Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 284/2020-T
Data da decisão: 2021-02-28  IRC  
Valor do pedido: € 66.948,98
Tema: IRC - Tributações autónomas; Despesas não documentadas. Art. 88.º, n.º 1 do CIRC; Ónus da prova.
Versão em PDF

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros designados para formarem o Tribunal Arbitral, Alexandra Coelho Martins (árbitro presidente), José Nunes Barata e Elisabete Flora Louro Martins Cardoso (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o presente Tribunal Arbitral, constituído em 1 de setembro de 2020, acordam no seguinte:

 

I.             RELATÓRIO

 

A..., LDA., doravante “Requerente”, pessoa coletiva número..., com sede na Rua ..., ..., ...-... Portimão, veio a requerer a constituição de Tribunal Arbitral Coletivo e deduzir pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 1.º, 2.º, 4.º e 10.º, todos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), na redação vigente, e na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

 

É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.

 

A Requerente pretende que seja declarada a ilegalidade e anulada a liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”), incluindo tributação autónoma e inerentes juros compensatórios, emitida sob o n.º 2019..., reportada ao período de 2018, que resultou no valor a pagar de € 66.948,98, com fundamento na  errónea qualificação e quantificação dos rendimentos, bem como na preterição de outras formalidades legais, ao abrigo do disposto no artigo 99.º, alíneas a) e d) do  Código de Procedimento e Processo Tributário (“CPPT”).

 

Em 3 de junho de 2020, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação, com a notificação à AT em 18 de junho de 2020.

 

Em conformidade com o preceituado nos artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, aqui signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As Partes, notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar.

               

O Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 1 de setembro de 2020.

 

Em 7 de outubro de 2020, a Requerida apresentou a sua Resposta e juntou o processo administrativo (“PA”). Defende-se por impugnação e pugna pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral (“ppa”), com as legais consequências.

 

Por despacho de 12 de outubro de 2020, o Tribunal Arbitral determinou a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, com produção de prova testemunhal, por se julgar útil para o apuramento da verdade material.

 

Em 13 de novembro de 2020, realizou-se a referida reunião, na qual foram ouvidas as testemunhas B... e C... e prescindida a terceira testemunha indicada pela Requerente. O Tribunal admitiu a junção aos autos do documento apresentado pela Requerente (Informação Empresarial Simplificada – IES – Declaração Anual relativa aos anos de 2015 a 2018), ao abrigo do princípio da descoberta da verdade e dos artigos 16.º, alíneas c) e e), e 19.º, ambos do RJAT.

 

As partes foram notificadas para alegações escritas sucessivas, com a fixação do prazo de 15 dias. O Tribunal advertiu ainda a Requerente da necessidade de pagamento da taxa arbitral subsequente até à data de prolação da decisão arbitral, para o que foi designado o dia 1 de março de 2021. 

 

                Quer a Requerente, quer a Requerida, optaram por não apresentar alegações escritas.

 

SÍNTESE DA POSIÇÃO DA REQUERENTE

 

Segundo a Requerente, o ato tributário impugnado é inválido por se verificarem os seguintes vícios de índole material, nos quais suporta o pedido de procedência da presente ação arbitral:

 

a)            Falta de demonstração dos pressupostos da liquidação por parte da Requerida 

             Constatada, por contagem física, a divergência entre o saldo contabilístico e o numerário em caixa da Requerente, cabia à AT o ónus de demonstrar a verificação dos factos constitutivos da Tributação Autónoma à taxa de 50%, a título de despesas não documentadas, prevista no artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC, quer quanto à efetividade das despesas, quer no que respeita ao período temporal em que estas ocorreram (artigo 74.º da Lei Geral Tributária “LGT”), ónus que a Requerida não satisfez;

             Acresce que, existindo saldos excessivos em anos anteriores a 2018, as saídas de caixa da Requerente podem ter ocorrido em qualquer desses anos, não podendo a AT considerar como data da comprovação a data da contagem do saldo de caixa;

             A Requerida não logrou identificar gastos relativos às saídas de caixa que tivessem reduzido o resultado líquido contabilístico da Requerente;

             A correção fundou-se na falta de credibilidade da contabilidade da Requerente, pelo que a Requerida devia ter recorrido a outros meios, como a tributação por métodos indiretos;

 

b)           Fundada dúvida  

–             Não tendo a AT demonstrado quando, como e onde ocorreram as “saídas de caixa”, nem qual o seu impacto no resultado líquido do período de 2018, na dúvida, sempre seria de aplicar o disposto no artigo 100.º, n.º 1 do CPPT;

c)            Erro de qualificação

–             Subsidiariamente, a existir tributação esta devia ter sido efetuada a outro título, de adiantamento por conta de lucros por retenção na fonte sobre rendimentos de capitais da categoria E, nos termos dos artigos 5.º e 6.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”), não podendo, todavia, ser invocada a presunção do artigo 6.º deste Código sem existirem lançamentos na conta corrente dos sócios. Neste âmbito, a Requerida teria de atender à data em que os rendimentos foram colocados à disposição, com consequências em matéria de caducidade, e apenas seriam tributados os montantes relativos aos anos 2015 e 2016, por serem os que registaram um acréscimo de saldo de caixa em relação aos anos anteriores.

 

No pedido de pronúncia arbitral a Requerente arrolou três testemunhas e protestou juntar documentos, o que concretizou em momento ulterior.

 

SÍNTESE DA POSIÇÃO DA REQUERIDA

 

Por seu turno, a Requerida não vislumbra qualquer erro sobre os pressupostos de facto e de direito que possa inquinar o ato de liquidação de tributação autónoma e considera não ter cabimento a invocação do disposto no artigo 100.º, n.º 1 do CPPT, por não subsistir qualquer dúvida fundada sobre a existência e quantificação do facto tributário. Neste sentido, sustenta que:

             A Requerente não contestou a quantificação da divergência entre o saldo contabilístico da conta Caixa e os montantes disponíveis, nem fez prova dos factos alegados, designadamente quanto às despesas que teriam ocorrido em anos anteriores e às anomalias e irregularidades da contabilidade;

             A AT cumpriu o ónus da prova dos pressupostos de aplicação do artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC ao demonstrar a referida divergência entre a contabilidade e a realidade;

             No caso de sonegação aos registos contabilísticos das “despesas não documentadas”, bem como de não apresentação de qualquer suporte documental para as saídas de meios monetários, a prova de que ocorreu uma transferência de disponibilidades monetárias da sociedade para terceiros deve bastar-se com a constatação da falta dos meios monetários, que em si mesma pressupõe que foram realizadas operações que são desconhecidas, sendo, na prática, impossível outra prova;

             Com efeito, imputar-se à AT o ónus da prova de exfluxos omitidos na contabilidade e desprovidos de suporte declarativo e documental representaria uma exigência de prova diabólica, sem respaldo legal;

             A não relevação das “despesas não documentadas” em conta apropriada impede a identificação dos concretos movimentos de saídas de caixa e, por isso, o artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC não faz depender a incidência da tributação autónoma da prévia contabilização em conta adequada de gastos de modo a afetar negativamente o resultado do exercício;

             Nestes casos, o facto gerador da tributação autónoma tem de ser imputado ao exercício em que surge a evidência das saídas de meios financeiros sem suporte documental que permita conhecer os factos que as originaram e os respetivos beneficiários;

             A Requerente, ao equacionar a qualificação das importâncias em falta como “adiantamentos por conta de lucros”, acaba por assumir que as importâncias em falta, no todo ou em parte, foram transferidas para a esfera jurídica dos sócios, contra aquilo que expressamente declarou no procedimento inspetivo. Esta tese não é sustentada em quaisquer indícios, pelo que não merece credibilidade;

             A Requerente não contesta, nem discute o acréscimo de € 40.409,31 à matéria coletável que está refletida na liquidação contestada, derivado da não aceitação dos gastos de reconhecimento de dívidas incobráveis, por não reunirem os requisitos exigidos no artigo 41.º do Código do IRC, razão pela qual o prejuízo fiscal declarado de € 39.541,69 foi corrigido para o lucro tributável de € 867,62.

 

                Por fim, a Requerida pronuncia-se no sentido de os factos com relevo para a decisão se encontrarem documentalmente comprovados nos autos, considerando inútil a inquirição das testemunhas . Conclui pela absolvição de todos os pedidos.

 

 

II.            SANEAMENTO

 

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria para conhecer do ato de liquidação de IRC, incluindo tributação autónoma e juros compensatórios, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, todos do RJAT.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

A ação é tempestiva, tendo o pedido de pronúncia arbitral sido apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, de acordo com a remissão operada para o artigo 102.º, n.º 1 do CPPT (aplicando-se, neste caso, a respetiva alínea a)), descontado o efeito suspensivo estabelecido no artigo 7.º, n.º 1 da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação que lhe foi conferida pelo artigo 2.º da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril, suspensão que cessou nos termos da Lei n.º 16/2020, de 29 de maio.

 

Não foram identificadas questões que obstem ao conhecimento do mérito.

 

 

                III.          FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

 

1.            MATÉRIA DE FACTO PROVADA

 

A.           A A..., LDA., aqui Requerente, iniciou a sua atividade em 1993, e dedica-se à execução de instalações elétricas e comércio a retalho de aparelhagens elétricas, utensílios elétricos, candeeiros, lustres e material para instalações elétricas, estando inscrita sob o CAE 43201 – Instalação Elétrica – cf. Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”).

B.            Face à existência do elevado saldo de Caixa declarado pela Requerente no ano 2017, que ascendia a € 133.287,31, foi emitido pela Direção de Finanças de ..., em 12 de dezembro de 2018, o Despacho Externo n.º DI2018... com o objetivo de consulta, recolha e cruzamento de elementos – contagem de caixa para o ano de 2018 – cf. RIT.

C.            Em cumprimento do despacho anteriormente referido e da Ordem de Serviço n.º OI2019..., de âmbito parcial, referente ao exercício de 2018, emitida pela mesma Direção de Finanças, no dia 19 de dezembro de 2018, os Serviços de Inspeção Tributária procederam à contagem (física) de caixa nas instalações da Requerente e na presença do seu sócio-gerente D..., apurando um valor de zero à data da contagem – cf. RIT.

D.           Na mesma data e local, o referido sócio-gerente declarou não possuir noutro local outros valores em caixa pertencentes à Requerente, não existir fundo fixo de caixa e não ter retirado naquela data algum valor da caixa para pagamentos a fornecedores/credores diversos – cf. RIT.

E.            Estando em causa o período de 2018 para a análise do saldo em questão, tornou-se necessário que ocorresse a entrega da correspondente Declaração de Rendimentos, Modelo 22 – cf. RIT.

F.            Em 13 de junho de 2019 os Serviços de Inspeção Tributária procederam à notificação da Requerente da ampliação do prazo do procedimento inspetivo, a coberto do despacho n.º D12018..., de 12 de dezembro de 2018, por três meses, nos termos da alínea e) do n.º 3 do artigo 36. do RCPITA, conforme despacho do Diretor de Finanças de ... de 11 de junho de 2019 – cf. RIT.

G.           Em 22 de agosto de 2019, foi emitida pela Direção de Finanças de ... a Ordem de Serviço Interna n.º 012019... de âmbito parcial de IRC, com extensão ao ano 2018 – cf. RIT.

H.           Por forma a ser comparado o valor contado em Caixa no dia 19 de dezembro 2018 com o correspondente saldo da conta Caixa registado na contabilidade, com referência à mesma data, os Serviços de Inspeção Tributária solicitaram os registos contabilísticos de 2018 e a disponibilização dos documentos de suporte – cf. RIT. 

I.             O Saldo da conta “SNC 111 – Caixa” da Requerente, referente a 31 de dezembro de 2018, era de € 130.669,58, correspondendo, de igual modo, ao declarado pela Requerente na sua declaração anual – IES do ano 2018 – cf. RIT e IES junta pela Requerente. 

J.             Tendo a contagem sido efetuada no dia 19 de dezembro de 2018 pelos Serviços de Inspeção Tributária, foi necessário determinar o valor em caixa no referido dia, expurgando-o dos movimentos posteriores (tendo por base a data de cada documento). Neste âmbito, foi apurado pelos Serviços um saldo da conta caixa na quantia de € 131.348,50, sendo o saldo efetivamente em caixa, resultante da contagem física, correspondente a zero – cf. RIT.

K.            Nestes termos, foi emitido o Projeto de Correções com a proposta de tributação autónoma do valor de saldo da conta Caixa que os Serviços de Inspeção Tributária constataram ser inexistente na esfera da Requerente com referência ao dia 19 de dezembro de 2018, na quantia de € 65.674,25 (de imposto) e com o acréscimo à matéria tributável de € 40.409,31, relativamente a gastos não aceites, contabilizados a título de créditos incobráveis – cf. RIT.

L.            Não tendo sido exercido o direito de audição pela Requerente, o Projeto foi convertido em Relatório definitivo (Relatório de Inspeção Tributária ou “RIT”), mantendo-se a proposta de correções de tributação autónoma a título de despesas não documentadas e a desconsideração dos gastos relativos a créditos incobráveis. Extraem-se do RIT os seguintes fundamentos com relevância para as questões discutidas nos presentes autos:

“III.2. APURAMENTO DAS CORREÇÕES EM SEDE DE IRC

Na visita efetuada ao gabinete de contabilidade, foi-nos disponibilizado os extratos contabilísticos da conta caixa referente ao ano de 2018 cujo saldo a 31 de dezembro de 2018 consta no quadro abaixo:

[…]

                               Saldo até 2018/12/31     130.669.581

Conforme podemos verificar no quadro anterior, a conta caixa à data de 31 de dezembro de 2018 apresenta um saldo de € 130.669,58, que corresponde ao declarado pelo S.P. na declaração de Informação Empresarial Simplificada (IES) do ano de 2018 no Anexo A, Campo A5419 Caixa – Saldo Final. do balancete do mês de dezembro de 2018.

Visto que a contagem foi efetuada no dia 19-12-2018 (11:00 horas) foi necessário apurar o valor em caixa no referido dia.

Tendo por base a data de cada documento, uma vez que na contabilidade os registos contabilísticos são efetuados com a data final de cada mês, apurou-se à data de 19-12-2018, um saldo da conta Caixa de € 131.348,50

[...]

Do quadro acima apura-se que o saldo contabilístico à data da contagem em 19 de dezembro de 2018 era de € 131.348,50, quando e conforme referido anteriormente o sócio gerente declarou no dia da contagem que o saldo em caixa era zero resultando assim uma divergência de € 131.348,50, para a qual não foi apresentada qualquer justificação.

Importa aqui relembrar que a contabilidade deve refletir de uma forma verdadeira e apropriada a realidade da entidade pelo que as suas demonstrações financeiras nomeadamente o balanço e a demonstração de resultados são o reflexo dessa realidade, devendo nelas estar refletidos todos ao movimentos financeiros e não financeiros, bem como o resultado desse movimentos.

A nível fiscal a obrigatoriedade de a contabilidade refletir todas as operações é reforçada na alínea b) do n.º 3 do artigo 17.º do CIRC, que determina que a contabilidade deve «... reflectir todas as operações realizadas pelo sujeito passivo e ser organizada de modo que os resultados das operações e variações patrimoniais sujeitas ao regime geral do IRC possam claramente distinguir-se dos das restantes».

Pelo que não existindo suporte documental que justifique a divergência apurada entre o saldo contabilístico e o saldo real e que permita identificar o destinatário das saídas de caixa, a natureza ou o motivo da operação estamos perante despesas qualificadas como despesas não documentadas (uma despesa relativamente à qual não se encontra apoiada em documento que permita conhecer fácil, clara e precisamente a operação que lhe está subjacente nem permita evidenciar a causa, a natureza e pelo menos o beneficiário), sendo ainda não dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável conforme alínea b) do n.º 1 do artigo 23-A do CIRC e sujeitas a tributação autónoma nos termos do artigo 88.º do CIRC.

Contudo e uma vez que o s.p. não reconheceu as despesas como gasto na contabilidade e, portanto, não influenciou o resultado líquido do período, apenas serão de considerar como despesas não documentadas sujeitas a tributação autónoma conforme prevista no n.º 1 do artigo 88° do CIRC que dispõe:

«1 - As despesas não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50 %, sem prejuízo da sua não consideração como gastos nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º-A.»

Cabe ainda referir que segundo o nº 14 do mesmo artigo, as taxas de tributação autónoma são elevadas em 10 pontos percentuais quando o S.P. apresente prejuízos. Neste caso o S.P. apresentava prejuízo fiscal no montante € 39.541,69, contudo irão ser efetuadas correções em sede de IRC, conforme consta no ponto seguinte (ponto 2.1- Dividas incobráveis), apurando-se um lucro tributável de € 867,62, pelo que a taxa de tributação autónoma é de 50% em vez de 60%.

Quadro n.º 3 – Apuramento do montante de imposto em falta no ano de 2018 resultante das tributações autónomas

Ano       Montantes despesas não documentadas             Taxa (nº 1 e nº 14 artº 88 do CIRC            Valor em Falta Tributações Autónomas

(1)          (2)          (3)          (4)=(2)*(3)

2018      131.348,50          50%       65.674,25

 

Resultando uma correção em sede de IRC ao imposto a pagar no ano de 2018 no montante de € 65.674,25 a acrescer no campo 365 do quadro 10 da declaração de rendimentos Modelo 22.

[…] "

M.          Nesta sequência foi emitida a liquidação de IRC, incluindo tributação autónoma e inerentes juros compensatórios, sob o n.º 2019..., com data de 19 de dezembro de 2019, correspondente ao período de 2018, no valor de € 66.001,60. Esta liquidação resultou no valor a pagar de € 66.948,98, com data-limite de pagamento fixada em 12 de fevereiro de 2020, nos termos constantes da demonstração de acerto de contas n.º 2019..., de 24 de dezembro de 2019 – cf. documento 1 junto pela Requerente.

N.           A evolução dos saldos da Conta 11 - Caixa da Requerente de 2015 a 2018 foi a seguinte – cf. declarações anuais / IES juntas pela Requerente:

Ano        Conta    Inicial                    Final

2015      Caixa     129.416,86         134.809,73

2016      Caixa     134.809,73         139.027,57

2017      Caixa     139.027,57         133.287,31

2018      Caixa     133.287,31         130.669,58

O.           Não se conformando com este ato de liquidação, em 2 de junho de 2020, a Requerente deduziu a presente ação arbitral - cf. registo de entrada do pedido.

 

                2.            FACTOS NÃO PROVADOS

 

Não se provou que os elementos da contabilidade da Requerente não apresentem credibilidade (artigos 51, 52, e 60 do ppa).

 

Também não se provou que as divergências identificadas entre o saldo da conta Caixa e os meios financeiros disponíveis em numerário fossem provenientes de exercícios anteriores (artigos 47.º e 58.º do ppa) e que as despesas teriam em grande medida ocorrido no passado (i.e., antes de 2018).

               

                Não foram identificados outros factos que devam considerar-se não provados.

 

                3.            MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO

 

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal de se pronunciar sobre todas as alegações das Partes.

 

                Não se deram como provadas nem não provadas as alegações feitas pelas partes e apresentadas como factos, consistentes em meros juízos conclusivos, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.

 

No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros fundou-se na análise crítica da prova documental junta aos autos, em particular no RIT e seus anexos e nas posições consensuais assumidas pelas partes em relação aos factos essenciais, sendo o dissídio de direito.

 

Os depoimentos das testemunhas ouvidas, B..., filho do sócio-gerente da Requerente à data dos factos (e atualmente também sócio), e C..., contabilista certificado da Requerente, não tiveram qualquer relevo, pois não manifestaram conhecimento das razões que originaram a discrepância entre o saldo da conta Caixa e o saldo efetivo, desconhecendo o destino que foi dado aos fundos.

 

 

IV.          DO DIREITO

 

1.            QUESTÃO DECIDENDA

 

A questão fundamental a dirimir prende-se com a aplicação do regime de tributação autónoma, previsto no artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC, à diferença entre o saldo contabilístico da conta Caixa, em 19 de dezembro de 2018, de € 131.348,50, e as existências apuradas por contagem física, de valor zero.

 

Está em causa a qualificação da aludida divergência a título de “despesas não documentadas”, com a consequente sujeição à mencionada tributação autónoma à taxa de 50%, bem como a aferição do critério temporal definidor dessa tributação.

 

                2.            A TRIBUTAÇÃO AUTÓNOMA DE DESPESAS NÃO DOCUMENTADAS. ENQUADRAMENTO

 

De acordo com o disposto no artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC as despesas não documentadas são tributadas autonomamente à taxa de 50 %, sem prejuízo da sua não consideração como gastos nos termos do artigo 23.º-A, n.º 1, alínea b).

 

Para melhor apreensão do conceito de “despesas não documentadas”, pressuposto constitutivo da tributação autónoma consagrada na referida norma, importa contextualizar de forma sumária o seu surgimento e evolução.

 

Seguimos, para este efeito, a decisão arbitral proferida no processo n.º 213/2020-T, respeitante a uma situação análoga à dos presentes autos.

 

                A disciplina da tributação agravada das despesas não documentadas teve como antecedente a tributação das então denominadas “despesas confidenciais ou não documentadas”, que foi iniciada pelo artigo 4.º do Decreto-lei n.º 192/90, de 9 de junho, à taxa autónoma de 10%, incrementada para 25% pelo artigo 29.º da Lei n.º 39-B/94, de 27 de dezembro (Lei do Orçamento do Estado – “LOE” – para 1995).

 

Mais tarde, o artigo 6.º da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, aditou ao Código do IRC o artigo 69.º-A que, sob a epígrafe “Taxas de tributação autónoma”, passou a integrar esta matéria no Código, determinando a respetiva tributação à taxa agravada de 50%, ao abrigo do seu n.º 1. Foi simultaneamente revogada, pelo artigo 7.º, nº 11 daquela Lei [n.º 30-G/2000], a norma avulsa constante do artigo 4.º do citado Decreto-lei n.º 192/90.

 

                Com a Lei n.º 67-A/2007, de 31 de dezembro (LOE para 2008), foi eliminada a referência a despesas confidenciais, passando o artigo 81.º (atual artigo 88.º) do Código do IRC a contemplar apenas a expressão “despesas não documentadas”, mantendo-se a taxa de 50%.

 

A eliminação das despesas confidenciais do elenco dos factos sujeitos a tributação autónoma, mantendo-se, no entanto, o mesmo regime de tributação sob a categoria de despesas não documentadas, das quais as primeiras são um subconjunto, limitou-se a remover uma redundância, pois a despesa confidencial é também uma despesa não documentada, sendo “duvidoso que a distinção entre as duas figuras tenha tido alguma relevância no nosso regime fiscal enquanto existiu”, como assinala a decisão arbitral n.º 7/2011-T, de 20 de setembro de 2012.

 

                Neste âmbito, convém também notar que a tributação autónoma incide sobre distintas tipologias de despesas, com diferentes objetivos e “as considerações a respeito de certo tipo de tributações autónomas, podem não ser pertinentes e válidas relativamente a outro tipo de tributações autónomas” (cf. decisão arbitral proferida no processo n.º 256/2018, de 12 de fevereiro de 2019).

 

                Neste mesmo sentido, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 27 de setembro de 2017, no processo n.º 0146/16 declara que há que ter “presente o tipo de tributações autónomas em causa […], uma vez que, como veremos adiante, sob esta denominação cabem realidades com teleologia e finalidade distintas, a reclamarem tratamento diverso. Desde logo, porque a par das tributações autónomas sobre gastos, as mais frequentes, existem também tributações autónomas sobre rendimentos. Mas também, e essencialmente, porque há tributações autónomas que podem ser deduzidas para efeitos de determinação do lucro tributável e outras insuscetíveis de dedução” – v. ainda os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 21 de março de 2012, processo n.º 0830/11, e de 31 de março de 2016, processo n.º 0505/15.

 

Prossegue o aresto citado [processo n.º 0146/16] aprofundando que as “tributações autónomas, inicialmente previstas como meio de combater a evasão e fraude fiscais, designadamente as despesas confidenciais e não documentadas, reportavam-se a encargos fiscalmente não dedutíveis; ulteriormente, na prossecução da obtenção de receita fiscal, o seu âmbito foi progressivamente alargado a despesas cuja justificação do ponto de vista empresarial se revela duvidosa e a despesas que podem configurar uma atribuição de rendimentos não tributados a terceiros, relativamente às quais a dedutibilidade só era admitida se acompanhada pela tributação autónoma. […] “a ratio legis parece ser, não só a de obviar à erosão da base tributável e consequente redução da receita fiscal, mas também a de tributar (na esfera de quem os distribui) rendimentos que de outro modo não conseguiriam ser tributados na esfera jurídica dos seus beneficiários.”

 

                Do exposto, ressalta a notória a finalidade anti elisiva da tributação autónoma das despesas não documentadas e a clara afirmação de que estas, ao contrário da tese da Requerente, não têm de ser despesas que em termos contabilísticos afetem o resultado do exercício, diminuindo-o, como seria o caso se tivessem sido simultaneamente contabilizadas como gastos dedutíveis.

 

Existem, de facto, algumas situações em que a dedução fiscal do gasto é pressuposto da incidência de certas tipologias de tributações autónomas, mas no caso específico das despesas não documentadas tal não sucede. Aliás, pelo contrário, conforme referido no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo no citado processo n.º 0146/16, as despesas não documentadas (anteriormente também designadas de “confidenciais”) reportam-se a encargos fiscalmente não dedutíveis, propósito assumido pelo elemento gramatical do n.º 1 do artigo 88.º do Código do IRC que estatui a tributação autónoma de tais despesas “sem prejuízo da sua não consideração como gastos nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º-A”.

 

                Assim, a hipótese de incidência constante do artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC sujeita a tributação autónoma as “despesas” e não os “gastos”, independentemente de o mesmo dispêndio poder preencher em simultâneo os dois conceitos, de despesa e de gasto.

 

                A respeito da análise de uma questão de retroatividade no domínio fiscal  também o Tribunal Constitucional se pronuncia sobre a caracterização da tributação autónoma de despesas não documentadas, fazendo-o nos seguintes moldes:

 

“[…] estamos perante despesas que são incluídas na contabilidade da empresa, e podem ter sido relevantes para a formação do rendimento, mas não estão documentadas e não podem ser consideradas como custos, e que, por isso, são penalizadas com uma tributação de 50%. A lógica fiscal do regime assenta na existência de um presumível prejuízo para a Fazenda Pública, por não ser possível comprovar, por falta de documentação, se houve lugar ao pagamento do IVA ou de outros tributos que fossem devidos em relação às transações efetuadas, ou se foram declarados para efeitos de incidência do imposto sobre o rendimento os proventos que terceiros tenham vindo a auferir através das relações comerciais mantidas com o sujeito passivo do imposto. Para além disso, a tributação autónoma, não incidindo diretamente sobre um lucro, terá ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afetar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de ilicitude penal ou de menor transparência fiscal.” – acórdão do Tribunal Constitucional n.º 18/2011, de 12 de janeiro de 2011.

 

Com relevância para a determinação da natureza da tributação autónoma, afirma ainda o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 197/2016, de 13 de abril de 2016, que “A introdução do mecanismo de tributação autónoma é justificada, por outro lado, por se reportar a despesas cujo regime fiscal é difícil de discernir por se encontrarem numa «zona de interseção da esfera privada e da esfera empresarial» e tem em vista prevenir e evitar que, através dessas despesas, as empresas procedam à distribuição oculta de lucros ou atribuam rendimentos que poderão não ser tributados na esfera dos respetivos beneficiários, tendo também o objetivo de combater a fraude e a evasão fiscais (SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 3.ª edição, Coimbra, pág. 407).

Para além disso, a tributação autónoma, embora regulada normativamente em sede de imposto sobre o rendimento, é materialmente distinta da tributação em IRC, na medida em que incide não diretamente sobre o lucro tributável da empresa, mas sobre certos gastos que constituem, em si, um novo facto tributário (que se refere não à perceção de um rendimento mas à realização de despesas). E, desse modo, a tributação autónoma tem ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afetar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de menor transparência fiscal, e é explicada por uma intenção legislativa de estimular as empresas a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afetem negativamente a receita fiscal.

Naquelas situações especiais elencadas na lei, o legislador optou, por isso, por sujeitar os gastos a uma tributação autónoma como forma alternativa e mais eficaz à não dedutibilidade da despesa para efeitos de determinação do lucro tributável, tanto mais que quando a empresa venha a sofrer um prejuízo fiscal, não haverá lugar ao pagamento de imposto, frustrando-se o objetivo que se pretende atingir que é o de desincentivar a própria realização desse tipo de despesas. […] como se fez notar, o IRC e a tributação autónoma são impostos distintos, com diferente base de incidência e sujeição a taxas específicas. O IRC incide sobre os rendimentos obtidos e os lucros diretamente imputáveis ao exercício de uma certa atividade económica, por referência ao período anual, e tributa, por conseguinte, o englobamento de todos os rendimentos obtidos no período de tributação. Pelo contrário, na tributação autónoma em IRC - segundo a própria jurisprudência constitucional -, o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa, caracterizando-se como um facto tributário instantâneo que surge isolado no tempo e gera uma obrigação de pagamento com caráter avulso. Por isso se entende que estamos perante um imposto de obrigação única, por contraposição aos impostos periódicos, cujo facto gerador se produz de modo sucessivo ao longo do tempo, gerando a obrigação de pagamento de imposto com caráter regular (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 310/2012).

Como é de concluir, a tributação autónoma, embora prevista no CIRC e liquidada conjuntamente com o IRC para efeitos de cobrança, nada tem a ver com a tributação do rendimento e os lucros imputáveis ao exercício económico da empresa, uma vez que incidem sobre certas despesas que constituem factos tributários autónomos que o legislador, por razões de política fiscal, quis tributar separadamente mediante a sujeição a uma taxa predeterminada que não tem qualquer relação com o volume de negócios da empresa (acórdão do STA de 12 de abril de 2012, Processo n.º 77/12).”

 

Resulta das considerações expostas que as tributações autónomas têm diversas finalidades além da reditícia, destacando-se, no caso das despesas não documentadas, a de prevenção da fraude e evasão fiscais (anti abuso) e a sancionatória ou penalizadora, associadas ao facto de, provavelmente, ou em muitos casos, aquelas despesas terem conexão com a distribuição de proventos que não serão tributados na esfera dos beneficiários (embora devessem sê-lo), ou que escapam à tributação em IVA, presumindo-se o inerente prejuízo para a Fazenda Pública e a desigualdade na repartição dos encargos públicos. A que acresce, eventualmente, poderem respeitar a atuações ilícitas, designadamente a práticas ilegais de corrupção.

 

                Sobre a desnecessidade de tais despesas afetarem o resultado líquido como requisito sine qua non da sua tributação autónoma, no sentido que se acompanha, fundamenta a decisão arbitral n.º 235/2020-T, de 20 de outubro de 2020, nos seguintes termos:

“Defende a Requerente a interpretação de que «as despesas são todos os valores despendidos pelo sujeito passivo, ou seja, por definição, implicam sempre um desembolso financeiro ou um exfluxo de meios financeiros a favor de terceiro; – uma despesa implica sempre a saída efetiva de fundos do sujeito passivo e, consequentemente, uma diminuição do seu património; tais despesas, em termos contabilísticos, teriam que afetar o resultado líquido do exercício, diminuindo-o, o que manifestamente não acontece no exercício de 2018».

É manifesto que não é assim. Trata-se de petição de princípio. Apenas seria assim caso a Requerente tivesse contabilizado as despesas não documentadas, para refletir as saídas de caixa. Não as contabilizou, e por isso apresenta os saldos da conta 11-Caixa que apresenta. E como não as contabilizou, não fez diminuir o resultado líquido do exercício.

Aliás, como bem se consagra em jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, a lei não faz depender a tributação autónoma baseada em despesas não documentadas da sua relevância como gastos para determinação do lucro tributável, como pode ver-se pelo acórdão do STA de 31-03-2016, processo n.º 0505/15:

As despesas em questão são tributadas apenas porque são efetuadas, havendo mesmo a cargo do contribuinte a obrigação de as tornar aparentes na sua declaração de rendimentos. Se todas ou parte delas poderiam ter sido consideradas como custos da empresa para efeitos da determinação do seu lucro tributável, aumentando a despesa fiscal com a consequente diminuição do lucro tributável, e a empresa por decisão consciente, ou esquecimento, não as considerou desse modo na sua declaração de rendimentos, nem por isso, elas perdem a sua natureza de despesas tributáveis em sede de tributação autónoma, que, por definição é uma tributação destacável da tributação em sede de IRC.

Assim, na linha desta jurisprudência, é de entender – e também o entende este tribunal arbitral – que as despesas não documentadas a que se refere o artigo 88.º, n.º 1, do CIRC reconduzem-se a saídas de meios financeiros do património da empresa sem um documento de suporte que permita apurar o seu destino ou o seu beneficiário. Este entendimento é o que mais bem garante o sentido útil e a finalidade regulatória do preceito em causa, portanto o entendimento que adequadamente valora o elemento finalístico da lei.”

 

À face do exposto, ao contrário do que argumenta a Requerente, afigura-se clara a desnecessidade de as despesas não documentadas, afetarem o resultado líquido como requisito constitutivo da tributação autónoma.

 

Por outro lado, da jurisprudência constitucional citada infere-se que o facto gerador da tributação autónoma corresponde à “realização da despesa” e é caracterizado como um facto tributário instantâneo que gera uma obrigação de pagamento com caráter avulso, de obrigação única, por contraposição aos impostos periódicos.

 

                3.            ANÁLISE CONCRETA

 

3.1.        SOBRE A DISTRIBUIÇÃO DO ÓNUS DA PROVA

 

Conforme refere a decisão arbitral no processo n.º 213/2020-T, o significado de despesas não documentadas reconduz-se a saídas de meios financeiros do património empresarial, por movimentação da conta caixa ou de contas bancárias (onde esses meios financeiros estavam registados), desprovidas de suporte documental.

 

No caso, constatou-se uma divergência, confirmada pela própria Requerente, no montante de € 131.348,50, entre o saldo de Caixa e os valores monetários na disponibilidade da Requerente à data dos factos, valores que inexistiam. Acresce que os registos contabilísticos na conta Caixa foram feitos pela Requerente e gozam da presunção de veracidade consagrada no artigo 75.º, n.º 1 da LGT. Por outro lado, a Requerente, tendo tido oportunidade para o fazer, não forneceu quaisquer elementos de prova sobre quando e como teriam saído os meios financeiros da empresa e para que finalidade, factos a que, dada a “indocumentação”, só aquela poderia dar resposta e assim eliminar a opacidade associada ao desconhecimento do seu destino.

 

                Neste quadro factológico, não resta senão assumir que se verificou uma efetiva saída de valores monetários da sociedade, que deve ser qualificada como dispêndio ou desembolso não documentado.

 

                Podem existir múltiplas explicações e justificações para a saída não documentada de fundos da sociedade, como, a título de exemplo, lucros ou adiantamentos por conta de lucros efetuados a sócios, empréstimos efetuados a sócios, erros na emissão de recibos sem que tenha ocorrido o pagamento, erros ou irregularidades contabilísticas, entre tantas outras. Todavia, na ausência de elementos de prova e de quaisquer documentos de suporte que possam indiciar a respetiva finalidade (dos dispêndios), a saída de fundos permanece na categoria de despesa não documentada.

 

                A Requerente, apesar de reconhecer as divergências (de que é responsável) e de não as saber explicar em concreto, preconiza que seria sobre a AT que recairia o dever de descobrir e demonstrar os dispêndios realizados e a data específica em que o foram. Exigência que se afigura inatingível e impraticável, como refere a Requerida que a designa de prova diabólica, pois quem dispõe dos elementos passíveis dessa comprovação é unicamente a Requerente.

 

                Convém, antes de mais, reforçar que o facto de não se terem apurado as razões a que se ficou a dever a elevada divergência entre a conta Caixa e a caixa física deriva unicamente de incumprimento dos deveres acessórios declarativos da Requerente. É sobre esta que recai o dever de declarar as suas operações com verdade e rigor, declarações que se presumem válidas nos termos do artigo 75.º, n.º 1 da LGT e que neste caso omitiram as saídas de fundos / meios monetários previamente lançados na conta Caixa.

 

                Como refere a decisão arbitral n.º 235/2020-T numa situação similar, a ausência dos meios financeiros que a conta 11-Caixa evidenciava, conjugada com a não contabilização de qualquer saída, configura, para os efeitos da lei, uma despesa não documentada. Fundamenta este aresto arbitral, com o qual se concorda, nos seguintes moldes:

                “À face da experiência comum, é de presumir que os meios financeiros que estão contabilizados na conta 11-Caixa e na conta 21-Clientes deviam estar no património da empresa, pois é essa existência que justifica a contabilização. Por outro lado, se esses meios financeiros não foram encontrados, justifica-se, à face da experiência comum, a presunção de que saíram dele, pois esta é a explicação normal para meios financeiros que deviam estar num património deixarem de estar.

                A Requerente aventa que a diferença entre os saldos em causa e a realidade dos meios financeiros existentes no património da empresa poderá dever-se a erros e irregularidades contabilísticas, mas não esboça sequer a respetiva prova, pelo que não há qualquer razão para afastar a presunção natural de aqueles meios financeiros existiam no património da empresa e foi-lhes dado destino desconhecido.

                Por outro lado, os valores elevados dos saldos de caixa mantidos e crescendo durante vários anos, atingindo mais de duas centenas de milhar de euros, não são compatíveis, em termos de razoabilidade e normalidade, com meros erros, incorreções ou irregularidades contabilísticas, pelo que a respetiva atribuição a erros e irregularidades não se afigura minimamente credível. De qualquer forma, o ónus da prova dos alegados erros e irregularidades recai sobre a Requerente, por força do disposto no artigo 74.º, n.º 1, da LGT, pelo que a falta de prova que permite concluir pela sua existência tinha de ser valorada no procedimento tributário e no presente processo contra a Requerente. De resto, é a Requerente que está em melhor posição probatória, dispondo ou devendo dispor dos elementos documentais e materiais necessários e suficientes para justificar as saídas de valores da empresa e evitar a incidência de tributação autónoma.

                Por isso, há fundamento factual para a conclusão subjacente à liquidação impugnada, de que se está perante «despesas não documentadas», para efeitos do artigo 88.º, n.º 1, do CIRC, consubstanciadas por saída de meios financeiros da empresa sem documentos de suporte que permitam concluir pelo destino que lhes foi dado.

Não tem aqui aplicação, quanto à existência do facto tributário gerador da tributação autónoma, o preceituado no artigo 100.º, n.º 1, do CPPT, pois apenas é aplicável quando exista «fundada dúvida» e, neste caso, não se vislumbram razões que abalem a presunção de terem ocorrido despesas não documentadas a que conduzem as presunções referidas.

[…]

Acresce que, ao não contabilizar tais despesas – daí, o saldo elevado da conta 11-Caixa – a Requerente torna opacas as saídas de caixa, as quais podem ter tido lugar por mero esvaziamento dos meios monetários gerados pelas prestações de serviços de restauração, como torna opacas as datas em que tal ocorreu.”

 

                De igual modo, na situação vertente a Requerente não demonstrou quaisquer erros no lançamento das suas disponibilidades monetárias a débito na conta 11-Caixa, passíveis de abalar a credibilidade dos correspondentes registos contabilísticos, assumindo-se, à luz do artigo 75.º, n.º 1 da LGT que, conforme por aquela contabilizado, tais valores chegaram a ingressar na sua esfera patrimonial. Posto isto, os subsequentes dispêndios ocorridos e não registados na contabilidade da Requerente configuram, como já afirmado, despesas não documentadas, enquadráveis no artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC, competindo à Requerente, para afastar a aplicação deste regime, identificar os gastos ou despesas relativas às saídas de caixa.

 

                Por outro lado, não colhe a alegação, por parte da Requerente, de que o ónus da prova só lhe caberia no caso de despesas indevidamente documentadas e não, no aqui em exame, de despesas não documentadas. É patente que a primeira hipótese constitui um incumprimento menos grave dos deveres acessórios da Requerente do que a segunda, em que a ocultação dos movimentos e da sua razão de ser é total. Seria uma contradição valorativa repartir o ónus da prova de forma favorável à Requerente numa situação de agravada censurabilidade de incumprimento de deveres acessórios  e de forma onerosa na hipótese em que esse incumprimento é mais ligeiro. Isto, para além do argumento antes esgrimido de que, no caso de despesas não documentadas, a prova não seria viável e consubstanciaria uma incomportável diabolica probatio, impondo-se à Requerida a demonstração de factos à partida inacessíveis.

 

                No que se refere ao regime de anulação do ato tributário por fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, previsto no artigo 100.º, n.º 1 do CPPT, interessa salientar que tal dúvida não se verifica in casu, em virtude de a Requerente não ter produzido qualquer prova suscetível de abalar ou fragilizar os registos contabilísticos de lançamento de valores na conta Caixa e os pressupostos de aplicação do regime da tributação autónoma pela AT, que foram originados nos elementos inscritos na sua própria contabilidade [da Requerente].

 

                3.2.        IMPUTAÇÃO TEMPORAL DAS DESPESAS

 

                Para a Requerente, o facto de o saldo da conta Caixa nos anos anteriores a 2018 ser elevado denota que o saldo de 2018 tem origem nesses anos, pelo que as saídas de caixa podem ter ocorrido em qualquer deles, caso em que a tributação, a ser devida, não o seria em 2018.

 

                Porém, a Requerente não forneceu elementos de prova sobre a influência do saldo de anos anteriores, nem sobre o momento em que ocorreram as saídas de meios financeiros de Caixa, limitando-se a uma alegação não circunstanciada. 

 

                A tributação autónoma, apesar de inserida do Código do IRC, apresenta uma natureza particular e o seu facto gerador corresponde à realização da despesa, e não ao lucro. É um facto tributário instantâneo, gerador de uma obrigação única, e não de formação sucessiva como o IRC.

 

                O momento da tributação das despesas deve aferir-se com base no critério de “competência de caixa”. O tax point reporta-se à data em que ocorreu a saída de caixa (o desembolso), sendo as despesas imputadas ao período (exercício) em que essa data se inscreve, assim se articulando com o regime de periodização do IRC. Todavia, nos casos em que os sujeitos passivos, incumprindo os seus deveres declarativos, omitem a contabilização das saídas de caixa, como sucede nos presentes autos, é inviável a determinação da data saída de caixa, pelo que terá de recorrer-se como indicador supletivo à data da contagem física de Caixa.

 

                Segue-se, de novo, a fundamentação da decisão arbitral n.º 235/2020-T que convoca o disposto no n.º 2.3 do “Anexo - Sistema de Normalização Contabilística”, constante do Decreto-Lei n.º 158/2009, de 13 de julho, em relação ao regime de acréscimo (periodização económica): “2.3.1 - Uma entidade deve preparar as suas demonstrações financeiras, exceto para informação de fluxos de caixa, utilizando o regime contabilístico de acréscimo (periodização económica).” Argumenta a decisão n.º 235/2020-T no seguinte sentido:

“as demonstrações financeiras são preparadas segundo o regime da periodização económica, ou seja o regime de acréscimo, exceto para a informação de fluxos de caixa – à qual portanto tal regime expressamente se não aplica. Para movimentações de caixa, o regime que resta é o da sua reflexão com base na saída (ou na entrada).

E assim deveria ter sido, caso a Requerente as tivesse contabilizado. Aplicar-se-ia aquilo que a AT denomina por critério de ‘competência de caixa’.

Não o fez. Não contabilizou saídas. Pode legitimamente deduzir-se, com base na experiência, que utilizou, de facto, o que na literatura técnica sobre ‘economia não registada’ (também dita ‘informal’), se designa por ‘caixa aberta’, vindo depois alegar, sem ensaio sequer de o procurar demonstrar ou provar, a existência de erros e incorreções.

Não o tendo feito, não tendo contabilizado as saídas de caixa, a verificação do facto gerador da tributação autónoma, que são as despesas não documentadas, fica evidenciada na data da contagem física de caixa.”

 

Conclui-se, desta forma, não assistir razão à Requerente relativamente ao momento temporal a que se reporta o facto gerador, não tendo logrado demonstrar que as saídas de Caixa em causa ocorreram em anos anteriores, pelo que é correta a consideração, pela AT, das despesas não documentadas no período de 2018, ao qual corresponde o saldo divergente objeto de contabilização e no qual se constatou, em 19 de dezembro desse ano, por contagem física, a falta de correspondência entre as disponibilidades monetárias e o saldo registado na contabilidade.

 

3.3.        SOBRE ALEGADOS ENQUADRAMENTOS ALTERNATIVOS

 

                Alega também a Requerente que a liquidação controvertida se fundou na falta de credibilidade da sua contabilidade, pelo que a Requerida ao invés de aplicar o regime previsto no artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC, devia ter recorrido a outros meios, nomeadamente à tributação por métodos indiretos. Não se afigura, porém, que assim seja .

 

                Em primeiro lugar, o caráter fictício da conta Caixa não foi demonstrado e não se suscita um quadro factológico passível de abalar a credibilidade da escrita da Requerente.

 

                Em segundo lugar, os elementos necessários à correta determinação do imposto estão disponíveis, dispensando o recurso a métodos indiretos, que são subsidiários dos métodos diretos , e que implicam necessariamente que seja inexequível a quantificação direta e exata da matéria tributável, de acordo com artigo 87.º, n.º 1, alínea b), conjugado com o artigo 88.º, ambos da LGT. Na situação vertente, a quantificação não era impossível e resultou da forma mais fiável que se pode equacionar: o valor escriturado pela Requerente na conta Caixa, por confronto com a contagem física e direta dos valores monetários na disponibilidade da Requerente.

 

                Sendo o saldo contabilístico de Caixa um dado, a diferença resultante da contagem física representa o total dos desembolsos indocumentados que foram feitos pela Requerente, ou seja, afere-se a base de incidência da tributação autónoma prevista no artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC, precisamente as despesas não documentadas .

 

                O facto de não se saber a que despesas respeita a base de incidência não constitui requisito de enquadramento na modalidade de avaliação indireta, que é sempre uma última ratio. Dir-se-á até que, em geral, as despesas não documentadas não são cognoscíveis, pretendendo o legislador tributar de forma agravada, mas sempre por via da avaliação direta, essa mesma opacidade por aquilo que ela pode representar (e provavelmente representa).

 

                A falta de transparência relativa ao destino do dispêndio não constitui pressuposto da aplicação de métodos indiretos, que se prende antes com a dificuldade em alcançar a base tributável, o quantum. Ora essa, como vimos, foi objeto de quantificação direta, pela contagem física levada a efeito pela AT, na presença do representante legal da Requerente, nada havendo a censurar à correção meramente aritmética, através de avaliação direta, que lhe foi efetuada, pois não foram identificados motivos para desconsiderar a contabilidade, nem se encontram reunidos os demais pressupostos previstos no artigo 87.º da LGT.

 

                Paralelamente, a Requerente invoca, a título subsidiário, que a tributação deveria ter sido enquadrada a título de retenção na fonte de rendimentos de capitais dos sócios (categoria E – artigo 5.º do IRS), relativos a distribuição de lucros ou adiantamento por conta de lucros, apesar de reconhecer que não seria possível à Requerida prevalecer-se da presunção prevista no artigo 6.º, n.º 4 do Código do IRS, pois, para tal, as saídas de meios financeiros teriam de ter sido lançadas em contas correntes dos sócios. Acrescenta que a Requerida teria de atender às datas em que os rendimentos foram colocados à disposição e seriam tributáveis apenas os montantes de acréscimo dos saldos da conta Caixa relativos a 2015 e 2016, pois nos anos 2017 e 2018 não se registaram quaisquer acréscimos (de saldos da conta Caixa) em relação a anos anteriores.

 

                De novo, importa referir que a Requerente não demonstra os pressupostos do que alega, pois não identifica os concretos movimentos que poderiam respeitar à mencionada distribuição de lucros ou ao adiantamento por conta de lucros, nem existe qualquer evidência de mútuos ou de lançamento de saídas de dinheiro em contas correntes dos sócios.

 

                Estamos perante uma argumentação hipotética e especulativa, não cabendo ao Tribunal aferir qual o regime que devia ter sido aplicado se se tivessem verificado determinados pressupostos que não foram demonstrados nos autos.

 

4.            OUTRAS QUESTÕES

 

                O ato de liquidação de IRC em crise deriva de dois tipos de correções, uma relativa à tributação autónoma, acima versada, e outra à desconsideração da dedução de gastos respeitantes a créditos incobráveis. No tocante a esta última matéria, a Requerente não suscita qualquer vício invalidante do ato tributário.

 

                Acresce que apesar da suscitação genérica do vício de preterição de outras formalidades legais, ao abrigo do disposto no artigo 99.º, alínea d) do CPPT, a Requerente não concretizou nenhuma formalidade preterida, tratando-se de uma alegação insubsistente. 

 

Por fim, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras ou cuja apreciação seria inútil.

 

                EM SÍNTESE

 

Pelos motivos expostos, julga-se não verificado o vício material de erro nos pressupostos, de facto e de direito, referentes à errónea quantificação e qualificação dos rendimentos, e o vício formal de preterição de formalidades, concluindo-se pela manutenção do ato impugnado, de liquidação de IRC, incluindo tributação autónoma e juros compensatórios, reportado ao exercício de 2018.

 

 

V.           DECISÃO

 

À face do exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em julgar a ação totalmente improcedente, com as legais consequências.

 

 

VI.          VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em € 66.948,98 correspondente ao valor da liquidação de IRC (Tributação Autónoma) e juros compensatórios aqui impugnada, indicado pela Requerente e não contraditado pela Requerida – v. artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por remissão do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).

 

VII.         CUSTAS

 

                Custas no montante de € 2.448,00, a cargo da Requerente, por decaimento, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT, e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT, 4.º, n.º 5 do RCPAT e 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 28 de fevereiro de 2021

 

Os árbitros,

 

Alexandra Coelho Martins

José Nunes Barata

Elisabete Flora Louro Martins Cardoso