Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 421/2019-T
Data da decisão: 2019-10-29  IRS  
Valor do pedido: € 948,33
Tema: IRS – Regime simplificado – árbitro desportivo – aplicação de coeficientes.
*Decisão arbitral anulada por acórdão do STA de 9 de dezembro de 2020, recurso n.º 92/19.9BALSB, que decide em substituição.
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DECISÃO ARBITRAL

 

O árbitro Professor Doutor Jónatas Machado, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para constituir o presente Tribunal Arbitral, profere a seguinte decisão:

1             RELATÓRIO

1. A..., contribuinte n.º..., e esposa B..., contribuinte nº..., residentes na Rua ..., n.º..., ..., ...-... Foz do Sousa, (doravante Requerentes) tendo sido notificados do despacho de indeferimento proferido pela Chefe de Finanças, no procedimento de reclamação graciosa nº ...2019..., que tinha por objeto a demonstração de liquidação de IRS n.º 2018..., do ano de 2017,  vêm nos termos do disposto no artigo 2º n.º 1 alínea a), 5º n.º 2 alínea a), 6º n.º 1, 10º n.º 1 alínea a), todos do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT) e do artigo 102º n.º 1, alínea b) do CPPT, requerer a constituição de tribunal arbitral singular com vista à declaração de ilegalidade daquele ato tributário.

 

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD, em 21.06.2019.

 

3. Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 2, alínea a), 6.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1 do RJAT, o Conselho Deontológico deste Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) nomeou como árbitro singular o Professor Doutor Jónatas Machado, em 09.08.2019.

 

4. As partes foram devidamente notificadas dessa designação, à qual não opuseram recusa, nos termos conjugados dos artigos 11.º, n.º 1, alíneas b) e c) e 8.º do RJAT e 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

5. Por força do preceituado na alínea c) do n.º 1 e do n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 30.08.2019.

 

6.A AT (ou “Requerida”), tendo sido notificada, ao abrigo do disposto no artigo 17.º do RJAT, para apresentar a sua resposta, veio sustentar, em contestação de 26.09.2019, a improcedência do presente pedido de pronuncia arbitral, a manutenção na ordem jurídica do ato tributário de liquidação impugnado e a sua absolvição do pedido, com as devidas consequências legais.

 

7. Por não ter sido requerida pelas partes e ser considerada desnecessária, o tribunal dispensou a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, através de despacho proferido em 15.10.2019.

 

8. Nesse mesmo despacho foram dispensadas alegações finais.

 

1.1          Descrição dos factos

 

9. O Requerente marido declarou o seu início de atividade no dia 30.05.2016, no Código CAE 93192 – Outras Atividades Desportivas, N.E, tendo optado pelo regime simplificado para efeitos de tributação em sede de IRS dos seus rendimentos da categoria B.  

10. Em 2017, os Requerentes apresentaram declaração conjunta de rendimentos, tendo preenchido o Anexo B da declaração modelo 3 de IRS referente aos “Rendimentos da Categoria B”, optando pelo preenchimento do campo relativo ao “Regime Simplificado de Tributação”.

11. No quadro 3 A do referido Anexo – “Identificação do(s) Sujeito(s) Passivo(s)”, campo 08 – “Código CAE (Rendimentos Profissionais, Comerciais e Industriais)”, o Requerente marido inseriu o código 93192 – outras atividades desportivas.

12. O referido CAE, de acordo com a Classificação Portuguesa das Atividades Económicas (CAE Rev. 3), compreende as atividades de “produtores e promotores de acontecimentos desportivos com ou sem instalações; promoção de eventos desportivos; atletas, árbitros, cronometristas e de outros desportistas independentes; estábulos, canis e garagens, relacionados com a atividade desportiva; apoio à pesca e caça recreativas e desportivas; e dos guias de montanha. Inclui a gestão de zonas de caça e pesca”.  O campo 07, do quadro A, do Anexo B da declaração periódica de rendimentos do ano de 2017, respeitante ao “Código da Tabela de atividades do artigo 151º do CIRS”, não foi preenchido.

13.  No ano de 2017, o Requerente marido declarou, no quadro 4 A do campo 404 do Anexo B – “Rendimentos de prestação de serviços não previstos nos campos anteriores”, rendimentos no valor €10.802,50, provenientes da sua atividade de árbitro. 

14.  Posteriormente, o Requerente marido foi notificado de que “A declaração de rendimentos relativa ao ano de 2017, foi selecionada para análise por terem sido detetadas as seguintes situações: Necessidade de comprovação do tipo de rendimentos declarados, considerando os códigos de atividade declarados ou patentes em cadastro”. 

15. O Requerente apresentou resposta à referida notificação, tendo sido informado pela AT de que os rendimentos auferidos deveriam ser declarados no campo 403 do quadro 4 A do anexo B e notificado, por carta registada, datada de 21.09.2018, para no prazo de 15 dias, exercer o direito de audição, conforme previsto no artigo 60.º da Lei Geral Tributária (LGT), o que fez através da internet em 09.10.2018.

16. Por despacho proferido em 12.10.2018, a AT considerou que “[o] rendimento proveniente da atividade de árbitro de futsal deve ser inscrito no campo 403 do quadro 4-A do anexo B da declaração modelo 3 de IRS e a determinação do rendimento tributável obtém-se através da aplicação do coeficiente 0,75, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 31.º do Código do IRS”, tendo corrigido oficiosamente a referida declaração enquadrando aí tais rendimentos.

17.  A AT considerou que a quantia de €10.802,50 (dez mil, oitocentos e dois euros e cinquenta cêntimos), declarada pelo Requerente marido no campo 404 do Anexo B (Rendimentos de prestação de serviços não previstos nos campos anteriores), deveria constar antes no campo 403 (Rendimentos de atividades profissionais especificamente previstas na Tabela do art. 151.º do CIRS).

18. Na sequência disso, foram os Requerentes notificados do reembolso da quantia de €948,33 (novecentos e quarenta e oito euros e trinta e três cêntimos), conforme a demonstração de liquidação nº 2018..., que se junta como documento n.º 6.

19. Não se conformando com a referida demonstração de liquidação, os Requerentes apresentaram em 04.03.2019, reclamação graciosa tendo aquele ato por objeto, tendo sido notificados, em 20.03.2019, da decisão de indeferimento. 

 

1.2          Argumentos das partes

20. Os argumentos trazidos aos autos centram-se no significado e alcance conotativo e denotativo do conceito “Desportistas”, a que corresponde o CAE 1323.  

21. Os Requerentes sustentam a ilegalidade da liquidação e da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, por vício de qualificação e quantificação, com argumentos que a seguir se sintetizam:

a)            O artigo 31º, n.º 1, alínea b) do CIRS, na redação em vigor à data, dispunha que “(...) a determinação do rendimento tributável obtém-se através da aplicação dos seguintes coeficientes: (…) b) 0,75 dos rendimentos das atividades profissionais constantes da tabela a que se refere o artigo 151º”;

b)           A norma do CIRS, na redação dada pela Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro, estatuía que “(...) a determinação do rendimento tributável obtém-se através da aplicação dos seguintes coeficientes: (…) c) 0,35 aos rendimentos de prestações de serviços não previstos nas alíneas anteriores”;

c)            A atividade de árbitro não consta da tabela a que se refere o artigo 151.º do CIRS, não tendo fundamento o entendimento da AT segundo o qual os rendimentos do Reclamante marido deviam ter sido declarados no campo 403 e ser-lhes aplicável o coeficiente de 0,75;

d)           Aos valores declarados no campo 404 do anexo B (Rendimentos da categoria B não incluídos nos campos anteriores) aplica-se o coeficiente 0,35, conforme artigo 31º, n.º 1 alínea c) do CIRS; 

e)           Aos rendimentos do Requerente marido, por não derivarem de atividades constantes da tabela a que se refere o artigo 151º do CIRS, deveria aplicar-se o coeficiente de 0,35, nos termos da alínea c) do nº 1 do artigo 31º do CIRS;  

f)            É este, aliás, o entendimento veiculado pela própria AT que no Ofício Circulado n.º 20.187, de 05-04-2016, nas instruções de preenchimento do campo 403 -Rendimentos das atividades profissionais especificamente previstas na Tabela do art. 151.º do CIRS diz que “devem ser declarados neste campo os rendimentos (…) provenientes de prestações de serviços de atividades profissionais especificamente previstas na tabela de atividades a que se refere o artigo 151.º do CIRS” (cf. documento 7);  

g)            Resulta desta informação, a contrario, que os rendimentos não previstos na tabela, não devem ser declarados no campo 403;

h)           O mesmo entendimento resulta dos Pareceres da Ordem dos Contabilistas Certificados de acordo com os quais “o coeficiente de 0,75 tem aplicação apenas nas prestações de serviços especificamente previstas na Lista anexa a que se refere o artigo 151º do Código do IRS. Tendo sido criado um novo coeficiente de 0,35 para as restantes prestações de serviços”; (Documentos 8 e 9)

i)             Concluem tais pareceres que a atividade de árbitro por não se enquadrar especificamente em nenhuma das atividades profissionais constantes da lista anexa ao artigo 151º do CIRS, enquadrar-se-á na alínea c) do nº 1 do artigo 31º do CIRS e como tal, os rendimentos dela provenientes devem ser inscritos no campo 404 do quadro 4 A do anexo B;

j)             À interpretação das normas tributárias são aplicáveis, de acordo com o n.º 1 do artigo 11.º da LGT, as regras e os princípios gerais de interpretação das leis, designadamente o artigo 9.º do Código Civil;  

k)            Nos termos gerais da hermenêutica jurídica, a letra da lei é o limite mínimo da tarefa interpretativa, no sentido de que é do texto legislativo que tem de se partir para determinar o sentido da norma;

l)             A letra da lei é também o seu limite máximo, já que não é possível atribuir à norma um sentido que não esteja minimamente previsto na sua letra da lei;

m)          Sendo a letra da lei o limite máximo da tarefa interpretativa, não é possível concluir que outros rendimentos além dos especificamente previstos no artigo 31º, n.º 1, alínea b) do CIRS devem merecer o mesmo tratamento, sobretudo quando o próprio legislador criou, em paralelo a essa categoria específica de rendimentos, uma categoria residual constante da alínea c) do mesmo artigo, onde se incluem os “rendimentos de prestações de serviços não previstos nas alíneas anteriores”;

n)           Em Direito Fiscal vigora o princípio da tipicidade específica, que exige a enumeração taxativa dos factos ou realidades que, dentro de cada tipo genérico do objeto normativo de incidência, são indicados por lei como objeto de incidência; 

o)           A atividade de árbitro não tem inequívoca e clara previsão na referida tabela, uma vez que, ainda que seja relacionada com qualquer atividade desportiva, não é uma atividade desportiva sem mais, pelo que não poderá ser enquadrada no âmbito de incidência do artigo 31º, nº 1, alínea b) do CIRS;

p)           Não estando taxativamente previsto no artigo 31º, n.º 1, alínea b) do CIRS a aplicação do coeficiente de 0,75 aos rendimentos provenientes da atividade de árbitro, que é uma atividade que não está prevista na tabela a que se refere o artigo 151º do CIRS, não pode aos rendimentos provenientes dessa atividade ser aplicado aquele coeficiente, sob pena de violação do princípio da legalidade previsto no artigo 106º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa (CRP);

q)           A jurisprudência arbitral do CAAD no âmbito dos Processos 372/2017-T, 251/2017-T, 141/2017-T, 107/2016-T e 196/2017-T) tem-se pronunciado num sentido favorável à posição dos requerentes, com especial destaque para a decisão no Processo n.º 510/2017-T versando as atividades de Personal Trainer e Árbitro. 

22. A AT sustenta começa por sustentar a incompetência do tribunal a título de exceção sem deixar de sustentar a manutenção do ato impugnado com base nos seguintes fundamentos:

a)            O ato objeto do litígio não pode ser qualificado como um ato de fixação da matéria tributável que dá origem à liquidação de tributo para efeitos da alínea b), do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT;

b)           O que se confronta no caso é o enquadramento dos rendimentos da categoria B no campo 403 e não no campo 404, como os Requerentes pretendem;

c)            O ato sindicado não integra o elenco potencial dos atos de fixação de matéria tributável ou matéria coletável na medida em que não aplica um conjunto de fatores, objetivos ou subjetivos, que conduzam à liquidação do correspondente tributo, localizando-se, antes, a “montante” da fixação da matéria tributável;

d)           O procedimento de “enquadramento fiscal” sendo prejudicial relativamente ao “ato de liquidação” propriamente dito, não se confunde, no entanto, com o ato de fixação da matéria tributável; 

e)           O meio próprio para impugnar estes atos, que não comportam a apreciação da legalidade de atos de liquidação e que também não são atos de fixação da matéria tributável ou da matéria coletável não é a impugnação judicial mas sim a ação administrativa especial (alínea p), do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT e artigo 37.º e seguintes do CPTA);

f)            Estamos perante um ato da administração tributária que não integra os atos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, pelo que, deve o Tribunal Arbitral julgar procedente a exceção invocada de incompetência absoluta do foro arbitral, em razão da matéria e, em consequência, rejeitar o pedido de pronúncia arbitral, absolvendo a AT da instância; 

g)            A atividade de árbitro de futsal consubstancia uma prestação de serviços especificamente prevista na tabela de atividades a que se refere o artigo 151.º do CIRS, sob o código “1323 – Desportistas”; 

h)           O código “1323 – Desportistas” é abrangente e engloba, para além de atletas, todos os agentes desportivos envolvidos em atividades desportivas;

i)             Atendendo a que os rendimentos do Requerente marido provêm de atividade especificamente prevista na tabela de atividades a que se refere o artigo 151.º do CIRS, tais rendimentos enquadram-se na alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º do CIRS;

j)             Consequentemente são inscritos no campo 443 do quadro 4 A da declaração de rendimentos – modelo 3, e a determinação do rendimento tributável obtém-se através da aplicação do coeficiente de 0,75, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 31.º do CIRS”;

k)            Neste sentido, se pronunciou a AT pronunciou na Informação Vinculativa proferida no processo n.º 920/2018, com despacho concordante da Subdiretora Geral do IR, de 02- 05-2018, em que o assunto é “Declaração de rendimentos provenientes da atividade de árbitro de futsal”;

l)             Os rendimentos auferidos pelo Requerente marido provêm de atividades a que se refere o artigo 151.º do CIRS, não restando dúvidas que os mesmos se enquadram na alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º do CIRS e, consequentemente, devem ser inscritos no campo 403 do quadro 4 A do anexo B da declaração de rendimentos – modelo 3 e a determinação do rendimento tributável obtém-se através da aplicação do coeficiente 0,75 previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 31.º do CIRS.

1.3. Saneamento  

23. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, nos termos n.º 1 do artigo 10.º do RJAT.  

 

24. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído (artigos 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1, e 11.º do RJAT), e é materialmente competente (artigos 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT), devendo ser julgada improcedente a exceção invocada pela AT, na medida em que em causa está a legalidade da liquidação impugnada, já que a questão da qualificação e enquadramento fiscal de um determinado rendimento, em sede de liquidação, diz respeito à correta interpretação e aplicação da lei. No caso concreto, a aplicação e interpretação do artigo 31.º do CIRS pela demonstração de liquidação nº 2018... consubstancia uma questão de legalidade de liquidação.

 

25. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e mostram-se devidamente representadas.

 

26. O processo não padece de nulidades podendo prosseguir-se para a decisão sobre o mérito da causa.

 

2             FUNDAMENTAÇÃO

2.1          Factos dados como provados

27. Com base nos documentos trazidos aos autos são dados como provados os seguintes factos relevantes para a decisão do caso sub judice:

a)            O Requerente marido declarou o seu início de atividade no dia 30-05-2016, no Código CAE 93192 – Outras Atividades Desportivas, N.E., tendo optado pelo regime simplificado para efeitos de tributação em sede de IRS dos seus rendimentos da categoria B. (cfr. documento n.º 2.)

b)           No ano de 2017, o Requerente marido declarou, no quadro 4 A do campo 404 do Anexo B – “Rendimentos de prestação de serviços não previstos nos campos anteriores”, rendimentos no valor €10.802,50. (cfr. documento n.º 3)

c)            O Requerente marido foi notificado, de que “[a] declaração de rendimentos relativa ao ano de 2017, foi selecionada para análise por terem sido detetadas as seguintes situações: Necessidade de comprovação do tipo de rendimentos declarados, considerando os códigos de atividade declarados ou patentes em cadastro”.  (cfr. documento n.º 4)

d)           A AT considerou que a quantia de €10.802,50 (dez mil, oitocentos e dois euros e cinquenta cêntimos), declarada pelo Requerente marido no campo 404 do Anexo B (Rendimentos de prestação de serviços não previstos nos campos anteriores), deveria constar antes no campo 403 (Rendimentos de atividades profissionais especificamente previstas na Tabela do art. 151º do CIRS). (documento n.º 4; PA) 

e)           17. O Requerente apresentou resposta à referida notificação. (documento nº 5)

f)            Os Requerentes foram notificados do reembolso da quantia de €948,33 (novecentos e quarenta e oito euros e trinta e três cêntimos), conforme a demonstração de liquidação nº 2018... . (documento n.º 6)

 

2.2          Factos não provados

28. Com relevo para a decisão sobre o mérito não existem factos alegados que devam considerar-se como não provados.

2.3          Motivação

29. Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da matéria não provada (cf. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

 

30. Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões objeto do litígio (v. 596.º, n.º 1, do CPC, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

31. Assim, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

2.4          Questão decidenda

32. Tendo sido julgada improcedente a exceção invocada pela AT (v. supra § 24), a questão decidenda prende-se com saber se o conceito “Desportistas”, com o CAE, 1323 do ANEXO I do CIRS, Tabela de atividades do artigo 151.º, deve ser interpretado e aplicado de forma a abarcar a atividade de árbitro de futsal.

33. À altura dos factos em causa, o artigo 31.º do CIRS, com a epígrafe “Regime simplificado”, na redação dada pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro - Lei do Orçamento do Estado para 2014, passou a prever novos coeficientes para a obtenção do rendimento tributável quando a determinação dos rendimentos empresariais e profissionais, da categoria B, é feita com base na aplicação das regras decorrentes do regime simplificado. Aí se dispunha :

 

“1 - No âmbito do regime simplificado, a determinação do rendimento tributável obtém-se através da aplicação dos seguintes coeficientes: 

 

b) 0,75 aos rendimentos das atividades profissionais especificamente previstas na tabela a que se refere o artigo 151.º;

 

c) 0,35 aos rendimentos de prestações de serviços não previstos nas alíneas anteriores;”

 

34. O artigo 151.º do CIRS dispõe que “As atividades exercidas pelos sujeitos passivos do IRS são classificadas, para efeitos deste imposto, de acordo com a Classificação das Atividades Económicas Portuguesas por Ramos de Atividade (CAE), do Instituto Nacional de Estatística, ou de acordo com os códigos mencionados em tabela de atividades aprovada por portaria do Ministro das Finanças”.

 

35. A Classificação das Atividades Económicas do INE, na sua secção R, respeitante a atividades artísticas, de espetáculos e recreativas, inclui o CAE 93192, correspondente a “Outras Atividades Desportivas, N.E.”. Aí se diz expressamente que o mesmo “[c]compreende as atividades de: produtores e promotores de acontecimentos desportivos com ou sem instalações; promoção de eventos desportivos; atletas, árbitros, cronometristas e de outros desportistas independentes; estábulos, canis e garagens, relacionados com a atividade desportiva; apoio à pesca e caça recreativas e desportivas; e dos guias de montanha. Inclui a gestão de zonas de caça e pesca.”

36. O Requerente marido desenvolve a atividade de árbitro de futsal. Como se referiu acima, na descrição dos factos, quando preencheu a sua declaração de rendimentos relativa ao ano de 2017, o mesmo inseriu o código 93192, “outras atividades desportivas”, no quadro 3 A do referido Anexo – “Identificação do(s) Sujeito(s) Passivo(s)”, campo 08 – “Código CAE (Rendimentos Profissionais, Comerciais e Industriais)”. Todavia, o Anexo I do CIRS, contém a Tabela de atividades do artigo 151.º, onde se encontra o conceito de “Desportistas” com o CAE 1323 . Nos termos do artigo 31.º, n. º1, alíneas b) e c), às atividades profissionais especificamente previstas na tabela de atividades do artigo 151.º do CIRS, aplica-se o coeficiente 0,75, ao passo que às não especificamente previstas se aplica o coeficiente 0,35. Note-se que a formulação do artigo exige não uma mera previsão genérica, mas uma previsão específica. Em causa está saber se a atividade profissional de árbitro se pode considerar especificamente prevista na tabela de atividades onde é utilizado o conceito de “Desportistas”.

37. A AT veio pronunciar-se no sentido de que o código “1323 – Desportistas” é abrangente e engloba, para além de atletas, todos os agentes desportivos envolvidos em atividades desportivas, pelo que os rendimentos do Requerente marido provenientes de uma atividade especificamente prevista na tabela de atividades a que se refere o artigo 151.º do CIRS, devem ser inscritos no campo 443 do quadro 4 A da declaração de rendimentos – modelo 3 e enquadrados na alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º do CIRS, sendo-lhes aplicável o correspondente coeficiente de 0,75.

38. Sobre a aplicação da tabela do artigo 151.º do CIRS, a jurisprudência arbitral do CAAD já se pronunciou algumas vezes, embora não necessariamente sobre questão idêntica à do presente processo. No Processo n.º 196/2017-T, convocou-se o princípio da tipicidade específica, ínsito no princípio da legalidade tributária, que vigora no direito fiscal. Nos Processos n.º 07/2016-T e n.º 251/2017-T, salientou-se a relevância do elemento literal como limite máximo da tarefa interpretativa. No Processo n.º 372/2017-T, sublinhou-se o facto de o artigo 31.º do CIRC exigir uma previsão específica na tabela de atividades do artigo 151.º do CIRS. Trata-se de elementos de inegável relevância hermenêutica e metódica que não poderão deixar de ser considerados na decisão do caso concreto.

39. No entanto, eles não impõem que se siga a orientação perfilhada pela douta decisão no Processo n.º 510/2017-T, versando as atividades de Personal Trainer e Árbitro.  No entender deste tribunal, a atividade de árbitro desportivo, assim como se enquadra facilmente no conceito de atividade desportiva, constante da Classificação das Atividades Económicas, do Instituto Nacional de Estatística, também se subsume, de forma natural, imediata e logicamente transparente, ao conceito de Desportista, da Tabela de atividades do artigo 151.º do CIRS, Anexo I. É desportista aquele que se dedica a uma atividade desportiva. Se a arbitragem desportiva pode ser considerada uma atividade desportiva, então quem a exerce pode, compreensivelmente, ser designado por desportista, sem qualquer sacrificium intellectus. O conceito “Desportistas” – da Tabela de atividades do artigo 151.º do CIRS - não tem que abranger unicamente os praticantes desportivos propriamente ditos, sejam eles profissionais ou não profissionais, antes podendo designar outros agentes desportivos intimamente ligados à prática competitiva de uma dada modalidade. Isto, à semelhança do que sucede com o conceito de “atividade desportiva”.

40. Na verdade, a arbitragem desportiva assume uma importância decisiva na realização de competições desportivas oficiais, sendo condição sine qua non das mesmas. Acresce que o árbitro de futsal participa ativamente na realização da competição desportiva, estando presente no recinto de jogo e interagindo ativamente com os atletas em competição. Cabe-lhe a importante tarefa de acompanhar atentamente todas as incidências concretas da competição e garantir a interpretação e aplicação das normas desportivas, em termos que satisfaçam as elevadas exigências de rigor e uniformidade impostas pelas federações desportivas, não só a nível nacional como também regional e mundial. 

41. Para esse efeito, a disciplina do acesso e exercício da atividade de árbitro desportivo, incluindo a respetiva classificação, encontra-se definida e estruturada pelas federações desportivas, sendo uma parte integrante da respetiva atividade, como melhor se verá a seguir. Dos árbitros exige-se o conhecimento pleno e atualizado das normas da modalidade cuja competição os mesmos são chamados a arbitrar, exigindo-se a participação em cursos de formação inicial e contínua e o preenchimento dos requisitos de aptidão física e psicológica necessários ao exercício da atividade. No caso específico do futsal, a atividade de árbitro encontra-se enquadrada na Federação Portuguesa de Futebol, na UEFA e na FIFA.

42. Importa salientar que a Lei de Bases do Sistema Desportivo, no artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 146/93, de 26 de abril, sujeita os árbitros a seguro desportivo obrigatório. O mesmo se diga da Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto, a Lei n.º 5/2007, de 16 de janeiro, onde além do mais se dispõe, no artigo 14.º, que as federações desportivas englobam, entre outros, os árbitros, os quais são indissociáveis do desenvolvimento da respetiva modalidade desportiva.  O artigo 40.º, nºs 1 e 4, deste diploma, inserido na secção III respeitante à proteção dos agentes desportivos, faz aplicar aos árbitros, com as devidas adaptações, o regime de acesso à medicina desportiva. Na secção IV, relativa às medidas de apoio para o desporto de alto rendimento, orientado para a procura de resultados de excelência de acordo com padrões internacionais, estabelece-se a possibilidade de as mesmas serem concedidas não apenas ao praticante desportivo como também a técnicos e árbitros.

43. O artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 248-B/2008, que veio estabelecer o Regime Jurídico das Federações Desportivas e as Condições de Atribuição do Estatuto de Utilidade Pública Desportiva, enquadra a atividade de árbitro no conceito de federação desportiva.  O mesmo sucede com o artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 93/2014, de 23 de junho, que procedeu à sua alteração e republicação. Como se refere no artigo 45.º deste diploma, os árbitros estão sujeitos a um regime de formação, coordenação e classificação no seio das federações desportivas. 

44. Em face das considerações aduzidas, a recondução da atividade de árbitro ao conceito “Desportistas”, com o CAE, 1323, da Tabela de atividades do Artigo 151.º do CIRS,  não representa qualquer violação da tipicidade específica ínsita nos princípios da legalidade tributária e da segurança jurídica e proteção da confiança dos cidadãos, que concretizam o princípio constitucionalmente estruturante do Estrado de direito, Trata-se de uma operação conceitual, hermenêutica e metódica cuja razão de ser se afigura inteiramente razoável e inteligível, à luz do regime jurídico da atividade desportiva e das federações desportivas.

45. Assim, afigura-se correta, aos olhos do presente tribunal, a orientação seguida na Informação Vinculativa proferida no Processo n.º 920/2018, com despacho concordante da Subdiretora Geral do IR, de 02.05.2018, respeitante ao tema da “Declaração de rendimentos provenientes da atividade de árbitro de futsal”. Aí se sustentou que o Código CAE, 1323 – “Desportistas” é abrangente, englobando, “para além dos atletas, todos os agentes desportivos participantes nas atividades desportivas”. Essa orientação é compatível com o princípio da precisão, clareza e determinabilidade das leis, na medida em que confere ao conceito “Desportistas” uma intensão e uma extensão inteiramente dotadas de plausibilidade e razoabilidade, que nada têm de arbitrário, surpreendente, inesperado ou imprevisível.

46. Nos termos do artigo 11.º, n. 1º, da LGT, “[a] determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis.” Por seu lado, o artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil, dispõe que “[a] interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. “

47. O entendimento preconizado pela AT perfila-se como o mais consistente com uma visão unitária do sistema jurídico, enquanto sistema de valores, princípios e regras. Com efeito, ele adequa-se inteiramente ao sentido material que se retira de importantes princípios do sistema fiscal. Assim é, nomeadamente, no que concerne os princípios da justiça fiscal, da igualdade fiscal – horizontal e vertical – e da consideração da capacidade contributiva subjetiva, que têm o seu fundamento último na ordem constitucional (v.g. arts. 1.º, 2.º, 13.º, 103.º e 104.º, da CRP). O princípio da tributação de acordo com a capacidade contributiva (Besteuerung nach der Leistungsfähigkeit) é desde há muito reconhecido como um princípio estruturante do direito fiscal, deduzido dos princípios da justiça e da igualdade tributárias, nomeadamente da igualdade perante os encargos públicos. A tributação de acordo com a capacidade contributiva tem especial relevância no imposto sobre o rendimento . O CIRS deve ser interpretado e aplicado, pela AT e pelos tribunais em conformidade com estes princípios constitucionais, tendo igualmente em conta os fins e os objetivos da tributação (arts. 5.º e 7.º da LGT).  

48. Nesta sede, a aplicação do coeficiente de 0,75 a atletas e árbitros significa que aos mesmos se reconhece uma dedução automática de 25%. A mesma afigura-se inteiramente razoável, na medida em que uns e outros podem normalmente ser chamados a suportar algumas despesas para poderem exercer a sua atividade e obter os correspondentes rendimentos. Se fosse aplicável aos árbitros o coeficiente de 0,35 – diferentemente do que sucede com os praticantes desportivos propriamente ditos –, isso significaria, na prática, o reconhecimento de um direito de dedução automática de despesas no valor de 65% do rendimento auferido, o que se afigura manifestamente desigual, desproporcional e destituído de fundamento racional e material bastante. Uma tal diferenciação de tratamento, aplicando a praticantes desportivos um coeficiente de 0,75 e a árbitros o de 0,35, representaria uma diferenciação dificilmente compatível com a justiça do sistema fiscal, porque violadora dos princípios da capacidade contributiva e proibição do arbítrio, que são subprincípios do princípio da igualdade fiscal. Em face do exposto, deve aplicar-se no caso concreto o CAE 1323 “Desportistas” – da Tabela de atividades do artigo 151.º do CIRS, aplicando-se à atividade de árbitro de futsal o coeficiente 0,75 previsto no artigo 31.º, n.º 1, alínea b) do CIRS, na redação vigente à data dos factos.

 

3             DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

a)            Julgar improcedente a exceção invocada pela Requerida;

b)           Julgar improcedente o presente pedido de pronuncia arbitral, por não provado, mantendo-se na ordem jurídica o ato tributário de liquidação impugnado, absolvendo-se, em conformidade, a entidade Requerida do pedido.

 

 

4             VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em € 948,33, nos termos do artigo 306.º, n.º 1 do CPC e do 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

5             CUSTAS

 

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 306.00 €, a cargo dos Requerentes, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e do artigo 4.º, n.º 4, do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I anexa ao mesmo.

 

 

Notifique-se.

Lisboa, 29 de outubro de 2019

 

O Árbitro

 

 

Jónatas E. M. Machado