Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 294/2013-T
Data da decisão: 2014-06-06  IUC  
Valor do pedido: € 26.175,14
Tema: Incidência subjetiva, leasing
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SENTENÇA

 

I RELATÓRIO

 

A… – Instituição Financeira de Crédito, SA (abreviadamente também designada por “autora” ou “A…”), com sede na Rua …, vem, ao abrigo do artigo 2.º, n.º 1, alínea a) e artigo 10º n.º 1, alínea a) e n.º 2 da alínea do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante referido por “RJAT”)[1], requerer a constituição de Tribunal Arbitral Singular para pronúncia sobre a ilegalidade de 410 atos tributários de liquidação de IUC (Imposto único de Circulação) referentes ao ano de 2010, no valor total de €26.142,46, pedindo a respetiva anulação desses atos com fundamento em errónea qualificação dos factos tributários nos termos do artigo 99º-a), do CPPT.

 

Na procedência do pedido, deverão ser ainda efetuados “(…)os procedimentos necessários para extinguir os processos executivos e contra-ordenacionais subjacentes aos atos de liquidação anulados (…)”.

 

A autora não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT, o signatário foi designado pelo presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente Tribunal Arbitral singular, tendo aceitado nos termos legalmente previstos.

 

Em 14-01-2014 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

O Tribunal ficou constituído em 19-2-2014 [artigo 11º-1/c), do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228º, da Lei nº 66-B/2012, de 31-12]

 

Em 24-03-2014, a Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta defendendo que o pedido de pronúncia arbitral deve ser julgado improcedente e que os atos tributários impugnados se devem manter na ordem jurídica.

 

Em 7-4-2014 realizou-se a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, em que se decidiu, com o consenso das partes, que as alegações finais, orais ou escritas, eram desnecessárias.

 

Saneador/Pressupostos processuais

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do RJAT.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades e não foram suscitadas questões que possam obstar à apreciação do mérito da causa.

 

II FUNDAMENTAÇÃO

Os factos provados

Não há controvérsia quanto ao quadro factual essencial para enquadrar jurídica e legalmente as questões suscitadas.

 

Assim é que, estão essencialmente demonstrados os seguintes factos:

a) A Requerente incorporou por fusão em 30/11/2004, os activos e passivos, direitos e responsabilidades da A… ALD – Comércio e Viaturas de Aluguer, Lda. pessoa colectiva n.° …, adiante designada abreviadamente por A… ALD, (Doc. 2).

b) A Requerente incorporou por fusão em 30/11/2004, os activos e passivos, direitos e responsabilidades da A… RENT – Comércio e Viaturas de Aluguer, Lda. pessoa colectiva n.° …, adiante designada abreviadamente por A… RENT, (Doc. 3).

c) A Requerente incorporou por fusão em 01/10/2003, os activos e passivos, direitos e responsabilidades da B…, S.A. pessoa colectiva n.° …, adiante designada abreviadamente por B…, (Doc. 4).

d) A A… ALD, a A… RENT e a B… foram notificadas pela Autoridade Tributária na qualidade de sujeitos passivos, em algumas das liquidações de IUC objeto do presente pedido de pronúncia arbitral, (conforme se evidencia na listagem em anexo – Doc 5 - , a qual consiste num mapa resumo do teor de todas as liquidações ora impugnadas), e onde se identifica o número de cada liquidação, o respetivo montante de imposto e dos juros, a matrícula de cada viatura e a entidade notificada para efetuar o pagamento do imposto único de circulação (Doc. 5).

e) As sociedades incorporadas extinguiram-se aquando das fusões, ocorridas nos exercícios de 2003 e de 2004, sendo que a ora Requerente incorporou na sua esfera patrimonial (a partir das datas de ocorrência das referidas fusões) todos os activos, passivos, direitos e responsabilidades que integravam o património das sociedades incorporadas (fundidas) até à data da fusão, [conforme previsto no artigo 97º nº4 alínea a) do Código das Sociedades Comerciais (CSC).

f) A Requerente é uma instituição financeira de crédito, que tem por objecto social a prática das operações permitidas aos bancos, com excepção da recepção de depósitos (Doc. 4).

g) No âmbito da sua actividade a ora Requerente concede aos seus clientes financiamentos destinados à compra de viaturas automóveis.

h) O financiamento de veículos automóveis é formalizado através da outorga de contratos de mútuo, em que o mutuário concede a favor do mutuante, como garantia do integral pagamento da quantia mutuada, uma reserva de propriedade do veículo automóvel, até ao integral pagamento da quantia mutuada. Em alternativa à outorga de contratos de mútuo, o financiamento é efetuado através da outorga de contratos de locação financeira.

i) A Requerente foi notificada para exercer o direito de Audição Prévia por alegadamente, no entender da Autoridade Tributária (AT), ser o sujeito passivo de Imposto Único de Circulação, devido no exercício de 2010 e ainda não liquidado, referente a 410 (quatrocentos e dez) veículos melhor identificados na listagem em anexo (Doc. 5).

j) À semelhança do já ocorrido nas notificações de liquidação de IUC efetuadas à ora Requerente, no que respeita aos anos de 2008, 2009, 2011 e 2012, também no teor de todas as notificações relativas ao ano de 2010 (para o exercício do direito de Audição Prévia (Doc. 6), consta que: «com base nos elementos de que a Autoridade Tributária e Aduaneira dispõe, V. Exa. era o proprietário/locatário do veículo com a matrícula…, da categoria…, em…».

k) E também do mesmo modo que as liquidações efetuadas em anos anteriores, no que concerne à fundamentação jurídica, no teor de todas as notificações acima mencionadas, para o exercício do direito de Audição Prévia, refere-se que: «nos termos do artigo 2º nº1 alínea c), conjugado com os artigos 3º, 4º e 6º, todos do Código de Imposto Único de Circulação, e por aplicação da taxa prevista no artigo 11º do CIUC, é devido o imposto respeitante ao(s) ano(s) de… ».

l) A A… efectuou o pagamento de IUC em todas as situações em que, na data da génese do facto tributário sujeito a imposto (indicada na notificação para o exercício do direito de audição prévia), era a proprietária do veículo e o mesmo não se encontrava locado.

m) Nas outras situações nas quais, à data da génese do facto tributário, a ora Requerente não era proprietária do veículo ou que o mesmo se encontrava locado, naquela data, em virtude da vigência de contrato de locação financeira, a A… entende que não é o sujeito passivo do IUC.

n) As situações de facto (subjacentes às liquidações de IUC relativamente às quais a ora Requerente entende que não é o sujeito passivo do imposto) subsumem-se sempre a uma das duas situações a seguir descritas:

  • O veículo não é propriedade da ora requerente à data identificada pela AT como data da ocorrência do facto gerador de imposto;

ou

  • O veículo foi locado através de contrato de locação financeira vigente à data identificada pela AT como data da ocorrência do facto gerador de imposto.

o) A Autoridade Tributária notificou a requerente dos actos tributários de liquidação de IUC e dos respectivos juros compensatórios [Doc. 1 (com 8 folhas) junto com a PI e que aqui se dão como reproduzidos];

q) - 342 veículos a que aludem os atos de liquidação mencionados,  foram alienados pela … em data anterior a 2010 e…

r) - …os restantes 68 veículos estavam locados (em regime de locação financeira) durante o exercício de 2010 [cfr citado documento 5 e ainda os documentos 7 e 8, igualmente juntos pela autora]

r) Todos os sobreditos veículos estavam matriculados ou registados em Portugal no ano de 2010

 

II FUNDAMENTAÇÃO (continuação)

 

O Direito

Atenta as posições das Partes assumidas nos argumentos apresentados, constituem questões centrais dirimentes saber:

  1. Se, na data da ocorrência do facto gerador do imposto, vigorar um contrato de locação financeira que tem por objecto um automóvel, para efeitos do disposto no artigo 3º, nºs. 1 e 2 do CIUC, o sujeito passivo do IUC é o locatário ou a entidade locadora, proprietária do veículo, em nome da qual o registo do direito de propriedade se encontra feito?
  1. Se, nos termos de um contrato de locação financeira que tem por objecto um automóvel, na data da ocorrência do facto gerador do imposto, o veículo já tiver sido anteriormente alienado embora o direito de propriedade deste continue registado em nome do seu anterior proprietário, para efeitos do disposto no artigo 3º, nº1, do CIUC, sujeito passivo do IUC é o anterior proprietário ou o novo proprietário?
  2. Se, nas situações anteriormente referidas, a AT pode prevalecer-se da ausência de atualização do registo do direito de propriedade para considerar como sujeito passivo do IUC as pessoas em nome das quais os veículos se encontram registados junto da Conservatória do Registo Automóvel?
  3. Qual o valor jurídico do registo automóvel na economia do CIUC, nomeadamente para efeitos da incidência subjetiva deste imposto?
  4. Se, subjacente a todas as questões atrás enunciadas, a norma de incidência subjetiva constante do artigo 3º nº 1 do CIUC, estabelece ou não uma presunção?

 

Aderindo à e seguindo muito de perto a Jurisprudência arbitral tributária sobre esta matéria [Cfr decisões proferidas nos processos do CAAD nºs 14/2013, 26/2013, 27/2013, 73/2013 e 170/2013, todas publicadas em www.caad.org.pt] vejamos então, em bloco, estas questões e quais as respostas que merecem.

 

Dispõe o artigo 3º do CIUC (Código do Imposto único de Circulação):

“ARTIGO 3º

INCIDÊNCIA SUBJECTIVA

             1 – São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

         2 – São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”.

 

Estabelece, por seu lado, o nº1 do artigo 11º da LGT que na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam, são observadas as regras e princípios gerais da interpretação e aplicação das leis”.

 Resolver as dúvidas que se suscitem na aplicação de normas jurídicas pressupõe a realização de uma atividade interpretativa.

Há assim que ponderar  qual a melhor interpretação[2] do art. 3º, nº 1 do CIUC, à luz, em primeiro lugar, do elemento literal, ou seja  aquele em que se visa detetar o pensamento legislativo que se encontra objetivado na norma, para se verificar se a mesma contempla uma presunção, ou se determina, em definitivo, que o sujeito passivo do imposto é o proprietário que figura no registo.

A questão que se coloca é, no caso sub juditio, a de saber se a expressão “considerando-se” utilizada pelo legislador no CIUC, em vez da expressão “presumindo-se”, que era a que constava nos diplomas que antecederam o CIUC, terá retirado a natureza de presunção ao dispositivo legal em apreço.

A nosso ver e ao contrário do que defende a AT, a resposta tem necessariamente de ser negativa, uma vez que da análise do nosso ordenamento jurídico se retira de forma clara que as duas expressões têm sido utilizadas pelo legislador com sentido equivalente, seja ao nível de presunções ilidíveis, seja no quadro das presunções inilidíveis, pelo que nada habilita a extrair a conclusão pretendida pela Autoridade Tributária por uma mera razão semântica.

Na verdade, assim acontece em variadas normas legais que consagram presunções utilizando o verbo “considerar”, de que se indicam, meramente a título de exemplo, as seguintes:

- no âmbito do direito civil - o nº 3 do art. 243º do Código Civil, quando estabelece que considera-se sempre de má-fé o terceiro que adquiriu o direito posteriormente ao registo da ação de simulação, quando a este haja lugar”;

 -  também no âmbito do direito da propriedade industrial o mesmo se passa, quando o art. 59º, nº 1 do Código da Propriedade Industrial dispõe que “(…)as invenções cuja patente tenha sido pedida durante o ano seguinte à data em que o inventor deixar a empresa, consideram-se feitas durante a execução do contrato de trabalho (…)”;

   - e, também ainda, no âmbito do direito tributário, quando os nºs 3 e 4 do art. 89-A da LGT dispõem que incumbe ao contribuinte o ónus da prova que os rendimentos declarados correspondem à realidade e que, não sendo feita essa prova, presume-se (“considera-se” na letra da Lei) que os rendimentos são os que resultam da tabela que consta no nº 4 do referido artigo.

Esta conclusão de haver total equivalência de significados entre as duas expressões, que o legislador utiliza indiferentemente, satisfaz a condição estabelecida no art. 9º, nº 2 do Código Civil, uma vez que se encontra assegurado o mínimo de correspondência verbal para efeitos da determinação do pensamento legislativo.

 

Importa, de seguida, submeter a norma em apreço aos demais elementos de interpretação lógica, designadamente, o elemento histórico, o racional ou teleológico e o de ordem sistemática.

Dissertando sobre a atividade interpretativa diz FRANCESCO FERRARA que esta “é a operação mais difícil e delicada a que o jurista pode dedicar-se, e reclama fino trato, senso apurado, intuição feliz, muita experiência e domínio perfeito não só do material positivo, como também do espírito de uma certa legislação. (…) A interpretação deve ser objetiva, equilibrada, sem paixão, arrojada por vezes, mas não revolucionária, aguda, mas sempre respeitadora da lei” (Cfr. Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leistradução de MANUEL DE ANDRADE, (2ª ed.), Arménio Amado, Editor, Coimbra, 1963, p. 129).

Como refere BAPTISTA MACHADO “a disposição legal apresenta-se ao jurista como um enunciado linguístico, como um conjunto de palavras que constituem um texto. Interpretar consiste evidentemente em retirar desse texto um determinado sentido ou conteúdo de pensamento.

O texto comporta múltiplos sentidos (polissemia do texto) e contém com frequência expressões ambíguas ou obscuras. Mesmo quando aparentemente claro à primeira leitura, a sua aplicação aos casos concretos da vida faz muitas vezes surgir dificuldades de interpretação insuspeitadas e imprevisíveis. Além de que, embora aparentemente claro na sua expressão verbal e portador de um só sentido, há ainda que contar com a possibilidade de a expressão verbal ter atraiçoado o pensamento legislativo – fenómeno mais frequente do que parecerá à primeira vista “ (Cfr. Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, pp.175/176).

“A finalidade da interpretação é determinar o sentido objetivo da lei, a vis potestas legis.(…) A lei não é o que o legislador quis ou quis exprimir, mas tão somente aquilo que ele exprimiu em forma de lei. (…) Por outro lado, o comando legal tem um valor autónomo que pode não coincidir com a vontade dos artífices e redatores da lei, e pode levar a consequências inesperadas e imprevistas para os legisladores. (…) O intérprete deve buscar não aquilo que o legislador quis, mas aquilo que na lei aparece objetivamente querido: mens legis e não a mens legislatoris  (Cfr. FRANCESCO FERRARA,Ensaio, pp. 134/135).

Entender uma lei “não é somente aferrar de modo mecânico o sentido aparente e imediato que resulta da conexão verbal; é indagar com profundeza o pensamento legislativo, descer da superfície verbal ao conceito íntimo que o texto encerra e desenvolvê-lo em todas as suas direções possíveis”(loc. cit., p.128).

Com o objetivo de desvendar o verdadeiro sentido e alcance dos textos legais, o intérprete lança mão dos fatores  interpretativos que são essencialmente o elemento gramatical (o texto, ou a “letra da lei”) e o elemento lógico, o qual, por sua vez, se subdivide em elemento racional (ou teleológico), elemento sistemático e elemento histórico. (Cfr. BAPTISTA MACHADO, loc. Cit., p. 181; J.OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito – Introdução e Teoria Geral 2ª Ed., Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, p.361).

Entre nós, é o artigo 9º do Código Civil (CC) que fornece as regras e os elementos fundamentais à interpretação correta e adequada das normas.

O texto do nº 1 do artigo 9º do CC começa por dizer que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dela o “pensamento legislativo”.

Sobre a expressão “pensamento legislativo” diz-nos BAPTISTA MACHADO que o artigo 9º do CC “não tomou posição na controvérsia entre a doutrina subjetivista e a doutrina objetivista. Comprova-o o facto de se não referir, nem à “vontade do legislador” nem à “vontade da lei”, mas apontar antes como escopo da atividade interpretativa a descoberta do “pensamento legislativo” (artº. 9º, 1º). Esta expressão, propositadamente incolor, significa exatamente que o legislador não se quis comprometer” (loc. cit., p. 188).

No mesmo sentido se pronunciam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA em anotação ao artigo 9º do CC (Cfr. Código Civil Anotado – vol. I, Coimbra ed., 1967, p. 16 ).

E sobre o nº 3 do artigo 9º do CC refere aquele autor: “ este nº 3 propõe-nos, portanto, um modelo de legislador ideal que consagrou as soluções mais acertadas (mais corretas, justas ou razoáveis) e sabe exprimir-se por forma correta. Este modelo reveste-se claramente de características objetivistas, pois não se toma para ponto de referência o legislador concreto (tantas vezes incorreto, precipitado, infeliz) mas um legislador abstrato: sábio, previdente, racional e justo” (loc. cit. p. 189/190).

Logo a seguir este insigne Professor chama a atenção de que o nº 1 do artigo 9º, refere mais três elementos de interpretação a “ unidade do sistema jurídico”, as “circunstâncias em que a lei foi elaborada” e as “condições específicas do tempo em que é aplicada” (loc. cit, p. 190).

Quanto às “circunstâncias do tempo em que a lei foi elaborada”, explica BAPTISTA MACHADO que esta expressão “representa aquilo a que tradicionalmente se chama a occasio legis: os fatores conjunturais de ordem política, social e económica que determinaram ou motivaram a medida legislativa em causa” (loc. cit., p.190).

Relativamente às “condições específicas do tempo em que é aplicada” diz este autor que este elemento de interpretação “tem decididamente uma conotação atualista (loc. cit., p. 190) no que coincide com a opinião expressa por PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA nas anotações ao artigo 9º do CC.

No que respeita à “unidade do sistema jurídico” BAPTISTA MACHADO considera este o fator interpretativo mais importante: “a sua consideração como fator decisivo ser-nos-ia sempre imposta pelo princípio da coerência valorativa ou axiológica da ordem jurídica” (loc. cit., p. 191).

É também este autor que nos diz, relativamente ao elemento literal ou gramatical (texto ou “letra da lei”) que este “é o ponto de partida da interpretação. Como tal, cabe-lhe desde logo uma função negativa: a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou pelo menos uma qualquer correspondência ou ressonância nas palavras da lei.

Mas cabe-lhe igualmente uma função positiva, nos seguintes termos: se o texto comporta apenas um sentido, é esse o sentido da norma – com a ressalva, porém, de se poder concluir com base noutras normas que a redação do texto atraiçoou o pensamento do legislador” (loc. cit., p. 182).

 

Referindo-se ao elemento racional ou teleológico, diz este autor que ele consiste “na razão de ser da lei (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao elaborar a norma. O conhecimento deste fim, sobretudo quando acompanhado do conhecimento das circunstâncias (políticas, sociais, económicas, morais, etc.,) em que a norma foi elaborada ou da conjuntura política-económica-social que motivou a decisão legislativa (occasio legis) constitui um subsídio da maior importância para determinar o sentido da norma. Basta lembrar que o esclarecimento da ratio legis nos revela a valoração ou ponderação dos diversos interesses que a norma regula e, portanto, o peso relativo desses interesses, a opção entre eles traduzida pela solução que a norma exprime” (loc. cit., pp. 182/183).

 É ainda BAPTISTA MACHADO que nos diz, agora no que respeita ao elemento sistemático (contexto da lei e lugares paralelos) que “este elemento compreende a consideração das outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos).Compreende ainda o lugar sistemático que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico.

Baseia-se este subsídio interpretativo no postulado da coerência intrínseca do ordenamento, designadamente no facto de que as normas contidas numa codificação obedecem por princípio a um pensamento unitário” (loc.cit., p. 183).

Como ensina JOSEF KOHLER, citado por MANUEL DE ANDRADE “(…) Em particular havemos de tomar em consideração o encandeamento das diversas leis do país, porque uma exigência fundamental de toda a sã legislação é que as leis se ajustem umas às outras e não redundem em congérie de disposições desconexas (Ensaio, p. 27).

 

Descendo ao caso dos autos:

Através da análise do elemento histórico, extrai-se a conclusão que, desde a entrada em vigor do Decreto-Lei 59/72, de 30 de Dezembro, o primeiro a regular esta matéria, até ao Decreto-Lei nº 116/94, de 3 de Maio, o último a anteceder o CIUC [cfr Lei nº 22-A/2007, com as alterações da Lei 67-A/2007 e 3-B/2010], foi consagrada a presunção [grifado nosso] dos sujeitos passivos do IUC serem as pessoas em nome das quais os veículos se encontravam matriculados à data da sua liquidação.

            Verifica-se, portanto, que a lei fiscal teve, desde sempre, o objetivo de tributar o verdadeiro e efetivo proprietário e utilizador do veículo, afigurando-se indiferente a utilização de uma ou outra expressão que, como vimos, têm na nossa ordem jurídica um sentido coincidente.

            O mesmo se diga quando nos socorremos dos elementos de interpretação de natureza racional ou teleológica.

            Com efeito, o atual e novo quadro da tributação automóvel consagra princípios que visam sujeitar os proprietários dos veículos a suportarem os prejuízos por danos viários e ambientais causados por estes, como se alcança do teor do art. 1º do CIUC.

            Ora a consideração destes princípios, designadamente, o princípio da equivalência, que merecem tutela constitucional e consagração no direito comunitário, e são também reconhecidos em outros ramos do ordenamento jurídico, determina que os aludidos custos sejam suportados pelos reais proprietários, os causadores dos referidos danos, o que afasta, de todo, uma interpretação que visasse impedir os presumíveis proprietários de fazer prova de que já não o são por a propriedade estar na esfera jurídica de outrem[3].

Assim, também, da interpretação efetuada à luz dos elementos de natureza racional e teleológica, atento aquilo que a racionalidade do sistema garante e os fins visados pelo novo CIUC, resulta claro que o nº 1 do art. 3º do CIUC consagra uma presunção legal ilidível.

Em face do exposto, importa concluir que a ratio legis do imposto aponta no sentido de serem tributados os efetivos proprietários-utilizadores dos veículos pelo que a expressão “considerando-se” está usada no normativo em apreço num sentido semelhante a “presumindo-se”, razão pela qual dúvidas não há que está consagrada uma presunção legal.

 

Por outro lado, estabelece o art. 73º da LGT que “(…) as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário, pelo que são ilidíveis (…)”.

Assim sendo, consagrando o art. 3º, nº 1 do CIUC uma presunção juris tantum [e, portanto, ilidível], a pessoa que está inscrita no registo como proprietária do veículo e que, por essa razão foi considerada pela Autoridade Tributária como sujeito passivo do imposto, pode apresentar elementos de prova visando demonstrar que o titular da propriedade, na data do facto tributário, é outra pessoa, para quem a propriedade foi transferida.

E, no essencial da mesma linha argumentativa, se conclui igualmente  que o real locatário financeiro do veículo à data do facto gerador do IUC, será também o sujeito passivo do imposto ainda que seja outro o titular inscrito no registo automóvel.

 

Analisados os elementos carreados para o processo pela Requerente e os factos provados, extrai-se a conclusão que aquela não era [nalgumas das situações discriminadas no documento 5, junto com a PI e comprovadas documentalmente através dos documentos 7  e 8 do mesmo articulado], proprietária dos veículos a que respeitam as liquidações em apreço, por, entretanto, já ter transferido a propriedade dos mesmos, nos termos da lei civil ou [noutras situações discriminadas no citado documento 5 e documentadas] por ter dado de locação financeira os restantes veículos elencados na mencionada lista.

Esses elementos documentais, constituídos por cópias das respetivas faturas de venda e dos contratos de locação financeira – que não foram impugnados pela AT -, gozam da presunção de veracidade que lhes é conferida pelo art.º 75º, nº 1 da LGT, tendo, assim, idoneidade e força bastante para ilidir a presunção que suportou as liquidações efetuadas.

Estas operações de transmissão de propriedade, nuns casos e locação financeira, noutros, são oponíveis à Autoridade Tributária e Aduaneira, porquanto, embora os factos sujeitos a registo só produzam efeitos em relação a terceiros quando registados, face ao disposto no art. 5º, nº 1 do Código do Registo Predial [aplicável por remissão do Código do Registo Automóvel], a Autoridade Tributária não é terceiro para efeitos de registo, uma vez que não se encontra na situação prevista no nº 2 do referido art. 5º do Código do Registo Predial, aplicável por força do Código do Registo Automóvel, ou seja: não adquiriu de um autor comum direitos incompatíveis entre si.

Voltando às questões decidendas e em síntese conclusiva podem ser então dadas as seguintes resposta:

a)  [Se, na data da ocorrência do facto gerador do imposto, vigorar um contrato de locação financeira que tem por objecto um automóvel, para efeitos do disposto no artigo 3º, nºs. 1 e 2 do CIUC, o sujeito passivo do IUC é o locatário ou a entidade locadora, proprietária do veículo, em nome da qual o registo do direito de propriedade se encontra feito?]

Em caso de locação financeira o sujeito passivo do IUC será o locatário à data do facto gerador do imposto, sendo a titularidade retratada pelo registo automóvel mera presunção juris tantum da respetiva qualidade do titular (proprietário ou locatário financeiro);

b) [Se, nos termos de um contrato de locação financeira que tem por objecto um automóvel, na data da ocorrência do facto gerador do imposto, o veículo já tiver sido anteriormente alienado embora o direito de propriedade deste continue registado em nome do seu anterior proprietário, para efeitos do disposto no artigo 3º, nº1, do CIUC, sujeito passivo do IUC é o anterior proprietário ou o novo proprietário?]

Resposta prejudicada pela dada à alínea anterior.,

c) [Se, nas situações anteriormente referidas,  a AT pode prevalecer-se da ausência de atualização do registo do direito de propriedade para considerar como sujeito passivo do IUC as pessoas em nome das quais os veículos se encontram registados junto da Conservatória do Registo Automóvel?]

A Autoridade Tributária e Aduaneira só pode prevalecer-se da realidade registral do automóvel se não for comprovada a desatualização da situação jurídica, designadamente quanto à propriedade ou locação financeira do veículo.

d) [Qual o valor jurídico do registo automóvel na economia do CIUC, nomeadamente para efeitos da incidência subjetiva deste imposto?].

O registo automóvel, na economia do CIUC, representa mera presunção ilidível dos sujeitos passivos do imposto.

d) [Se, subjacente a todas as questões atrás enunciadas, a norma de incidência subjetiva constante do artigo 3º nº 1 do CIUC, estabelece ou não uma presunção?]

Resposta prejudicada pelas conclusões anteriores

 

Nestas circunstâncias, as mencionadas e ora impugnadas liquidações devem ser anuladas e, consequentemente restituído à Requerente, pela Autoridade Tributária e Aduaneira, as respetivas importâncias assim indevidamente cobradas e retratadas nos mencionados e documentados atos de liquidação.

 

Relativamente ao pedido de condenação da Autoridade Tributária a “(…)efetuar os procedimentos necessários para extinguir os processos executivos e contra-ordenacionais subjacentes aos atos de liquidação anulados pela douta decisão arbitral (…)” dir-se-á que a anulação judicial (ou por via do Tribunal Arbitral) do ato tributário de liquidação implica, necessária, legal e automaticamente a anulação de todos os seus efeitos ex tunc, pelo que tudo se deve passar como se esse ou esses atos tributários anulados não tivessem sido praticados (Cfr artigo 100º, do CPPT).

 Ou seja: a anulação dos atos de liquidação acarreta sempre  a anulação de todos os atos consequentes que hajam sido praticados tendo por base ou pressuposto jurídico-prático dos atos tributários anulados.

 

III – DECISÃO

            De harmonia com o exposto, decide este Tribunal Arbitral, julgar, totalmente procedentes os pedidos de anulação das liquidações de IUC conforme peticionado e, em consequência, anula esses atos tributários, com as demais consequências legais inerentes.

 

 Valor do processo

De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 26.175,14.

 

Custas

Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 1.530,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Lisboa, 6 de junho de 2014

O Árbitro,

 

(José Poças Falcão)

 



[1] Acrónimo de Regime Jurídico da Arbitragem Tributária.

[2] A génese da relação jurídica de imposto pressupõe a verificação cumulativa dos três pressupostos necessários ao seu surgimento, a saber: o elemento real, o elemento pessoal e o elemento temporal. (Neste sentido veja-se, entre muitos outros autores, Freitas Pereira, M. H., Fiscalidade, 3ª Edição, Almedina, Coimbra, 2009).

 

[3] Sob a epígrafe “princípio da equivalência” estabelece o artigo 1º do CIUC: “O imposto único de circulação obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária”.

Sobre a noção do princípio da equivalência diz-nos SÉRGIO VASQUES: “Em obediência ao princípio da equivalência, o imposto deve ser conformado em atenção ao benefício que o contribuinte retira da actividade pública, ou em atenção ao custo que imputa à comunidade pela sua própria actividade”(Cfr. Os Impostos Especiais de Consumo, Almedina, 2000, p. 110).

E, mais à frente, explica este Professor, relativamente aos automóveis: “um imposto sobre os automóveis assente numa regra de equivalência será igual apenas se aqueles que provoquem o mesmo desgaste viário e o mesmo custo ambiental paguem o mesmo imposto; e aqueles que provoquem desgaste e custo ambiental diverso, paguem imposto diverso também.