Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 470/2023-T
Data da decisão: 2024-03-01  IRS  
Valor do pedido: € 106.129,34
Tema: IRS – Exclusão de tributação de ganhos provenientes da alienação onerosa de imóvel e reinvestimento em imóvel destinado a habitação própria e permanente situado em França – Não Residente – Artigo 10.º, n.º 5 e 6, do Código do IRS.
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SUMÁRIO:

I – Numa interpretação teleológica da norma ínsita no n.º 5, do artigo 10.º, do CIRS, na redação em vigor à data dos factos (ano de 2021), o que relevava para aferir da verificação dos requisitos de exclusão da tributação das mais-valias, era saber se o imóvel vendido havia servido ou não de “habitação própria e permanente” do Sujeito Passivo, ainda que à data da venda, por condicionalismos específicos, este residisse noutro local.

II – Antes da alteração legislativa introduzida pela Lei n.º 56/2023, de 06 de outubro, o artigo 10.º, n.º 5, do CIRS impunha apenas uma limitação temporal no que respeitava ao reinvestimento e à afetação do imóvel, destino do reinvestimento.

III – A interpretação das regras do n.º 5, do artigo 10.º, do CIRS, no sentido de restringir a aplicação do benefício de reinvestimento apenas a contribuintes residentes em território português, é violadora do Direito da União Europeia, designadamente, da liberdade de livre circulação de pessoas e capitais (cfr. artigos 21.º e 45.º e seguintes, do TFUE), constituindo uma discriminação injustificada para com os cidadãos não residentes na República Portuguesa (proibida pelos artigos 18.º e seguintes, do TFUE).

IV – Encontrando-se preenchidos todos os pressupostos previstos no artigo 10.º, n.º 5 e 6, do CIRS, não é o facto do Requerente não ser residente em Portugal que inviabiliza a aplicação do aludido regime da exclusão de tributação das mais-valias.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Prof.ª Doutora Regina de Almeida Monteiro (Presidente), Dr. António Pragal Colaço e Dra. Susana Cristina Nascimento das Mercês de Carvalho (Adjuntos), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o presente Tribunal Arbitral Coletivo, constituído a 12.09.2023, decidem o seguinte:

 

  1. RELATÓRIO
  1. A..., titular do número de identificação fiscal..., residente em ..., ... Paris, França (doravante “o Requerente”), ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 2, alínea a), 6.º, n.º 1, e 10.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante “RJAT”), requereu a constituição do Tribunal Arbitral,

com vista à pronúncia deste Tribunal relativamente à declaração de ilegalidade e, consequente, anulação do ato tributário de demostração de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singular (doravante “IRS”) n.º 2022..., no montante de imposto a pagar de €106.129,34 (cento e seis mil cento e vinte e nove euros e trinta e quatro cêntimos) e do ato tributário, subsequente e corretivo, de demostração de liquidação de IRS n.º 2023..., no valor de imposto a pagar de €53.064,67 (cinquenta e três mil e sessenta e quatro euros e sessenta e sete cêntimos), relativos ao ano de 2021, acrescido de juros indemnizatórios.

 

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”)

 

Subsidiariamente, peticionou, ainda, o Requerente, o reenvio prejudicial dos presentes autos ao Tribunal de Justiça da União Europeia (doravante “TJUE”), ao abrigo do artigo 267.º, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (doravante “TFUE”), caso o Tribunal entenda subsistirem dúvidas interpretativas sobre a compatibilidade da norma prevista no artigo 10.º, n.º 5 e o Direito da União Europeia.

 

Afigura-se-nos que decorre com meridiana clareza da literalidade do pedido que o que a Requerente efetivamente pretende é a declaração de ilegalidade e a anulação dos atos tributários de liquidação de IRS, por via da declaração de ilegalidade e a anulação do despacho de indeferimento da reclamação graciosa oportuna e previamente apresentada.

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite a 03.07.2023 pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida.

O Requerente não exerceu o direito à designação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os ora signatários como árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, que comunicaram a aceitação do cargo no prazo aplicável.

A 23.08.2023 as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º, do Código Deontológico do CAAD.

Em conformidade com o preceituado no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído a 12.09.2023.

Por despacho proferido pelo Tribunal Arbitral a 12.09.2023 foi a Requerida notificada para, no prazo de 30 (trinta) dias, apresentar resposta, juntar cópia do processo administrativo e, querendo, requerer a produção de prova adicional.

No dia 15.10.2023, a Requerida apresentou a Resposta, na qual se defendeu por impugnação e juntou aos autos o Processo Administrativo.

Por despacho proferido a 16.10.2023, o Tribunal Arbitral: (i) dispensou a realização da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT; (ii) notificou as partes para, querendo, apresentarem alegações escritas, no prazo simultâneo de 20 (vinte) dias (iii) indicou a data previsível para a prolação da decisão arbitral e; (iv) notificou o Requerente para proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente.

Em 23.10.2023, o Requerente apresentou as suas alegações finais, onde reiterou a argumentação anteriormente expendida e, clarificou o pedido da presente ação: “Termos em que, e nos demais de direito, que o Exmo. Tribunal Arbitral doutamente suprirá, conclui-se que o Pedido de Pronúncia Arbitral deve ser julgado totalmente procedente, anulando na sua totalidade o novo ato de liquidação n.º 2023... emitido na sequência da demonstração de liquidação de IRS n.º 2022...”.

 

I.1. ARGUMENTOS DAS PARTES

A fundamentar o seu pedido de pronúncia arbitral, com vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação do ato de liquidação de IRS controvertido (n.º 2023...), invoca o Requerente, de entre o mais, que:

  1. Foi residente, para efeitos fiscais, em Portugal, no período de 2017 a 2020.
  2. Em junho de 2017 adquiriu um imóvel em Portugal que afetou à sua habitação própria e permanente.
  3. No início de janeiro de 2020, por razões de saúde e familiares, retornou a França, de onde é natural e nacional, tendo alterado, junto da AT, a sua residência de Portugal para França – ... ... –, com efeitos a partir de 06 de janeiro de 2020. 
  4. Colocou à venda o imóvel referido em b) no final do ano de 2019.
  5. Apenas foi possível concretizar a venda do dito imóvel no dia 27 de julho de 2021, em virtude da pandemia, que condicionou fortemente a alienação daquele.
  6. Em Abril de 2022 adquiriu um imóvel em França que afetou à sua habitação própria e permanente, onde continua a residir até à presente data, tendo alterado a sua morada junto da AT, com efeitos a partir de 06.10.2022.
  7. O valor de venda do imóvel em Portugal foi na sua íntegra utilizado para aquisição da habitação própria e permanente em França, sem recurso a empréstimos.
  8. No cumprimento das suas obrigações declarativas entregou a declaração modelo 3 de IRS, referente ao ano de 2021, reportando a alienação da sua habitação própria e permanente e a respetiva intenção de reinvestimento no anexo G – Incrementos Patrimoniais da aludida declaração.
  9. A lei apenas exige que, (i) o imóvel alienado seja habitação própria e permanente do sujeito passivo, não se fazendo menção a requisitos temporais; e (ii) que se afete ao mesmo fim o imóvel no qual se reinveste, dentro de um prazo de 12 meses contados do reinvestimento.
  10. Interpretando as regras no seu sentido simples, a lei estabelece um prazo de 24 meses antes da venda para completar o reinvestimento. Ao mesmo tempo, a lei exige que o imóvel objeto do reinvestimento seja afeto ao mesmo fim no decorrer de 12 meses. No cenário do reinvestimento entre 24 e 12 meses antes da alienação, é inevitável para o cumprimento das regras de afetação da alínea a) do número 6 do artigo 10.º do Código do IRS que a habitação alienada não seja já a habitação própria e permanente do sujeito passivo. Portanto, a própria lei admite que, na data de alienação, a habitação alienada já não seja a habitação própria do sujeito passivo, sendo a mesma no imóvel objeto de reinvestimento. Igualmente, nada obsta que durante o período de 36 meses, a primeira habitação já se encontre vendida, e que entre o momento da venda e o momento do reinvestimento possa existir uma residência temporária, intercalar, tal como sucede no caso dos autos.
  11. É evidente a partir da letra da lei, a ausência de condicionamento da habitação ou domicílio ser no imóvel alienado à data da venda. Tal restrição não encontra a mínima consagração no artigo 10.º do Código do IRS. Se assim fosse estar-se-ia a sufragar uma interpretação restritiva que nem a letra nem o espírito da lei permitem.
  12. Não podia a AT ter desconsiderado a intenção de reinvestir pela razão do imóvel alienado não estar afeto à habitação própria e permanente à data da venda, sendo esta a aplicação errada da lei, conforme interpretada pela jurisprudência.
  13. A aplicação e interpretação das regras do n.º 5 do artigo 10.º do Código do IRS, que visa restringir a aplicação do benefício de reinvestimento apenas a contribuintes com domicílio fiscal e habitação permanente em Portugal, viola o Direito da União Europeia, em particular, a liberdade de livre circulação de pessoas (artigo 45.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia), constituindo uma discriminação injustificada).
  14. Para eliminação da situação discriminatória, deveria a AT aceitar que o legislador exclui a tributação das mais-valias decorrentes da alienação de imóveis “destinados a habitação própria e permanente do sujeito passivo ou do seu agregado familiar” e não distingue entre sujeitos passivos residentes e não-residentes no momento de alienação, pelo que as alienações que cumpram o disposto no n.º 5 do artigo 10.º do Código do IRS devem estar excluídas de tributação.
  15. Fica patente que o regime de exclusão de mais-valias imobiliárias é aplicável ao caso concreto, devendo a liquidação corretiva que substitui a liquidação ser totalmente anulada, por se encontrarem cumpridos os requisitos do artigo 10.º do Código do IRS para beneficiar da exclusão de tributação.

 

Por sua vez, a AT contra-argumentou com base nos seguintes fundamentos:

  1. Na situação concreta o Requerente assume que deslocou de forma permanente para outro País – França –, o seu centro de interesses pessoais, familiares e profissionais, por razões obviamente pessoais, muito antes da alienação do direito de propriedade do imóvel gerador de mais valia imobiliária. Reconhecendo, assim, o facto indesmentível que o imóvel sito em Portugal era sua propriedade, mas não habitação destinada a constituir “casa de família”, no sentido subjacente à natureza conceitual do regime de exclusão previsto no Código do IRS.
  2. Na situação do Requerente há uma efetiva, real e definitiva interrupção de onde se encontrava situada a casa de família, o centro fundamental de interesse daquele, para um outro local e imóvel em data muito anterior ao da alienação do imóvel gerador do ganho, ou seja, o imóvel de partida e de chegada não detinham o mesmo destino aquando do facto gerador do ganho.
  3. O imóvel alienado e gerador de mais valia, não era destinado a habitação própria e permanente, quando muito habitação com fim de utilização ocasional, não podendo assumir idêntico destino àquele em que o Requerente pretende aplicar o valor de realização se o objetivo é situar neste último o seu centro de interesses e este requisito é essencial para a eventual ponderação do regime de exclusão da tributação.
  4. Aceitar-se a argumentação apresentada pelo Requerente era aceitar a discricionariedade, a extrapolação do teor normativo que por si só é diferenciador face à generalidade da tributação dos ganhos de mais valias e obvia violação do princípio da legalidade e da justiça.
  5. Tendo o Requerente alterado o seu domicílio para a França, e sendo não residente em território nacional, o imóvel alienado não pode ser considerado habitação própria e permanente daquele, não se verificando, portanto, os requisitos para a exclusão de tributação prevista no n.º 5 do artigo 10.º do Código do IRS.
  6. Não pode o Requerente invocar que, por um lado, o imóvel alienado era a sua residência própria e permanente para efeitos de beneficiar de exclusão de tributação relativamente às mais-valias prevista para os sujeitos passivos residentes em território nacional, e por outro, querer ser considerado como não residente, para efeitos de não englobamento das mais valias e não tributação dos rendimentos universalmente auferidos.
  7. Os sujeitos passivos não podem ser simultaneamente residentes, para efeitos fiscais, em dois países diferentes, motivo pelo qual, em caso de conflito entre duas legislações nacionais, se aplica a Convenção para Evitar a Dupla Tributação entre os dois Estados Contratantes, por forma a determinar qual o Estado de Residência, nomeadamente, no seu artigo 4.º da CDT.
  8. Eventualmente, não tem de existir uma correlação entre o domicílio fiscal e habitação no conceito do regime controvertido, mas tem de se mostrar comprovado que a realidade efetiva é a que o legislador visou proteger e que de modo claro se encontra expresso na norma do Código do IRS ora controvertida – habitação própria e permanente e, no caso, o imóvel sito em Lisboa não tinha à data do facto gerador do ganho, tal destino.
  9.  Deverá, assim, ser indeferido o pedido, na medida em que não se mostra conforme com o regime previsto no Código do IRS, artigo 10.º, n.º 5.

 

  1. SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.

As partes gozam de personalidade, capacidade judiciária, legitimidade processual e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

Não foram suscitadas exceções de que deva conhecer-se. O processo não enferma de nulidades. Inexiste, deste modo, quaisquer obstáculos à apreciação do mérito da causa.

 

III. MATÉRIA DE FACTO

III.1. FACTOS PROVADOS

Com relevo para a apreciação e decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:

  1. O Requerente, de nacionalidade francesa, foi residente, para efeitos fiscais, em Portugal, no período compreendido entre os anos de 2017 e de 2020; (cfr. Documento n.º 5 junto ao PPA).
  2. Em 02 de junho de 2017, o Requerente adquiriu um imóvel sito em Portugal – fração autónoma designada pela letra “G”, correspondente ao T-três no piso cinco, com entrada pelo n.º ... da Rua ..., destinada a habitação, com o uso exclusivo de dois lugares de estacionamento identificados com os números nove e dez na garagem do piso dois, com acesso pelo n.º ... da Rua ..., do prédio urbano localizado na Rua ..., n.ºs ..., ... e ..., e Rua ..., n.ºs ..., ..., ... e ..., freguesia da ..., concelho de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número ..., da extinta freguesia dos ..., afeto ao regime de propriedade horizontal, provisoriamente inscrito na respetiva matriz do ... Serviço de finanças de Lisboa sob o número P...– tendo afeto o mesmo à sua habitação própria e permanente; (cfr. Documento n.º 6 junto ao PPA). 
  3. No final de 2019, o Requerente, antevendo o seu retorno ao território francês, de onde é natural e nacional, colocou no mercado, para venda, o imóvel referido em B.; (cfr. Documento n.º 8 junto ao PPA).  
  4. No início de 2020, o Requerente regressou ao território francês, tendo alterado, junto da AT, a sua residência de Portugal para França –...–, com efeitos a partir de 06 de janeiro de 2020; (cfr. Documento n.º 7 junto ao PPA).  
  5. A situação pandémica por Covid-19 acabou por condicionar fortemente a alienação do imóvel melhor descrito em B., pelo que só em 27 de julho de 2021 foi possível ao Requerente concretizar a respetiva venda; (cfr. Documentos n.ºs 9 e 10 juntos ao PPA).  
  6. Em 21 de abril de 2022, o Requerente adquiriu um imóvel sito em França –... Paris –, o qual foi afeto à sua habitação própria e permanente no território Francês; (cfr. Documentos n.ºs 11 e 12 juntos ao PPA).
  7. O Requerente alterou a sua morada para ... Paris, junto da AT, com efeitos a partir de 06 de outubro de 2020; (cfr. Documento n.º 13 junto ao PPA).  
  8. O valor de venda do imóvel sito em Portugal foi utilizado na íntegra para aquisição da habitação própria e permanente sita em França, sem recurso a empréstimos; (cfr. Documento n.º 14 junto ao PPA).  
  9. O Requerente entregou a declaração Modelo 3 de IRS, relativa ao ano de 2021, reportando a alienação do imóvel melhor descrito em B. e a respetiva intenção de reinvestimento no Anexo G – Incrementos Patrimoniais, da aludida declaração; (cfr. Documento n.º 14 junto ao PPA).
  10. Atenta a informação constante da declaração referida em I. e após a apresentação, a pedido da AT, no âmbito de um processo de divergência, dos elementos comprovativos dos montantes reportados, foi emitida a liquidação de IRS n.º 2022..., datada de 29.06.2022, com o valor de imposto a pagar no montante de €106.129,34 (cento e seis mil cento e vinte e nove euros e trinta e quatro cêntimos); (Cfr. Documento n.º 1 junto ao PPA).
  11. Em 30-08-2022, no prazo de pagamento voluntário o Requerente efetuou o pagamento do valor de € 106.129,34.; (cfr. Documento n.º 15 junto ao PPA e PA).
  12. Em 02 de agosto de 2022, o Exmo. Senhor Chefe do Serviço de Finanças de Lisboa – ... remeteu um email ao Requerente, afirmando que este não poderia optar pelo reinvestimento uma vez que “passou a ter residência em Franca em 2020-janeiro, pelo que quando vendeu o imóvel não residia nele”; (cfr. Documento n.º 16 junto ao PPA). 
  13. Em 28 de outubro de 2022, o Requerente apresentou reclamação graciosa, que teve como objeto a liquidação de IRS referida em J., pugnando pela sua total anulação, com fundamento no cumprimento de todos os requisitos para a declaração da intenção do reinvestimento, tendo, ainda, requerido, subsidiariamente, a consideração de metade das mais-valias realizadas, para efeitos de tributação em sede de IRS; (cfr. Documento n.º 17 junto ao PPA).
  14. Em fevereiro de 2022, foi o Requerente notificado do projeto de decisão da reclamação graciosa e, para, querendo, exercer o direito de audição prévia; (cfr. Documento n.º 18 junto ao PPA), tendo aquele optado por não o exercer.
  15.  Posteriormente, foi o Requerente notificado do despacho final de deferimento parcial da reclamação graciosa, proferido em 29 de março de 2023, nos termos do qual foi desconsiderada a possibilidade de reinvestimento, nos termos do artigo 10.º, n.º 5, do Código do IRS, na medida em que o imóvel alienado não constituía habitação própria e permanente do sujeito passivo à data da alienação, mas foi deferido o pedido no que respeita ao facto da mais-valia imobiliária apurada apenas dever ser sujeita em 50% do seu valor em consonância com o disposto no artigo 43.º, do Código do IRS, aplicando-se a taxa autónoma de 28%, artigo 72.º, n.º 1, alínea a), do Código do IRS, na redação, à data, em vigor; (cfr. Documento n.º 3 junto ao PPA).
  16. A decisão referida em O. deu lugar à liquidação oficiosa n.º 2023..., de 03 de junho de 2023, com o valor de imposto a pagar de €53.064,67; (cfr. Documento n.º 2 junto ao PPA).
  17. Em 29.06.2023, apresentou, o Requerente, o pedido de pronúncia arbitral; (cfr. Sistema informático do CAAD).

 

III.2. FACTOS NÃO PROVADOS

Os factos dados como provados são aqueles que o Tribunal considera relevantes, não se considerando factualidade dada como não provada que tenha interesse para a decisão.

 

III.3. FUNDAMENTAÇÃO DA FIXAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

Ao Tribunal incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão, discriminar a matéria que julga provada e declarar, se for o caso, a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre dos termos conjugados do artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (doravante “CPPT”) e do artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (doravante “CPC”), aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram assim selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é definida tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, tal como resulta do artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

O Tribunal arbitral considera provados, com relevo para a decisão da causa, os factos acima elencados e dados como assentes, tendo por base a análise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos, dos factos alegados pelas partes que não foram impugnados e, a adequada ponderação dos mesmos à luz das regras da racionalidade, da lógica e da experiência comum, e segundo juízos de normalidade e razoabilidade.

 

IV. MATÉRIA DE DIREITO

Atendendo à factualidade exposta, bem como às pretensões e posições do Requerente e da Requerida constantes das suas peças processuais, a questão que cumpre apreciar no presente processo prende-se com o preenchimento dos requisitos referentes à exclusão da tributação da mais-valia, em função do reinvestimento efetuado por um sujeito passivo não residente na aquisição, em França, de um imóvel destinado a habitação própria e permanente.

Aduz o Requerente que a liquidação de IRS aqui sindicada (n.º 2023...) está ferida de ilegalidade, por considerar que deveria ter sido aplicado o regime de reinvestimento, que exclui de tributação os ganhos provenientes de transmissão onerosa de imóveis destinados a habitação própria e permanente, em virtude de se encontrarem preenchidos todos os pressupostos previstos no artigo 10.º, n.ºs 5 e 6, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (doravante “CIRS”).

A Requerida, por sua vez, entende, em síntese, que a aludida liquidação de IRS não padece de qualquer ilegalidade, porquanto, o Requerente, à data da venda do imóvel gerador da mais-valia, não era residente em Portugal e, por isso, tal imóvel não era destinado a habitação própria e permanente do sujeito passivo, sendo quando muito uma habitação com fim de utilização ocasional.

 

IV.1 APRECIAÇÃO

 

IV.1.1 Do Regime Da Exclusão De Tributação Das Mais-Valias (artigo 10.º, n.ºs 5 e 6, do CIRS, na redação em vigor à data dos factos)

Nos termos do artigo 9.º, n.º 1, do CIRS, “Constituem incrementos patrimoniais, desde que não considerados rendimentos de outras categorias: a) As mais-valias, tal como definidas no artigo seguinte;”.

De acordo com o disposto no artigo 10.º, n.º 1, do mesmo diploma, “Constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de: a) Alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis;”. 

Acrescenta o n.º 5 do citado artigo, que: “São excluídos da tributação os ganhos provenientes da transmissão onerosa de imóveis destinados a habitação própria e permanente do sujeito passivo ou do seu agregado familiar, desde que verificadas, cumulativamente, as seguintes condições: a) O valor de realização, deduzido da amortização de eventual empréstimo contraído para a aquisição do imóvel, seja reinvestido na aquisição da propriedade de outro imóvel, de terreno para construção de imóvel e ou respetiva construção, ou na ampliação ou melhoramento de outro imóvel exclusivamente com o mesmo destino situado em território português ou no território de outro Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal; b) O reinvestimento previsto na alínea anterior seja efetuado entre os 24 meses anteriores e os 36 meses posteriores contados da data da realização; c) O sujeito passivo manifeste a intenção de proceder ao reinvestimento, ainda que parcial, mencionando o respetivo montante na declaração de rendimentos respeitante ao ano da alienação;”. (negrito nosso)

Não obstante a exclusão de tributação prevista pelo artigo 10.º, n.º 5, a norma constante do n.º 6 do mesmo preceito vem impor que tal exclusão não ocorra quando: (i) tratando-se de reinvestimento na aquisição de outro imóvel, o adquirente não o afete à sua habitação própria e permanente até decorridos 12 meses do reinvestimento – artigo 10.º, n.º 6, al. a), do CIRS –.

Decorre, por último, da lei fiscal (na redação em vigor à data dos factos), que o conceito de domicílio fiscal não pode ser entendido como sinónimo de residência, ou sequer, sem mais, de residência habitual. Donde, a possibilidade de um contribuinte, em tese, possuir domicílio fiscal num determinado local e a sua residência habitual, e/ou habitação própria e permanente noutro local. 

Ora, podemos extrair dos elementos levados ao probatório que o Requerente, em consequência do seu regresso, no início de janeiro de 2020, a França (cidade de onde é natural e nacional), deixou de residir no imóvel sito em Portugal, onde viveu habitualmente, com carácter de estabilidade, regularidade e permanência, no período compreendido entre 2017 e janeiro de 2020. Mais resulta que esta situação perdurou entre a data do regresso do Requerente a França – janeiro de 2020 – e a data da venda do dito imóvel, ocorrida em 27 de julho de 2021, sendo que nesse período o sujeito passivo passou a residir noutro imóvel sito em França (designadamente, em ...).

Na verdade, em face dos elementos constantes dos autos, não existem dúvidas que, à data da venda do imóvel gerador da mais-valia, o Requerente já não residia no mesmo há mais de um ano (sendo, inclusive, não residente em Portugal e, tendo, para o efeito, alterado a sua residência de Portugal para França –...–, com efeitos a partir de 06 de janeiro de 2020). E nessa medida, à data da alienação, o imóvel de “partida” já não estava afeto a habitação própria e permanente do sujeito passivo.

Portanto, a questão que se coloca, efetivamente, é saber se o facto do imóvel de “partida” não ser, à data da sua venda, a habitação própria e permanente do Requerente (uma vez que este, em janeiro de 2020, já era residente em território Francês) implica, per si, a não aplicação do regime da exclusão de tributação das mais-valias previsto no artigo 10.º, n.º 5 e 6, do CIRS.

Como tem sido realçado na doutrina e na jurisprudência, os motivos subjacentes à exclusão da tributação das mais-valias neste caso assentam na intenção do legislador de favorecer a aquisição de habitação própria e permanente (não só em território Português, mas, também, no território de outro Estado Membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu), e facilitar a mudança de casa (cfr. a este propósito, Rui Duarte Morais in “Sobre o IRS”, Almedina, Coimbra, 2008, p. 142; André Salgado de Matos, “Código do Imposto do Rendimento das Pessoas Singulares (IRS)”, Anotado, ISG, Coimbra, 1999, p. 168; José Guilherme Xavier de Basto, “IRS: Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos”, Coimbra Editora, 2007, p. 412 e seguintes).

Assim, para Xavier de Basto (José Guilherme, “IRS – Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos”, ob. cit. pág. 413), “o objetivo geral do regime de exclusão da incidência é, pois, não embaraçar a aquisição, imediata ou mediata, de habitação própria e permanente financiada com o produto da alienação de um outro imóvel a que fora dado o mesmo destino. Usa-se a técnica de roll over, que torna não tributáveis essas mais-valias enquanto os valores de realização forem reinvestidos em imóveis também destinados a habitação (...)”.  

Em suma, “o legislador visou, através do aludido regime, uma finalidade de natureza extrafiscal, qual seja a de incentivar, diminuir ou eliminar obstáculos à aquisição de habitação própria pelas famílias e, em conformidade com a proteção da família e a ponderação das necessidades e rendimentos do agregado familiar que perpassa a nossa Lei Fundamental e, em especial ao que ora nos ocupa, a tributação em IRS” (Decisão Arbitral, de 07-03-2022, Processo n.º 402/2021-T).

No caso dos autos, não há dissenso entre as partes quanto ao facto do imóvel alienado ter constituído até à saída do Requerente, no início de 2020, de Portugal, a sua habitação própria e permanente, a sua casa de morada, onde tinha a sua vida estabilizada.

Por sua vez, o Sujeito Passivo, antevendo a necessidade de regressar ao seu país de origem (França), colocou, logo em finais de 2019 (quando, ainda, era residente em território português), o imóvel à venda no mercado.

Todavia, e como resulta do probatório, o advento do início da pandemia por Covid-19, em fevereiro de 2020, veio condicionar fortemente a venda do dito imóvel, o que, para além do mais, se nos afigura plausível e aceitável, porquanto, a pandemia por Covid-19 provocou uma quase paralisação da sociedade e da economia.

Trata-se, assim, de uma situação excecional e específica, cujo domínio e controlo escapam completamente ao Requerente, situação essa que terá de ser relevada e atendida na apreciação da questão suscitada a este Tribunal Arbitral[1].

Considerando as circunstâncias em que se encontrava o Requerente, é, a nosso ver, razoável e admissível que este se tenha estabelecido numa habitação temporária/intercalada (para a qual alterou o seu domicílio fiscal, tal como lhe é imposto, por lei), enquanto tentava, por um lado, vender o imóvel de “partida”, em tempos de pandemia por Covid-19, e, por outro, procurava a sua futura habitação própria e permanente noutro País, para aí se estabilizar.   

Como refere, e bem, o Sujeito Passivo, “ainda que a aquisição de habitação à distância, ou mediante realização de viagens, seja hoje em dia perfeitamente plausível, é perfeitamente percetível e aceitável que a escolha e a aquisição de habitação própria e permanente seja de mais fácil concretização durante a presença continua, ou seja, já residência, no Estado de Acolhimento”.

Pois, é evidente que a mudança de habitação, ainda mais sendo esta mudança entre Estados Membros da União Europeia, é um processo de alteração significativa de vida, havendo uma necessidade de reorganização da vida pessoal e, provavelmente, também, da vida profissional, cuja conclusão demora o seu tempo.

Assim, a mudança para uma habitação temporária/intercalada, até que o Requerente conseguisse proceder à venda do imóvel de “partida” e à aquisição do imóvel de “chegada” noutro País, trata-se precisamente disso, de uma habitação temporária/intercalada.

Logo, o facto de o Requerente ter deixado de residir no imóvel de “partida” durante um determinado período – na sequência de ter de regressar ao seu País de origem (outro Estado Membro da União Europeia) e da dificuldade que enfrentou na concretização da respetiva venda daquele –, não põe em causa a verificação da condição de tal imóvel ter tido como afetação a habitação própria e permanente do Sujeito Passivo.

Conforme decidido no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 17-02-2021, Processo n.º 164/13.3BEALM, “A necessária residência intercalada não consubstancia uma interrupção do nexo de ligação-causalidade entre o “imóvel de partida” e o “imóvel de chegada que impeça o preenchimento da previsão normativa da isenção prevista no n.º 5 do artigo 10.º do CIRS, sempre que a factualidade seja reconduzível a uma razoável e plausível situação de vida apreciada casuisticamente”, como se passa, claramente, no caso dos autos. 

Também o facto de o Requerente ter alterado o seu domicílio fiscal para o seu novo local de residência (habitação temporária/intercalada), não permite concluir que esta nova residência passou a ser a sua “habitação própria e permanente”, porquanto, tal conceito (de habitação própria e permanente), previsto no n.º 5, do artigo 10.º, do CIRS, assume uma especificidade própria que não se confunde com residência habitual ou domicílio fiscal, ainda que possa comungar destes dois conceitos, entendimento este que a própria AT admite na sua resposta/contestação.

E nesta medida, “o que se mostra relevante para o legislador é que o produto da venda de um determinado imóvel com determinada afetação – habitação própria e permanente – seja reinvestido noutro imóvel com a mesma afetação, impondo apenas uma limitação temporal no que respeita ao reinvestimento e à afetação do imóvel destino do reinvestimento. Já quanto à contemporaneidade da sua utilização como habitação e venda a lei não impõe tal exigência.” (Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, Processo n.º 0114/15.2BELLE, de 01-07-2020) (negrito nosso).

Desta feita, numa interpretação teleológica da aludida norma, na redação em vigor à data dos factos, e atendendo à situação concreta do Requerente, o que releva para aferir da verificação dos requisitos de exclusão da tributação das mais-valias, é saber se o imóvel vendido serviu ou não de “habitação própria e permanente” do Sujeito Passivo, ainda que à data da venda, por condicionalismos específicos – regresso ao país de origem, o que implicou uma mudança de habitação para um outro estado membro da União Europeia e, dificuldade na concretização da venda do imóvel de “partida”, tudo isto em tempos de Pandemia por Covid –este residisse noutro local.

E, a resposta só pode ser afirmativa.

Por fim, saliente-se, que dos elementos constantes dos autos não resulta que no período em causa (período compreendido entre a saída do Sujeito Passivo do imóvel de “partida” e a alienação do mesmo), o Requerente tenha afetado qualquer outro imóvel a “habitação própria e permanente”, sendo que a sua duração decorreu da necessidade de mudança do Sujeito Passivo para outro país e da dificuldade na venda do imóvel, em circunstâncias manifestamente excecionais (Pandemia por Covid-19), que levaram à quase paralisação da sociedade e da economia em vários sectores, motivo pelo qual não há fundamento legal para que o Requerente não possa beneficiar da exclusão da tributação no reinvestimento do produto da venda, encontrando-se, a priori, preenchidos todos os pressupostos para o efeito.

Dito tudo isto, e num primeiro momento, a pretensão do Requerente seria, então, de proceder.

Contudo, há, ainda, que aferir se o facto de o Requerente ser um não residente em território português, à data da venda do imóvel gerador da mais-valia, prejudica tal conclusão, o que, diga-se, desde já, não merece o nosso acolhimento.

 

Vejamos:

 

IV.1.2 Do Direito Da União Europeia

Na verdade, sufragamos a posição do Sujeito Passivo de que a interpretação das regras do n.º 5, do artigo 10.º, do CIRS, no sentido de restringir a aplicação do benefício de reinvestimento apenas a contribuintes residentes em território português, é violadora do Direito da União Europeia, designadamente, da liberdade de livre circulação de pessoas e capitais (cfr. artigos 21.º e 45.º e seguintes, do TFUE), constituindo uma discriminação injustificada (cfr. artigo 18.º e seguintes, do TFUE).

Ou seja, temos para nós que subordinar o benefício da exclusão de tributação das mais-valias, previsto no n.º 5, do artigo 10.º, do CIRS, à condição de o sujeito passivo ser residente em território português, sujeitando o contribuinte não residente a uma carga fiscal superior àquela que seria aplicada no caso do contribuinte manter a sua residência em Portugal, constitui uma clara restrição a tais princípios previstos no TFUE.

Com efeito, é manifesto que um sujeito passivo que resolva proceder à venda de um imóvel que dispõe para sua habitação própria e permanente em Portugal tendo em vista deslocar o seu domicílio para o território de um outro Estado-Membro e aí adquirir um outro imóvel para afetar à sua habitação própria e permanente, estará submetido a um regime fiscal desvantajoso relativamente ao que se aplica a uma pessoa que mantém a sua residência em território Português, o que, naturalmente, terá um efeito dissuasivo relativamente aos primeiros (aos sujeitos passivos que pretendam alienar os seus imóveis para se instalarem num Estado-Membro que não a República Portuguesa).

Se, admitidos que um sujeito passivo residente possa beneficiar daquele regime, ainda que à data da venda do imóvel de “partida”, por condicionalismos específicos e concretos, resida e tenha domicílio fiscal noutro local, mais se impõe que se aceite no caso de um não residente, em que o processo de mudança de habitação para um outro País é mais complexo, exigente e moroso, sendo a escolha e a aquisição da nova habitação de mais fácil concretização durante a presença continua já no Estado de acolhimento.

Assim, como refere, e bem, o Requerente, a interpretação defendida pela AT é claramente inibidora da liberdade de circulação consagrada no TFUE, forçando o contribuinte a manter a sua residência em Portugal no momento da aquisição da nova habitação no outro Estado Membro. 

Tal diferença de tratamento, que é passível de ter repercussões sobre o património do sujeito passivo e de, consequentemente, o dissuadir de proceder à transferência do seu domicílio para fora da República Portuguesa, é, assim, suscetível, de constituir entraves à livre circulação de pessoas e capitais, traduzindo-se numa situação de discriminação arbitrária para com os cidadãos que residam fora de Portugal (proibida pelos artigos 18.º e seguintes do TFUE).

É verdade, que podem ser admitidas medidas nacionais que criem obstáculos ao exercício das liberdades fundamentais garantidas pelo Tratado ou que sejam, até, suscetíveis de o tornar menos atrativo, contudo, para tal, é necessário que tais medidas prossigam um objetivo de interesse geral, que sejam adequadas a garantir a sua realização e não ultrapassem o que é necessário para o atingir.

Não havendo, in casu, como é bom de ver, qualquer razão imperiosa de interesse geral que justifique esta diferença de tratamento entre os residentes e os não residentes. 

Aliás, na hipótese de um imóvel ser adquirido noutro Estado Membro da União Europeia com o produto da venda em Portugal do imóvel afeto à habitação própria e permanente, essa aquisição substitui-se ao imóvel alienado e desempenha, no património daquele, uma função idêntica à que desempenhava o imóvel de “partida”, sendo o fim prosseguido pela norma (artigo 10.º, n.º 5, do CIRS), igualmente atingido – favorecer a aquisição de habitação própria e permanente e facilitar a mudança de casa –, independentemente de o sujeito passivo ser ou não residente em Portugal.

A própria lei (designadamente, o artigo 10.º, n.º 5, do CIRS), não distingue entre sujeitos passivos residentes e não residentes no momento da alienação.

Sendo que, cada vez mais se tem assistido a uma intenção do legislador em aproximar os não residentes aos residentes, no que respeita à tributação das mais-valias resultantes da alienação de bens imóveis, realizadas por um não residente em território Português.

A título de exemplo recorde-se que, com o Orçamento de Estado para 2023 (Publicado pela Lei n.º 24-D/2022, de 30 de dezembro), foi revogada a taxa autónoma anteriormente prevista para as mais-valias imobiliárias realizadas pelos não residentes (28%).

Ou seja, o saldo positivo das mais-valias imobiliárias obtido por não residentes passa a ser obrigatoriamente englobado, sendo considerado em 50% do seu valor, e tributado às taxas gerais de IRS, tal como acontece com os residentes.

Todos os rendimentos auferidos pelos não residentes no ano em que realizam as mais-valias, nomeadamente os obtidos fora do território nacional, serão considerados para efeitos de determinação da taxa de IRS a aplicar ao saldo positivo das mais-valias imobiliárias acima referido.

Adicionalmente, e até à publicação do Decreto Lei 361/2007, de 2 de novembro de 2007, discutia-se a ilegalidade do regime do reinvestimento das mais-valias imobiliárias previsto no artigo 10.º, n.º 5, do CIRS, que até àquela data previa a possibilidade de afastar a tributação das mais-valias apenas nos casos em que o valor de realização fosse reinvestido para habitação própria e permanente num imóvel sito em Portugal. Esta situação configurava uma restrição à liberdade de circulação de pessoas e capitais, e, portanto, em desconformidade com o Direito Comunitário, conforme concluiu o TJUE, no Acórdão de 26-10-2006, processo n.º C-345/05, tendo sido definitivamente resolvida com a alteração promovida pelo referido Decreto Lei, que veio alterar o disposto no citado artigo, prevendo expressamente a possibilidade de reinvestir em imóvel situado em território português, ou no território de outro Estado Membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu.

Face a todo o exposto, considera o presente Tribunal Arbitral que, encontrando-se cumpridos todos os pressupostos previstos no artigo 10.º, n.ºs 5 e 6, do CIRS, não será o facto de o Requerente não ser residente em Portugal que inviabilizará a aplicação do aludido regime da exclusão de tributação das mais-valias, pelo que a liquidação de IRS (n.º 2023...) aqui em crise encontra-se inquinada de vício de lei.

 

IV.1.3 Do Reenvio Prejudicial

Nos artigos 19.º, n.º 3, alínea b), e 267.º, do TFUE prevê-se o reenvio prejudicial para o TJUE, que é obrigatório quando uma questão sobre a interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União Europeia seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno.

Porém, decorre do Acórdão do TJUE de 06-10-1982, caso Cilfit, processo n.º 283/81, que não é necessário proceder a essa consulta quando exista um precedente na jurisprudência europeia, ou quando, não obstante as questões em apreço não serem estritamente idênticas a um precedente na jurisprudência europeia, a correta aplicação do Direito da União Europeia seja tão óbvia que não deixe campo para qualquer dúvida razoável no que toca à forma de resolver a questão de Direito da União Europeia suscitada (doutrina do ato claro).

Acresce que, conforme referido pelo TJUE, “compete exclusivamente ao juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão jurisdicional a tomar, apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça” (Acórdãos de 10-07-2018, processo n.º C-25/17, e de 02-10-2028, processo n.º C-207/16).

Afigura-se a este Tribunal Arbitral que a interpretação das normas de Direito da União Europeia que é essencial para a apreciação da legalidade da liquidação de IRS aqui em crise (n.º 2023.5004147129), objeto do pedido de pronúncia arbitral, apresentado pelo Requerente, é clara em função da jurisprudência do TJUE, dos Tribunais Comuns e dos Tribunais Arbitrais, não havendo necessidade de diligenciar pelo reenvio prejudicial para o TJUE.

 

IV.1.4 Dos Juros Indemnizatórios

A Requerente pede ainda “que não obstante de confirmação do direito a juros compensatórios na Decisão Final, a Liquidação Corretiva não foi acompanhada de liquidação dos mesmos. Por conseguinte, solicita- se, no âmbito da pronúncia arbitral sobre a legalidade da Liquidação e Liquidação Corretiva, ordenar a Autoridade Tributária ao processamento e pagamento de juros compensatórios devidos pela parte do pagamento indevido do imposto reembolsado pela Autoridade Tributária no resultado da Liquidação Corretiva”.

Ou seja, conjuntamente com a anulação do ato de liquidação de IRS contestado (n.º 2023...), a Requerente pede que lhe seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios, nos termos previstos no artigo 43.º da Lei Geral Tributária (doravante “LGT”).

Ao abrigo do disposto no artigo 43.º, n.º 1, da LGT, serão devidos juros indemnizatórios “quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montantes superior ao legalmente devido.” Saliente-se que, do n.º 5, do artigo 24.º, do RJAT, extrai-se o reconhecimento do direito aos juros indemnizatórios no processo arbitral, sendo que tal direito pressupõe que haja sido pago imposto superior ao devido e que tal pagamento indevido decorra de erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços.

Atenta a factualidade descrita nos autos, não restam dúvidas que a AT cometeu um erro que só a ela lhe é imputável – ao não aceitar a aplicação do regime do reinvestimento – do qual resultou a manutenção de um imposto em montante superior ao devido, havendo, consequentemente direito a juros indemnizatórios, nos termos do citado artigo, contados, à taxa legal, sobre o montante indevidamente pago desde 30-08-2022 até ao momento do efetivo reembolso.

 

V. DECISÃO

Termos em que, de harmonia com o exposto, decide-se neste Tribunal Arbitral julgar integralmente procedente o pedido de pronúncia arbitral e, consequentemente:

  1. Declarar ilegal e anular a liquidação de IRS n.º 2023...
  2. Declarar ilegal e anular o despacho de indeferimento parcial da reclamação graciosa n.º ...2022... .
  3. Julgar procedente o pedido de pagamento de juros indemnizatórios;
  4. Condenar a Requerida em custas do processo.

 

VI. VALOR DA CAUSA

Fixa-se ao processo o valor de € 106.129,34 nos termos do artigo 97.º-A do CPPT, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

VII. CUSTAS

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas, a cargo da Requerida, em €3.060,00), nos termos da tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

Lisboa, 1 de março de 2024

 

O Árbitros

 

_______________

(Prof.ª Doutora Regina de Almeida Monteiro -Presidente)

 

 

 

____________________

(Dr. António Pragal Colaço - Árbitro Adjunto)

 

 

_________________________________________

(Dra. Susana Cristina Nascimento das Mercês de Carvalho - Adjunta)

 

 

 



[1] Tanto assim o é que o legislador sentiu a necessidade de dispor no artigo 50.º, n.º 6, da Lei 56/2023, de 6 de outubro, o seguinte: “Fica suspensa a contagem do prazo para o reinvestimento previsto na alínea b) do n.º 5 do artigo 10.º do Código do IRS, durante um período de dois anos, com efeitos a 1 de janeiro de 2020.