Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 262/2020-T
Data da decisão: 2021-01-06  IRC  
Valor do pedido: € 98.030,27
Tema: IRC - Encargos relacionados com motociclos; Tributação autónoma; Presunção legal.
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Sumário:

O artigo 88.º, n.º 3, do Código do IRC, ao sujeitar a tributação autónoma os encargos suportados pelos sujeitos passivos que exerçam uma atividade comercial relacionados com motociclos constitui uma norma de incidência tributária que não consagra qualquer presunção que seja passível de prova em contrário.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Acordam em Tribunal Arbitral

 

I - Relatório

 

1. A..., S.A., sociedade comercial anónima com sede na Rua ..., ..., ..., ... e ..., ...-... ..., titular do número único de pessoa coletiva ..., vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, para apreciar a legalidade da decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada contra a autoliquidação de IRC do exercício de 2018, na parte referente à sujeição a tributação autónoma dos encargos com motociclos de que a Requerente é proprietária e utilizadora no âmbito da sua atividade de prestação de serviços de distribuição de produtos alimentares.

Fundamenta o pedido nos seguintes termos.

 

A Requerente é uma sociedade comercial anónima que tem por objeto social o fabrico, transformação, distribuição e comercialização de produtos alimentares e atividades acessórias, assentando a sua atividade maioritariamente na entrega de refeições prontas-a-comer nas moradas indicadas pelos clientes.

 

Com vista à prossecução da sua atividade, a Requerente coloca à disposição dos seus trabalhadores motociclos por considerar serem esses os veículos que, pelas suas características, melhor se adaptam à operacionalização da sua atividade comercial, com a vantagem de serem menos dispendiosos no que respeita aos custos de aquisição, manutenção e utilização.  

Os motociclos são dotados de uma caixa de carga inamovível que reduz a capacidade de transporte a uma pessoa, assumindo a natureza e função de “motociclos de mercadorias” e apresentam os sinais identitários da Requerente.

 

Os motociclos encontram-se estacionados nas garagens e parqueamentos arrendados de cada estabelecimento comercial e são tão-somente utilizados quando recebidos pedidos de entrega de refeições via telefone ou website oficial da Requerente.

Cada motociclo encontra-se alocado a um trabalhador tendo em vista as entregas ao domicílio e as suas regras de utilização estão detalhadas no Manual de Procedimentos Internos de Utilização de Motociclos, do qual resulta cingir-se a sua utilização, única e exclusivamente, ao exercício da atividade comercial da Requerente.

Nessa medida, quando a Requerente deteta algum uso impróprio do motociclo (como, por exemplo, o uso para fins pessoais) sujeita o trabalhador responsável a um processo disciplinar, aplicando a sanção prevista no manual interno de procedimentos.

No final de cada período de trabalho, os motociclos são devolvidos pelos distribuidores, com as chaves do veículo e da garagem, sendo que a Requerente recorre ainda a um sistema de controlo dos tempos de distribuição que monitoriza, para cada entrega, informação relativa ao distribuidor, morada da entrega e tempos de saída, entrega e regresso de cada distribuidor.

Acresce que o abastecimento dos motociclos é realizado, em exclusivo, com recurso ao programa de combustível de frota, o qual identifica expressamente o motociclo associado.

Na declaração periódica de rendimentos Modelo 22 de IRC relativa a 2018, a Requerente inscreveu no Campo 365 “Tributações Autónomas” o montante de € 138.303,03, dos quais € 98.030,27 correspondem a gastos suportados com motociclos que ascenderam a € 980.302,73.

 

Em 2 de dezembro de 2019, a Requerente apresentou reclamação graciosa da autoliquidação de IRC do exercício de 2018, no âmbito da qual requereu a anulação do montante de € 98.030,27 suportado a título de tributações autónomas incidentes sobre gastos com motociclos, a qual foi objeto de indeferimento.

 

Subjacente às tributações autónomas de determinado tipo de despesas encontra-se, por um lado, a dificuldade de fiscalização e controlo das empresas por parte da Administração Tributária e, por outro lado, a necessidade de tributar as despesas que não beneficiem de total escopo empresarial, isto é, que não sejam exclusivamente aptas ou destinadas à realização dos proveitos ou à manutenção da fonte produtora (cfr. artigo 23.º do CIRC).

Neste contexto, a tributação autónoma funda-se na presunção de que os motociclos (motivadores dos encargos autonomamente tributados) podem ser utilizados para fins de caráter privado bem como empresarial.

Sucede que, como consigna o artigo 73.º da LGT, as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário, sendo essa uma necessária exigência de génese constitucional.

E, deste modo, uma interpretação no sentido de que o regime ínsito no artigo 88.º, n.º 3, do CIRC consubstancia uma presunção inilidível, em desconformidade ao disposto no artigo 73.º da LGT, viola os princípios constitucionais da igualdade na repartição dos encargos públicos e da capacidade contributiva.

Nessa medida, encontra-se o Tribunal Arbitral impedido de considerar que aquela norma consagra uma presunção inilidível, sob pena de incorrer numa situação de pronúncia indevida, à luz do artigo 28.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, consubstanciada na admissão de uma fundamentação a posteriori.

Por outro lado, a presunção de empresarialidade constante do artigo 88.º, n.º 3, do CIRC foi cabalmente afastada através da prova existente de onde decorre que aos encargos com motociclos não está subjacente qualquer intuito ou prática de utilização para fins alheios à atividade empresarial da Requerente, encontrando-se o respetivo uso balizado pelo objeto social da Requerente.

Acresce que, caso os serviços da Administração Tributária reputassem como insuficientes os documentos juntos pela Requerente, no âmbito do procedimento, tendentes a demonstrar a empresarialidade dos encargos em questão, teria de proceder à inquirição das testemunhas que foram arroladas, e tendo omitido essa diligência, sem qualquer justificação para o efeito, incorreram em violação do princípio do inquisitório consagrado no artigo 58.º da LGT.

Por outro lado, a Administração Tributária, no âmbito do procedimento de reclamação graciosa, não teceu quaisquer considerações sobre o aduzido pela Requerente em sede de audição prévia apresentada, o que corresponde à preterição da formalidade essencial da audição prévia nos termos do artigo 163.º do CPA.

 

                A Autoridade Tributária, na sua resposta, relativamente às taxas de tributação autónoma a que se refere o artigo 88.º do Código do IRC, evidencia que apenas se encontram excluídas de tributação autónomas as relativas aos tipos de veículos identificados nos n.ºs 3 e 6 desse preceito, sendo que a interpretação propugnada pela Requerente segundo a qual a exclusão abrange igualmente os veículos afetos à sua atividade comercial da Requerente não tem qualquer apoio na letra da lei.

 

Por outro lado, a tributação prevista no artigo 88.º do Código do IRC não se enquadra nas cláusulas especiais anti-abuso, nem integra uma presunção que seja suscetível de ser ilidida por prova em contrário, correspondendo antes a uma norma de incidência objetiva que não pode ser evitada mediante a demonstração da afetação integral dos veículos à atividade empresarial.

Havendo de julgar-se inconstitucional a norma do artigo 88.º, n.ºs 3 e 5, do Código do IRC, por violação dos princípios constantes do artigo 103.º, n.º 1, da CRP, quando interpretada no sentido de instituir uma presunção ilidível.

Conclui no sentido da improcedência do pedido.

 2. No seguimento do processo foi realizada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT também destinada à produção da prova testemunhal indicada pela Requerentes.

Tendo o processo prosseguido para alegações, as partes mantiveram as suas anteriores posições. 

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 6 de Agosto de 2020.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.

 

Cabe apreciar e decidir.

 

 

II - Fundamentação

 

Matéria de facto

 

4. Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes.

 

A) A Requerente é uma sociedade comercial anónima que tem por objeto social o fabrico, transformação, distribuição e comercialização de produtos alimentares e respetivas atividades acessórias, consistindo fundamentalmente na entrega de refeições prontas-a-comer nas moradas indicadas pelos clientes;

B) Com vista à prossecução da sua atividade, a Requerente coloca à disposição dos seus trabalhadores motociclos que se destinam exclusivamente à entrega de refeições ao domicílio;

 

C) Na declaração periódica de rendimentos Modelo 22 de IRC relativa a 2018, a Requerente inscreveu no Campo 365 “Tributações Autónomas” do Quadro 10 “Cálculo do imposto” o montante de € 138.303,03, sendo que os gastos suportados com motociclos originaram uma tributação autónoma de € 98.030,27, correspondente à aplicação da taxa de 10% sobre o montante global dos gastos que atingiram € 980.302,73;

 

C) Caso não houvessem incidido tributações autónomas sobre os gastos suportados com motociclos, a Requerente teria suportado € 40.272,76 a título de tributação autónoma;

 

D) Em 2 de Dezembro de 2019, a Requerente apresentou reclamação graciosa da autoliquidação de IRC do exercício de 2018, no âmbito da qual requereu a anulação do montante de € 98.030,27 suportado a título de tributações autónomas incidentes sobre gastos com motociclos;

 

E) Na sequência, por ofício datado de 20 de Dezembro de 2019, a Requerente foi notificada do projeto de decisão de indeferimento da reclamação graciosa, que consta do documento n.º 1 junto ao pedido arbitral (fls. 4-10), que aqui se dá como reproduzido;

 

F) A Requerente exerceu o seu direito de audição prévia, em sede do qual reiterou o seguinte:

“(…) a utilização dos veículos pelos trabalhadores responsáveis pela distribuição dos produtos comercializados é monitorizada pelo sistema informático interno e existe registo dos abastecimentos de combustível realizados. E, de forma a garantir que os regulamentos internos anteriormente apresentados são respeitados e executados em conformidade, a equipa de gerência de cada loja é responsável pelo controlo e fiscalização da utilização dos veículos, bem como pela recolha e guarda das chaves dos veículos na posse dos distribuidores no final do horário de trabalho. As equipas de gerência, por sua vez, são fiscalizadas por uma equipa de supervisão, cujos membros se encontram listados na Reclamação Graciosa (-), estando inteiramente disponíveis para corroborar a prova documental apresentada, o que enfatizaria que “os meios de controlo são em concreto adequados. É do interesse da Reclamante esclarecer as dúvidas existentes relativamente à utilização dos motociclos em contexto exclusivamente empresarial, de forma a provar a sua utilização exclusiva para fins profissionais, tendo em conta a importância dos veículos na atividade da Reclamante”;

 

G) No seguimento da apresentação da audição prévia, a Requerente foi notificada do despacho de indeferimento da reclamação graciosa, do Chefe de Divisão da Direção de Finanças de ..., datado de 29 de Janeiro de 2020, que consta do documento n.º 1 junto ao pedido arbitral (fls. 14-16), que aqui se dá como reproduzido;

 

H) Para a prossecução da atividade de comercialização e distribuição de produtos alimentares, a Requerente utiliza os motociclos por ter concluído que esses veículos são os que melhor se adaptam à realização dessa atividade comercial;

J) A Requerente é proprietária de oficinas próprias destinadas à reparação e manutenção dos veículos;

L) Os motociclos são dotados de uma caixa de carga inamovível que reduz a capacidade de transporte a uma pessoa e são identificáveis com o logotipo da Requerente;

M) Os motociclos encontram-se estacionados nas garagens e parqueamentos arrendados de cada estabelecimento comercial e são utilizados quando recebidos pedidos de entrega de refeições;

N) Cada motociclo encontra-se alocado a um trabalhador tendo em vista a realização das entregas ao domicílio;

O) As regras de utilização dos motociclos pelos colaboradores estão detalhadas no Manual de Procedimentos Internos de Utilização de Motociclos, do qual resulta cingir-se a sua utilização ao exercício da atividade comercial da Requerente;

P) No final de cada período de trabalho, os motociclos são devolvidos pelos distribuidores, bem como as chaves dos veículos e da garagem;

Q) A Requerente dispõe de um sistema de controlo que motoriza os tempos de distribuição, os quilómetros realizados por cada motociclo e o abastecimento de combustível.

 

Factos não provados

 

Não há factos não provados que revelem para a decisão da causa.

 

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a resposta, bem como na prova testemunhal produzida em audiência.

 

                Matéria de direito

 

5. A questão em análise reporta-se à sujeição a taxas de tributação autónoma, nos termos do artigo 88.º do Código de IRC, dos encargos suportados pela Requerente com motociclos para comercialização e entrega ao domicílio de produtos alimentares.

Sustenta a Requerente, em primeira linha, que todos esses encargos são integralmente imputáveis à atividade comercial e se encontram justificados pelo seu carácter empresarial, havendo de entender-se que se encontra ilidida a presunção implícita de tributação autónoma que decorre do disposto nos n.ºs 3, 6 e 9 do artigo 88.º do Código relativamente a encargos com motociclos.

A Autoridade Tributária defende, em contraposição, que o artigo 88.º do Código do IRC constitui uma norma de incidência objetiva de tributação autónoma e não contempla qualquer presunção suscetível de ser ilidida por prova em contrário, com base no carácter empresarial dos gastos que se encontrem cobertos por essa disposição.

Sobre a situação similar dos motociclos para distribuição postal utilizados pelos CTT pronunciaram-se no sentido da inexistência de uma presunção ilidível os acórdãos proferidos nos Processo n.º 448/2018-T, 516/2018-T e 323/2019-T, cuja fundamentação é transponível para o presente caso.

O referido artigo 88.º do Código do IRC, na redação aplicável ao período de tributação em referência e na parte que mais interessa considerar, dispõe o seguinte:

“3 - São tributados autonomamente os encargos efetuados ou suportados por sujeitos passivos que não beneficiem de isenções subjetivas e que exerçam, a título principal, atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, viaturas ligeiras de mercadorias referidas na alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto sobre Veículos, motos ou motociclos, excluindo os veículos movidos exclusivamente a energia elétrica, às seguintes taxas:

  a) 10 % no caso de viaturas com um custo de aquisição inferior a € 25 000;

  b) 27,5 % no caso de viaturas com um custo de aquisição igual ou superior a € 25 000 e inferior a € 35 000;

  c) 35 % no caso de viaturas com um custo de aquisição igual ou superior a € 35 000.

5 - Consideram-se encargos relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, motos e motociclos, nomeadamente, depreciações, rendas ou alugueres, seguros, manutenção e conservação, combustíveis e impostos incidentes sobre a sua posse ou utilização.

6 - Excluem-se do disposto no n.º 3 os encargos relacionados com:

  a) Viaturas ligeiras de passageiros, motos e motociclos, afetos à exploração de serviço público de transportes, destinados a serem alugados no exercício da atividade normal do sujeito passivo; e

  b) Viaturas automóveis relativamente às quais tenha sido celebrado o acordo previsto no n.º 9) da alínea b) do n.º 3 do artigo 2.º do Código do IRS.

(…)

9 - São ainda tributados autonomamente, à taxa de 5%, os encargos dedutíveis relativos a ajudas de custo e à compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador, ao serviço da entidade patronal, não faturados a clientes, escriturados a qualquer título, exceto na parte em que haja lugar a tributação em sede de IRS na esfera do respetivo beneficiário, bem como os encargos não dedutíveis nos termos da alínea f) do n.º 1 do artigo 45.º suportados pelos sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal no período de tributação a que os mesmos respeitam.

14 - As taxas de tributação autónoma previstas no presente artigo são elevadas em 10 pontos percentuais quanto aos sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal no período a que respeitem quaisquer dos factos tributários referidos nos números anteriores relacionados com o exercício de uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola não isenta de IRC.

(…)

17 - No caso de viaturas ligeiras de passageiros híbridas plug-in, as taxas referidas nas alíneas a), b) e c) do n.º 3 são, respetivamente, de 5 %, 10 % e 17,5 %.

18 - No caso de viaturas ligeiras de passageiros movidas a GPL ou GNV, as taxas referidas nas alíneas a), b) e c) do n.º 3 são, respetivamente, de 7,5 %, 15 % e 27,5 %.”

Resulta especialmente dos transcritos n.ºs 3 e 6 que são tributados autonomamente os encargos relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, motos ou motociclos, com exclusão dos veículos movidos exclusivamente a energia elétrica, bem como as viaturas ligeiras de passageiros, motos e motociclos, afetos à exploração de serviço público de transportes ou destinados a serem alugados no exercício da atividade normal do sujeito passivo,  e as viaturas automóveis afetas à utilização pessoal do trabalhador.

 

Na perspetiva da Requerente, os mencionados preceitos, ao delimitarem as situações em que há lugar a tributação autónoma, limitam-se a consagrar presunções implícitas iuris tantum suscetíveis de ser ilididas por prova em contrário em conformidade com o artigo 73.º da LGT.

 

Cabe começar por recordar, a este propósito, que as presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (artigo 349.º do Código Civil). Tratando-se de uma presunção legal ela é uma inferência realizada pela lei de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido (artigo 350.º), distinguindo-se das presunções judiciais que assentam no simples raciocínio de quem julga com base em máximas da experiência ou em juízos de probabilidade.

Assim, as regras legais de presunção apresentam necessariamente na sua estrutura uma implicação entre dois factos, ou seja, estabelecem que um determinado facto conhecido implica um outro facto desconhecido (cfr. TEIXEIRA DE SOUSA, Introdução ao Direito, Coimbra, 2012, pág. 234).

As presunções legais podem, todavia, ser ilididas mediante a prova do contrário, ou seja, mediante a prova de que o facto presumido não é verdadeiro (presunções tantum juris), exceto nos casos em que a lei o proibir (presunções juris et de jure).

Não está, em todo o caso, excluída a possibilidade de presunções legais implícitas. Como se refere no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 753/2014, “As presunções em matéria de incidência tributária podem ser explícitas, quando são reveladas pelo uso da expressão «presume-se» ou de expressão de idêntico significado, mas podem também resultar implicitamente do enunciado linguístico da norma, o que sucede quando se considera como constituindo matéria tributável determinados valores de bens móveis ou imóveis no pressuposto de que são esses valores que correspondem à realidade, prescindindo-se do apuramento do valor real ou do valor que tiver sido declarado pelo sujeito passivo”.

Por outro lado, e em vista a detetar uma possível presunção legal nos citados dispositivos do artigo 88.º, importa ter presente a configuração própria das tributações autónomas.

Como se esclareceu no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 197/2016, “a tributação autónoma, embora regulada normativamente em sede de imposto sobre o rendimento, é materialmente distinta da tributação em IRC, na medida em que incide não diretamente sobre o lucro tributável da empresa, mas sobre certos gastos que constituem, em si, um novo facto tributário (que se refere não à perceção de um rendimento, mas à realização de despesas). E, desse modo, a tributação autónoma tem ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afetar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de menor transparência fiscal, e é explicada por uma intenção legislativa de estimular as empresas a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afetem negativamente a receita fiscal”. Nesse sentido, como aí se acrescenta, “[a] despesa constitui um facto tributário autónomo, gerando um imposto a que o contribuinte fica sujeito independentemente de ter obtido ou não rendimento tributável em IRC no mesmo período de tributação. E, assim, o facto revelador da capacidade contributiva é a própria realização da despesa”.

No caso vertente, o mecanismo da tributação autónoma resulta da associação do sujeito passivo à realização de certas despesas. A sujeição a imposto é a consequência jurídica da verificação de um certo facto tributário - a realização da despesa legalmente prevista -, não se descortinando aí uma qualquer condição de aplicação da norma que se prenda com a demonstração, por inferência, de outro facto.  A própria realização da despesa determina a aplicação da norma.

A inexistência de uma qualquer presunção legal relacionada com o carácter empresarial das despesas surge também evidenciada pelo contexto verbal das disposições em causa. Excluem-se da tributação autónoma certo tipo de veículos de acordo com critérios de política fiscal e estabelecem-se taxas diferenciadas com base em características atinentes ao custo de aquisição dos bens (artigo 88.º, n.º 3, do Código do IRC) e à tipologia dos veículos (artigo 88.º, n.ºs 17 e 18). Também no que concerne aos encargos com compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador, a que se reporta o n.º 9 do artigo 88.º do Código do IRC, a incidência da tributação autónoma determina-se em função de certos aspetos relacionados com a específica situação tributária que está em causa.

Acresce ainda o facto de as taxas de tributação autónoma serem elevadas em 10 pontos percentuais relativamente aos sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal no período a que respeitem os factos tributários competentes relacionados com o exercício de uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola não isenta de IRC (artigo 88.º, n.º 14, do Código do IRC).

Em suma, as normas de incidência em apreço não assentam na demonstração, por inferência de certos factos presumidos, que possam ser afastados na base de prova em contrário, mas operam objetivamente em face dos elementos da facti species tidos como pressupostos tributários, apenas dependendo da subsunção jurídica dos factos à previsão normativa.

E basta notar que a razão de ser das tributações autónomas é complexa e múltipla, podendo ter em vista prevenir, por razões de cobrança de receita fiscal, que seja afetada a receita respeitante à tributação do lucro tributável, desincentivar, por razões de política extra-fiscal, certas despesas que são reputadas socialmente como inconvenientes e desincentivar despesas normalmente associadas a comportamentos evasivos ou mesmo fraudulentos (v., entre o mais, o n.º 14 do artigo 88.º).

6. Não pode ignorar-se que diversa jurisprudência arbitral tem acolhido o entendimento de que as tributações autónomas têm subjacente uma presunção de empresarialidade parcial das despesas sobre que incidem, partindo da ideia de que essas despesas revestirão, em regra, uma dupla natureza, correspondendo a gastos que em parte se enquadram na atividade produtiva da empresa e noutra parte se reportam a despesas de consumo de carácter particular.

Quanto a esta jurisprudência, começa por se perceber mal o que se entende por presunção parcial. Parece querer dizer-se que as normas que preveem a tributação autónoma estabelecem uma presunção quanto ao carácter não empresarial das despesas, mas que (conforme configuradas pelo legislador essas normas) o contribuinte não poderá ilidir na sua globalidade na medida em que há sempre despesas que se presume que são do foro privado e, como tal, são inilidíveis.   

Esta abordagem coloca, desde logo, uma dificuldade. É que a jurisprudência constitucional tem afastado a instituição de presunções inilidíveis em matéria tributária por se considerar que impossibilitam o contribuinte de provar a inexistência da capacidade contributiva que a lei tem como presumida com base num certo pressuposto económico (acórdãos n.ºs 348/97, 452/2003 e 211/2003). E, por isso mesmo, existindo uma presunção de que as despesas não se justificam por razões empresariais, o interessado deveria ser chamado a fazer a prova de que não ocorre o facto que constitui a base da presunção (que é, afinal, note-se, a realização da despesa), o que lhe permitiria excluir da tributação não apenas uma parte das despesas, mas a sua totalidade.

A pretendida presunção implícita de não empresarialidade das despesas está, por sua vez, associada ao próprio objetivo fiscal que se pretende com a tributação autónoma.

Como explica SALDANHA SANCHES, a introdução do mecanismo de tributação autónoma é justificada por se reportar a despesas cujo regime fiscal é difícil de discernir por se encontrarem numa “zona de interseção da esfera privada e da esfera empresarial” e tem em vista prevenir e evitar que, através dessas despesas, as empresas procedam à distribuição oculta de lucros ou atribuam rendimentos que poderão não ser tributados na esfera dos respetivos beneficiários, tendo também o objetivo de combater a fraude e a evasão fiscais (Manual de Direito Fiscal, 3.ª edição, Coimbra, pág. 407).

 

E, desse modo, a tributação autónoma tem ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afetar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de menor transparência fiscal, e é explicada por uma intenção legislativa de estimular as empresas a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afetem negativamente a receita fiscal. O legislador tem em vista desincentivar a realização de certas despesas, admitindo a dedutibilidade do custo, mas reduzindo a vantagem fiscal por via da tributação autónoma, assim se compreendendo que a tributação incida não sobre a perceção de um rendimento mas sobre a realização de despesas.

 

Assim sendo, a presunção que se pretende ilidir por prova em contrário não é a natureza não empresarial das despesas, mas a própria razão de política fiscal que levou o legislador a tributar essas despesas, levando a discussão para o plano da conformação legislativa que se encontra vedado ao julgador.   

 

Certo é que o autor há pouco citado refere, a propósito da tributação autónoma, que se cria aqui “uma espécie de presunção de que estes custos não têm uma causa empresarial” (ob. e loc. cit.). Mas como se depreende de todas as considerações que antecedem esse excerto, o autor não está a referir-se a uma presunção em sentido técnico jurídico, mas a fazer notar justamente o objetivo fiscal que se teve em vista ao tributar esses custos.

 

Nestes termos, não há motivo para alterar o entendimento exposto nos acórdãos proferidos nos Processo n.º 448/2018-T, 516/2018-T e 323/2019-T, que é transponível para o presente caso, havendo de concluir-se que a disposição legal que estabelece tributações autónomas objeto do n.º 3 do artigo 88.º do Código do IRC constituem normas de incidência tributária que não consagram qualquer presunção que seja passível de prova em contrário.

               

Questões de inconstitucionalidade

7. A Requerente suscita ainda a questão da inconstitucionalidade da norma do n.º 3 do artigo 88.º do Código do IRC, quando interpretada no sentido de não ser ilidível a presunção implícita de empresarialidade das despesas e encargos, por violação dos princípios constitucionais da igualdade na repartição dos encargos públicos e da capacidade contributiva.

Acrescenta que, nessa medida, o tribunal arbitral se encontra impedido de considerar que aquela norma consagra uma presunção inilidível, sob pena de incorrer numa situação de pronúncia indevida, consubstanciada na admissão de uma fundamentação a posteriori.

Quanto a estas questões cabe referir o seguinte.

Tendo o tribunal concluído, conforme anteriormente se expôs, que as normas em causa não contemplam qualquer presunção legal, ainda que implícita, do carácter empresarial das despesas ou encargos, não se coloca a questão da sua não ilisão. A solução do caso tem como fundamento, não a impossibilidade de ilidir a presunção, mas a própria inexistência de presunção que se torne suscetível de ser ilidida, e, desse modo, ficam prejudicadas as questões de constitucionalidade que são suscitadas.

Ainda que se entenda que se pretende pôr em causa a constitucionalidade das tributações autónomas em si consideradas, cabe recordar que o Tribunal Constitucional se pronunciou já sobre essa matéria no referido acórdão n.º 197/2016, concluindo no sentido da sua conformidade constitucional.

 

Aí se concluiu, no tocante ao princípio da tributação segundo o rendimento real, que “a tributação autónoma, embora prevista no Código do IRC e liquidada conjuntamente com o IRC para efeitos de cobrança, nada tem a ver com a tributação do rendimento e os lucros imputáveis ao exercício económico da empresa, uma vez que incidem sobre certas despesas que constituem factos tributários autónomos que o legislador, por razões de política fiscal, quis tributar separadamente mediante a sujeição a uma taxa predeterminada que não tem qualquer relação com o volume de negócios da empresa”. E, nesse contexto, a “tributação autónoma não interfere no método destinado a determinar os resultados empresariais, nem implica que a matéria coletável que servirá base à tributação em IRC passe a incluir lucros ou rendimentos que a empresa não tenha efetivamente auferido”.

 

Por identidade de razão, o Tribunal considerou que as disposições impugnadas não põem em causa o princípio da capacidade contributiva enquanto corolário, no domínio dos impostos, dos princípios da igualdade e da justiça fiscal. A esse propósito, o acórdão salienta que “a tributação autónoma incide sobre certas despesas tipificadas na lei fiscal que tenham sido efetuadas pela empresa, e apenas sobre essas despesas, e não visa a tributação dos rendimentos empresariais que tenham sido auferidos no respetivo exercício económico”, e, nesse sentido, “a despesa constitui um facto tributário autónomo, gerando um imposto a que o contribuinte fica sujeito independentemente de ter obtido ou não rendimento tributável em IRC no mesmo período de tributação”. E, assim, o facto revelador da capacidade contributiva é a própria realização da despesa.

 

Por fim e por tudo quanto anteriormente se expôs, importa fazer notar que o tribunal não se pronuncia quanto à existência de uma presunção inilidível, mas quanto à inexistência, nas normas em causa, de uma presunção legal.

 

Preterição do dever de inquirição de testemunhas

 

8. A Requerente invoca ainda a preterição da inquirição das testemunhas arroladas no procedimento de reclamação graciosa, na medida em que a Administração Tributária, por efeito do disposto no artigo 58.º da LGT, tinha o dever de proceder a essas diligências instrutórias caso entendesse que a prova documental era insuficiente para demonstrar o carácter empresarial dos encargos a utilização dos veículos.

Ora, o princípio do inquisitório que decorre do falado artigo 58.º da LGT apenas pressupõe que a Administração deverá proceder às diligências que entenda serem úteis para a preparação da decisão, e não significa que lhe caiba realizar todas as diligências requeridas pelo contribuinte no decurso do procedimento ou todas aquelas que o interessado venha a entender a posteriori como necessárias face ao conteúdo da decisão final que tenha sido adotada.

O principal efeito jurídico da insuficiência das diligências instrutórias a realizar pela Administração no âmbito do procedimento tributário traduz-se, em sede de impugnação judicial num non liquet probatório sobre os factos materiais da causa, implicando que o tribunal emita uma pronúncia desfavorável em relação à parte a quem incumbia fazer a prova dos factos, à luz dos critérios de repartição do ónus da prova do artigo 74.º da LGT (SERENA CABRITA NETO/CARLA CASTELO TRINDADE, Contencioso Tributário, Vol. I, Coimbra, 2017).

 

Como vício invalidante do ato tributário, a preterição do princípio do inquisitório (e, consequentemente, do princípio da verdade material) apenas pode ser considerado na situação limite em que os serviços omitam diligências essenciais à averiguação da situação tributária de tal modo que não se encontre justificação plausível para a correção fiscal que tenha sido impugnada.

 

Revertendo à situação do caso, torna-se claro, que tendo o tribunal reconhecido que a disposição do n.º 3 do artigo 88.º do Código do IRC, que estabelece a tributação autónoma, constitui uma norma de incidência tributária que não consagra uma qualquer presunção que seja passível de prova em contrário, não é possível imputar à Administração o vício procedimental de défice probatório, visto que, nesse condicionalismo, não tem qualquer relevo para a decisão do caso a prova da ilisão da presunção.

 

Preterição da formalidade da audição prévia

 

9. Finalmente, a Requerente alega a preterição da formalidade da audição prévia em resultado de a Administração Tributária não ter tecido quaisquer considerações sobre o aduzido pela interessada na sequência da notificação para se pronunciar sobre o projeto de decisão da reclamação graciosa.

 

No entanto, o que se verifica, pelos elementos constantes dos autos, é que os serviços emitiram informação sobre o exercício do direito de audição prévia por parte da Requerente, concluindo que o contribuinte não apresentou quaisquer novos factos que permitissem alterar o projecto de decisão, limitando-se a reiterar uma certa interpretação das normas em causa que não é aceite pela Administração.

 

Não podendo, por conseguinte, afirmar-se que foi violado o direito de audição prévia, visto que não só a Requerente foi notificada para exercer esse direito procedimental, como também a Administração emitiu expressa pronúncia sobre a resposta que, nesse âmbito, veio a ser formulada pelo interessado.

 

Direito ao reembolso e a juros indemnizatórios

 

10. Tendo-se julgado improcedente o pedido principal de declaração de ilegalidade da autoliquidação de IRC e da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, ficam necessariamente prejudicados os restantes pedidos de devolução das quantias pagas e do pagamento de juros indemnizatórios.

 

III – Decisão

 

Termos em que se decide:

               

a) Julgar improcedente o pedido arbitral de declaração de ilegalidade da autoliquidação de IRC, relativa ao exercício de 2018, bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa contra ela deduzido;

 

                b) Julgar prejudicados os pedidos de reembolso das quantias pagas e do pagamento de juros indemnizatórios.

 

 

Valor da causa

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 98.030,27, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 2.754,00, que fica a cargo da Requerente.

 

Notifique.

 

Lisboa, 6 de Janeiro de 2021

 

O Presidente do Tribunal Arbitral

Carlos Fernandes Cadilha

 

O árbitro vogal

Carlos Quelhas Martins

 

O árbitro vogal

Cristina Aragão Seia