Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 477/2023-T
Data da decisão: 2024-02-07  IVA  
Valor do pedido: € 1.441.985,01
Tema: IVA – Direito à dedução – Despesas de transporte e locação – Despesas de estacionamento.
Versão em PDF

Sumário:

As despesas suportadas com os lugares de estacionamento localizados no local a partir do qual se exerce a actividade profissional não constituem custos de transporte ou viagem do sujeito passivo e seu pessoal em representação da empresa, não estando abrangidas pela exclusão do direito à dedução previsto no artigo 21.º, n.º 1, alínea c), do Código do IVA.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros José Poças Falcão (árbitro-presidente), Maria Rosário Anjos e Cristina Aragão Seia (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, acordam na seguinte:

 

  1. RELATÓRIO

1.         A..., S.A. (doravante Requerente), com o numero de identificação fiscal ..., com sede no ..., Edifício ..., em ..., veio nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos artigos 10.º e seguintes, todos do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), em conjugação com a alínea a) do artigo 99.º e com a alínea d) do n.º 1 do artigo 102.º do Código do Procedimento e Processo Tributário (CPPT), aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT, requerer a constituição de tribunal arbitral em que figura como Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).

 

2. O pedido de pronúncia arbitral, apresentado em 30-06-2023, tem como objecto imediato a declaração de ilegalidade das decisões de indeferimento da revisão oficiosa e do recurso hierárquico e, como objecto mediato, a anulação parcial das autoliquidações de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), relativas aos períodos mensais de tributação decorridos entre Outubro de 2017 (inclusive) e Outubro de 2019 (inclusive), no valor global de € 1.441.985,01.

3. A Requerente pede também a restituição do imposto indevidamente pago no montante acima referido, acrescido dos correspondentes juros indemnizatórios, contados nos termos legais.

4. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).

 

5. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro.

 

6. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31/12, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

7. As Partes, devidamente notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de recusar a designação de árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT, e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

8. Pelo que, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31/12, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 12-09-2023.

 

9. A AT, respondeu, por impugnação, defendendo que o pedido deve ser julgado improcedente.

 

10. Em 19.12.2023 foi dispensada a realização da reunião a que se refere o art. 18º do RJAT e as Partes foram notificadas para, querendo, apresentar alegações.

11. Apenas a Requerente apresentou alegações escritas, onde reiterou a sua posição.

 

II. SANEAMENTO

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, e é competente.

 

As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22/03).

 

O processo não enferma de nulidades nem foram deduzidas excepções que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

  1. MATÉRIA DE FACTO

1. Factos Provados

Com interesse para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

a)  A Requerente é uma sociedade comercial, sujeito passivo de IVA, enquadrada no regime normal com periodicidade mensal, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 41.º do Código do IVA (CIVA);

b) O grupo empresarial onde a Requerente se insere tem a sua sede no Aeroporto de ... e dedica-se à exploração do sector de transporte aéreo de passageiros, carga e correio, execução de trabalhos de manutenção e engenharia para a sua frota e para terceiros, prestação de serviços de assistência em escala ao transporte aéreo e catering para aviação, operando regularmente em Portugal Continental e Regiões Autónomas, Europa, África, Atlântico Norte, Atlântico Médio e Atlântico Sul;

c)  No contexto da actividade da Requerente, a B..., S.A. (doravante B...), cede à Requerente espaços/lugares de estacionamento localizados na área do Aeroporto ... em ..., os quais são destinados aos membros das tripulações (v.g. comandantes, co-pilotos, comissários e demais tripulantes) das aeronaves, conforme Regulamento de Funcionamento e Utilização dos Parques de Estacionamento e das Zonas Dedicadas à Largada e Tomada de Utentes nos Aeroportos ... (documento 29 junto com o pedido arbitral);

d) Os espaços/lugares de estacionamento em apreço destinam-se, única e exclusivamente a garantir que os membros das tripulações das aeronaves da Requerente possam estacionar as suas viaturas quando se encontram a exercer as respectivas funções a bordo de tais aeronaves durante o tempo dos voos realizados, voos estes que constituem o cerne da actividade desenvolvida pela Requerente.

e)  A B... cobra à Requerente uma remuneração mensal por tal cedência (documento 29 junto com o pedido arbitral);

f)  Relativamente aos períodos mensais de tributação decorridos entre Outubro de 2017 (inclusive) a Outubro de 2019 (inclusive), a B... facturou à Requerente as remunerações devidas por esta enquanto contrapartida dos serviços de cedência de espaços/lugares de estacionamentos de viaturas prestados à Requerente, tendo a B... liquidado o respectivo IVA, à taxa normal de 23%, imposto que ascendeu a € 1.441.985,01, conforme as quantias apuradas nos seguintes períodos mensais de tributação:

     - Outubro de 2017 - 86 496,40 €;

- Novembro de 2017 - 36 306,85 €;

- Dezembro de 2017 - 34 167,05 €;

- Janeiro de 2018 - 41 112,60 €;

- Fevereiro de 2018 - 44 288,17 €;

- Março de 2018 - 46 070,38 €;

- Abril de 2018 - 87 825,91 €;

- Maio de 2018 - 46 286,86 €;

- Junho de 2018 - 49 193,63 €;

- Julho de 2018 - 52 119,33 €;

- Agosto de 2018 - 50 914,83 €;

- Setembro de 2018 - 49 587,29 €;

- Outubro de 2018 - 90 982,32 €;

- Novembro de 2018 - 50 618,34 €;

- Dezembro de 2018 - 51 657,24 €;

- Janeiro de 2019 - 43 889,64 €;

- Fevereiro de 2019 - 50 032,06 €;

- Março de 2019 - 57 158,86 €;

- Abril de 2019 - 95 488,49 €;

- Maio de 2019 - 58 602,68 €;

- Junho de 2019 - 54 169,10 €;

- Julho de 2019 - 68 158,98 €;

- Agosto de 2019 - 49 267,70 €;

- Setembro de 2019 - 56 543,87 €;

- Outubro de 2019 - 91 046,43 €.

Tudo perfazendo o montante global de € Total 1 441 985,01 € (documento 31 junto com o pedido arbitral).

g) A Requerente não procedeu à dedução do montante de IVA referido em f);

h) A Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa contra os actos de autoliquidação em crise em 17 de Dezembro de 2021 (documento 32 junto com o pedido arbitral), a que foi atribuído o nº ...2021...;

i)  Em 25 de Fevereiro de 2022 foi notificada da decisão de indeferimento do mesmo (documento 2 junto com o pedido arbitral);

j)  A Requerente apresentou pedido de recurso hierárquico, que correu termos sob o nº ...2022...;

k) Tendo o mesmo sido indeferido por despacho de 12 de Abril de 2023 (documento 2 junto com o pedido arbitral);

l)  Em 30-06-2023 foi apresentado o presente pedido de pronúncia arbitral.

 

2. Factos não provados

 

Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa.

 

3. Fundamentação da decisão relativa à matéria de facto

Considerando o disposto nos artigos 596.º, n.º 1 e 607.º, n.os 2 a 4, ambos do Código de Processo Civil (por remissão do disposto no artigo 29.º, n.º 1, do RJAT), incumbe ao Tribunal o dever de seleccionar a matéria de facto relevante para a decisão, tomando em consideração a pretensão formulada.

No caso sub judice, a decisão sobre os factos provados e não provados radicou, segundo o princípio da livre apreciação da prova, no acervo documental presente nos autos, tanto com o requerimento de pronúncia arbitral, como, posteriormente, com o Processo Administrativo, organizado nos termos do artigo 111.º do CPPT, e junto pela Requerida, e nos factos que não foram questionados pelas partes.

 

  1. MATÉRIA DE DIREITO

 

  1. Questão decidenda

 

A questão a decidir é a de saber se o IVA suportado pela Requerente com a aquisição de prestações de serviços relativas à cedência de lugares de estacionamento no Aeroporto... , em ..., que são utilizados pelos membros das tripulações das aeronaves da Requerente que operam a partir desse local, se encontra, ou não, abrangido pela hipótese da norma do artigo 21.º, n.º 1, alínea c), do Código do IVA, que exclui do direito à dedução o imposto contido nas “despesas de transportes e viagens de negócios do sujeito passivo do imposto e do seu pessoal, incluindo as portagens”.

 

2.         Fundamentos de direito

2.1.      Enquadramento do direito à dedução do IVA

Iremos seguir de perto, com as devidas adaptações, o decidido no Acórdão do CAAD, proferido em 03-01-2023 no processo 97/2022-T, que teve por objecto litígio idêntico, entre as mesmas partes dos presentes autos, mas em que estavam em causa diferentes períodos de tributação.

Nesse pressuposto, explicou-se ali que «[o] direito à dedução do IVA suportado constitui um elemento essencial sobre o qual repousa, estrutural e funcionalmente, o Imposto sobre o Valor Acrescentado. Com efeito, como é consabido, o IVA opera através do método subtractivo indirecto por mor do qual um sujeito passivo do imposto poderá deduzir, ao valor do imposto que liquida nas suas operações económicas (“outputs”), o valor do IVA que suportou, a montante, nas aquisições de bens e serviços realizadas no exercício da sua actividade (“inputs”), repercutindo-se sobre o adquirente final dos bens ou serviços a carga tributária correspondente ao consumo efectuado (…)[1].

A essencialidade do direito à dedução do IVA remonta à Primeira Directiva 67/227/CEE do Conselho, de 11 de Abril de 1967, onde se assumiu o objectivo de “criar, por etapas, um sistema comum de imposto sobre o valor acrescentado”, onde se dispunha que “[e]m cada transacção, o imposto sobre o valor acrescentado, calculado sobre o preço do bem ou do serviço à taxa aplicável ao referido bem ou serviço, é exigível, com prévia dedução do montante do imposto sobre o valor acrescentado que tenha incidido directamente sobre o custo dos diversos elementos constitutivos do preço” (artigo 2.º). Esta dimensão estruturante do imposto foi assumida nas directivas que se seguiram, constituindo o mecanismo da dedução do imposto uma garantia da neutralidade inscrita no ADN do modelo comum de IVA.

Em consonância, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) sempre tem assinalado que: “o direito a dedução previsto no artigo 168º, alínea a), da Directiva IVA faz parte integrante do mecanismo do IVA e não pode, em princípio, ser limitado. Exerce-se imediatamente em relação à totalidade do IVA que incidiu sobre as operações efectuadas a montante (Acórdão de 2 de Maio de 2019, Grupa Lotos, C 225/18, EU:C:2019:349, n.° 25 e jurisprudência referida)”; “o regime das deduções visa desonerar inteiramente o empresário do encargo do IVA devido ou pago no quadro de todas as suas actividades económicas. O sistema comum do IVA garante, por conseguinte, a neutralidade quanto à carga fiscal de todas as actividades económicas, independentemente dos respetivos fins ou resultados, desde que essas actividades estejam, em princípio, elas próprias sujeitas a IVA (Acórdão Grupa Lotos, n.º 26 e jurisprudência referida)”; “na medida em que o sujeito passivo, agindo nessa qualidade na data em que adquire um bem ou um serviço, utilize esse bem ou serviço para os fins das suas operações tributadas está autorizado a deduzir o IVA devido ou pago em relação ao referido bem ou serviço (Acórdão Grupa Lotos, n.º 27 e jurisprudência referida)” – cfr. §§ 22 a 24 do Acórdão de 17 de Setembro de 2020, Super Bock Bebidas, processo C-837/19.

Não obstante constituir uma peça central do funcionamento do IVA, o direito à dedução encontra condicionalismos e limitações. Desde logo, por razões endógenas à estrutura do imposto, o direito à dedução pressupõe a existência de uma relação directa e imediata entre uma operação realizada a montante e uma ou várias operações a jusante com direito à dedução (…)[2], ou, na falta dessa relação directa e imediata, a consideração de que os custos dos serviços em causa são parte das despesas gerais de um sujeito passivo e, nessa medida, constituem elementos constitutivos do preço dos bens ou dos serviços por aquele fornecidos, entendendo-se que existe aí uma relação directa e imediata com o conjunto da actividade económica do sujeito que autoriza a dedução do IVA suportado nos inputs (…)[3]. De outra sorte, existem ainda limitações ou exclusões cuja razão de ser repousa numa lógica anti abuso, aliada às limitações do controlo eficaz das autoridades tributárias, como sucede no âmbito de bens ou serviços que sejam susceptíveis de uma utilização não exclusivamente profissional (…)[4]. Neste caso, as limitações respaldam-se no artigo 176.º da Directiva IVA.

O artigo 176.º da Directiva IVA, tal como se dispunha no artigo 17.º, n.º 6, da Sexta Directiva, estabelece que “[o] Conselho, deliberando por unanimidade, sob proposta da Comissão, determina quais as despesas que não conferem direito à dedução do IVA. Em qualquer caso, são excluídas do direito à dedução as despesas que não tenham carácter estritamente profissional, tais como despesas sumptuárias, recreativas ou de representação. Até à entrada em vigor das disposições referidas no primeiro parágrafo, os Estados-Membros podem manter todas as exclusões previstas na respectiva legislação nacional em 1 de janeiro de 1979 ou, no que respeita aos Estados- Membros que tenham aderido à Comunidade após essa data, na data da respectiva adesão”.

Uma vez que o Conselho ainda não determinou quais as despesas que não conferem direito à dedução, a regulamentação das limitações ou exclusões do direito à dedução encontra-se abrangida pela cláusula de standstill, prevista na segunda parte do citado artigo 176.º, mantendo-se “todas as exclusões previstas na respectiva legislação nacional”, como referiu o TJUE no Acórdão Super Bock Bebidas, nºs 27 a 30.

No entanto, a aplicação da cláusula de “standstill”, tal como resulta da jurisprudência do TJUE, não está isenta de constrangimentos. Desde logo, reconhece-se que a mesma não atribui aos Estados “um poder discricionário absoluto de excluir todos os bens e serviços ou a quase totalidade destes do direito a dedução do IVA e de esvaziar, assim, do seu conteúdo, o regime criado pelo artigo 11.°, n.° 1, da Segunda Directiva. A referida faculdade não tem por objecto, portanto, exclusões gerais e não dispensa os Estados Membros da obrigação de precisar suficientemente quais os bens e serviços para os quais está excluído o direito a dedução (v., neste sentido, acórdãos Royscot e o., já referido, n.os 22 e 24, e de 14 de Julho de 2005, Charles e Charles Tijmens, C 434/03, Colect., p. I 7037, n.os 33 e 35)” (…)[5]. Por outro lado, “[q]uanto ao alcance do regime derrogatório previsto no artigo 17.°, n.° 6, da Sexta Directiva, o Tribunal de Justiça decidiu, todavia, que esta disposição pressupõe que as exclusões que os Estados Membros podem manter eram legais em virtude da Segunda Directiva 67/228/CEE do Conselho, de 11 de Abril de 1967, relativa à harmonização das legislações dos Estados Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios – Estrutura e modalidades de aplicação do sistema comum de imposto sobre o valor acrescentado (JO 1967, 71, p. 1303, a seguir «Segunda Directiva»), anterior à Sexta Directiva (…)”[6], sendo que “[a] este respeito, o artigo 11.° da Segunda Directiva estabelecia, no seu n.° 1, o direito a dedução e, ao mesmo tempo, previa, no seu n.° 4, que os Estados Membros podiam excluir do regime de dedução certos bens e serviços, designadamente os que fossem susceptíveis de ser, exclusiva ou parcialmente, utilizados para as necessidades privadas do sujeito passivo ou do seu pessoal” (…)[7]. Em terceiro lugar, refere ainda o TJUE que “uma vez que se trata de um regime que constitui uma derrogação ao princípio do direito a dedução do IVA, esse regime é de interpretação restritiva (v. acórdão Metropol e Stadler, já referido, n.° 59, e acórdão de 22 de Dezembro de 2008, Magoora, C 414/07, Colect., p. I 10921, n.° 28)” (…)[8]

 

2.2.      O regime do artigo 21.º, n.º 1, alínea c), do Código do IVA

A propósito do regime do artigo 21.º, n.º 1, alínea c), do Código do IVA, o já referido acórdão do CAAD proferido no processo 97/2022-T, estabeleceu que «[n]ão sendo pacífica a questão de saber se as limitações ou exclusões previstas no artigo 21.º do Código do IVA são, ou não, justificáveis por aplicação da cláusula de standstill (…)[9], sempre se deverá entender que o artigo 21.º, n.º 1, alínea c), do Código do IVA, constitui transposição do primeiro parágrafo do artigo 176.º da Directiva IVA, na parte em que considera excluídas do direito à dedução “as despesas que não tenham carácter estritamente profissional, tais como despesas sumptuárias, recreativas ou de representação”, estabelecendo o legislador uma “presunção” de que as despesas em causa “não têm carácter estritamente profissional” (…)[10]. Nesta óptica, a previsão do artigo 21.º, n.º 1, alínea c), do Código do IVA, encontra suficiente acolhimento na mencionada Directiva, não se vislumbrando qualquer contradição com o direito europeu.

Firmada tal conclusão, importa apurar, previamente a quaisquer outras considerações sobre o regime legal, se a concreta factualidade assente nestes autos é passível de reconduzir-se à previsão da norma legal que exclui o direito à dedução nos casos de “despesas de transportes e viagens de negócios do sujeito passivo do imposto e do seu pessoal, incluindo as portagens”.

Ora, a questão da dedutibilidade do IVA com a utilização de lugares de estacionamento foi já considerada pelo Tribunal Central Administrativo Sul, no Acórdão de 5 de novembro de 2020, tirado no processo n.º 2500/10.5BELRS, disponível em www.dgsi.pt. Refere-se nesse aresto:

“(...) Estão em causas facturas relacionadas com os lugares de estacionamento das viaturas utilizadas pelos trabalhadores da empresa, ora recorrida/impugnante. A tese que fez vencimento na instância é a de que se trata de rendas associadas ao arrendamento da sede da empresa e, nessa medida, mostram-se ligadas ao exercício da actividade económica da mesma, pelo que são despesas cujo imposto incorrido deve ser dedutível, o que determinaria a ilegalidade da correcção, por violação do direito à dedução do imposto suportado.

A sentença decidiu com acerto.

É certo que as despesas referidas no preceito do artigo 21.º do CIVA, constituindo exclusões do direito à dedução e estando sujeitas ao princípio do não retrocesso (cláusula de standstill), têm sido aceites pela jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia [TJUE] como exclusões do direito à dedução, atendendo a que se trata de despesas que, pela sua natureza e características, podem ser utilizadas para fins privados, consubstanciando um consumo final.

Sem embargo, no caso em exame, estão em causa despesas relacionadas com o uso de lugares de estacionamento utilizado indiscriminadamente por funcionários, fornecedores e clientes da Impugnante (n.º 3 do probatório).

Na Informação Vinculativa da DGCI, referente ao Processo n.º 1486, despacho do substituto legal do Director-Geral, de 28.01.2011, referente a “Direito à dedução – lugares de estacionamento”, a consulente solicitou informação sobre qual o enquadramento legal em IVA da disponibilização de lugares de estacionamento situados no campus empresarial onde se encontra o edifício que integra o espaço destinado à sua actividade», numa situação em que os lugares de estacionamento «se destinavam, embora não exclusivamente, ao parqueamento das viaturas da sua rede comercial e de assistência técnica, das quais a maioria é de mercadorias, bem como às viaturas dos seus clientes e fornecedores». Na Informação vinculativa citada, a AT fixou a orientação seguinte: «i) De acordo com os argumentos da consulente e tendo em consideração a actividade declarada em sistema, o espaço de estacionamento afigura-se necessário ao exercício da sua actividade, pelo que pode em princípio, conferir o direito à dedução por enquadramento no disposto na alínea a), do n.º 1, do artigo 20.º do CIVA. // ii) Todavia, face à exclusão prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 21.º, importa acautelar que a atribuição de lugares de estacionamento a funcionários, colaboradores, titulares de cargos de direcção ou outros que se subsumam nesta norma, limita aquele direito na proporção dos lugares atribuídos para esse fim».

Por seu turno, no caso em exame nos autos, o estacionamento referido está situado no mesmo edifício da sede da impugnante e era utilizado indiscriminadamente por funcionários, fornecedores e clientes da Impugnante (n.os 1 e 2 do probatório), pelo que o imposto suportado respeita a despesas relacionadas com o exercício da actividade da impugnante (“despesas afectas à exploração”), não sendo as mesmas recondutíveis ao disposto no artigo 21.º/1/c), do CIVA (“Despesas de transportes e viagens de negócios do sujeito passivo do imposto e do seu pessoal”). De onde se retira que o imposto suportado em apreço é dedutível por parte da empresa/impugnante, como sucedeu no caso. A correcção em exame, ao decidir diferentemente, enferma de erro e não pode ser mantida na ordem jurídica.

(...)”.

 

Nesse caso, o Tribunal concluiu que a despesa com lugares de estacionamento, mesmo quando os mesmos sirvam viaturas utilizadas pelos trabalhadores da empresa, não são despesas de transporte ou despesas de viagens de negócios, na medida em que se referem a lugares de estacionamento que se encontram localizados no edifício onde se encontra a sede do sujeito passivo, constituindo, consequentemente, uma “despesa relacionada com o exercício da actividade da impugnante”.

Este critério desvela uma summa divisio que se afigura pertinente para a resolução do caso sub judicio, porquanto, no que se refere às despesas de estacionamento, permite a destrinça entre aquelas que tenham conexão com o local da sede e de exercício da actividade do sujeito, que são semel pro semper despesas com o local em que se desenvolve a actividade económica e aqueloutras que sejam suportadas no âmbito de viagens do sujeito passivo e do seu pessoal. E este critério é o que mais se adequa aos cânones metodológicos firmados pelo TJUE, em matéria de determinação das exclusões do direito à dedução de que se deu conta supra e que não autorizam uma extensão da norma para abarcar despesas que não são despesas de transporte e viagens efectuadas em representação da empresa, mas custos relacionados com o local a partir do qual é desenvolvida a actividade económica sujeita a IVA.

No caso concreto, comprovou-se que a Requerente tem a sua sede no Aeroporto de ..., operando a partir daí para diversos destinos e que os lugares de estacionamento são destinados aos membros das tripulações das aeronaves da Requerente que operam a partir desse aeroporto, quando aqueles se encontrem a exercer as suas funções a bordo de tais aeronaves. Ora, de acordo com o critério adoptado, deve concluir-se que as despesas suportadas com os lugares de estacionamento localizados no perímetro onde a Requerente tem a sua sede e a partir do qual exerce a sua actividade profissional de transporte aéreo constituem despesas que são suportadas por referência ao local de exercício de actividade e não custos de transporte ou viagem do sujeito passivo e seu pessoal em representação da empresa, caindo, assim, no âmbito das despesas relacionadas com a exploração económica do sujeito passivo. Por outro lado, o facto de nos encontrarmos perante uma empresa que tem por objecto o transporte aéreo de passageiros e mercadorias não altera esse juízo, considerando-se que o escopo da norma não vai para além do âmbito de despesas representação, por ser nestas que existe a possibilidade de consumos estranhos à actividade da empresa.»

Pelo exposto, e sendo a questão em apreço em tudo idêntica à objecto do acórdão aqui parafraseado, impõe-se solução idêntica, devendo, por conseguinte, proceder o presente pedido de pronúncia arbitral, anulando-se o indeferimento da revisão oficiosa e do recurso hierárquico referentes às autoliquidações de IVA em crise nos presentes autos, na parte relativa ao IVA não deduzido das facturas emitidas pela B... à Requerente relativas a serviços de cedência de lugares/espaços de estacionamento de viaturas, com as demais consequências legais, designadamente a restituição à Requerente do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios devidos nos termos do artigo 43º da LGT.

 

2.3. Questões de conhecimento prejudicado

 

Sendo de julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral com fundamento em vício que assegura estável e eficaz tutela dos interesses da Requerente, fica prejudicado, por ser inútil o conhecimento das restantes questões colocadas, de harmonia com o disposto nos artigos 130.º e 680.º, n.º2, do CPC, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º1, alínea e) do RJAT.

 

  1. DECISÃO

 

Nestes termos, decide este Tribunal Arbitral Colectivo o seguinte:

  1. Julgar procedente, por provado, o Pedido de Pronúncia Arbitral, declarando ilegal o indeferimento da revisão oficiosa nº ...2021... e do recurso hierárquico nº ...2022..., e, em consequência,
  2. Anular parcialmente os atos tributários impugnados na parte relativa ao IVA não deduzido das facturas emitidas pela B... à Requerente, relativas a serviços de cedência de lugares/espaços de estacionamento de viaturas;
  3. Condenar a Requerida a restituir ao Requerente o valor de imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos legais;  
  4. Condenar a Requerida nas custas do processo.

 

  1. VALOR DO PROCESSO

De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, atribui-se ao processo o valor de € 1.441.985,01.

 

  1. CUSTAS

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 19.278,00, em consonância com a Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.

 

Lisboa, 7 de Fevereiro de 2024.

 

 

O Árbitro-Presidente

 

(José Poças Falcão)

 

 

Os Árbitros-Vogais,

 

 

 

(Maria do Rosário Anjos)

 

 

(Cristina Aragão Seia – Relator)

 

 

 

 

 

 

 

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.

 

 



[1] Cf., sobre as características gerais do IVA, José Xavier de Basto, «A tributação do consumo e a sua coordenação a nível internacional. Lições sobre a harmonização fiscal na Comunidade Económica Europeia», CCTF n.º 164, Lisboa 1991, pp. 39-73 e, considerando em particular o direito à dedução do imposto, Maria Odete Oliveira, João Seixas Cambão, «Exclusões, restrições, limitações e outras complicações em matéria de direito à dedução no Imposto sobre o Valor Acrescentado», Revista da Faculdade de Direito da Universidade Lusófona do Porto, n.º 6, 2015, pp. 42-78, e Clotilde Celorico Palma, «IVA: Dedução de despesas de transportes de trabalhadores», Revista Electrónica de Fiscalidade da AFP, n.º 1, 2022, pp. 1-40.

[2] Acórdãos de 8 de Junho de 2000, Midland Bank, processo C-98/98, n.º 24; de 22 de Fevereiro de 2001, Abbey National, processo C-408/98, n.º 26, e de 8 de Fevereiro de 2007, Investrand, processo n.º C-435/05, n.º 23.

[3] Acórdãos Midland Bank, n.º 31, e de 26 de Maio de 2005, Kretztechnik processo C-465/03, n.º 36.

[4] Cf., v.g., os considerandos da Proposta de directiva do Conselho que altera a Directiva 77/388/CEE no que diz respeito ao regime do direito à dedução do imposto sobre o valor acrescentado (98/C 219/11) COM(1998) 377 final - 98/0209(CNS).

[5] Cf. Acórdão de 30 de Setembro de 2010, Oasis East, processo C-395/09, n.º 23.

[6] V. Acórdão de 5 de Outubro de 1999, Royscot e o., C 305/97, Colect., p. I 6671, n.º 21, e acórdão X Holding e Oracle Nederland, já referido, n.º 40.

[7] Cf. Acórdão de 30 de Setembro de 2010, Oasis East, n.ºs 21 e 22.

[8] Cf. Acórdão de 30 de Setembro de 2010, Oasis East, n.º 24.

[9] V. Maria Odete Oliveira, João Seixas Cambão, «Exclusões, restrições, limitações e outras complicações em matéria de direito à dedução no Imposto sobre o Valor Acrescentado», cit., pp. 57-71 e o Acórdão do TCA Sul de 27 de Outubro de 2021, tirado no processo n.º 1113/05.8 BELSB, disponível em http://www.dgsi.pt .

[10] Cf., nestes termos, Maria Odete Oliveira, João Seixas Cambão, «Exclusões, restrições, limitações e outras complicações em matéria de direito à dedução no Imposto sobre o Valor Acrescentado», cit., p. 60; v., também, Clotilde Celorico Palma, «IVA: Dedução de despesas de transportes de trabalhadores», cit., pp. 38-40.