Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 76/2012-T
Data da decisão: 2012-10-29  IRC  
Valor do pedido: € 473.151,76
Tema: Correções à matéria coletável: princípio de plena concorrência e conversão cambial
Versão em PDF

Processo n.º 76/2012-T

 

            Os árbitros Dr. Jorge Manuel Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Prof. Doutor Fernando Borges de Araújo e Dr. António Alberto Franco (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 21-5-2012, acordam no seguinte:

 

            1. Relatório

 

…, S.A., contribuinte fiscal n.º …, com sede em …, Freguesia …, Concelho de …, …, abrangida pelo ….º serviço periférico local de …, Serviço de Finanças de …, Código Fiscal n.º …, (doravante a “Requerente”) vem, nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”), requerer a constituição de tribunal arbitral, para pronúncia arbitral sobre a legalidade da liquidação adicional, da autoria da Direcção-Geral dos Impostos, relativa a IRC, derrama, tributações autónomas e juros (compensatórios e de mora), com o n.º …, datada de 31 de Março de 2010, relativa ao exercício de 2006, no montante total de € 3.288.942,08, apenas quanto às correcções à matéria colectável relativas à violação do princípio da plena concorrência, no montante de € 963.927,00, e à variação patrimonial negativa decorrente da reserva de conversão cambial, no montante de € 569.933,73.

            A Requerente apresentou previamente recurso hierárquico que não foi decidido, pelo que invoca o seu indeferimento tácito.

            A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta em que, além de defender a legalidade do acto cuja declaração de ilegalidade é pedida, suscitou as questões prévias de incompetência material do tribunal arbitral e de intempestividade do pedido de pronúncia arbitral.

Na reunião prevista no art. 18.º do RJAT, ficou acordado que a Requerente apresentaria resposta escrita às excepções e as partes produziriam alegações orais.

O tribunal arbitral foi regularmente constituído.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

Antes de mais, importa apreciar as questões prévias suscitadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira, de cuja resolução depende a necessidade ou não de prosseguimento do processo.

 

            2. Matéria de facto

           

Com base nos elementos que constam do processo consideram-se provados os seguintes factos:

 

  1. A Direcção de Serviços de Inspecção Tributária efectuou uma inspecção à Requerente, que terminou com o “Relatório de Inspecção Tributária”, de 28-12-2009, em que, além do mais, se entendeu deverem ser efectuadas correcções à matéria tributável relativas à violação do princípio da plena concorrência, no montante de € 963.927,00, e à variação patrimonial negativa decorrente da reserva de conversão cambial, no montante de € 569.933,73 (cópia do relatório a folhas 2 a 113 do documento junto com a resposta da Autoridade Tributária e Aduaneira com a designação “P 76 T 2012 – Resposta (2).pdf”, cujo teor se dá como reproduzido);
  2. A Direcção-Geral de Impostos elaborou a liquidação adicional de IRC, derrama, tributações autónomas e juros compensatórios e juros de mora n.º …, com a data de 31-3-2010, relativa ao ano de 2006, no valor de € 3.474.595,76 (documento n.º 4 junto com o pedido de constituição do tribunal arbitral e páginas 10 a 17 do documento junto pela Autoridade Tributária e Aduaneira com a designação «P 76 T 2012 – Resposta (4).pdf», cujos teores se dão como reproduzidos);
  3. Em 6-4-2010, com base nessa liquidação adicional, a Direcção-Geral de Impostos efectuou a compensação n.º ..., de que resulta a pagar pela Requerente a quantia de € 3.288.942,08 (documento n.º 4, junto com o pedido de constituição do tribunal arbitral, e página 12 do documento junto com a resposta da Autoridade Tributária e Aduaneira com a designação “P 76 T 2012 – Resposta (4).pdf”, cujos teores se dão como reproduzidos);
  4. A ora Requerente apresentou uma reclamação graciosa tendo por objecto a liquidação adicional e compensação referidas, que teve o n.º …, reclamação que foi indeferida, por despacho de 19-9-2011, notificado à ora Requerente em 20-9-2011 (folha 5 do documento junto com a resposta da Autoridade Tributária e Aduaneira com a designação “P 76 T 2012 – Resposta (5).pdf”, cujo teor se dá como reproduzido);
  5. Em 20-10-2011, a ora Requerente apresentou um recurso hierárquico do indeferimento da reclamação graciosa, dirigido ao Senhor Ministro de Estado e das Finanças, a que foi dado o n.º 26/2011, que foi apresentado na Direcção dos Serviços de Prevenção e Inspecção Tributária (documentos n.ºs 1 e 2, juntos com o pedido de constituição do tribunal arbitral e folha 5 do documento junto com a resposta da Autoridade Tributária e Aduaneira com a designação “P 76 T 2012 – Resposta (5).pdf”, cujos teores se dão como reproduzidos);
  6. Em 22-12-2011, o recurso hierárquico referido foi enviado à Direcção de Serviços de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, com o Oficio n.º … da DSIT (Documento n.º 2 junto com o pedido de constituição do tribunal arbitral, na página 99 do documento «Doc 1 a 5.pdf», cujo teor se dá como reproduzido);
  7. O recurso hierárquico não foi decidido;
  8. Em 21-5-2012, a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo (cujo teor se dá como reproduzido);
  9. A Requerente era titular da totalidade do capital social da sociedade …, B.V., com sede na Holanda (doravante designada por …) (art. 24.º do pedido de constituição do tribunal arbitral e fls. 8 do relatório da inspecção);
  10. Em 31-12-2006, a Requerente detinha participação de 93,68% no capital da sociedade …, SGPS, S.A. (doravante …), com sede em Portugal (art. 34.º do pedido de constituição do tribunal arbitral e fls. 8 do relatório da inspecção e art. 76.º-2 da resposta);
  11. Em documento datado de 1-6-2006, referente a resoluções de accionistas (“Shareholder’s resolutions”), a Requerente manifesta a intenção de efectuar uma contribuição adicional de capital em dinheiro no valor de € 42.500.000,00 a favor da …, B.V., para ser considerada por esta como share premium e sem dever de emissão de novas acções, e considera ser do interesse desta investir parte deste capital adicional na aquisição de 178.111 acções da …, SGPS, S.A. e conceder um empréstimo à mesma no montante aproximado de € 41.000.000,00 (anexo n.º 1 ao relatório da inspecção, a fls. 115 da peça processual designada como “P 76 T 2012 – Resposta (3)”, cujo teor se dá como reproduzido);
  12. Em 1-6-2006 a Requerente entregou à …, B.V. a quantia de € 42.500.000,00, que não conduziu à emissão de novas acções por esta nem a pagamento de qualquer remuneração (arts. 26 e 27 do pedido de constituição do tribunal arbitral e fls. 8 do relatório da inspecção);
  13. A quantia referida na alínea anterior fazia parte de capitais próprios da Requerente (fls. 9 do relatório da inspecção);
  14. Uma parte daquela contribuição adicional foi utilizada pela …, B.V. na concessão de um financiamento, no montante de € 41.170.000,00 à …, SGPS, S.A., que venceu juros à taxa média de 4,472% e foi reembolsado no exercício de 2007 (art. 34.º do pedido de constituição do tribunal arbitral, arts. 75.º e 76.º-3 da resposta e página 26 do relatório da inspecção);
  15. A correcção efectuada pela Administração Tributária, quanto à invocada violação do princípio da plena concorrência, consistiu em fazer acrescer ao lucro tributável da Requerente no ano de 2006 a quantia de € 963.927,00, calculada com base no valor de € 41.170.000,00, o período de tempo de 192 dias (entre 19-6-2006 e 31-12-2006) e a taxa de juro de 4,39% (página 26 do relatório da inspecção);
  16. A correcção referida na alínea anterior foi justificada no relatório da inspecção em que se formularam as seguintes conclusões:

No âmbito da presente acção de inspecção efectuou-se a análise, à luz do Princípio de Plena Concorrência, da opção de investimento efectuada pela …, S.A., materializada numa dotação de capital sob a forma de share premium, à sociedade de direito holandês …, B.V., em detrimento da concessão de um financiamento remunerado a outra empresa do grupo, a …, SGPS, S.A., considerando que os fundos concedidos à primeira, foram, por determinação da accionista …, SGPS, S.A., utilizados para o posterior financiamento da …, SGPS, S.A..

Considerando a existência de relações especiais entre a …, S.A. e as duas sociedades financiadas e em face do Princípio de Plena Concorrência vertido no n.º 1 do artigo 58° do CIRC e das orientações da OCDE em matéria de Preços de Transferência concluiu-se que a opção tomada foi lesiva do ante mencionado princípio, não correspondendo á opção que, entidades independentes, em circunstâncias comparáveis, teriam tomado segundo critérios comerciais racionais.

Por aplicação do Método do Preço Comparável de Mercado, e considerando a disposição constante do parágrafo 7.34 das Guidelines da OCDE, segundo o qual "(...) é possível que o valor de mercado de serviços intra-grupo não seja superior às despesas incorridas pelo fornecedor de serviços. Este caso pode apresentar-se quando, por exemplo o serviço não corresponde a uma actividade normal ou recorrente do fornecedor, mas é fornecido ocasionalmente aos membros do grupo (...) a título de comodidade", foi determinada a remuneração de plena concorrência associada à operação controvertida, propondo-se um ajustamento ao lucro tributável da …, S.A. de 963.927 Euro (novecentos e sessenta e três mil, novecentos e vinte e sete Euro), no exercício de 2006.

 

  1. Em 31-12-2005, a Requerente tinha contabilizado na conta 413 – Empréstimos de Financiamento, a quantia de € 5.543.782,33, relativa a empréstimos no valor total de USD 6.540.000 que havia feito à sua filial em Angola …, vigorando nessa data o câmbio 1 € / 1,17970 USD (página 52 do relatório da inspecção e art. 242.º da petição inicial);
  2. O valor de USD 6.540.000 respeita a empréstimos no valor de USD 4.000.000 reclassificados em Outubro de 2003 para a conta POC 413 e registados pelo valor de € 4.506.270,70 e um empréstimo de USD 2.540.000 registado em Dezembro de 2004 pelo valor de € 2.011.095,80 (página 53 do relatório da inspecção)
  3. Em 31-12-2006, o câmbio que vigorava entre as mesmas moedas era de 1 € / 1,31700 USD, tendo a Requerente registado na sua contabilidade uma perda cambial no valor de € 577.792,19, na rubrica 5550000 – Reservas de Conversão Cambial (página 53 do relatório da inspecção e artigos 244.º e 245.º do pedido de pronúncia arbitral);
  4. No decorrer de 2006 ocorreu diminuição da dívida a receber, relativamente ao empréstimo de USD 2.540.000, no montante de USD 250.000 tendo a Requerente reduzido esse crédito em € 189.984,05 (página 53 do relatório a inspecção e artigo 246.º do pedido de pronúncia arbitral);
  5. A administração tributária entendeu que quanto à parte do empréstimo amortizada no ano de 2006 a perda cambial se tornou efectiva, pelo que era de incluir no resultado desse exercício, no montante de € 7.858,46, mas que não era de incluir nesse resultado o valor restante das referidas perdas cambiais, no montante de € 569.933,73, pelo que efectuou uma correcção ao lucro tributável da Requerente, aumentando-o neste último valor (página 54 do relatório da inspecção e artigos 248.º e 249.º do pedido de pronúncia arbitral);
  6. A Requerente, para garantir a dívida liquidada pela liquidação adicional n.º … e suspender a execução fiscal n.º …, do Serviço de Finanças de …, instaurada para sua cobrança, prestou, em 23-6-2010, garantia bancária, no valor de € 4.408.048,03 (documento n.º 30, junto com o pedido de constituição do tribunal arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  7. A prestação da garantia bancária referida na alínea anterior implicou para a Requerente custos no valor de € 69.013,50 (documento n.º 30, junto com o pedido de constituição do tribunal arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, e não impugnação pela Autoridade Tributária e Aduaneira do valor indicado);
  8. Por despacho de 22-9-2011, proferido no processo de execução fiscal n.º …, do Serviço de Finanças de …, foi reconhecida a caducidade da garantia prestada pela Requerente nesse processo, que tem por objecto a execução da quantia a pagar determinada na liquidação cuja declaração de ilegalidade é pedida no presente processo arbitral (documento n.º 30, junto com o pedido de constituição do tribunal arbitral, cujo teor se dá como reproduzido).

 

Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

Os juízos probatórios nos documentos e afirmações das partes indicados relativamente a cada um dos pontos da matéria de facto.

 Não se considera provado que a atribuição à …, B.V. da quantia referida se destinasse a aquisição iminente de uma participação de 21,86% na Société …, sediada no Líbano, pois não há qualquer elemento que o demonstre e, por outro lado, o documento referido como “Shareholder’s resolutions” aponta em sentido contrário, pois aí se indica com finalidade primacial da atribuição da quantia referida a concessão de um empréstimo à …. 

 

3. Questão prévia da incompetência do Tribunal Arbitral

 

Como está actualmente expresso no art. 18.º, n.º 1, da Lei de Arbitragem Voluntária de 2011 e vem sendo entendimento pacífico o tribunal arbitral pode decidir sobre a sua própria competência.

A Autoridade Tributária e Aduaneira suscita a questão prévia da incompetência deste Tribunal Arbitral quanto à questão da «correcção da matéria colectável efectuada ao abrigo do regime de preços de transferência, por se tratar de matéria que não está abrangida pela jurisdição em matéria tributária», pelas seguintes razões, em suma:

– O juízo de comparabilidade em que assenta a aplicação do regime dos preços de transferência é o método mais apto para a sua determinação e, não obstante a densificação de conceitos e de critérios introduzida pelo legislador com a Lei n.º 30-G/2000, de 29/12, que alterou o art. 58.º do CIRC, e com a Portaria n.º 1446-C/2000, de 21/12, depende, em grande medida, de análises complexas e elaboradas, compostas por um grande número de variáveis, da disponibilidade e facilidade de recolha de dados comparáveis externos e do maior ou menor apelo a critérios de índole subjectiva e aos pressupostos básicos assumidos;

– Os métodos de correcção dos preços de transferência para a determinação dos termos e condições que seriam normalmente acordados, aceites ou praticados numa operação comparável entre entidades independentes, revestem-se, portanto, de uma natureza extra contabilística com vista à melhor estimativa de um preço independente;

– Tal como os métodos indirectos previstos nos arts. 81.º e seguintes da LGT, também a determinação dos preços de transferência é efectuada a partir de elementos de que a administração tributária disponha, assente em critérios que embora tendencialmente objectivos pressupõe uma ampla margem de discricionariedade técnica na sua aplicação;

– Esta ampla margem de discricionariedade no tratamento de dados com vista à determinação do preço de transferência para cálculo do lucro tributável que ocorreria se tivessem sido praticadas pelo contribuinte as condições normais de mercado praticadas por entidades independentes, que justifica o especial cuidado no dever de fundamentação destas correcções, tal como se encontra consignado no na 3 do art. 77.º da LGT, à semelhança do que sucede com os métodos indirectos, conforme na 4 e 5 do mesmo normativo legal;

– À semelhança do que acontece com os métodos indirectos de determinação da matéria colectável, também a determinação dos preços de transferência é efectuada com recurso a elementos de que a administração fiscal disponha, estando as decisões proferidas em ambas as matérias revestidas de especiais cuidados quanto ao respectivo dever de fundamentação, tal como resulta do disposto no art. 77.º da LGT;

– Assim sendo, e atenta a razão que terá presidido à não sujeição à arbitragem em matéria tributária, enquanto forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos no domínio fiscal, das matérias elencadas na alínea b) do art. 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22/03, que residirá no facto de as mesmas não respeitarem a correcções meramente aritméticas da matéria tributável resultantes de estrita imposição legal, envolvendo, por consequência, alguma margem de discricionariedade técnica da Administração Tributária e, eventualmente, uma complexidade que não se coaduna com a celeridade típica do processo arbitral, torna-se forçoso concluir que tal exclusão compreende na sua previsão também as correcções ao lucro tributável efectuado em cumprimento do princípio de plena concorrência.

– A apreciação de um diferendo que tem inerente uma elevada complexidade técnica, no que respeita às correcções efectuadas em conformidade com o regime dos preços de transferência, não se coaduna com o princípio da celeridade que caracteriza a opção pela arbitragem uma vez que este pode pôr em causa o pleno exercício do contraditório pelas partes e mesmo o princípio de investigação por impulso do próprio tribunal, prejudicando a descoberta da verdade material e a conformidade legal das situações jurídico-tributárias.

– Ao excluir da jurisdição arbitral as matérias consignadas na alínea b) do art. 2º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22/03, foi afastada a sua sujeição à regra geral da irrecorribilidade das decisões arbitrais, salvaguardando-se, assim, a possibilidade de recurso, quer em matéria de facto, quer em matéria de direito, nos termos gerais.

– No que concerne às correcções efectuadas ao abrigo dos preços de transferência, à semelhança do que sucede com a determinação da matéria colectável através de métodos indirectos, a regra de irrecorribilidade das decisões arbitrais reveja-se especialmente atentatória do princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva.

– Ao abrigo do mencionado princípio da irrecorribilidade, a decisão arbitral que venha a ser proferida, com as limitações decorrentes da pretendida celeridade processual, não será susceptível de uma segunda apreciação quanto à vasta e complexa matéria de facto objecto de pronúncia, ficando a sua reapreciação limitada às questões de direito;

– Refém de um tribunal privado, constituído sob a égide do Centro de Arbitragem Administrativo, pessoa colectiva de direito privado, o Estado vê-se, na prática, impedido de defender o interesse público, consubstanciado nas correcções efectuadas ao abrigo dos preços de transferência, através de um segundo nível de controlo jurisdicional da decisão arbitral que venha a ser proferida, especialmente no que concerne à matéria de facto mas também no que importa às questões de direito.

– Deste modo, fica assim desprotegido o interesse público associado à cobrança de impostos, suporte do modelo constitucional de um Estado social e de direito, em clara violação do n.º 1 do art. 104.º e alínea b) do n.º 1 do art. 81.º, ambos da CRP.

– As mesmas razões que levaram o legislador a excluir da jurisdição dos tribunais arbitrais as matérias sujeitas a uma apreciação indiciária e presuntiva aplicam-se, também, ao regime dos preços de transferência.

– Por um princípio de igualdade e equidade no acesso à justiça, pois as mesma razões não podem, perante situações idênticas, nuns casos impedir o acesso dos contribuintes a esta via alternativa, e noutros permitir o seu acesso, criando condições discriminatórias e arbitrárias de acesso ao direito para situações idênticas, mais concretamente no que respeita ao reforço da tutela eficaz dos direitos e interesses legalmente protegidos dos sujeitos passivos e de uma maior celeridade na resolução de litígios, tal qual é preconizado no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01.

– Se os métodos indirectos tributam um rendimento que se presume auferido, cabendo ao contribuinte comprovar que era outra a sua natureza ou montante, ou que simplesmente não foram auferidos rendimentos sujeitos a tributação, já os preços de transferência tributam um lucro estimado que teria ocorrido se tivessem sido praticadas as condições normais de mercado entre entidades independentes, cabendo ao contribuinte calcular a correspondente correcção para efeitos fiscais.

– Uma interpretação da alínea b) do art. 2º da aludida Portaria que não contemple a exclusão da arbitragem tributária das correcções efectuadas ao abrigo do regime dos preços de transferência é, necessariamente, uma interpretação em violação do direito constitucional de acesso à tutela jurisdicional efectiva na protecção do interesse público.

– A falta de vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira ao tribunal arbitral traduz-se na imediata impossibilidade da eficácia subjectiva de um julgado que, se fosse proferido nas matérias excluídas, não produziria quaisquer efeitos sobre a parte que haveria de o executar, consubstanciando, portanto, falta de jurisdição, delimitada em função da matéria,

– Por força do disposto na alínea b) do art. 2º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22/03, a entidade Requerida não está vinculada à jurisdição arbitral em matéria tributária relativamente a actos de determinação do lucro tributável efectuados ao abrigo do regime dos preços de transferência.

 

A Requerente, quanto à questão da incompetência defende, em suma, o seguinte:

– A Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, no seu teor literal, não exclui os actos de aplicação do regime de preços de transferência da vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira à jurisdição arbitral, o mesmo sucedendo com a Lei de autorização legislativa e com o RJAT;

– O regime de preços de transferência não se confunde com a aplicação de métodos indirectos;

– A aplicação de métodos indirectos justifica-se quando é inviável a comprovação e quantificação directa e exacta da matéria tributável e há incumprimento pelo contribuinte dos seus deveres, enquanto a aplicação do regime de preços de transferência pressupõe a existência de documentação apurada e não depende de qualquer incumprimento pelo contribuinte;

– Regime de preços de transferência não consubstancia uma forma de avaliação indirecta, sendo que um e outro regime não podem em caso algum ser reconduzidos à mesma categoria tipológica (o que se pode verificar inclusivamente pela sua inclusão sistemática no Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas na Subsecção da Correcções para efeitos da determinação da matéria colectável e não na Secção relativa à Determinação do lucro tributável por métodos indirectos), sendo classificadas pela AT como correcções aritméticas no relatório de inspecção;

– Na aplicação do regime de preços de transferência há uma actuação vinculada e não pode haver discricionariedade;

– Os vários métodos de determinação do preço e condições de mercado que possibilitam uma análise casuística de cada transacção e que, consequentemente, permitem a determinação rigorosa e objectiva das condições que seriam praticadas por entidades independentes;

– Uma das vantagens que desde sempre foi apontada à criação de Tribunais Arbitrais seria a especialização e a possibilidade — hoje consagrada na lei — de nomeação de árbitros licenciados em Economia ou Gestão nas questões de maior complexidade e que exijam um conhecimento específico de áreas não jurídicas e o âmbito de aplicação por excelência desta possibilidade serão as questões de preços de transferência;

– A celeridade é um princípio comum aos tribunais arbitrais e aos tribunais tributários;

– O princípio do contraditório e princípio da verdade material são igualmente princípios orientadores da Arbitragem Tributária, encontrando-se previstos no RJAT, art. 16.º, al. a) e e), pelo que a possibilidade de a Arbitragem Tributária não põe em causa aqueles princípios.

 

O art. 124.º, n.º 3, da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, autorizou o Governo «a legislar no sentido de instituir a arbitragem como forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária», que «deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária», tendo como objectivo «reforçar a tutela eficaz e efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos contribuintes, devendo ser instituída de modo a constituir um direito potestativo dos contribuintes».

O DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante RJAT), em parcial dissonância com estas directrizes, instituiu a arbitragem tributária limitada a determinadas matérias, arroladas no seu art. 2.º, e fez depender a vinculação da administração tributária de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça.

Através da Portaria n.º 112-A/2011, de 20 de Abril, o Governo, pelos Ministros de Estado e das Finanças e Justiça, vinculou os serviços da Direcção-Geral de Impostos e da Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD (art. 1.º) (a estes serviços corresponde, actualmente, a Autoridade Tributária e Aduaneira, nos termos do art. 118/2011, de 15 de Dezembro).

No art. 2.º desta Portaria define-se o objecto da referida vinculação nos seguintes termos:

 

Artigo 2.º

Objecto da vinculação

 

Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto -Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com excepção das seguintes:

a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;

b) Pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;

c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indirectos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação; e

d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efectuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira.

 

           

Como se vê, neste art. 2.º estabeleceu-se, em primeiro lugar, no seu corpo, uma vinculação genérica daqueles serviços, actualmente da Autoridade Tributária e Aduaneira,

à jurisdição de tribunais arbitrais que tenham por «objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto -Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro».

Depois, nas quatro alíneas deste art. 2.º, arrolaram-se as excepções à regra da vinculação que consta do corpo do artigo.

O que a Autoridade Tributária e Aduaneira defende no presente processo é, ao fim e ao cabo, que, além destas excepções indicadas nas alíneas deste art. 2.º, há mais uma, que é a da determinação da matéria colectável em que se faça à aplicação do regime dos preços de transferência.

É manifesto, porém, que esta pretensão carece de suporte normativo.

Na verdade, por um lado, o referido art. 2.º não comporta qualquer lacuna de regulamentação, pois, no seu corpo abrangem-se todas as situações em que há competência dos tribunais arbitrais à face do art. 2.º, n.º 1, do RJAT que não são excepcionadas.

E, por isso, se nas excepções não vem indicada a não vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira quando esteja em causa a apreciação da legalidade de actos que façam aplicação do regime de preços de transferência, a situação terá forçosamente de considerar-se abrangida pela regra do corpo do art. 2.º da Portaria n.º 112-A/2011.

Por outro lado, como é princípio geral da interpretação jurídica, «as normas excepcionais não comportam aplicação analógica» (art. 11.º do Código Civil), pelo que o intérprete não pode transformar em excepção algo que normativamente se incluiu no âmbito de aplicação do regime regra.

A pretensão de incluir no âmbito das excepções todas as situações em que esteja em causa a apreciação de questões técnicas (identificadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira com apelo ao ultrapassado e inadequado conceito de «discricionariedade técnica») não tem qualquer suporte legal, e estaria ao arrepio da intenção expressa de incluir no âmbito da jurisdição arbitral as questões relativas à fixação de valores patrimoniais, em que é manifesto em que há campo para aplicação de elementos de ordem subjectiva.

Por outro lado, a eventual explicação para a opção governamental de exclusão do âmbito da jurisdição arbitral das questões relativas à determinação da matéria tributável através de métodos indirectos, não estará na existência de uma margem de subjectividade, mas sim no facto de para apreciação dessas questões já se prever no âmbito do procedimento tributário um procedimento especial com características essencialmente semelhantes às que enformam os tribunais arbitrais colectivos no âmbito da arbitragem voluntária, em que é indicado um perito pelo contribuinte e outro pela administração tributária e há intervenção de um terceiro perito independente de nomeação pelas partes (arts. 91.º a 93.º da LGT).

A argumentação relativa à competência técnica necessária para a apreciação de questões relativas à aplicação do regime de preços de transferência não permite retirar qualquer ilação em sentido diferente, pois, por um lado, todos os árbitros em matéria tributária são, por exigência legal, «juristas com pelo menos 10 anos de comprovada experiência profissional na área do direito tributário, designadamente através do exercício de funções públicas, da magistratura, da advocacia, da consultoria e jurisconsultoria, da docência no ensino superior ou da investigação, de serviço na administração tributária, ou de trabalhos científicos relevantes nesse domínio» ou licenciados em Economia ou Gestão, quando as questões exijam um conhecimento especializado de outras áreas (art. 7.º, n.ºs 2 e 3, do RJAT). Por isso, os tribunais arbitrais que funcionam no CAAD são presumivelmente formados por quem tem comprovados conhecimentos profissionais necessários para apreciação da generalidade das questões tributárias que sejam submetidas à sua apreciação.

Aliás, no caso em apreço, a Autoridade Tributária e Aduaneira não levantou nem levanta na sua resposta qualquer questão relativa a deficiência na formação do tribunal arbitral, designadamente tendo em conta as suas qualificações profissionais, como lhe permite o Código Deontológico do CAAD, pelo que tem de se considerar processualmente assente que todos os árbitros dispõem das competências necessárias para o desempenho das suas funções.

Para além disso, como na generalidade dos processos judiciais tributários, é possível nos tribunais arbitrais tributários a utilização de prova pericial e pareceres técnicos, através de aplicação subsidiária do art. 116.º do CPPT [por via do art. 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT], pelo que é forçoso concluir que os tribunais arbitrais que funcionam no CAAD não dispõem de menores meios do que os tribunais tributários estaduais para adequada apreciação das questões técnicas que se suscitem nos litígios lhe sejam submetidos.

O argumento do princípio da celeridade dos processos arbitrais, pretensamente incompatível com a apreciação das questões relativas a preços de transferência, é também manifestamente inoperante, pois os tribunais arbitrais que funcionam no CAAD dispõem do prazo de seis meses, prorrogável até doze meses (nos termos do art. 21.º, n.ºs 1 e 2, do RJAT), para decidir as questões desse tipo que lhe sejam apresentadas, enquanto essas mesmas questões, juntamente com todas as outras que relevem para a decisão de cada procedimento tributário, nomeadamente em reclamações graciosas, têm de ser decididas em apenas quatro meses, por imposição do art. 57.º, n.º 1, da LGT, na redacção dada pela n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, que reduziu o prazo de seis meses anteriormente previsto na mesma norma e no art. 36.º, n.º 2, do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária. Para além disso, essas mesmas questões, quando são objecto de recurso hierárquico, têm de ser decididas pela Autoridade Tributária e Aduaneira no prazo máximo de 60 dias (art. 66.º, n.º 5, do CPPT), pelo que, na perspectiva legislativa, este é um período de tempo suficiente para a sua resolução, quando se trata de apreciação da legalidade de um acto anterior, o que é, precisamente, a situação que se verifica em relação aos tribunais arbitrais.

Isto é, os tribunais arbitrais que funcionam no CAAD podem dispor de um prazo de 12 meses para resolver questões relativamente às quais a lei impõe à administração tributária a resolução em 60 dias, o que significa que aqueles dispõem de seis vezes mais tempo do que o que legislativamente se considera necessário para apreciação da legalidade de actos em matéria tributária.

Por isso, tendo de pressupor-se, por imposição do princípio da unidade do sistema jurídico (art. 9.º, n.º 1, do Código Civil) que as soluções legislativas são coerentes, o princípio da celeridade não pode considerar-se incompatível com a apreciação dessas questões pelos trabalhos.

Aliás, é de notar, neste contexto, que a tarefa dos tribunais arbitrais na apreciação destas questões é tendencialmente muito menos árdua do que o pode ser no âmbito do procedimento tributário, pois os tribunais arbitrais podem usufruir das presumivelmente prestimosas colaborações das partes na discussão de tais questões, com todas as virtualidades do contraditório, erigido pela nossa lei processual como potenciador da qualidade das decisões de litígios.

No que concerne às restrições ao recurso que vigoram no domínio do RJAT, designadamente à não admissibilidade de recurso da matéria de facto, está em evidente sintonia com a directriz que consta da alínea h) do n.º 4 do art. 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, em que se estabelece que o regime da arbitragem tributária deveria consagrar, como regra, a irrecorribilidade da sentença proferida pelo tribunal arbitral, prevendo a possibilidade de recurso, para o Tribunal Constitucional, apenas nos casos e na parte em que a sentença arbitral recuse a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade ou aplique norma cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada.

Trata-se de uma solução legislativa que se explica pela intenção de celeridade que se pretende obter com a arbitragem tributária e que abstractamente, em si mesma, não pode ser considerada favorável ou prejudicial ao sujeito passivo ou à Administração Tributária, quando comparada com o regime que vigora nos tribunais tributários, pois o regime do RJAT tanto obsta ao recurso de decisões arbitrais favoráveis à Administração Tributária como de decisões que lhe sejam desfavoráveis, sendo processualmente vantajoso para esta quando lhe as decisões lhe sejam favoráveis e desvantajoso quando as decisões arbitrais lhe sejam desfavoráveis.

Por outro lado, em geral, nada garante que a decisão proferida em segundo grau de jurisdição seja de melhor qualidade do que a de primeiro grau, sendo perfeitamente admissível que ocorra precisamente o contrário, como comprovam as inúmeras decisões do Supremo Tribunal Administrativo que, em recurso excepcional de revista, têm revogado decisões dos Tribunais Centrais Administrativos, confirmando decisões de 1.ª instância.

E, se é certo que em relação aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, que estão hierarquicamente organizados com colocação nos Tribunais Superiores de juízes de maior categoria profissional, ainda se pode falar de tendencial presumível melhor qualidade das decisões proferidas em recurso, tal conclusão não pode ser transposta linearmente para o âmbito da jurisdição arbitral, em face dos requisitos especiais de experiência e qualidade dos árbitros.

De qualquer modo, concorde-se ou não com tal opção legislativa sobre recursos jurisdicionais, o certo é que é inequívoco que se pretendeu adoptar tal solução, pelo que, num Estado de Direito, o intérprete tem de acatar tal regra, não podendo sobrepor aos critérios legislativos as soluções que ele próprio adoptaria se, em vez de ser um mero intérprete da lei, fosse ele o legislador.

Na verdade, a limitação de recursos jurisdicionais é uma regra que, em maior ou menor medida, é adoptada na generalidade do direito público (tanto nos tribunais administrativos como nos tribunais tributários há alçadas, nos termos do art. 6.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e do art. 6.º do CPPT).

Por outro lado, trata-se de uma opção legislativa que é constitucionalmente admissível, pois o direito à reapreciação das decisões jurisdicionais apenas poderá considerar-se necessário para assegurar a tutela judicial efectiva quando estiverem em causa direitos fundamentais dos cidadãos.

O direito de acesso aos tribunais e à tutela judicial efectiva não implica que exista sempre a garantia de um duplo grau de jurisdição, pelo que não são inconstitucionais as normas que o afastam quando não as decisões não afectam direitos fundamentais dos administrados.          

Neste contexto importa dizer ainda que a tutela judicial efectiva que a Constituição garante em matéria de contencioso de actos da Administração praticados ao abrigo dos seus poderes de direito público de autotutela declarativa é um direito reconhecido aos administrados que sejam por ele lesados e não à Administração (art. 268.º, n.º 4, da CRP) que, no nosso sistema de administração executiva, os pratica e pode coercivamente executar sem recurso aos tribunais.

No que concerne à alegada incompatibilidade deste regime com o art. 104.º, n.º 1, da CRP, que a Autoridade Tributária e Aduaneira invoca, não se vislumbra, nem é explicado, como ela possa existir, desde logo porque esta norma estabelece que «o imposto sobre o rendimento pessoal visa a diminuição das desigualdades e será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar» e, no caso em apreço, nem está em causa a tributação de pessoas singulares, que são as únicas destinatárias de tal comando constitucional, como decorre do seu texto.

Por outro lado, quanto ao art. 81.º, n.º 1, alínea b), que estabelece como incumbência prioritária do Estado «promover a justiça social, assegurar a igualdade de oportunidades e operar as necessárias correcções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento, nomeadamente através da política fiscal», trata-se de uma norma programática, visando orientar as actividades legislativa e administrativa do Estado, que nada tem a ver com a possibilidade de recurso da matéria de facto.

No que concerne à invocada violação do princípio da igualdade, independentemente da pertinência que possa ter ou não a sua invocação no presente contexto, é patente, que não se pode afirmar, com o faz a Autoridade Tributária e Aduaneira, que «as mesmas razões que levaram o legislador a excluir da jurisdição dos tribunais arbitrais as matérias sujeitas a uma apreciação indiciária e presuntiva aplicam-se, também, ao regime dos preços de transferência».

Na verdade, por um lado, nem foi o legislador que excluiu a determinação da matéria colectável por métodos indirectos do âmbito da jurisdição arbitral, mas sim a própria Administração, através de Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, pois esta não é um acto legislativo, mas sim de um acto de natureza regulamentar, praticado por membros do Governo ao abrigo da sua competência administrativa, no caso a prevista na alínea c) do art. 199.º da CRP, e não da competência legislativa, indicada no artigo anterior.

Por outro lado, como se disse, a única explicação aceitável para excluir actos de determinação da matéria colectável através de métodos indirectos da jurisdição arbitral, é o facto de se prever já um procedimento especial para a revisão de tais actos, com estrutura idêntica à dos tribunais arbitrais, o que não se verifica em relação aos actos que aplicam o regime dos preços de transferência.

Por isso, não se está perante situações essencialmente idênticas, como pressupõe a violação do princípio da igualdade.

Improcede, assim a questão prévia suscitada pela Autoridade Tributária e Aduaneira relativamente à incompetência deste Tribunal Arbitral.

 

4. Questão prévia da intempestividade do pedido de pronúncia arbitral

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira defende que o pedido de pronúncia arbitral foi apresentado intempestivamente pelas seguintes razões, em suma:

 

– O recurso hierárquico, sobre o qual recaiu o presumido acto de indeferimento tácito, objecto do presente pedido de pronúncia arbitral, foi apresentado no dia 20/10/2011, tendo sid0 interposto do acto de 19-9-2011, que inferiu a reclamação graciosa n.º …, notificado à Requerente em 20-9-2011;

– O pedido de pronúncia arbitral foi apresentado no dia 20-5-2012;

– Não sendo decidido o recurso hierárquico no prazo de 60 dias, deve o mesmo considerar-se tacitamente indeferido, por aplicação supletiva do art. 175.º, n.º 3 do CPA, subsidiariamente aplicável;

– O pedido de pronúncia arbitral deveria, portanto, ter sido interposto até ao dia 20-3-2012;

– É hoje pacífica a jurisprudência no sentido de que os artigos 172.º e 175.º n.º 1, ambos do CPA, não consentem outra interpretação que não seja a de que o prazo de 15 dias para a intervenção do órgão recorrido (pronúncia e remessa do processo ao órgão competente para a decisão) é um prazo específico e autónomo, que precede o prazo fixado para a decisão do recurso hierárquico.

– Até porque não existe nenhuma estipulação no CPA que obrigue a Administração a notificar o recorrente da subida do recurso hierárquico;

– A entender-se que o prazo para decisão do recurso hierárquico só se contaria a partir da data de remessa do mesmo ao órgão competente para decidir e que essa data poderia ser uma qualquer, deixar-se-ia nas mãos da Administração e no âmbito da actuação ilegal, quer a contagem do prazo do indeferimento tácito quer a contagem do prazo de impugnação judicial (e, igualmente, por maioria de razão, a contagem do prazo para apresentação do pedido de pronúncia arbitral).

– Não é aplicável o prazo de 4 meses previsto no n.º 1 do artigo 57.º da LGT porquanto este preceito legal aplica-se apenas aos procedimentos tributários de 1.º grau.

 

A Requerente, sobre a questão da intempestividade, defende, em suma, que:

– O prazo para decisão do recurso hierárquico conta-se da data da entrada da petição do recurso hierárquico na entidade competente para a decisão, nos termos do art. 57.º, n.º 5, da LGT;

– Como a remessa do processo ocorreu em 22-11-2011, o prazo de 60 dias para decisão do recurso terminou em 20-2-2012, terminando em 20-5-2012, o prazo para pedir pronúncia arbitral, transferindo-se o termo para o primeiro dia útil seguinte;

– O regime de indeferimento tácito aplicável ao recurso hierárquico em matéria fiscal é o previsto na LGT, art. 57.º, n.º 5 (complementado pelo CPPT, art. 66.º, n.º 5) e não o CPA.;

– Sendo o CPPT, art. 66.º (e no caso do indeferimento a LGT, art. 57.º) lex specialis e auto-suficiente, está afastada a necessidade de aplicação subsidiária do CPA em tudo o que estiver especificamente regulado;

– a LGT, art. 57.º, n.º 1, estabelece um prazo máximo (uma regra geral) para o fim do procedimento tributário;

– Nos termos da LGT, art. 54.º, n.º 1 al. f) "[O] procedimento tributário compreende toda a sucessão de actos dirigida á declaração de direitos tributários, designadamente: “As reclamações e os recursos hierárquicos;”

– Pelo que, prima facie, o Recurso Hierárquico (ou melhor, o seu prazo de decisão) deveria considerar-se abrangido pela LGT, art. 57.º (quando esta se refere a procedimento tributário).

– Contudo, o CPPT, art. 66.º, n.º 5, lex specialis, impõe a este tipo especifico de procedimento tributário, o recurso hierárquico, um prazo máximo de duração mais curto do que a regra geral, i. e. 60 dias.

– Sendo que, no entanto, o prazo (de 60 dias) será o único desvio ou adaptação necessária para aplicação do regime estabelecido na LGT, art. 57.º, n.º 5;

– Havendo regulamentação na LGT/CPPT não há que fazer apelo ao CPA, nomeadamente ao seu art. 175.º, n.º 1;

– A face do art. 57.º, n.º 5, da LGT o que releva para determinar o prazo de decisão é a entrada do processo no serviço competente para decidir e não, como no contencioso administrativo, a remessa do processo;

– O princípio constitucional, de acesso aos tribunais para tutela de direitos, consagrado nos arts. 20. º, n.º 1, e 268. º, n.º 4, da CRP, não se compagina com prazos de preclusão de direitos que não estejam explicitamente indicados e com que os seus titulares não possam, com a diligência e conhecimentos normais, seguramente contar;

– Este regime não deixa na disponibilidade da administração tributária a contagem dos prazos de indeferimento tácito e de impugnação judicial;

– A data que a Requerente considerou para iniciar a contagem do prazo de decisão foi a indicada pela Autoridade Tributária e Aduaneira na resposta ao pedido de emissão de certidão de documento comprovativo da data relevante para efeitos da contagem do prazo de indeferimento tácito;

– O art. 172.º, n.º 1, do CPA obriga a administração tributária a comunicar a quem recorre hierarquicamente a data em que é efectuada a remessa do processo à entidade competente para decidir;

– A administração tributária já aplicou a regra do art. 57.º, n.º 5, da LGT para contagem do prazo de indeferimento tácito de reclamação graciosa;

– O tratamento discriminatório das duas situações de indeferimento tácito envolve violação dos princípios da justiça material e da igualdade, consagrados nos arts. 5.º, n.º 2, e 55.º da LGT.

 

A questão da tempestividade que é colocada pela Autoridade Tributária e Aduaneira reconduz-se a saber qual o termo inicial do prazo de 60 dias para decisão do recurso hierárquico, previsto no art. 66.º, n.º 5, do CPPT.

A Autoridade Tributária e Aduaneira entende que tal prazo se inicia a partir do termo do prazo de 15 dias previsto no art. 66.º, n.º 3, do CPPT para a subida do processo ao órgão competente para a sua decisão, que, entende que «é um prazo específico e autónomo, que precede o prazo fixado para a decisão do recurso hierárquico» (artigo 50.º da resposta da Autoridade Tributária e Aduaneira). A contagem do prazo de 60 dias para decisão do recurso hierárquico contar-se-á independentemente de o processo de recurso hierárquico subir ou não à entidade competente para o decidir.

A Requerente defende que o prazo de decisão do recurso hierárquico se inicia com a entrada do processo no serviço competente para decidir o recurso hierárquico, fazendo aplicação da regra do art. 57.º, n.º 5, da LGT.

É certo que, como defende a Requerente, o recurso hierárquico é um dos tipos de procedimento tributário, expressamente indicado na alínea f) do n.º 1 do art. 54.º da LGT, em que o art. 57.º se insere entre as «regras gerais», que constam do Título III da LGT, relativo ao «Procedimento tributário». 

No entanto, o facto de no n.º 5 do art. 57.º da LGT se indicar a presunção de indeferimento da petição também para efeitos de recurso hierárquico, sugere a conclusão de se tem em vista nesta norma a falta de decisão de actos primários, de que pode ser interposto recurso hierárquico, e não a falta de decisão dos recursos hierárquicos. ( [1] )

A não aplicação directa do n.º 5 do art. 57.º da LGT, à formação de indeferimento tácito sobre petições de recurso hierárquico não significa, no entanto, que a regra base sobre a contagem do prazo de formação de indeferimento tácito de actos de primeiro grau, que aí se prevê, não possa ser aplicada, por analogia, ao indeferimento tácito de quaisquer decisões em matéria tributária, na falta de norma especial que regule recurso hierárquico, nesse ponto.

A LGT não contém normas específicas sobre a tramitação dos recursos hierárquicos, estabelecendo apenas, no seu art. 80.º, que «a decisão do procedimento é susceptível de recurso hierárquico para o mais elevado superior hierárquico do autor do acto mas, salvo disposição legal em sentido contrário, este é sempre facultativo».

No art. 66.º do CPPT indica-se o prazo de decisão, mas não o seu termo inicial, pelo que, não se podendo determinar o termo final de um prazo sem se conhecer o termo inicial, é forçoso concluir que é necessário fazer apelo a outras normas para apurar quando termina o prazo de decisão do recurso hierárquico.

Partindo do pressuposto de que o art. 57.º, n.º 5, da LGT visa apenas a formação de indeferimento tácito relativamente a actos de primeiro grau, poderá aventar-se como solução a aplicação analógica do seu regime a actos de segundo grau.

No entanto, a regra de que o prazo de conclusão do procedimento é contado a partir da entrada da petição do contribuinte no serviço competente da administração tributária pressupõe, para efeitos de formação de indeferimento tácito, que seja um mesmo serviço o competente para tramitar e decidir o procedimento. Isto conclui-se do facto de o art. 107.º do CPPT prever, apenas e especialmente, para os casos de delegação e subdelegação de poderes, que o indeferimento tácito se forma mesmo que a petição ou requerimento não seja remetido ao delegado ou subdelegado, atendendo-se à data da respectiva entrada, para efeito de formação de indeferimento tácito. Na verdade, a previsão deste regime específico para os casos de delegação e subdelegação de poderes seria desnecessária se existisse uma regra geral no sentido de que, em todos os casos em que a entidade a quem é apresentado o requerimento ou petição não é a competente para a decisão, o prazo de formação de indeferimento tácito se contava da entrada do requerimento ou petição e não da remessa do processo à entidade competente para a decisão ou sua recepção por esta.

Uma outra norma que confirma que o regime do art. 57.º, n.º 5, da LGT, ao referir como termo inicial do prazo de formação de indeferimento tácito a entrada da petição tem em vista situações em que o serviço em que a petição dá entrada é o da entidade competente para a decisão, é o art. 106.º do CPPT. Na verdade, apesar de ter uma redacção pouco feliz, este art. 106.º, ao estabelecer que «a reclamação graciosa presume-se indeferida para efeito de impugnação judicial após o termo do prazo legal de decisão pelo órgão competente» inculca também que o que releva para a formação de indeferimento tácito é a falta de decisão pelo órgão competente no prazo de que ele próprio dispõe para decidir, não relevando para este efeito o período que decorrer enquanto o requerimento ou petição está no poder de órgão incompetente para decidir. Com efeito, se relevasse para efeito de formação de indeferimento tácito o período que decorre desde a entrada do requerimento, independentemente de o processo ser colocado na disponibilidade da entidade competente para decidir, a referência ao «órgão competente» que se inclui naquele art. 106.º seria absolutamente inútil.

Sendo assim, como no caso do recurso hierárquico regulado pelo art. 66.º do CPPT, a petição é apresentada ao autor do acto recorrido e, depois, o processo é enviado ao superior hierárquico, para decisão (art. 66.º, n.ºs 1 e 3, do CPPT), não será aplicável aquele regime de contagem do prazo de decisão a partir da data de entrada da petição.

Assim, como no art. 66.º do CPPT não se indica o termo inicial do prazo de decisão e este também não se encontra no referido art. 57.º, n.º 5, da LGT ou outra lei tributária, não se podendo determinar o termo final de um prazo sem se conhecer o termo inicial, é forçoso concluir que, há no art. 66.º do CPPT uma lacuna de regulamentação, quanto ao termo inicial do prazo, que tem de ser preenchida, atenta a natureza do caso omisso, com aplicação subsidiária do CPA, nos termos do art. 2.º, alínea d), do CPPT.

O art. 175.º, n.º 1, do CPA indica expressamente o termo inicial da contagem do prazo de decisão do recurso hierárquico estabelecendo que «quando a lei não fixe prazo diferente, o recurso hierárquico deve ser decidido no prazo de 30 dias contado a partir da remessa do processo ao órgão competente para dele conhecer».

Como é óbvio, o facto de o recurso hierárquico no regime do CPPT ter de ser obrigatoriamente apresentado perante o autor do acto recorrido (art. 66.º, n.º 2), enquanto no regime do CPA pode ser apresentado, à escolha do recorrente, perante o autor do acto recorrido ou a entidade a quem é dirigido, não constitui fundamento de soluções diferentes para esta mesma questão, pois, em ambos os regimes, o processo administrativo tem de ser remetido ao superior hierárquico e, enquanto este não for recebido, não estarão reunidas as condições para ser preferida decisão. Por isso, em ambos os regimes se justifica que não seja contado como o prazo de decisão o período anterior à remessa do processo administrativo. É, pois, por via de aplicação subsidiária do art. 175.º, n.º 1, do CPA, a partir da remessa do processo administrativo que tem de contar o prazo de 60 dias previsto no n.º 5 do art. 66.º do CPPT como prazo máximo de decisão do recurso. ( [2] )

É certo que a Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo tem entendido, restringindo o alcance literal do n.º 1 do art. 175.º do CPA, que a remessa do processo apenas constitui termo inicial do prazo de decisão, quando ela ocorrer dentro do prazo de 15 dias que se prevê no n.º 1 do art. 172.º, com remissão para o art. 171.º. ( [3] )

Porém, os fundamentos em que assentou essa interpretação restritiva, para além de só valerem nos casos de recurso hierárquico necessário e na vigência da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, já revogada, nunca valeram no direito tributário, em que vigora a regra do recurso hierárquico facultativo (arts. 80.º da LGT e 67.º, n.º 1, do CPPT, na esteira do art. 92.º, n.º 1, do CPT), para além de essa interpretação não ter suporte legislativo constitucionalmente admissível, no âmbito do contencioso tributário.

A referida jurisprudência da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo concretiza uma interpretação restritiva do art. 175.º, n.º 1, do CPA, pois, enquanto nesta norma se diz expressamente que o prazo para decisão do recurso hierárquico se conta «a partir da remessa do processo ao órgão competente para dele conhecer», aquela jurisprudência limita a aplicação deste termo inicial aos casos em que ele ocorra antes do prazo de 15 dias previsto para a remessa no art. 172.º, n.º 1.

Esta interpretação está em manifesta dissonância com o teor literal do n.º 1 do art. 175.º que fixa a remessa, e não o termo do prazo para a efectuar, como termo inicial da contagem do prazo para decisão do recurso hierárquico.

Nessa jurisprudência não se indicam quais as regras interpretativas utilizadas, à face das elencadas no art. 9.º do Código Civil, para chegar à conclusão a que se chegou, e é evidente que ela está ao arrepio do princípio interpretativo de que se tem de presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art. 9.º, n.º 3, do Código Civil), pois indicar a «remessa», um acto material que tem como efeito prático disponibilizar o recurso hierárquico à entidade competente para o decidir, proporcionando-lhe a possibilidade de proferir decisão, não é o mesmo que dizer «termo do prazo previsto para a remessa», que abre a porta à eventualidade de a entidade competente poder não vir sequer a ter oportunidade de decidir do recurso hierárquico, caso a entidade que proferiu o acto de primeiro grau atrase a remessa por período superior aos 15 dias acrescido do prazo de decisão.

Uma solução deste tipo estaria ao arrepio do princípio básico da hierarquia administrativa, de que a possibilidade de revogação das decisões dos subalternos pelos órgãos superiores da Administração é uma das manifestações mais relevantes. No âmbito de uma administração hierarquizada (como é caso da generalidade da Administração estadual e, nomeadamente, da Administração Tributária), permitir-se-ia que as decisões dos subalternos se impusessem aos seus superiores, sendo aqueles a decidir quando é que estes poderiam ou não decidir os recursos hierárquicos, o que consubstanciaria uma solução legislativa tão manifestamente desacertada que tem de se presumir não ter sido adoptada na lei, como impõe o n.º 3 do art. 9.º do Código Civil.

De qualquer modo, dos dois argumentos invocados no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 25-2-2010, processo n.º 320/08 (único que se reporta a uma situação posterior à entrada em vigor do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, a que é aplicável o regime actualmente vigente), são improcedentes no âmbito do contencioso tributário.

Um dos argumentos é o de que «não é aceitável, na medida em que, com alega o recorrente, consente uma indesejável margem de incerteza, quanto à data em que o recurso deve considerar-se indeferido (art. 175/3 CPTA)». Este argumento, que poderia ter algum valor à face da redacção inicial do CPA, em que não se estabelecia qualquer forma de o recorrente saber a data em que o recurso hierárquico tinha sido remetido à entidade competente para o decidir e, consequentemente, saber a data do início do prazo de formação de indeferimento tácito, deixou de ter valor após a alteração introduzida pelo DL n.º 6/96, de 31 de Janeiro, no n.º 1 do art. 172.º, que passou a dizer: «No mesmo prazo referido no artigo anterior deve também o autor do acto recorrido pronunciar-se sobre o recurso e remetê-lo ao órgão competente para dele conhecer, notificando o recorrente da remessa do processo». Não há, naturalmente, forma mais e eficiente e segura de o recorrente saber exactamente a data da remessa do processo do que a sua comunicação através de notificação, pelo que não se vislumbra onde possa haver a invocada «indesejável margem de incerteza, quanto à data em que o recurso deve considerar-se indeferido». É de notar, à face deste novo regime, que, se esta notificação for omitida e o recorrente deixar passar o prazo de impugnação do indeferimento tácito, nunca poderá ser prejudicado no seu direito de impugnação contenciosa, pois, neste contexto, a remessa do processo assume-se que um acto que influencia negativamente a esfera jurídica do recorrente e, por isso, só pode produzir esses efeitos negativos em relação a este depois de notificado, como decorre da regra do art. 36.º, n.º 1, do CPPT, que está em consonância com a do art. 132.º, n.º 1, do CPA.

O outro argumento invocado neste acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 25-2-2010, é o de que a interpretação no sentido da contagem do prazo de decisão do recurso hierárquico apenas a partir da efectivação da remessa do processo ao órgão competente para a decisão, «permitiria, afinal, que a Administração protelasse indefinidamente a decisão do recurso hierárquico, bastando que a autoridade competente, quando lhe fosse apresentado, o não remetesse à autoridade recorrida, para pronúncia, ou que esta, quando aquele mesmo recurso, directamente, lhe fosse apresentado, o não remetesse ao órgão competente para decisão».

É claro que, conte-se o prazo como se contar, a administração pode sempre, ilegalmente, violando a norma que impõe prazo para a remessa ou a que fixa prazo para decidir, protelar a decisão ou até nunca vir a proferi-la, pelo que este inconveniente não é afastado pelo facto de o prazo se contar da remessa efectiva ou do termo do prazo para a concretizar.

Quanto ao inconveniente a que, decerto, se pretenderá aludir com este argumento, que é o de, não se iniciando o prazo de decisão por não ser efectuada a remessa, não se formar indeferimento tácito e o interessado não poder aceder aos tribunais para o impugnar, é explicitamente invocado no referido no acórdão da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo de 20-11-2002, processo n.º 46077, em que se defende que o entendimento aí adoptado é «o único entendimento racional que suporta o n.º 1 do referido artigo 175.º e que permite não frustrar o objectivo do instituto do indeferimento tácito, que é proteger os administrados contra a inacção da Administração, permitindo-lhes o recurso aos tribunais em certos casos em que esta se verifique».

Se é certo que esta argumentação podia ter valor no âmbito do contencioso administrativo, relativamente aos recursos hierárquicos necessários, no momento em que foi proferido o acórdão (na vigência da LPTA e da restrição da impugnabilidade contenciosa aos actos verticalmente definitivos que decorria do n.º 1 do seu art. 25.º), não podia ser-lhe reconhecido relevo, já então, no âmbito do contencioso tributário, em que vigorava, como hoje, a regra da facultatividade dos recursos hierárquicos (arts. 80.º da LGT e 67.º, n.º 1, do CPPT) de que decorre que o acesso à via contenciosa não depende da decisão ou não do recurso hierárquico. Na verdade, quando o recurso hierárquico é facultativo, o acesso à via contenciosa ocorre e sempre ocorreu com o acto primário, o acto que de que é interposto o recurso hierárquico, como decorre do preceituado no art. 167.º, n.º 1, do CPA.

Actualmente, a improcedência desta argumentação é mais clara, pois, como resulta do teor expresso do art. 59.º, n.º 5, do CPTA, na pendência da impugnação administrativa o interessado pode optar pela impugnação contenciosa, pelo que a referida situação de falta de remessa, à face do regime vigente, nunca impede o interessado de aceder aos tribunais, quer seja proferida decisão do recurso hierárquico quer não o seja.

Assim, o único argumento invocado por aquela jurisprudência da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo que podia justificar uma interpretação restritiva do n.º 1 do art. 175.º do CPA, para além de só poder valer quando o recurso hierárquico tem natureza de necessário, não tem qualquer validade à face do regime vigente e nunca a teve no contencioso tributário.

Por outro lado, a solução adoptada pela Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, alegadamente adoptada para acautelar os direitos do administrado contra a passividade ilegal da administração, em ambos os casos abordados naqueles acórdãos redundou em prejuízo dos recorrentes, o que é um irónico indício da fragilidade desta argumentação. A ser a garantia do direito do administrado ao acesso à via contenciosa que justifica a interpretação restritiva do n.º 1 do art. 175.º, essa restrição só será teleologicamente fundada se se limitar aos casos em que é necessária para garantir tal direito de acesso, não podendo com ela, perversa e injustificadamente, eliminar-se este direito relativamente aos administrados que, legitimamente, confiaram numa interpretação de acordo com o teor literal daquela norma. As interpretações restritivas visam fazer coincidir o alcance da lei com a sua razão de ser ( [4] ), pelo que não podem deixar elas próprias de valer, quando deixa de valer a sua própria justificação.

Na verdade, é inaceitável, num Estado de Direito (art. 2.º da CRP), que as consequências das omissões da Administração, em vez de a penalizarem a ela, que violou a lei, acabem por prejudicar o administrado, que viu violado o seu direito à remessa tempestiva do processo e à notificação da data em que ela se efectuar.

O administrado que pretende exercer o seu direito de impugnação contenciosa na sequência de um recurso hierárquico, tem direito a aguardar que lhe seja efectuada a comunicação da remessa do processo, prevista no art. 172.º, n.º 1, do CPA, para iniciar a contagem do prazo de decisão e consequente formação de indeferimento tácito e tem também direito, num Estado de Direito, a que os tribunais lhe reconheçam esse direito e não beneficiem a Administração por o ter violado.

Por outro lado, perante o teor literal do art. 175.º, n.º 1, que fixa explicitamente a remessa do processo como termo inicial do prazo de decisão do recurso hierárquico, o administrado, que não é o legislador, não pode ser penalizado no seu direito de acesso aos tribunais, garantido pelos arts, 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da CRP por uma eventual falta de correspondência entre esse teor literal e uma hipotética intenção legislativa. O princípio constitucional de acesso aos tribunais para tutela de direitos não se compagina com prazos de preclusão de direitos que não estejam explicitamente indicados e com que os seus titulares não possam, com a diligência e conhecimentos normais, seguramente contar.

Por isso, seria materialmente inconstitucional, por violadora daquelas normas constitucionais, uma interpretação do art. 175.º, n.º 1, da CRP de que resultasse a perda do direito à impugnação contenciosa em situações em que o interessado o exerceu dentro do prazo legal, contado nos termos aí indicados.

De qualquer modo, mesmo que o referido entendimento da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo se pudesse aceitar no âmbito do direito administrativo, ele é inaceitável em matéria tributária, atento o especial relevo que nele é dado às garantias dos contribuintes em que o direito ao recurso hierárquico manifestamente se inclui.

Na verdade, sendo o direito ao recurso hierárquico uma garantia dos contribuintes, a respectiva regulamentação está incluída na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, por força do disposto nos arts. 103,º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP, pelo que o Governo só pode legislar sobre tal matéria munido de autorização legislativa e em sintonia com os seus sentido e limites, nos termos dos arts. 112.º, n.º 2, 165.º, n.º 2, e 198.º, n.º 1, alínea b), da CRP.

O direito ao recurso hierárquico foi reconhecido aos contribuintes pelo art. 80.º da LGT, emitida ao abrigo da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 41/98, de Agosto, em que cuja alínea 23) do art. 2.º expressamente se impôs ao Governo a inclusão na LGT de normas sobre o recurso hierárquico.

O conteúdo essencial do recurso hierárquico é proporcionar ao contribuinte uma segunda apreciação da sua pretensão por uma entidade de nível hierárquico superior ao autor do acto impugnado.

Por isso, a regulamentação do recurso hierárquico não pode eliminar esta possibilidade de reapreciação pelo superior hierárquico, pois ela reconduz-se à própria eliminação do direito ao recurso hierárquico.

A tese que sustenta que pode formar-se indeferimento tácito do recurso hierárquico sem sequer ser apresentada ao superior hierárquico a pretensão do contribuinte, por o prazo de decisão poder decorrer integralmente antes de o processo lhe ser remetido, tem como corolário, nestes casos, a supressão do direito ao recurso hierárquico.

Por isso, esta interpretação, transformando o direito ao recurso hierárquico, que é o direito a uma segunda apreciação das pretensões em matéria tributária, numa mera possibilidade de apresentação da pretensão ao autor do acto, com transposição para este do poder, contenciosamente incontrolável, de decidir se a apreciação pelo superior hierárquico vai ter lugar ou ser eliminada, é incompatível com o art. 80.º da LGT, que atribuiu ao contribuinte um direito ao recurso hierárquico e não apenas o direito de deixar à consideração do subalterno autor do acto a eventual submissão da pretensão do contribuinte à apreciação do superior, fora dos casos em que o autor do acto recorrido o revogue ele próprio, situação em que o recurso hierárquico se tornará supervenientemente inútil.

Esta interpretação dos n.ºs 2, 3 e 5 do art. 66.º do CPPT, por ser incompaginável com o art. 80.º da LGT, é de rejeitar, desde logo, pois o art. 1.º do CPPT expressamente reconhece a supremacia da LGT, ao estabelecer que se aplica sem prejuízo do disposto na LGT.

Por outro lado, tratando-se de legislação atinente às garantias dos contribuintes, a constitucionalidade orgânica da intervenção legislativa do Governo materializada na aprovação do CPPT está dependente da sua subordinação à respectiva autorização legislativa, concedida pelo art. 51.º, n.º 1, da Lei n.º 87-B/98, de 31 de Dezembro, em cuja alínea c) se impôs a compatibilização das normas do Código de Processo Tributário com as da LGT e não a eliminação e substituição de normas desta. A autorização legislativa foi concedida apenas para alteração de normas do CPPT e não da LGT.

Nesta perspectiva, os n.ºs 2, 3 e 5, do art. 66.º do CPPT serão organicamente inconstitucionais, por restringirem uma garantia dos contribuintes sem suporte legislativo da Assembleia da República, se interpretados como permitindo a contagem e esgotamento do prazo para decisão do recurso hierárquico sem a submissão do recurso à apreciação da entidade competente para decidir.

Assim, tem de se concluir que é a data da remessa do processo ao superior hierárquico que determina o início do prazo de 60 dias para sua decisão, previsto no art. 66.º, n.º 5, do CPPT.

No caso em apreço, a remessa do processo ocorreu em 22-12-2011 [como se refere na alínea e) da matéria de facto fixada], pelo que o prazo para decisão e consequente formação de indeferimento tácito não podia terminar antes de 20-2-2012.

Por isso, o prazo de 90 dias, contado do termo do prazo para decisão do recurso hierárquico, previsto na alínea a) do n.º 1 do art. 10.º do RJAT, não podia terminar antes de 20-5-2012, que é Domingo.

Consequentemente, o pedido de pronúncia arbitral, apresentado em 21-5-2012, é tempestivo.

Improcede, assim, a questão prévia da intempestividade.

 

5. Questão da violação do princípio da plena concorrência

 

Como resulta da matéria de facto fixada, a Direcção de Serviços de Inspecção Tributária efectuou uma inspecção à Requerente, que terminou com o “Relatório de Inspecção Tributária”, de 28-12-2009, em que, além do mais, se entendeu deverem ser efectuadas correcções à matéria tributável relativas à violação do princípio da plena concorrência, no montante de € 963.927,00.

Pelo referido relatório, conclui-se que a Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu, em suma, nas suas próprias palavras, que

– «a opção de investimento tomada pela …, S.A., mediante a qual alocou meios financeiros de que dispunha, a um financiamento não remunerado à …, B.V. para que esta efectuasse um financiamento remunerado à …, SGPS, S.A., quando, na qualidade de accionista de ambas as sociedades, e agindo de um modo comercialmente racional que caracterizaria uma empresa independente, poderia ter optado por efectuar o financiamento directamente á …, B.V., alocando à sua esfera patrimonial o proveito inerente aos juros suportados pela beneficiária do financiamento» (página 9 do relatório da inspecção);

– a Administração Fiscal não pretende, nem nunca pretendeu, converter o financiamento efectuado pela …, S.A. à …, B.V. num empréstimo remunerado, mas tão-somente repercutir na esfera tributária da primeira, o efeito do custo de oportunidade da opção tomada para o destino do seus meios financeiros, custo este que uma entidade independente não estaria disposta a suportar quando tinha disponível uma opção que lhe proporcionaria um superior rendimento (página 9 do relatório da inspecção);

– «a questão controvertida circunscreve-se à avaliação do cumprimento do Principio de Plena Concorrência reportado à opção tomada pela …, S.A. de, perante a possibilidade de efectuar um  investimento  remunerado, ter decidido  efectuar um  investimento  não  remunerado materializado num financiamento a uma entidade relacionada, que possibilitou que esta efectuasse o investimento remunerado não aproveitado pela sua accionista, e à avaliação de se esta seria a opção tomada por entidades independentes, em circunstâncias comparáveis, agindo de um modo comercial racional» (página 18 do relatório da inspecção);

– «A opção da …, S.A. em realizar um financiamento sob a forma de share Premium não remunerado a uma entidade participada para que esta financiasse uma outra entidade detida maioritariamente pela …, S.A., abdicando da opção que lhe conferiria uma remuneração constitui uma violação do Princípio de Plena Concorrência (vide § 1.37 das Guidelines da OCDE)» (página 20 do relatório);

«A correcção proposta do montante de 963.927,00 Euro resulta da determinação da remuneração de plena concorrência para um financiamento efectuado à sociedade sua participada …, B.V., sem remuneração, em conformidade com o n.º 1 do art. 58.° do CIRC» (página 2 do relatório da inspecção).

 

O art. 58.º do CIRC, na redacção vigente em 2006, estabelece o seguinte, nos seus n.ºs 1 a 4, 11 e 12:

Artigo 58.º

 

Preços de transferência

 

1 – Nas operações comerciais, incluindo, designadamente, operações ou séries de operações sobre bens, direitos ou serviços, bem como nas operações financeiras, efectuadas entre um sujeito passivo e qualquer outra entidade, sujeita ou não a IRC, com a qual esteja em situação de relações especiais, devem ser contratados, aceites e praticados termos ou condições substancialmente idênticos aos que normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis.

2 – O sujeito passivo deve adoptar, para a determinação dos termos e condições que seriam normalmente acordados, aceites ou praticados entre entidades independentes, o método ou métodos susceptíveis de assegurar o mais elevado grau de comparabilidade entre as operações ou séries de operações que efectua e outras substancialmente idênticas, em situações normais de mercado ou de ausência de relações especiais, tendo em conta, designadamente, as características dos bens, direitos ou serviços, a posição de mercado, a situação económica e financeira, a estratégia de negócio, e demais características relevantes das empresas envolvidas, as funções por elas desempenhadas, os activos utilizados e a repartição do risco.

3 – Os métodos utilizados devem ser:

a) O método do preço comparável de mercado, o método do preço de revenda minorado ou o método do custo majorado;

b) O método do fraccionamento do lucro, o método da margem líquida da operação ou outro, quando os métodos referidos na alínea anterior não possam ser aplicados ou, podendo sê-lo, não permitam obter a medida mais fiável dos termos e condições que entidades independentes normalmente acordariam, aceitariam ou praticariam.

4 – Considera-se que existem relações especiais entre duas entidades nas situações em que uma tem o poder de exercer, directa ou indirectamente, uma influência significativa nas decisões de gestão da outra, o que se considera verificado, designadamente, entre:

a) Uma entidade e os titulares do respectivo capital, ou os cônjuges, ascendentes ou descendentes destes, que detenham, directa ou indirectamente, uma participação não inferior a 10% do capital ou dos direitos de voto;

b) Entidades em que os mesmos titulares do capital, respectivos cônjuges, ascendentes ou descendentes detenham, directa ou indirectamente, uma participação não inferior a 10% do capital ou dos direitos de voto;

c) Uma entidade e os membros dos seus órgãos sociais, ou de quaisquer órgãos de administração, direcção, gerência ou fiscalização, e respectivos cônjuges, ascendentes e descendentes;

d) Entidades em que a maioria dos membros dos órgãos sociais, ou dos membros de quaisquer órgãos de administração, direcção, gerência ou fiscalização, sejam as mesmas pessoas ou, sendo pessoas diferentes, estejam ligadas entre si por casamento, união de facto legalmente reconhecida ou parentesco em linha recta;

e) Entidades ligadas por contrato de subordinação, de grupo paritário ou outro de efeito equivalente;

f) Empresas que se encontrem em relação de domínio, nos temos em que esta é definida nos diplomas que estatuem a obrigação de elaborar demonstrações financeiras consolidadas;

g) Entidades entre as quais, por força das relações comerciais, financeiras, profissionais ou jurídicas entre elas, directa ou indirectamente estabelecidas ou praticadas, se verifica situação de dependência no exercício da respectiva actividade, nomeadamente quando ocorre entre si qualquer das seguintes situações:

1) O exercício da actividade de uma depende substancialmente da cedência de direitos de propriedade industrial ou intelectual ou de know-how detidos pela outra;

2) O aprovisionamento em matérias-primas ou o acesso a canais de venda dos produtos, mercadorias ou serviços por parte de uma dependem substancialmente da outra;

3) Uma parte substancial da actividade de uma só pode realizar-se com a outra ou depende de decisões desta;

4) O direito de fixação dos preços, ou condições de efeito económico equivalente, relativos a bens ou serviços transaccionados, prestados ou adquiridos por uma encontra-se, por imposição constante de acto jurídico, na titularidade da outra;

5) Pelos termos e condições do seu relacionamento comercial ou jurídico, uma pode condicionar as decisões de gestão da outra, em função de factos ou circunstâncias alheios à própria relação comercial ou profissional.

h) Uma entidade residente e uma entidade sujeita a um regime fiscal claramente mais favorável residente em país, território ou região constante da lista aprovada pelo Ministro das Finanças.

 

(...)

11 - Quando a Direcção-Geral dos Impostos proceda a correcções necessárias para a determinação do lucro tributável por virtude de relações especiais com outro sujeito passivo do IRC ou do IRS, na determinação do lucro tributável deste último devem ser efectuados os ajustamentos adequados que sejam reflexo das correcções feitas na determinação do lucro tributável do primeiro.

12 - Pode a Direcção-Geral dos Impostos proceder igualmente ao ajustamento correlativo referido no número anterior quando tal resulte de convenções internacionais celebradas por Portugal e nos termos e condições nas mesmas previstos.

 

A matéria de facto revela inequivocamente que a Requerente, ao atribuir € 42.500.000,00 à …, B.V. teve em vista, além do mais, o financiamento por esta da …, SGPS, S.A. no montante aproximado de € 41.000.000,00, o que é afirmado expressamente nas “Shareholder’s resolutions”.

Também é manifesto, em face da detenção pela Requerente da totalidade do capital da …, B.V. e de 93,68% do capital da …, SGPS, S.A., que há relações especiais entre a Requerente, a …, B.V. e a …, SGPS, S.A., à face do preceituado no n.º 4 do referido art. 58.º.

A Requerente começa por afirmar que o art. 9.º da Convenção entre a República Portuguesa e o Reino dos Países Baixos para evitar a dupla tributação e prevenir a evasão fiscal em matéria de impostos sobre o rendimento e o capital não permite que haja tributação válida sem norma interna que a imponha.

Não é questionado pela Autoridade Tributária e Aduaneira este entendimento, pois o acto impugnado baseia-se, precisamente, na aplicação de normas internas.

A Requerente defende que o art. 58.º do CIRC (a que corresponde o art. 63.º na redacção vigente) «impõe como requisito básico e essencial, que a correcção opere em relação a uma operação ou série de operações efectuadas» e que a comparação é feita com base na operação que o contribuinte «efectua e outras substancialmente idênticas». E acrescenta que, «em contrapartida, o n.º 2 do artigo 38.º da LGT determina a ineficácia fiscal das operações efectuadas, ou seja, permite que seja desrespeitada, para efeitos fiscais, a operação efectuada entre as partes, aplicando um princípio de substância sobre a forma» (artigos 79.º a 82 do pedido de pronúncia arbitral).

O art. 38.º, n.º 2, da LGT estabelece o seguinte:

 

2. São ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas.

 

No entendimento da Requerente, na situação em apreço, o tratamento fiscal da operação financeira praticada como uma operação remunerada implica uma requalificação da mesma para efeitos fiscais, pelo que só seria legalmente admissível através do uso do procedimento previsto no art. 63.º do CPPT que, na redacção vigente em 2006, estabelece o seguinte:

 

Aplicação das normas antiabuso

 

1 - A liquidação dos tributos com base em quaisquer disposições antiabuso nos termos dos códigos e outras leis tributárias depende da abertura para o efeito de procedimento próprio.

2 - Consideram-se disposições antiabuso, para os efeitos do presente Código, quaisquer normas legais que consagrem a ineficácia perante a administração tributária de negócios ou actos jurídicos celebrados ou praticados com manifesto abuso das formas jurídicas de que resulte a eliminação ou redução dos tributos que de outro modo seriam devidos.

3 - O procedimento referido no número anterior pode ser aberto no prazo de três anos após a realização do acto ou da celebração do negócio jurídico objecto da aplicação das disposições antiabuso.

4 - A aplicação das disposições antiabuso depende da audição do contribuinte, nos termos da lei.

5 - O direito de audição será exercido no prazo de 30 dias após a notificação, por carta registada, do contribuinte, para esse efeito.

6 - No prazo referido no número anterior, poderá o contribuinte apresentar as provas que entender pertinentes.

7 - A aplicação das disposições antiabuso será prévia e obrigatoriamente autorizada, após a observância do disposto nos números anteriores, pelo dirigente máximo do serviço ou pelo funcionário em quem ele tiver delegado essa competência.

8 - As disposições não serão aplicáveis se o contribuinte tiver solicitado à administração tributária informação vinculativa sobre os factos que a tiverem fundamentado e a administração tributária não responder no prazo de seis meses.

9 - Salvo quando de outro modo resulte da lei, a fundamentação da decisão referida no n.º 7 conterá:

 

a) A descrição do negócio jurídico celebrado ou do acto jurídico realizado e da sua verdadeira substância económica;

b) A indicação dos elementos que demonstrem que a celebração do negócio ou prática do acto tiveram como fim único ou determinante evitar a tributação que seria devida em caso de negócio ou acto de substância económica equivalente;

c) A descrição dos negócios ou actos de substância económica equivalente aos efectivamente celebrados ou praticados e das normas de incidência que se lhes aplicam.

 

10 - A autorização referida no n.º 7 do presente artigo é passível de recurso contencioso autónomo.

.

 

Antes de mais, tem de se reconhecer que, não tendo sido utilizado o procedimento previsto neste art. 63.º, está afastada a possibilidade de a legalidade do acto impugnado ser assegurada ao abrigo do art. 38.º, n.º 2, da LGT.

Por isso, não tem utilidade para a decisão da questão em apreço apurar se estavam ou não preenchidos os requisitos legais de que depende a aplicação da referida norma geral anti-abuso.

Assim, importa apenas apreciar se a actuação da Administração Tributária tem cobertura legal no art. 58.º do CIRC, na redacção vigente em 2006, que foi o regime efectivamente aplicado no acto impugnado.

O art. 58.º, n.º 1, do CIRC contém uma norma dirigida aos contribuintes, impondo-lhes a obrigação de, nas operações comerciais ou financeiras que efectuem com entidades com as quais tenham relações especiais, contratem, aceitem ou pratiquem termos ou condições substancialmente idênticos aos que normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis.

Não se impõe nesta norma ao contribuinte qualquer limitação às suas opções em matéria de operações comerciais ou financeiras a realizar com entidades cm quem mantenha relações especiais.

 Apenas se impõe ao contribuinte que, relativamente às operações comerciais ou financeiras que entenda realizar com entidades com quem mantenha relações especiais, adopte termos e condições idênticos aos que seriam adoptadas entre pessoas independentes.

Não há suporte legal neste art. 58.º para restringir a liberdade do contribuinte quanto aos tipos de operações comerciais ou financeiras que entenda realizar com entidades com quem mantenha relações especiais.

No âmbito do regime de preços de transferência não se impõe ao contribuinte a opção pelas operações comerciais ou financeiras mais rentáveis, mas apenas que, relativamente àquelas por que optar, estabeleça termos e condições idênticos aos que seriam estabelecidos por pessoas independentes em operações comparáveis.

Não se está, no âmbito do regime de preços de transferência, perante abuso no tipo de operações realizadas, mas sim perante «abuso da liberdade de decisão em matéria de quantificação de preços que cabe ao sujeito passivo e que se encontra limitada nesta situação especial». ( [5] )

No caso em apreço, à face da prova produzida, não há qualquer elemento que permita concluir que a operação financeira efectuada pela Requerente, independentemente de a sua denominação adequada ser ou não Share Premium, tenha sido realizada com assunção pela … do dever de restituição da quantia recebida ou do dever de remunerar a Requerente por qualquer forma que não seja a forma geral de as sociedades proporcionarem aos sócios retorno pelos seus investimentos.

            Uma opção deste tipo, consubstanciada por uma dotação patrimonial efectuada aparentemente a título gratuito por uma sociedade comercial a favor de outra, é perfeitamente compreensível numa situação como a que se mostra nos autos, em que a sociedade que a faz é detentora da totalidade do capital da sociedade beneficiária e, por isso, tem a expectativa de obter retorno, a nível de dividendos e, eventualmente, de mais valias.

Mesmo que se entenda que à operação realizada pela Requerente seja aplicável, eventualmente por analogia, o regime das prestações suplementares, previsto nos arts. 210.º a 213.º do Código das Sociedades Comerciais, está-se perante o uso de uma forma jurídica distinta dos contratos de mútuo e de suprimento, designadamente quanto ao elemento essencial característico destes contratos típicos que é a obrigação de quem recebe restituir o que foi recebido, em género e qualidade (arts. 1142.º do Código Civil e 243.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais), que, no caso das prestações suplementares apenas existirá eventualmente, dentro do circunstancialismo previsto no art. 213.º do Código das Sociedades Comerciais.

            Assim, é de concluir que o regime jurídico desta operação realizada pela Requerente, traduzido na inexistência de obrigação de restituição da quantia recebida pela … e na eventual obtenção de contrapartida por aquela a nível de dividendos e mais valias, é substancialmente diferente do regime do contrato de mútuo e do contrato de suprimento.

Não pode, ao abrigo do art. 58.º, n.º 1, do CIRC, impor-se ao contribuinte que pretende investir numa sociedade de que é detentor da totalidade de capital, que, em vez de utilizar um meio jurídico que lhe permite a prazo obter dividendos e mais valias, opte por um meio jurídico que lhe assegure directamente a restituição do capital investido e remuneração a título de juros.

Não pode também, ao abrigo daquele art. 58.º, n.º 1, impor-se que à Requerente que, em vez da opção de investimento materializada numa dotação de capital sob a forma de share premium, não remunerada a título de juros e sem obrigação de restituição do capital, a uma sociedade cujo capital detinha em 100%, optasse por um tipo de negócio jurídico completamente diferente, que seria a concessão de um financiamento remunerado a outra empresa do grupo, cujo capital detinha em 93,68%.

            Por isso, não pode também a Administração Tributária corrigir o lucro tributável da Requerente com fundamento em hipotética violação do dever imposto naquele n.º 1 do art. 58.º do CIRC.

Na aplicação da norma sobre preços de transferência, a Administração Tributária tem de atender à operação realmente praticada, à «forma jurídica» utilizada pelo contribuinte na sua operação comercial ou financeira, podendo alterar, para efeitos fiscais, os seus termos ou condições quando os considere diferentes dos que seriam contratados aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis.

São essas operações efectivamente realizadas que se ficciona, para efeitos fiscais, terem-no sido noutros termos ou condições.

Diferentes destas situações e fora do regime dos preços de transferência ficam as situações em que a Administração Tributária conclui que, em vez das operações comerciais ou financeiras realmente efectuadas, pessoas independentes realizariam outras operações, de tipos diferentes, com outras «formas jurídicas». Nestes casos, os requisitos para deixar de considerar eficazes, para efeitos fiscais, as operações efectivamente realizadas não são os previstos no art. 58.º do CIRC, mas sim os previstos no art. 38.º, n. 2, da LGT e no art. 63.º do CPPT.

No caso em apreço, a operação financeira realizada entre a Requerente e a … consistiu numa dotação patrimonial a título gratuito e não num empréstimo remunerado à …, só podendo considerar-se irrelevante fiscalmente aquela dotação e efectuada tributação como se ela não existisse se, eventualmente, se verificassem todos os requisitos exigidos pelo art. 38.º, n.º 2, da LGT e fosse utilizado o procedimento previsto no art. 63.º do CPPT.

            Assim, conclui-se que tem razão a Requerente quanto a questão da correcção efectuada com invocação de violação do art. 58.º, n.º 1, do CIRC, pelo que tem de ser declarada a ilegalidade da liquidação impugnada, na parte em que assentou naquela correcção.

Com o reconhecimento desta ilegalidade fica prejudicado o conhecimento das outras questões suscitadas pela Requerente relativamente à legalidade da mesma correcção.

 

            6. Questão da variação patrimonial negativa

             

            A Requerente contabilizou como perda do ano de 2006 a quantia de € 577.792,19 relativa a diferenças cambiais respeitantes a empréstimos que efectuou a uma sua filial, de que foi amortizada apenas uma parte naquele ano.

            A administração tributária entendeu que tais diferenças cambiais podiam ser consideradas como perda daquele ano de 2006 no valor de € 7.858,46, que é a parte correspondente à amortização dos empréstimos que foi efectuada nesse ano, mas não na parte correspondente ao montante dos empréstimos que continuou por amortizar, parte esta no valor de € 569.933,73, efectuando uma correcção ao lucro tributável da Requerente deste montante.

            A questão que é controvertida consiste em saber se as diferenças cambiais respeitantes a empréstimos não amortizados podem ou não ser considerados custos fiscais.

            O art. 17.º do CIRC, na redacção vigente em 2006, estabelece que «o lucro tributável das pessoas colectivas e outras entidades mencionadas na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do exercício e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste Código».

            O art. 18.º do CIRC, na mesma redacção, estabelece, nos seus n.ºs 1 e 2, que «os proveitos e os custos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao exercício a que digam respeito, de acordo com o princípio da especialização dos exercícios» e que «as componentes positivas ou negativas consideradas como respeitando a exercícios anteriores só são imputáveis ao exercício quando na data de encerramento das contas daquele a que deveriam ser imputadas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas».  

            O art. 20.º do CIRC estabelece que «consideram-se proveitos ou ganhos os derivados de operações de qualquer natureza, em consequência de uma acção normal ou ocasional, básica ou meramente acessória, designadamente os resultantes de» «rendimentos de carácter financeiro, tais como juros, dividendos, descontos, ágios, transferências, diferenças de câmbio e prémios de emissão de obrigações»,

O art. 23.º do CIRC, na redacção vigente em 2006, estabelece, no que aqui interessa, o seguinte:

1 – Consideram-se custos ou perdas os que comprovadamente forem indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nomeadamente os seguintes

(...)

c) Encargos de natureza financeira, como juros de capitais alheios aplicados na exploração, descontos, ágios, transferências, diferenças de câmbio, gastos com operações de crédito, cobrança de dívidas e emissão de acções, obrigações e outros títulos e prémios de reembolso;

 

            Como resulta do teor expresso dos transcritos arts. 20.º e 23.º, as diferenças de câmbio, positivas ou negativas, são se considerar na determinação do lucro tributável, como ganhos ou perdas.

            O princípio da especialização económica dos exercícios, a que se refere o n.º 1 do art. 18.º do CIRC, traduz-se na regra de que devem ser considerados como ganhos ou perdas de determinado exercício os proveitos e os custos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, que a esse exercício digam respeito, sendo irrelevante o exercício em que eles se materializam.

No n.º 2 do mesmo art. 18.º prevê-se uma excepção apenas para as componentes positivas ou negativas do lucro tributável que, na data de encerramento das contas de determinado exercício, eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas, o que revela bem que, nos outros casos, essas componentes positivas ou negativas apuradas à data do encerramento das contas relevam para apuramento da liquidação desse exercício.

No caso em apreço, é manifesto que não se está perante uma situação enquadrável nesta excepção, pois as variações cambiais no final de cada exercício são perfeitamente apuráveis.

Por outro lado, o apuramento do lucro tributável faz-se com base na contabilidade e as regras contabilísticas aplicáveis em 2006 impunham a contabilização das diferenças cambiais para efeitos da determinação do balanço.

Na verdade, desde as alterações introduzidas pelo DL n.º 228/86, de 13 de Agosto, no Plano Oficial de Contabilidade aprovado pelo DL n.º 47/77, de 7 de Fevereiro, os resultados das diferenças de câmbio passaram a ser considerados, em regra, como correntes e a relevar para o balanço. Designadamente no que concerne a créditos ou débitos vencíveis a médio e longo prazo, como é o caso dos que estão em causa no presente processo, as diferenças de câmbios passaram a poder ser diferidas apenas «quando existam motivos objectivos para considerar reversível evolução sofrida pelo câmbio» (como se esclarece no Preâmbulo daquele diploma). Esta intenção legislativa veio a ser concretizada no texto do diploma nos seguintes termos:

2.2.1 - As operações em moeda estrangeira são registadas no câmbio da data considerada para a operação, salvo se o câmbio estiver fixado pelas partes ou garantido por uma terceira entidade. À data do balanço, os créditos ou débitos resultantes dessas operações, em relação às quais não exista fixação ou garantia de câmbio, são actualizados com base no câmbio dessa data;

2.2.2 - No caso dos créditos ou débitos a curto prazo, as diferenças de câmbio resultantes da actualização referida em 2.2.1 são registadas nas subcontas 667 ou 767.

 

Tratando-se de créditos e débitos vencíveis a médio e longo prazo, as diferenças de câmbio apuradas à data do balanço são registadas nas subcontas 667 ou 767, se existirem indicadores razoáveis de que a evolução sofrida pela taxa de câmbio é irreversível no futuro imediato; caso contrário, são registadas nas subcontas 2712 ou 2752 e transferidas, respectivamente, para as subcontas 667 ou 767 nos exercícios em que se realizarem os pagamentos ou recebimentos, totais ou parciais, dos débitos ou dos créditos com que estão relacionadas e pela parte correspondente a cada pagamento ou recebimento;

 

            No Plano Oficial de Contabilidade aprovado pelo DL n.º 410/89, de 21 de Novembro, vigente em 2006, veio reforçar a obrigação de contabilização das diferenças de câmbios no balanço, quanto às perdas, esclarecendo expressamente que as diferenças de câmbio são, em regra, «reconhecidas como resultados do exercício» e restringindo a possibilidade de diferimento aos casos de diferenças de câmbio favoráveis (ganhos) e não também de perdas, ao estabelecer o seguinte:

 

5.2 - Dívidas de e a terceiros

5.2.1 - As operações em moeda estrangeira são registadas ao câmbio da data considerada para a operação, salvo se o câmbio estiver fixado pelas partes ou garantido por uma terceira entidade.

À data do balanço, as dívidas de ou a terceiros resultantes dessas operações, em relação às quais não exista fixação ou garantia de câmbio, são actualizadas com base no câmbio dessa data.

5.2.2 - Como princípio geral, as diferenças de câmbio resultantes da actualização referida em 5.2.1 são reconhecidas como resultados do exercício e registada nas contas 685 «Custos e perdas financeiros - Diferenças de câmbio desfavoráveis» ou 785 «Proveitos e ganhos financeiros - Diferenças de câmbio favoráveis».

Tratando-se de diferenças de câmbio favoráveis resultantes de dívidas a médio e longo prazo, deverão ser diferidas, caso existam expectativas razoáveis de que o ganho é reversível. Estas serão transferidas para a conta 785 no exercício em que se realizaram os pagamentos ou recebimentos, totais ou parciais, das dívidas com que estão relacionadas e pela parte correspondente a cada pagamento ou recebimento.

 

            Assim, é de conclui que a contabilização das diferenças de câmbio desfavoráveis como resultados do exercício era imposta pelas normas contabilísticas vigentes à data em que ocorreram os factos em apreço.

            Sendo o lucro tributável, quando não houver disposição em contrário, determinado com base na contabilidade (como decorre do n.º 1 do art. 17.º do CIRC), é de concluir que foi correcta a actuação da Requerente ao dar relevância às variações cambiais negativas para determinar o lucro tributável do ano de 2006.

            Consequentemente, tem de se declarar a ilegalidade da referida correcção efectuada pela administração tributária no montante de € 569.933,73.

            Diga-se, finalmente, que, apesar de existir em sentido contrário a este entendimento jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo citada no relatório da inspecção ( [6] ), nela não se aprecia a questão sob o ponto de vista contabilístico, que é o adequado, à face do preceituado no n.º 1 do art. 17.º do CIRC, e, por outro lado, há também jurisprudência do mesmo Supremo Tribunal Administrativo, e mesmo mais numerosa, no sentido que aqui se adopta. ( [7] )  

           

          7. Indemnização por garantia indevida

 

           

A Requerente formula ainda um pedido de indemnização por garantia indevida.

De harmonia com o disposto na alínea b) do art. 24.º do RJAT a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito».

Na autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, concedida pelo art. 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, proclama-se, como directriz primacial da instituição da arbitragem como forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária, que «o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária».

Embora o art. 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão «declaração de ilegalidade» para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD e não faça referência a decisões constitutivas (anulatórias) e condenatórias, deverá entender-se, em sintonia com a referida autorização legislativa, que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários em relação aos actos cuja apreciação de legalidade se insere nas suas competências.

Apesar de o processo de impugnação judicial ser essencialmente um processo de mera anulação (arts. 99.º e 124.º do CPPT), pode nele ser proferida condenação da administração tributária no pagamento de juros indemnizatórios e de indemnização por garantia indevida.

Na verdade, apesar de não existir qualquer norma expressa nesse sentido, tem-se vindo pacificamente a entender nos tribunais tributários, desde a entrada em vigor dos códigos da reforma fiscal de 1958-1965, que pode ser cumulado em processo de impugnação judicial pedido de condenação no pagamento de juros indemnizatórios com o pedido de anulação ou de declaração de nulidade ou inexistência do acto, por nesses códigos se referir que o direito a juros indemnizatórios surge quando, em reclamação graciosa ou processo judicial, a administração seja convencida de que houve erro de facto imputável aos serviços. Este regime foi, posteriormente, generalizado no Código de Processo Tributário, que estabeleceu no n.º 1 do seu art. 24.º que «haverá direito a juros indemnizatórios a favor do contribuinte quando, em reclamação graciosa ou processo judicial, se determine que houve erro imputável aos serviços», a seguir, na LGT, em cujo art. 43.º, n.º 1, se estabelece que «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e, finalmente, no CPPT em que se estabeleceu, no n.º 2 do art. 61.º (a que corresponde o n.º 4 na redacção dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro), que «se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea».

Relativamente ao pedido de condenação no pagamento de indemnização por prestação de garantia indevida, o art. 171.º do CPPT, estabelece que «a indemnização em caso de garantia bancária ou equivalente indevidamente prestada será requerida no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda» e que «a indemnização deve ser solicitada na reclamação, impugnação ou recurso ou em caso de o seu fundamento ser superveniente no prazo de 30 dias após a sua ocorrência».

Assim, é inequívoco que o processo de impugnação judicial abrange a possibilidade de condenação no pagamento de garantia indevida e até é, em princípio, o meio processual adequado para formular tal pedido, o que se justifica por evidentes razões de economia processual, pois o direito a indemnização por garantia indevida depende do que se decidir sobre a legalidade ou ilegalidade do acto de liquidação.

O pedido de constituição do tribunal arbitral tem como corolário passar a ser no processo arbitral que vai ser discutida a «legalidade da dívida exequenda», pelo que, como resulta do teor expresso daquele n.º 1 do referido art. 171.º do CPPT, é também o processo arbitral o adequado para apreciar o pedido de indemnização por garantia indevida.

Aliás, a cumulação de pedidos relativos ao mesmo acto tributário está implicitamente pressuposta no art. 3.º do RJAT, ao falar em «cumulação de pedidos ainda que relativos a diferentes actos», o que deixa perceber que a cumulação de pedidos também é possível relativamente ao mesmo acto tributário e os pedidos de indemnização por juros indemnizatórios e de condenação por garantia indevida são susceptíveis de ser abrangidos por aquela fórmula, pelo que uma interpretação neste sentido tem, pelo menos, o mínimo de correspondência verbal exigido pelo n.º 2 do art. 9.º do Código Civil.

O regime do direito a indemnização por garantia indevida consta do art. 52.º da LGT, que estabelece o seguinte:

Artigo 53.º

 

Garantia em caso de prestação indevida

 

            1. O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objecto a dívida garantida.

            2. O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.

            3. A indemnização referida no número 1 tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente lei e pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente.

            4. A indemnização por prestação de garantia indevida será paga por abate à receita do tributo do ano em que o pagamento se efectuou.

 

No caso em apreço, é manifesto que os erros do acto de liquidação, na parte correspondente às correcções ao lucro tributável da Requerente efectuadas com invocação de violação do princípio da plena concorrência e das regras sobre variações cambiais são imputáveis à administração tributária, pois as correcções foram da sua iniciativa e a Requerente em nada contribuiu para que esses erros fossem praticados.

Por isso, a Requerente tem direito a indemnização pela garantia prestada, na parte proporcional à parte da liquidação cuja declaração de ilegalidade foi pedida no presente processo (outra parte é objecto de processo de impugnação judicial, pendente nos tribunais tributários).

Como resulta da matéria de facto, a Requerente a prestação da garantia bancária implicou para a Requerente despesas no montante global de € 69.013,50.

            As correcções efectuadas pela administração tributária ao lucro tributável da Requerente (subjacentes à liquidação n.º …) importam, na totalidade, em € 11.485.281,51.

No presente processo arbitral é pedida a declaração de ilegalidade de correcções no valor global de € 1.533.860,73 (€ 963.927 com base na violação do princípio da plena concorrência e € 563.933.73 com base na variação cambial), o que corresponde a 13,355% das correcções globais subjacentes àquela liquidação.

            Por isso, a parte proporcional dos custos derivados da prestação de garantia que podem ser imputados às correcções cuja declaração de ilegalidade é objecto do presente processo é de € 9.216.75.

            É necessário, porém, apurar se esta quantia não excede o limite previsto no n.º 3 do transcrito art. 53.º da LGT, resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios.

            O valor total garantido foi de € 4.408.048,03 [alínea v) da matéria de facto fixada] pela que é de € 588.694,91 a parte da garantia que corresponde à parte da liquidação baseada nas correcções que são objecto do presente processo, de 13,355%.

            A garantia foi mantida durante 456 dias, entre 23-6-2010 e 22-9-2011 [alíneas v) e x) da matéria de facto fixada].

            A taxa anual de juros indemnizatórios no período referido é de 4%, nos termos dos arts. 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, com remissão para o art. 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.

            Aplicando esta taxa ao período de 456 dias conclui-se que o valor dos juros indemnizatórios correspondentes é de € 29.418.61 (€ 588.694,91 x 0,04 /365 dias x 456 dias).

            Por isso, a parte dos custos da garantia correspondentes à liquidação impugnada no presente processo, que é de € 9.216.75, é manifestamente inferior ao limite máximo previsto naquele art. 53.º, n.º 3, da LGT.

            Consequentemente, nada obsta a que seja reconhecido à Requerente o direito à indemnização que pretende.

 

            Termos em que acordam neste Tribunal Arbitral em:

– julgar procedente o pedido de anulação da liquidação adicional de IRC,  derrama e juros compensatórios com o n.º …, datada de 31-3-2010, relativa ao exercício de 2006, na parte correspondente às correcções ao lucro tributável nos valores de € 963.927,00 e € 569.933,73 efectuadas com fundamento em violação do princípio da plena concorrência e em indevida contabilização de variação patrimonial negativa relativa a variação cambial;

– julgar procedente o pedido de indemnização por garantia indevida e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagar à Requerente a quantia de € 9.216.75, a título de indemnização por garantia indevida.

 

 

Valor do processo: De harmonia com o disposto no art. 315.º n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 473.151,76 (€ 463.935,01 de IRC, derrama e juros compensatórios correspondentes às correcções efectuadas + € 9.216.75 de indemnização por garantia indevida).

 

            Custas: Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em €  7.344,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

  

Lisboa, 29-10-2012

 

Os Árbitros

 

 

 

 

Jorge Lopes de Sousa (árbitro presidente)

 

 

 

 

Fernando Borges de Araújo (árbitro)

 

 

 

 

 

António Alberto Franco (árbitro)

 



( [1] )           Neste sentido, pode ver-se, além do citado acórdão de 20-6-2007, processo n.º 1015/06, o acórdão do STA de 18-9-2008, processo n.º 338/08.

( [2] )         Não se pode justificar uma diferença de regimes entre o recurso hierárquico em matéria administrativo e em matéria tributária, pela eventualidade de no âmbito do direito administrativo poderem suscitar-se dúvidas sobre a entidade hierarquicamente competente para a apreciação da matéria, dúvidas que não existiriam no âmbito do direito tributário na medida em que a competência para tal matéria residirá quase exclusivamente no seio da Autoridade Tributária e Aduaneira, donde o superior hierárquico do autor do acto residirá sempre em última instância no seu Director-geral.

                No entanto, para além de ser óbvio que o regime do CPPT não teve em vista a organização administrativa da Autoridade Tributária e Aduaneira, que apenas foi criada pelo DL n.º 118/2011, de 15 de Dezembro, e que basta existir uma situação em que a competência não seja atribuída à Autoridade Tributária e Aduaneira para se poderem suscitar dúvidas sobre quem tem tal competência, não se vê como a hipotética existência de dúvidas no âmbito do procedimento administrativo sobre a entidade competente para decidir o recurso hierárquico possa justificar diferentes termos iniciais de contagem do prazo de decisão, uma vez que, no regime do CPA, o recurso hierárquico ser apresentado ao autor do acto recorrido, nos termos do seu art. 169.º, n.º 3, que tem a obrigação legal de o remeter «ao órgão competente para dele conhecer» (art. 172.º, n.º 1, do mesmo Código), independentemente de este órgão ser ou não o que o interessado indicou. Neste contexto, não se vislumbra como as dúvidas maiores ou menores que o interessado possa ter no domínio do procedimento administrativo, sobre quem é a entidade competente para decidir o recurso possam justificar regimes diferentes, a nível do termo inicial de contagem do prazo de decisão do recurso hierárquico.

( [3] )         Neste sentido, podem ver-se os seguintes acórdãos da SCA do STA: de 1-7-1997, processo n.º 41245; de 17-12-1998, processo n.º 43277; de 20-11-2002, processo n.º 46077,de 25-2-2010, processo n.º 320/08.

( [4] )         «Cessante ratione legis cessat eius dispositio (lá onde termina a razão de ser da lei termina o seu alcance)» (BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, página 186).

( [5] )         SALDANHA SANCHES, Os limites do planeamento fiscal, página 194.

( [6] )         Acórdãos de 4-5-2005, processo n.º 057/05, e de 6-7-2005, processo n.º 472/05.

( [7] )         Acórdãos de 12-6-1990, processo n.º 12036, publicado em Apêndice ao Diário da República de 15-4-93, página 658; de 8-7-1992, processo n.º 14364, publicado em Apêndice ao Diário da República de 30-6-95, página 2208; e de 9-12-1993, processo n.º 15778, publicado em Ciência e Técnica Fiscal, n.º 375, página 210, e em Apêndice ao Diário da República de 20-5-96, página 4316.