das despesas, valor de alienação, data de aquisição dos imóveis alienados ou afetação a atividade profissional” (Código...).

i)             Na sequência de tais procedimentos de divergência, em 02-05-2018, o contabilista certificado do Requerente enviou ao Serviço de Finanças de Cascais a seguinte documentação de suporte do valor de aquisição do imóvel: i) escritura pública de compra e venda; ii) contratos de locação financeira; iii) contratos de cessão de posição contratual no contrato de locação financeira; iv) correspondência trocada com o Banco C..., S.A. sobre o valor das rendas pago e sobre o valor residual do contrato de locação financeira imobiliária.

j)             Na correspondência enviada constava o e-mail datado de 31-07-2017, enviado pelo Banco C..., S.A., que indica que foram pagas as rendas 99 a 120, que totalizam:

 

k)            Depois de analisados os documentos enviados, a Requerida notificou em 17-05-2018 o Requerente das correções propostas e para audição prévia:

 

l)             O Requerente exerceu o seu direito de audição prévia, tendo sido notificado pela Requerida em 25-07-2018 da correção oficiosa da sua declaração de IRS de 2016:

 

m)          A Requerida emitiu a liquidação oficiosa n.º 2018..., que apurou um montante total de imposto a pagar de € 9.232,13, a que corresponde a nota de cobrança n.º 2018 ... de 08-08-2018, no valor de €8.887,60, a qual foi paga no âmbito do processo de execução fiscal n.º ...2018... .

n)           Em 28-11-2018, o Requerente apresentou reclamação graciosa da liquidação n.º 2018... junto da Direção de Finanças de Lisboa.

o)           O Requerente foi notificado mediante ofício da Direção de Finanças de Lisboa, datado de 08-11-2019 e notificado em 11-11-2019, do projeto de decisão de indeferimento da reclamação graciosa e para exercício do direito de audição.

p)           O Requerente exerceu o seu direito de audição em 03-12-2019, na qual juntou declaração do C..., S.A. sobre o valor das rendas pagas pelo seu pai e pelo Requerente, e cópia da decisão arbitral proferida no processo n.º 199/2019-T, relativa ao irmão do Requerente e relativa à liquidação de IRS do mesmo ano de 2016.

q)           Na declaração passada pelo Banco C..., S.A., datada de 04-01-2019 pode ler-se:

 

r)            A reclamação graciosa foi indeferida, mediante despacho de 23-12-2019, com os seguintes fundamentos:

 

s)            O despacho de indeferimento foi notificado ao Requerente, mediante ofício n.º ... datado de 30-12-2019.

t)            O Requerente apresentou pedido de pronúncia arbitral em 07-04-2020.

u)           Por despacho datado de 24/06/2020, da Subdiretora-Geral do Rendimento, foi revogado parcialmente o ato de liquidação, objeto da presente impugnação, nos termos e com os fundamentos invocados na informação dos serviços que se transcreve:

 

v)            O Requerente foi notificado da revogação parcial do ato de liquidação e foi notificado pelo Presidente do CAAD em 06-07-2020, nos termos e para os efeitos do artigo 13.º n.º 2 do RJAT.

w)          Não tendo o Requerente nada dito, foi o Tribunal Arbitral constituído em 07-08-2020.

 

B.            Factos não provados

20.          Com relevo para a decisão não se verificaram quaisquer outros factos alegados que devam julgar-se não provados.

 

C.            Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º n.º 2 do CPPT e artigo 607.º n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º n.º 1 alíneas a) e e) do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º n.º 1 alínea e) do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes e a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, não contestados pelas partes.

 

IV.          MATÉRIA DE DIREITO

 

A.           Questão prévia

A Requerida vem alegar que a revogação parcial da liquidação, mediante despacho datado de 24-06-2020, da Subdiretora-Geral do Rendimento, constitui uma exceção perentória, de conhecimento oficioso, nos termos do artigo 576.º, n.º 3 e 579.º do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente nos termos do artigo 29.º do RJAT.

O Requerente, por seu turno, alega que o que é colocado em causa pelo Impugnante é toda a liquidação de IRS que se impugnou e não apenas a parte que já foi anulada pelos serviços, pelo que não fará sentido falar em exceção.

Sobre esta questão dispõe o n.º 2 do artigo 13.º do RJAT: “Quando o acto tributário objecto do pedido de pronúncia arbitral seja, nos termos do número anterior, total ou parcialmente, alterado ou substituído por outro, o dirigente máximo do serviço da administração tributária procede à notificação do sujeito passivo para, no prazo de 10 dias, se pronunciar, prosseguindo o procedimento relativamente a esse último acto se o sujeito passivo nada disser ou declarar que mantém o seu interesse.” (negrito nosso)

Pelo que, “(…) sendo o ato de substituição praticado dentro do prazo referido no n.º 1 do artigo 13.º do RJAT, o processo arbitral só se extingue se o sujeito passivo disser que não pretende o seu prosseguimento.” .

Como é referido por Carla Costa Trindade , na anotação ao artigo 13.º do RJAT, “(…) em caso de silêncio do sujeito passivo, se considera ter havido modificação objetiva da instância, não se seguindo, neste caso, a regra. Assim, considera-se que só existe extinção da instância por inutilidade ou impossibilidade da lide, a qual se consubstancia, no caso em concreto, na extinção do objeto da relação jurídica e que pressupõe a absolvição da Administração Tributária do pedido deduzido pelo sujeito passivo, se houver declaração expressa do sujeito passivo.” (negrito nosso)

Assim, perante a ausência de qualquer declaração do Requerente relativamente à notificação pela Requerida da revogação parcial do ato de liquidação de IRS relativa ao ano de 2016 com o n.º 2018..., objeto do presente processo arbitral, não se verifica uma situação de extinção da instância por inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide, mas apenas uma situação de modificação objetiva da instância, que prosseguirá os seus termos.

Termos em que se dá como não verificada a exceção perentória prevista no artigo 277.º, alínea e) do Código de Processo Civil ex vi artigo 2.º, alínea e) do CPPT, prosseguindo os autos para apreciação da questão decidenda.

B.            Questão decidenda

A questão decidenda no presente processo arbitral respeita ao regime de mais-valias, mais precisamente ao custo de aquisição do bem imóvel adquirido no exercício do direito de opção de compra no final do contrato de locação financeira, tal como previsto no artigo 10.º n.º 1 alínea a), artigo 13.º n.º 1 e n.º 4, artigo 15.º n.º 1, n.º 2, artigo 18.º n.º 1 alínea h), artigo 43.º n.º 1 e 2, e artigo 46.º n.º 5, todos do Código do IRS, na redação em vigor à data dos factos.

O Requerente vem defender “(…) a consideração como valor de aquisição, não simplesmente o valor residual, ou o valor residual mais as rendas pagas pelo Requerente, ou o valor residual mais as rendas pagas pelo requerente e pelo seu pai, ou o valor patrimonial tributário do imóvel no momento da aquisição ou este último valor acrescido do valor residual pago pelo Requerente na compra do imóvel, mas sim, e na totalidade, como se dispõe no artigo 46.º, n.º 5, do CIRS”.

Na sua resposta, a Requerida mantém o entendimento que, tratando-se de cedências gratuitas da posição contratual no contrato de locação financeira, apenas se aplica o disposto no artigo 46.º n.º 5 do Código do IRS aos valores efetivamente pagos pelos sujeitos passivos na esfera dos quais é apurada a mais-valia tributável aquando da transmissão onerosa do imóvel. 

Cumpre decidir.

i.             Do contrato de locação financeira

O regime jurídico do contrato de locação financeira está previsto no DL n.º 149/95, de 24 de junho.

No que concerne à transmissão das posições jurídicas no contrato de locação financeira, estabelece o artigo 11.º do referido regime nos termos que se seguem:

“1 - Tratando-se de bens de equipamento, é permitida a transmissão entre vivos, da posição do locatário, nas condições previstas pelo artigo 115.º do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, e a transmissão por morte, a título de sucessão legal ou testamentária, quando o sucessor prossiga a actividade profissional do falecido.

2 - Não se tratando de bens de equipamento, a posição do locatário pode ser transmitida nos termos previstos para a locação.

3 - Em qualquer dos casos previstos nos números anteriores, o locador pode opor-se à transmissão da posição contratual, provando não oferecer o cessionário garantias bastantes à execução do contrato.

4 - O contrato de locação financeira subsiste para todos os efeitos nas transmissões da posição contratual do locador, ocupando o adquirente a mesma posição jurídica do seu antecessor.”

O artigo 14.º do contrato de locação financeira sob a epígrafe “Cessão da posição contratual do Locatário” estabelece:

 

A transmissão mortis causa do contrato de locação financeira que recaia sobre bens que não sejam de equipamento, como é o caso de bens imóveis, é uma questão sobre a qual não existe unanimidade na doutrina.

Com efeito, Conceição Fatela defende a caducidade dos contratos de locação financeira: “vi) Nos contratos de locação financeira cujo objecto não sejam bens de equipamento, aqui se incluindo os contratos de locação financeira cujo objecto seja um imóvel, o contrato de locação financeira caduca automaticamente com a morte do seu locatário. vii) há, pelo menos, uma solução que pode permitir que o contrato se transmita para um terceiro em caso de morte do locatário, e que passará pela celebração de um contrato de cessão de posição contratual, onde intervirão como partes o locatário, como cedente, o locador e o terceiro, como cessionário, sujeito a uma condição suspensiva que será a morte do locatário. Tal significará que o mesmo produzirá efeitos mortis causa.”

Enquanto que Rui Pinto Duarte defende que “A primeira parte de tal n.º 1 transcrita no parágrafo anterior não pode ser interpretada a contrario, sob pena de se chegar ao resultado paradoxal de que no caso de locação financeira de bens imóveis e de bens de consumo duradouro a morte do locatário financeiro determinaria a extinção do contrato, sem que nada fosse transmitido aos seus sucessores (o que equivaleria a uma expropriação em favor do locador financeiro que nada justifica e que repugna ao sistema). O sentido útil dessas (infelizes) palavras da lei há-de ser o de que não são válidas quaisquer cláusulas que condicionem a transmissão sucessória na hipótese em causa – sem prejuízo do disposto no referido n.º 3 do mesmo artigo.” 

Como concluiu o Instituto dos Registos e Notariado no Parecer n.º 20/CC/2014, “A transmissão mortis causa da posição de locatário financeiro ocorre se o contrato de locação financeira incidir sobre bens de equipamento e se o sucessor prosseguir a atividade profissional do falecido; se não se tratar de bem de equipamento, a situação jurídica do locatário é transferível nos termos previstos para a locação, isto é, se assim tiver sido convencionado por escrito no momento da celebração do contrato ou posteriormente [artigos 11.º, nºs 1 e 2 do DL n.º 149/95, 1059.º, n.º 1, e 1051º, d), do CC].”

Ora, considerando o declarado pelos Outorgantes na escritura pública de compra e venda do imóvel, haverá que concluir que o locador assentiu na transmissão mortis causa da posição contratual do locatário para o Requerente e irmão no contrato de locação financeira.

Nesses termos, o Requerente e o irmão “assumiram” a posição jurídica do locatário, seu pai, por morte deste, no contrato de locação financeira que se manteve em vigor até ao final do respetivo prazo.

No final do prazo, os locatários adquiriram o imóvel pelo respetivo valor residual (€ 9.975,96), previsto no contrato de locação financeira.

ii.            Do cômputo das mais-valias imobiliárias – Valor de aquisição

O artigo 10.º do Código do IRS, na redação em vigor à data dos factos, dispunha nos seguintes termos:

“1 - Constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de:

a) Alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis e afetação de quaisquer bens do património particular a atividade empresarial e profissional exercida em nome individual pelo seu proprietário; (…)

4- O ganho sujeito a IRS é constituído:

a) Pela diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição, líquidos da parte qualificada como rendimento de capitais, sendo caso disso, nos casos previstos nas alíneas a), b) e c) do n.º 1;”

As regras de apuramento das referidas mais-valias estão previstas no artigo 43.º e seguintes do Código do IRS.

O valor de realização determinado nos termos do artigo 44.º n.º 1 do Código do IRS será: “o valor da respetiva contraprestação”, sendo que nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, “(…) tratando-se de direitos reais sobre bens imóveis, prevalecerão, quando superiores, os valores por que os bens houverem sido considerados para efeitos de liquidação de imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis ou, não havendo lugar a esta liquidação, os que devessem ser, caso fosse devida.”

Por seu turno, o valor de aquisição dos imóveis é determinado nos termos do artigo 46.º do Código do IRS, na redação em vigor à data dos factos:

“1 - No caso da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º, se o bem imóvel houver sido adquirido a título oneroso, considera-se valor de aquisição o que tiver servido para efeitos de liquidação do imposto municipal sobre as transações onerosas de imóveis (IMT).

2 - Não havendo lugar à liquidação de IMT, considera-se o valor que lhe serviria de base, caso fosse devida, determinado de harmonia com as regras próprias daquele imposto. (…)

5 - Nos casos de bens imóveis adquiridos através do exercício do direito de opção de compra no termo da vigência do contrato de locação financeira, considera-se valor de aquisição o somatório do capital incluído nas rendas pagas durante a vigência do contrato e o valor pago para efeitos de exercício do direito de opção, com exclusão de quaisquer encargos.”

Assim, nos termos do artigo 46.º n.º 5, no caso de bem imóvel adquirido no final do contrato de locação financeira, considera-se valor de aquisição o somatório do capital incluído nas rendas pagas durante a vigência do contrato e o valor pago para efeitos de exercício do direito de opção.

O artigo 96.º da Lei n.º 55-A/2010 de 31 de dezembro (Lei do OE para 2011) aditou o n.º 5 ao artigo 46.º, sendo que, esta norma visava colmatar uma lacuna do Código do IRS.

Com efeito na falta de previsão expressa, aplicava-se a regra 14.ª prevista no artigo 12.º n.º 4 do Código do IMT, dada a remissão do artigo 46.º n.º 1 e 2 do Código do IRS para o Código do IMT:

“(…)14.ª O valor dos bens imóveis (…) locados, adquiridos pelo locatário, através de contrato de compra e venda, no termo da vigência do contrato de locação financeira e nas condições nele estabelecidas, será o valor residual determinado ou determinável, nos termos do respectivo contrato;(…)”

No entanto, ainda antes da entrada em vigor do n.º 5 do artigo 46.º do Código do IRS, já a jurisprudência dos tribunais superiores entendia que as rendas pagas no contrato de locação financeira deveriam ser acrescidas ao valor residual para efeitos de determinação do valor de aquisição de imóvel em locação financeira:

“(…) Como bem se depreende das várias normas fiscais que incidem sobre o contrato de locação financeira, todas elas têm em conta que, no caso de aquisição do imóvel no final do contrato, se deve ter em conta não só o valor residual de aquisição, mas também e ainda, o valor das rendas pagas ao longo do período acordado, encontrando-se, por isso, enformadas pelo princípio da neutralidade fiscal, cfr. preâmbulo do DL n.º 311/82 de 4 de Agosto.

Em especial essa preocupação verifica-se no IMT, artigo 12º, n.º 14, uma vez que o locatário já arcou com o IMT pago pela locadora aquando da aquisição do imóvel desde logo porque o valor desse imposto foi repercutido pela mesma locadora no valor das rendas por si pagas.

E se o legislador teve o cuidado de salvaguardar esta concreta situação, de modo a que o locatário não pagasse duas vezes o IMT no caso de aquisição do imóvel no final do contrato, não pode agora retirar-se deste preceito legal uma solução que, para efeitos de mais-valias, prejudique fortemente o locatário, contrariando, assim, aquele princípio estruturante.

Fazendo-se uma interpretação meramente literal daquele artigo 46º, n.º 1 do CIRS, tal como pretende a Fazenda Pública, sem ter em conta as razões que presidiram à elaboração do referido artigo 12º, n.º 14 do CIMT, que aliás vieram a ter consagração expressa em 2011 no n.º 5 desse mesmo artigo 46º, estar-se-ía a subverter o regime especial criado pelo legislador e a tributar as ocorrências inerentes a tal tipo de contrato sem ter em conta as suas especificidades próprias que não se verificam nos meros contratos de compra e venda de imóveis, ou seja, o locatário veria a sua posição agravada, aquando da venda do imóvel, face ao proprietário que tenha adquirido o imóvel sem recurso ao regime da locação financeira. Ora, tal distinção ou descriminação negativa não encontra justificação ou apoio na lei vigente à data da ocorrência do facto tributário.” :

No mesmo sentido, a decisão arbitral no processo n.º 104/2012-T, de 31-03-2013 :

“(…) Isto porque, acompanhando os Requerentes, o que se pretende é tributar é “a parte que vai além do que o contribuinte teve de suportar economicamente para adquirir o bem cuja alienação gera a mais-valia”, isto é o rendimento real ou o rendimento acréscimo. (…).

Foi, aliás, a realidade económica subjacente aos contratos de locação financeira, que o legislador quis prever, e bem, no n.º 5 do artigo 46.º do CIRS, na redacção da Lei n.º 55-A, de 31 de Dezembro (OE para 2011), ao consagrar, expressamente, a inclusão dos valores das rendas pagas na vigência do contrato de locação financeira, para além do valor residual para cálculo do valor de aquisição.

Trata-se de uma solução legal, imposta pelo espírito do sistema, conformado pelos princípios legais e constitucionais e legais pertinentes atendendo à natureza da norma em causa.

Resolveu-se assim, por via legislativa, a flagrante incongruência entre a regra de determinação do valor tributável para efeitos de IMT, ditada, como vimos, por razões de neutralidade fiscal, com a regra de determinação do valor de aquisição para efeitos de apuramento do ganho sujeito a mais-valias.

Pelo que, apesar de não aplicável ao caso sub judice, o n.º 5 do art. 46.º do CIRS assume, assim, a nosso ver, uma natureza claramente interpretativa. (…)”.

Assim, com a entrada em vigor do n.º 5 ao artigo 46.º do Código do IRS, o valor de aquisição dos imóveis adquiridos no final de um contrato de locação financeira deverá considerar “o somatório do capital incluído nas rendas pagas durante a vigência do contrato e o valor pago para efeitos de exercício do direito de opção, com exclusão de quaisquer encargos.” (negrito nosso)

No caso em apreço, a questão que se coloca é saber se, não sendo o Requerente o locatário originário do imóvel, poderá considerar-se, como valor de aquisição, para cômputo da sua mais-valia, o valor da totalidade das rendas pagas durante a vigência do contrato de locação financeira, ou se só deverá considerar as rendas pagas pelo seu pai e sucessores do mesmo, ou apenas as rendas pagas pelos sucessores.

Antes de analisar os argumentos expendidos pelas partes, refira-se que em sede de IRC, tem sido entendido pela AT que “O capital em dívida referente ao contrato de locação financeira, à data da cessão da posição contratual, é o valor pelo qual a cessionária passou a ser responsável na qualidade de locatária, ou seja, o valor de aquisição.”

O Requerente defende que, no caso em apreço, deverão ser consideradas todas as rendas pagas na vigência do contrato, acrescidas do valor residual, no total global de € 103.368,41, cabendo ao mesmo metade desse valor, isto é, € 51.684,20. Se assim não se entender, defende que o valor de aquisição teria que ser o somatório do capital incluído nas rendas pagas pelo sujeito passivo, o seu irmão e o seu pai, isto é, desde a renda 99 até à renda 120 no montante de € 19.977,15, a que acresce o valor residual, de € 9.975,96, no montante total de € 29.953,11, cabendo metade desse valor ao Requerente. No mínimo, teria de ter sido considerado o valor das rendas pagas pelo sujeito passivo e o seu irmão, após a morte do seu pai, ocorrida a 21-07-2018, isto é, desde a renda 112, correspondendo o valor de capital dessas rendas a € 8.445,39, a que acresce o valor residual, tudo perfazendo € 18.421,35, cabendo-lhe metade desse valor.

Para o efeito, cita a decisão arbitral no processo n.º 199/2019-T , emitida a favor do seu irmão a propósito dos mesmos factos:

““70. No entender deste Tribunal, não há razão plausível para afastar a aplicação do artigo 46.º, n.º 5, do CIRS, entendido como contendo a exigência de, nos casos de bens imóveis adquiridos através do exercício do direito de opção de compra no termo da vigência do contrato de locação financeira, considerar como valor de aquisição o somatório do capital incluído nas rendas pagas durante a vigência do contrato e o valor pago para efeitos de exercício do direito de opção, com exclusão de quaisquer encargos. Ele reflete, com suficiente objetividade e plausibilidade, o valor de capital substancialmente incorporado no imóvel ao longo da vigência do contrato, prevenindo a ocorrência de situações de tributação materialmente desigual e desproporcional – considerando valores de aquisição muito abaixo do valor patrimonial tributário do imóvel – que, por poderem afetar severamente o princípio da justiça fiscal horizontal, no caso de sujeitos passivos colocados em situações económicas praticamente equivalentes, estariam irremediavelmente feridas de inconstitucionalidade. Além de o teor literal do artigo 46.º, n.º 5, do CIRS não distinguir entre os casos em que tenha ou não havido cessão de posição contratual – a despeito da normalidade da sua ocorrência no caso de contratos de locação financeira – a solução normativa que o mesmo tem subjacente, de aproximação do valor de aquisição ao justo valor de mercado (fair market value) do imóvel, é sistemicamente consistente com a realidade jurídica da manutenção da vigência do contrato-base no caso cessão da posição contratual. Acresce que a mesma se apresenta, em boa medida, compatível com o princípio da neutralidade fiscal – seguindo uma orientação substancialmente mais próxima da lógica da stepped-up basis rule geralmente aplicável no caso da transmissão gratuita de imóveis – ainda que se conceda que essa compatibilidade e esse princípio não sejam necessariamente absolutos em todos os casos.”

Enquanto que a Requerida considera que “De acordo com o artigo 44.º do pedido arbitral, as rendas pagas pelo Requerente e o seu irmão, após a morte do seu pai, ascendem a €8.445,39, a que acresce o valor residual pago de € 9.975,96, totalizando assim €18.421,35, cabendo ao Requerente metade deste valor - € 9.210,68. (…) Face ao supra exposto, a AT mantém o entendimento que, tratando-se de cedências gratuitas da posição contratual no contrato de leasing, apenas se aplica o disposto no n.º 5 do artigo 46.º do Código do IRS aos valores efetivamente pagos pelos sujeitos passivos na esfera dos quais é apurada a mais-valia tributável aquando da transmissão onerosa do imóvel.”

Esta posição da Requerida poderia encontrar apoio na decisão arbitral no processo n.º 104/2012-T, de 31-03-2013, embora a mesma tenha tido como quadro legal o que existia anteriormente à entrada em vigor do n.º 5 do artigo 46.º do Código do IRS:

“(…) Decorre da alínea vi) do probatório, que, no âmbito do referido contrato de locação, os Requerentes procederam ao pagamento de 58 rendas, entre 2003-02-20 e 2008-03-20, conforme facturas juntas ao processo pelo Requerimento apresentado pelos sujeitos passivos em 2012-11-30, no montante total de €45.235,54.

No entanto, e aqui acompanhando a alegação da Requerida, não se poderão incluir no valor de aquisição, as rendas pagas pelo locatário originário, as quais foram suportadas por aquele, e não pelos Requerentes (…)”.

Considerando os princípios gerais de interpretação da lei estabelecidos no artigo 9.º do Código Civil, o intérprete não deverá “cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada” e deverá presumir que “o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”.

Com efeito, a letra do n.º 5 do artigo 46.º indica qual o valor de aquisição que deverá ser considerado no caso de bens imóveis adquiridos através do exercício do direito de opção de compra no termo da vigência do contrato de locação financeira: “o somatório do capital incluído nas rendas pagas durante a vigência do contrato e o valor pago para efeitos de exercício do direito de opção, com exclusão de quaisquer encargos.”

Como indicado supra, a ratio legis desta norma foi assegurar a neutralidade fiscal aos operadores económicos, no sentido de, perante a natureza e especificidades do contrato de locação financeira, equiparar o desembolso de capital realizado pelo locatário, durante o período de duração do contrato, ao desembolso realizado pelo adquirente do bem imóvel na data da celebração do contrato de compra e venda. O princípio da neutralidade fiscal tem em vista evitar distorções nas escolhas dos operadores económicos no mercado. Ora, considerar como valor de aquisição no contrato de locação financeira apenas o preço residual do imóvel, pago no exercício do direito de opção de compra, poderia influenciar negativamente as escolhas dos operadores económicos, que, perante um contrato de locação financeira ou um contrato de compra e venda, seriam compelidos a escolher este último para minimização de futuras mais-valias na venda dos imóveis. Distorção, esta, que motivou a alteração do artigo 46.º do Código do IRS.

No entanto, apesar de ser uma vicissitude frequente nos contratos de locação financeira , o legislador não considerou as situações de cessão de posição contratual na posição do locatário num contrato de locação financeira. Não tendo sido consideradas expressamente estas situações, a questão que se coloca é saber se a regra prevista no n.º 5 do artigo 46.º do Código do IRS será de aplicar-se de igual modo às situações de aquisição de imóvel no final do contrato de locação financeira pelo seu locatário originário e às situações de aquisição de imóvel no final do contrato de locação financeira pelo cessionário(s) que tenham, entretanto, adquirido a posição do locatário no contrato de locação financeira.

Não tendo tal situação sido contemplada na letra da lei, entende o Requerente que a citada regra deverá ser-lhe aplicada na sua plenitude, isto é, deverá considerar-se a totalidade do capital pago durante a vigência do contrato de locação financeira, seja pelos locatários originários, seja pelos cessionários.

Não pode, no entanto, este Tribunal Arbitral, salvo o devido respeito, estar de acordo com esta posição do Requerente e que teve consagração na Decisão Arbitral n.º 199/2019-T.

Desde logo, porque, como se refere na referida Decisão Arbitral, “Assim sucede porque, em princípio – tirando situações eventuais de existência de uma relação de especial proximidade entre cedente e cessionário – a cessão da posição contratual será um negócio oneroso, que – na medida em que isso seja possível diante das condições de mercado – terá em conta o valor do capital incluído nas rendas pagas ao locador pelo locatário cedente até ao momento da cessão da posição contratual. Mais, é possível que, nomeadamente por efeito da valorização do imóvel, o locatário cedente obtenha, por altura da cessão da posição contratual, um ganho pecuniário superior ao montante das rendas que até então haja pago ao locador, caso em que o artigo 10.º, n. º1, alínea d) do CIRS, sujeita a tributação as mais-valias resultantes da cessão onerosa de posições contratuais ou outros direitos inerentes a contratos relativos a bens imóveis.” (negrito nosso)

Acrescentando que “Nesse caso, se o preço pago pelo cessionário é tido em conta para a determinação das mais-valias do cedente, mal seria que não fosse tido em conta para a determinação do preço de aquisição do cessionário quando este, mais tarde, em dois momentos diferenciados, exercer a opção de compra e venda do imóvel e posterior alienação. Dai que faça todo o sentido, em termos gerais, a solução constante do artigo 46.º, n.º 5, do CIRS que considera preço de aquisição o somatório do capital incluído nas rendas pagas durante a vigência do contrato de locação financeira e o valor residual pago para efeitos de exercício do direito de opção, com exclusão de quaisquer encargos, sem distinguir se houve ou não lugar a cessão da posição contratual.” (negrito nosso)

Concluindo que “(…) É certo que no caso presente, tanto quanto se pode deduzir dos autos, as cessões de posição contratual foram efetuadas a título gratuito, aparentemente sem quaisquer contrapartidas. Isto, sem prejuízo do facto de o primeiro cessionário, E..., surgir referido, desde o início, no contrato de locação financeira como sublocatário da empresa D..., antes da cessão da posição contratual, presumivelmente pagando rendas à locatária. Por sua vez, o segundo, F..., é familiar do primeiro, como se deduz dos apelidos de ambos. O Requerente e o seu irmão receberam a posição de locatários por falecimento do pai.(..)” (negrito nosso)

Logo, salvo o devido respeito, não se trata de o intérprete distinguir onde a legislador não distinguiu, mas antes de alcançar a motivação do legislador, que, ficou claramente expressa acima. A ratio legis do n.º 5 do artigo 46.º do Código do IRS visou consagrar uma regra que permitisse equiparar os locatários em contrato de locação financeira aos adquirentes de bens imóveis, ao abrigo do princípio da neutralidade fiscal, admitindo que aqueles pudessem considerar como valor de aquisição dos bens imóveis adquiridos no final do contrato de locação financeira, para além do valor residual, o montante das rendas pagas ao locador.

No entanto, este princípio de neutralidade fiscal não estaria a ser observado se se admitisse que tendo os cessionários, mercê de laços familiares ou outros, adquirido a posição do locatário originário no contrato de locação financeira mediante cedências de posição contratual realizadas a título gratuito, isto é, sem ter havido qualquer contrapartida ou desembolso, pudessem ainda considerar tais montantes pagos como valor de aquisição dos imóveis adquiridos no final do contrato de locação financeira.

Desde logo, estar-se-ia a equiparar a situação do locatário que suporta as rendas do contrato de locação financeira acrescido do respetivo valor residual no final do contrato, com a situação dos cessionários que adquirem, a título gratuito, a posição contratual dos locatários originários. Admitir, nestes casos, que o valor de aquisição do imóvel inclua a totalidade das rendas pagas na vigência do contrato de locação financeira, seria contrário ao princípio da neutralidade fiscal e implicaria uma discriminação positiva a favor destes últimos cessionários.

Não se trata, assim, de distinguir se foi o sujeito passivo que pagou as rendas do contrato de locação financeira, ou se foi o locatário originário ou o cessionário subsequente, mas determinar se efetivamente existiu uma contrapartida paga pelo sujeito passivo aquando da cedência de posição contratual no contrato de locação financeira.

Não sendo comprovada a existência de tal contrapartida, o valor de aquisição terá de ser equivalente ao valor das rendas em dívida no contrato de locação financeira à data de aquisição da posição contratual no contrato de locação financeira pelo cessionário (pai do Requerente), acrescido do valor residual.

Recorde-se que, em sede de IRS, o imposto sobre mais-valias pretende tributar a parte que vai além do montante que o contribuinte teve de suportar economicamente para adquirir o bem cuja alienação gera a mais-valia. Trata-se de tributar o rendimento acréscimo.

Ora, tendo o Requerente (e o irmão) tomado a posição contratual do seu pai no contrato de locação financeira, na sua qualidade de sucessores deste, seriam de considerar como componentes do seu valor de aquisição apenas as rendas em dívida à data da aquisição da posição contratual pelo seu pai no referido contrato de locação financeira (rendas 99 a 120) e não todas as rendas pagas na vigência do contrato de locação financeira pelos anteriores locatários, na medida em que não se comprovou ter sido pago pelo seu pai qualquer preço/ter existido qualquer contrapartida pela cessão de posição contratual.

Outrossim, seria desagravar e discriminar positivamente o locatário cessionário que adquiriu de forma gratuita a posição contratual, não tendo havido o pagamento de qualquer preço pelas cedências anteriores, face a um locatário originário que manteve a sua posição contratual no contrato de locação financeira pagando todas as rendas contratualizadas e adquirindo o imóvel no final do contrato de locação financeira.

Outra solução, ainda que teoricamente equacionável, seria contrária à ratio legis do artigo 46.º n.º 5 do Código do IRS e aos princípios da tributação pelo rendimento acréscimo e da capacidade contributiva.

 

iii.           Conclusão

Face ao supra exposto, tendo o Requerente (e o irmão) assumido a posição jurídica do locatário, seu pai, por morte deste, em contrato de locação financeira, o valor de aquisição do imóvel cujas mais-valias deram origem à liquidação sub judice, terá de ser determinado nos termos do artigo 46.º n.º 5 do Código do IRS.

Nos termos do referido n.º 5, o locatário originário poderá considerar como valor de aquisição do imóvel as rendas pagas e o locatário cessionário poderá considerar as rendas em dívida à data da cessão de posição contratual no contrato de locação financeira, acrescido do preço eventualmente pago pela cedência.

Não tendo sido comprovado nos presentes autos, que na cessão de posição contratual tenha sido desembolsado pelo cessionário qualquer valor relativo às rendas anteriores pagas pelo locatário originário e locatário cessionário, nomeadamente a título de preço da cedência, terá de concluir-se que não poderá o Requerente considerar, para efeitos de cômputo da mais-valia imobiliária, como valor de aquisição a totalidade das rendas pagas na vigência do contrato de locação financeira, mas apenas considerar as rendas em dívida à data da cessão de posição contratual no contrato de locação financeira para o seu pai, comprovadamente suportadas por este e pelos seus sucessores até ao final da vigência do contrato de locação financeira, ou seja, desde a renda 99 até à renda 120, no montante de € 19.977,15, a que acresce o valor residual, de € 9.975,96, no montante total de € 29.953,11, cabendo metade desse valor ao Requerente, ou seja, € 14.976,55.

Termos em que procede parcialmente o pedido de pronúncia arbitral, ficando prejudicado o conhecimento das restantes questões peticionadas pelo Requerente, nomeadamente a decisão da reclamação graciosa por não ter sido considerado o alegado pelo Requerente em sede de direito de audição prévia.

 

C.            Dos juros indemnizatórios

Por último, o Requerente pede a condenação da Requerida a pagar juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º da LGT.

De acordo com o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º do RJAT “A decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, alternativa ou cumulativamente, consoante o caso: (…) b) Restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito. (…)”.

No mesmo sentido, o artigo 100.º da LGT prevê que “A Administração está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros, nos termos e condições previstos na lei”.

A doutrina e jurisprudência têm defendido que se enquadra no âmbito das competências dos tribunais arbitrais a fixação dos efeitos das suas decisões, nos mesmos termos previstos para a impugnação judicial, designadamente, quanto à condenação em juros indemnizatórios ou a condenação por indemnização por garantia indevida.

Quanto aos juros indemnizatórios, prevê o n.º 1 do artigo 43.º da LGT que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.

No caso sub judice, o pedido do Requerente é julgado parcialmente procedente no que se refere à ilegalidade da liquidação de IRS referente ao exercício de 2016.

Por outro lado, é manifesto que, na sequência da ilegalidade da liquidação impugnada, haverá lugar ao reembolso do imposto indevidamente pago pelo Requerente, por força da alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º do RJAT, e do artigo 100.º da LGT, pois tal é essencial para “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado”.

O Requerente tem, assim, direito ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do n.º 1 do artigo 43.º da LGT, relativamente aos montantes indevidamente pagos, contados desde a data do pagamento indevido até à data do processamento da respetiva nota de crédito.

 

IV.          DECISÃO

Termos em que decide este Tribunal Arbitral:

a)            Julgar parcialmente procedente o pedido de pronúncia arbitral, declarando a ilegalidade parcial do despacho de indeferimento proferido na reclamação graciosa;

b)           Julgar parcialmente procedente o pedido de pronúncia arbitral, declarando a ilegalidade parcial da liquidação de IRS relativa ao ano de 2016, na parte não revogada pela AT;

c)            Julgar parcialmente procedente o pedido de juros indemnizatórios e condenar a Requerida a pagar à Requerente, na proporção em que é julgado procedente o pedido de anulação da liquidação, os juros indemnizatórios que forem liquidados em execução da presente decisão.

 

V.           VALOR DA CAUSA

Em conformidade com o disposto no artigo 306.º n.º 2 do do CPC e da artigo 97.°-A alínea a) do n.º 1 do CPPT, aplicável por força do artigo 29.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e do artigo 3.º n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPTA), fixa-se ao processo o valor de € 9.232,13 (nove mil duzentos e trinta e dois euros e treze cêntimos).

 

VI.          CUSTAS

Nos termos do artigo 12.º n.º 2 e 22.º n.º 4 do RJAT, e do artigo 4.º, n.º 5 e 7, do citado Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 918,00 (novecentos e dezoito euros), nos termos da Tabela I, do RCPTA, a cargo do Requerente (71%) e da Requerida (29%), na proporção do decaimento.

 

Lisboa, 7 de dezembro de 2020

 

O Árbitro,

Vera Figueiredo