Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 283/2020-T
Data da decisão: 2021-01-28  ISP  
Valor do pedido: € 3.172.829,78
Tema: Isenção do pagamento de Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético (CESE) – alínea d) do art.º 4.º do RCESE – Competência dos tribunais arbitrais (CAAD) em razão da matéria.
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SUMÁRIO

 

1-            A alínea d) do artigo 4.º do Regime Jurídico da CESE uti¬liza o conceito de concurso público no sentido amplo, tradicional na ordem ju¬rídica portuguesa, tanto no âmbito da contratação pública como fora dele, que abran¬¬ge o universo dos procedimentos que, no Direito Europeu da Con¬tra¬¬ta¬¬ção Pú¬bli¬ca, são qualificados como procedimentos abertos, por serem lançados atra¬vés da pu¬bli¬cação de um anúncio, com vista a permitir a participação, sem dis¬tinção, de todos os eventuais interes¬sa¬dos, desde que preencham os requisitos necessários para o efeito.

2-            O que releva na apreciação da abrangência da isenção prevista em tal norma não é o procedimento levado a cabo para a obtenção da licen¬ça de exploração, mas o procedimento, anterior a esse, no qual foi cons¬tituída a situação jurí¬di¬ca em cuja titularidade a Requerente se fundou para reque¬rer a licença de explo¬ra¬ção.

3-            O entendimento acima não viola quaisquer normas ou princípios constitucionais.

4-            Os tribunais arbitrais (CAAD) são competentes, em razão da matéria, para apreciar da legalidade de contribuições financeiras administradas pela AT.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

A..., S. A. (doravante Requerente), NIPC..., com sede na ..., ..., ..., ...-... ..., apresentou, nos termos legais, pedido de constituição de tribunal arbitral coletivo, sendo Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

I - RELATÓRIO

 

A)           Pedido

A Requerente peticiona a anulação da liquidação n.º 2019 CESE... de Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético (CESE), relativa ao exercício de 2015, e, ainda, das respetivas de liquidações de juros compensatórios e de juros de mora, no valor total de € 3.172.829,78, sendo € 2.723.204,50 respeitantes a tributo e € 449.625,28 a juros.

 

B)           Posição das partes

A Requerente entende estar isenta do pagamento de tal contribuição, ao abrigo do disposto na alínea d) do art.º 4.º do RCESE, por, em suma, considerar que a sua licença ou direito contratual de exploração foi obtido através de um «concurso público».

Alega, ainda, a existência de vícios de forma e de procedimento, a saber (cfr. n.º 51 e 52 do requerimento inicial):

(i)           Vício de violação dos princípios da participação e da colaboração, em especial, do direito de audiência prévia do sujeito passivo (…);

(ii)          Vício quanto ao procedimento, por equivocamente ter baseado a decisão final adotada na verificação de um conjunto de pressupostos erróneos, relacionados com a suficiência e idoneidade dos elementos reunidos em ordem a uma decisão esclarecida e com a qualificação jurídica do despacho, parecer e lista provenientes de uma entidade terceira, aos quais atribuiu relevância decisiva e natureza vinculativa;

(iii)         Vício de violação das regras do ónus da prova e do ónus de instrução e junção do processo administrativo que a AT deveria ter assegurado, ainda, ao abrigo dos princípios da colaboração e da cooperação, por ser aquela detentora da documentação procedimental necessária ao esclarecimento dos contornos do caso e, assim, a única capaz de garantir uma adequada instrução do procedimento.

(iv)         A que acresce um vício de natureza mista, de verificação prévia, relacionado com a violação dos princípios da participação, da colaboração e da boa-fé e com o exercício dos poderes discricionários concedidos à AT no domínio da definição da tramitação procedimental, em particular, na fixação do prazo para a pronúncia em audiência prévia do sujeito passivo.

Na sua resposta, a AT sustenta a legalidade das liquidações impugnadas, por, na linha da fundamentação constante do RIT, entender que a Requerente não preenche os pressupostos factuais determinantes da existência da isenção que invoca. Conclui, também, pela inexistência dos demais vícios, formais e materiais, alegados pela Requerente.

A Requerida peticiona, ainda, o seguinte:

(i)           ser julgada inconstitucional a alínea d) do art.º 4.º da RCESE, por violação dos princípios da legalidade (tipicidade e reserva de lei parlamentar) e da proteção jurídica e da confiança (n.º 2 e 3 do art.º 103.º da CRP), quando interpretada no sentido de que a atribuição das licenças de produção de energia elétrica nos termos dos Decretos-Lei n.º 99/91 e n.º 100/91, ambos de 2 de Março, configuram concursos públicos para efeitos de aplicação da isenção nela prevista.

(ii)          que a interpretação veiculada pela Requerente seja considerada como violadora do princípio constitucional da separação e interdependência de poderes, consagrado nos artigos 2.º e 111.º da CRP, constituindo-se o mesmo como referência e limite aos poderes de cognição dos tribunais no exercício da sua função no seio do Estado de Direito (cfr. artigos 202.º e 203.º da CRP), bem como do princípio constitucional da igualdade (cfr. artigo 13.º da CRP.

(iii)        

Cumpre desde já referir que ambas as partes, nos seus articulados, fazem abundantes referências ao acórdão arbitral n.º 146/2019-T, que apreciou a mesma questão, ainda que apenas quanto aos alegados vícios de forma e de procedimento e relativamente a diferente exercício. Ora, independentemente do mérito de tal acórdão arbitral, há que frisar que a fundamentação das liquidações ora impugnadas é substancialmente diferente, tal como a própria Requerente reconhece, nomeadamente no n. 58 do seu articulado inicial, não obstante concluir que a Requerida conscientemente reitera entendimentos erróneos censurados pelo Tribunal Arbitral, pelo que não se coloca a questão da autoridade de caso julgado anterior.

 

C)           Tramitação processual

A Requerente procedeu à designação de árbitro, nos termos legais, tendo indicado para o efeito o Prof. Doutor Rui Medeiros. A Requerida procedeu igualmente à designação de Árbitro, apontando o Prof. Doutor Mário Aroso de Almeida. Foi designado, de comum acordo entre os dois árbitros, o Prof. Doutor Rui Duarte Morais para presidir ao coletivo arbitral. Os árbitros aceitaram as designações, as quais não foram objeto de oposição.

O tribunal arbitral ficou constituído em 1-09-2020.

A Requerida, depois de notificada para o efeito, apresentou a sua Resposta.

Por despacho arbitral de 4-01-2021, foi decidido prescindir, por falta de objeto, da reunião a que se refere o art. 18º do RJAT, sendo a questão da eventual incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria, porque não suscitada pela Requerida, remetida para o acór¬dão arbitral, e, ainda, que não haveria lugar a alegações por as questões a resolver serem de direito e as partes, nos seus articulados, terem já exposto, de forma exaustiva, as suas posições. As partes não se opuseram a tal despacho.

 

II- SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas. A ação é tempestiva. O processo não enferma de nulidades. Não existem exceções de que cumpra conhecer, para além da que a seguir se aprecia.

 

II.1 - Eventual incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria e seu conhecimento oficioso

É conhecida a divergência existente quanto à questão da competência, em razão da matéria, dos tribunais arbitrais (CAAD) para conhecerem de impugnações de contribuições financeiras, como é o caso da CESE.

A)           Esta exceção não foi suscitada pela Requerida pelo que, num primeiro momento, importa apenas apurar se deve ser objeto de conhecimento oficioso pelo tribunal arbitral.

Este tribunal arbitral conclui pela negativa, fazendo sua, com a devida vénia, a fundamentação constante do acórdão arbitral 146/2019 , que passamos a transcrever:

A arbitragem tributária foi criada pelo Governo através do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT), emitido ao abrigo da autorização legislativa que lhe foi concedida pelo artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril. A autorização legislativa era indispensável para o Governo legislar validamente sobre esta matéria, uma vez que se está perante matéria atinente às garantias dos contribuintes e à competência dos tribunais, inserida na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, nos termos dos artigos 103.º, n.º 2, 165.º, n.º 1, alíneas i) e p), e 209.º, n.º 2, da CRP, e, por isso, o Governo não tem competência legislativa própria, como decorre dos artigos 198.º, n.º 1, alíneas a) e b), da CRP.

O referido artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010 autorizou o Governo a legislar no sentido de instituir a arbitragem como forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária, fixando como possível âmbito da arbitragem «os actos de liquidação de tributos, incluindo os de autoliquidação, de retenção na fonte e os pagamentos por conta, de fixação da matéria tributável, quando não dêem lugar a liquidação, de indeferimento total ou parcial de reclamações graciosas ou de pedidos de revisão de actos tributários, os actos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação, os actos de fixação de valores patrimoniais e os direitos ou interesses legítimos em matéria tributária».

O RJAT, emitido ao abrigo da autorização legislativa, não estendeu o âmbito da jurisdição arbitral tributária a todo o tipo de litígios permitidos pela autorização legislativa, limitando a competência dos tribunais arbitrais à «declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta», à «declaração de ilegalidade de actos de determinação da matéria tributável, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais» e à «apreciação de qualquer questão, de facto ou de direito, relativa ao projecto de decisão de liquidação, sempre que a lei não assegure a faculdade de deduzir a pretensão referida na alínea anterior».

A Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, restringiu ainda mais o âmbito da arbitragem tributária, eliminando a possibilidade de recurso à arbitragem para declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando dêem origem à liquidação de qualquer tributo e para apreciação de qualquer questão, de facto ou de direito, relativa ao projecto de decisão de liquidação.

No entanto, o artigo 4.º, n.º 1, do RJAT, ao estabelecer que «a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça», veio fazer depender o acesso dos contribuintes à arbitragem tributária da existência de vinculação, decidida por membros do Governo, por acto de natureza regulamentar.

Foi em concretização deste desígnio legislativo que foi emitida a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, que definiu o «objecto da vinculação» e os «termos da vinculação» da seguinte forma:

Artigo 1.º

Vinculação ao CAAD

                Pela presente portaria vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam, nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, no CAAD — Centro de Arbitragem Administrativa os seguintes serviços do Ministério das Finanças e da Administração Pública:

a) A Direcção -Geral dos Impostos (DGCI); e

b) A Direcção -Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo (DGAIEC).

 

Artigo 2.º

Objecto da vinculação

                Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com excepção das seguintes:

a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;

b) Pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;

c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indirectos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação; e

d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efectuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira.

 

Artigo 3.º

Termos da vinculação

                1 – A vinculação dos serviços e organismos referidos no artigo 1.º está limitada a litígios de valor não superior a € 10 000 000.

                2 – Sem prejuízo dos requisitos previstos no Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, a vinculação dos serviços referidos no artigo 1.º está sujeita às seguintes condições:

a) Nos litígios de valor igual ou superior a € 500 000, o árbitro presidente deve ter exercido funções públicas de magistratura nos tribunais tributários ou possuir o grau de mestre em Direito Fiscal;

b) Nos litígios de valor igual ou superior a € 1 000 000, o árbitro presidente deve ter exercido funções públicas de magistratura nos tribunais tributários ou possuir o grau de doutor em Direito Fiscal.

                3 – Em caso de impossibilidade de designar árbitros com as características referidas no número anterior cabe ao presidente do Conselho Deontológico do CAAD a designação do árbitro presidente.

                Desta legislação e regulamentação pode concluir-se, embora a questão seja controversa, que a vinculação efectuada pela Portaria n.º 112-A/2011 restringe as possibilidades de acesso dos contribuintes à arbitragem tributária, pois a alínea a) do n.º 4 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010 e a alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT pre¬vêem a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD para apre¬cia¬ção da generalidade dos litígios relativos a actos de liquidação de tributos e a Portaria n.º 112-A/2011 limita a vinculação « à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação das pretensões rela¬tivas a impostos cuja administração lhes esteja cometida» ( com várias excepções).

Na verdade, os «impostos» são um dos tipos de «tributos», como decorre da alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP e do n.º 2 do artigo 3.º da LGT, que esclarece que «os tributos compreendem os impostos, incluindo os aduaneiros e especiais, e outras espécies tributárias criadas por lei, designadamente as taxas e demais contribuições financeiras a favor de entidades públicas».

Seja como for, mesmo que assim se entenda, é inequívoco que o Governo, no exercício dos poderes legislativos que lhe foram concedidos pela autorização legislativa, atribuiu aos tribunais arbitrais competência para a declaração de ilegalidade de actos de liqui¬dação de tributos, sem qualquer restrição derivada da sua natureza, designadamente não limitando essa competência a «impostos».

Se o artigo 4.º, n.º 1, do RJAT for interpretado como permitindo ao Governo, através de portaria, limitar a competência material dos tribunais arbitrais tributários definida no artigo 2.º do RJAT, a norma será materialmente inconstitucional, desde logo por força do disposto no artigo 112.º, n.º 5, da CRP, que estabelece que «nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qual¬quer dos seus preceitos».

Para além disso, o referido artigo 4.º, n.º 1, interpretado como permitindo que através de acto de natureza regulamentar fossem emitidas normas sobre garantias dos con¬tri¬buin¬tes e competências de tribunais, será também inconstitucional por incom¬pa¬ti¬bili¬dade com os artigos 103.º, n.º 2, 165.º, n.º 1, alíneas i) e p), e 209.º, n.º 2, da CRP, que impõem que essas matérias sejam reguladas por acto de natureza legislativa.

Assim, numa leitura conforme à Constituição, a vinculação efectuada através da Por¬ta¬ria n.º 112-A/2011 representará, à semelhança do que sucede com a convenção de arbitragem no âmbito da arbitragem voluntária, a manifestação de vontade da AT de aceitação da pretensão do contribuinte de submeter o litígio a arbitragem, formulada de forma genérica, que é necessária, como é a do contribuinte que formula o pedido de constituição do tribunal arbitral, para este se constituir.

Poderá entender-se que a falta do acordo necessário para a constituição do tribunal arbitral implica incompetência deste, sendo essa a consequência que resulta do regime previsto no artigo 18.º da Lei de Arbitragem Voluntária (Lei n.º 63/2011, de 14 de De¬zembro), que será subsidiariamente aplicável por remissão do artigo 181.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), aplicável aos processos arbitrais tri¬butários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT.

Mas, pelo que se referiu, a falta de vinculação da AT a determinado litígio que tenha por objecto um acto de liquidação de um tributo não pode implicar incompetência ma¬te¬rial do tribunal, pois esta apenas pode ser definida validamente por acto de natureza legislativa e a que foi definida no artigo 2.º, n.º 1, do RJAT atribui aos tribunais ar¬bi¬trais que funcionam no CAAD competência para apreciação da pretensão do con¬tri¬buinte.

Não implicando a falta de vinculação incompetência em razão da matéria, fica afas¬ta¬da, desde logo, a possibilidade de conhecimento oficioso, pois no contencioso tributário apenas a incompetência em razão da matéria e a incompetência em razão da hierar¬quia (que não está aqui em causa) podem ser apreciadas oficiosamente, como resulta do preceituado no artigo 16.º, n.ºs 1 e 2, do CPPT, aplicável aos processos arbitrais tri¬butários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT.

Assim, não se tratando de incompetência absoluta, tratar-se-á de incompetência re¬la¬tiva, cuja apreciação pelo Tribunal depende de arguição no prazo da defesa, quer se en¬tenda que é de aplicar o artigo 18.º, n.º 4, da Lei de Arbitragem Voluntária, que esta¬belece o regime de incompetência de tribunais arbitrais [aplicável por força da remis¬são efectuada no artigo 181.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT], quer se entenda que é de aplicar o artigo 103.º do Código de Pro¬cesso Civil, que regula os casos de incompetência relativa, diploma este também de apli¬cação subsidiária aos processos arbitrais tributários, nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

Pelo exposto, não tendo sido arguida a falta de vinculação no prazo da defesa, não se toma conhecimento da hipotética questão de incompetência.

 

b) Ainda que entendesse ser tal exceção do conhecimento oficioso, este tribunal arbitral sempre concluiria pela sua competência, pelos fundamentos constantes do acór¬dão arbitral n.º 312/2015-T  que, também com a devida vénia, se transcrevem:

Por último, invoca ainda a Requerida a incompetência material do tribunal, fun¬da¬men¬ta¬da na não vinculação formal da AT aos tribunais arbitrais constituídos para a apre¬cia¬ção de quaisquer questões que não estejam relacionadas com “impostos”. Em ou¬tras palavras, o que a AT defende é que, na eventualidade de o tribunal concluir que o tri¬buto em apreço é juridicamente uma “contribuição” e não um “imposto”, uma tal de¬cisão não será oponível à AT, na medida em que esta, por efeito do disposto no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, apenas se encontra vinculada à “jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objeto a apre¬ciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja co¬metida referidas no n.º 1 do artigo 2.º [do RJAT]”.

Para a AT, embora o RJAT refira expressamente, na alínea a)  do n.º 1 do artigo 2.º, que o âmbito material da arbitragem abrange “a declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos”, o facto de o mencionado artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 ter usado a expressão “impostos” em vez de manter a de “tributos” significa que o Governo terá querido restringir os litígios a que a AT se vincula aos que se relacionam com impostos.

Todavia, uma tal interpretação não se nos afigura juridicamente correta.

Em primeiro lugar, o teor literal e a articulação sistemática dos preceitos não permitem um esclarecimento direto e evidente do sentido das normas. E se algum sentido se pode atribuir de forma mais próxima e fiel à interpretação literal-sistemática dos preceitos, é o de que a referência a “impostos” em vez de “tributos” no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, seguida da remissão expressa para o n.º 1 do artigo 2.º do RJAT e da enunciação expressa de um conjunto de exceções, indicia que o ‘legislador’ da Portaria não teve a intencionalidade restritiva clara que a AT invoca, pois se assim fosse teria feito alusão expressa a essa restrição no leque das alíneas que contemplam as exceções.

Em segundo lugar, a convocação dos elementos teleológico e racional da interpretação jurídica também não apontam para a razoabilidade de uma tal restrição, mas apenas para a “limitação do âmbito de vinculação da AT através da titularidade dos poderes para administrar os tributos”, sendo esse, de resto, o limite lógico da vinculação – não abrangendo a restrição assim os relacionados com “contribuições” também por ela liquidadas.

O facto é que o procedimento de liquidação e cobrança dessas “contribuições” em nada se distingue, na sua natureza e estrutura, do dos “impostos” (a AT atua aí como se de impostos se tratasse), donde não há razão válida para excluir a vinculação da AT, nesses casos, à arbitrabilidade.

A inexistência de uma referência expressa no texto do artigo 2.º da mencionada Portaria n.º 112-A/2011 a esse tipo de tributos dever-se-á apenas, ao fim e ao cabo, ao facto de, à data dela, ainda não se encontrar atribuído à administração da AT qualquer tributo com tais características.

Mais, a doutrina em que a AT se louva não permite sustentar uma posição diversa, antes pelo contrário.

Assim, p. ex., SÉRGIO VASQUES e CARLA CASTELO TRINDADE em «O âmbito material da arbitragem tributária», Cadernos de Justiça Tributária n.º 00 (Abril/Junho 2013), pág. 24, deixam claro que

“os serviços e organismos referidos no artigo anterior [hoje, a AT] vincu¬la¬ram-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que te¬nham por objeto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja ad¬mi¬nistração lhes esteja cometida referidas no artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.

Nos termos do art.º 2.º do DL n.º 118/2011, de 15/12, o qual aprovou a Lei Orgânica da Autoridade Tributária e Aduaneira, esta entidade tem assim sob a sua égide a administração dos direitos aduaneiros, dos impostos sobre o rendimento, dos impostos sobre o património e dos impostos sobre o consumo e, bem assim, dos demais tributos que lhe sejam legalmente atribuídos como, por exemplo, as contribuições especiais”.

Nesta medida, considera-se que o âmbito da arbitrabilidade abrange, como decorre da interpretação conjugada dos artigos 2.º do RJAT e da Portaria n.º 112-A/2011, a apreciação das pretensões relativas a tributos cuja administração esteja cometida à AT, com exceção dos casos enunciados nas alíneas do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011  ̶  abrangendo, portanto, também as pretensões relativas a “contribuições” por ela administradas.

Consequentemente, e uma vez que a CESE, tal como resulta do artigo 7.º do respetivo regime jurídico, aprovado pelo artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro (na redação entretanto atualizada pela Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro, e pela Lei n.º 33/2015, de 27 de Abril) é um tributo administrado pela AT, cujo procedimento de liquidação e cobrança é estruturalmente idêntico ao dos impostos, o tribunal arbi¬tral é competente para dirimir o presente litígio, independentemente de este tributo vir a ser qualificado como contribuição ou como imposto.

c) Restará acrescentar, no sentido da conclusão pela competência, que a sustentação da tese contrária, que, como resulta do acima transcrito, assenta na valoração a atri¬buir ao uso da palavra «imposto» no corpo do art. 2º da “portaria de vinculação”, pa¬re¬ce decisivamente posta em causa em razão da nova alínea e) desse mesmo artigo (introduzida pela Portaria nº 287/2019, de 3 de setembro), segundo a qual são excluí¬das da vinculação da AT à jurisdição do CAAD as pretensões relativas à declaração de ilegalidade da liquidação de tributos com base na disposição antiabuso referida no nº 1 do artigo 63º do CPPT, que não tenham sido precedidos de recurso à via adminis¬tra¬tiva nos termos do nº 11 do mesmo artigo.»

A subscrever-se (melhor, a continuar a subscrever-se) a tese da incompetência ma¬te¬rial dos tribunais arbitrais para apreciarem da legalidade de contribuições financeiras, seríamos conduzidos a um absurdo: os tribunais arbitrais seriam materialmente incom¬petentes, exceto quando tais liquidações resultassem da aplicação da norma anti¬abu¬so, tendo havido prévio recurso à via administrativa.

A nova norma deve, a nosso ver, ser entendida como constituindo expressão literal atualizada do âmbito de vinculação da AT aos tribunais arbitrais, isto é, que a mesma abrange quaisquer tributos de que tenha a administração.

 

III – PROVA

III. 1 – Factos provados

Consideram-se provados os seguintes factos:

a)            A atividade da Requerente consiste na produção de eletricidade de origem térmica, operando a Central ... – central a ciclo combinado a gás natural.

b)           A 20.01.1993 foi atribuída à ora Requerente uma licença vinculada de produção de energia elétrica na Central ..., nos termos do n.º 2 do art. 11.º do Decreto-Lei nº 99/91, de 2 de março.

c)            Antes da atribuição da referida licença, foram publicados anúncios, no Diário de Notícias de 21 de janeiro de 1991 e em imprensa internacional, nomeadamente no Financial Times, convidando as empresas interessadas a apresentarem propostas para a aquisição e operação da Central ... .

d)           Aos interessados foi disponibilizada a documentação tida por necessária para elabo¬ra-rem as suas candidaturas, nomeadamente os documentos intitulados Parte I – Pro¬gra-ma; Parte II – Base da Licença de Produção de Energia Elétrica, anexos aos autos e que aqui se dão por reproduzidos.

e)           De tais documentos (Parte I – programa da consulta) consta, nomeadamente, o seguinte:

- As entidades competindo a esta consulta são convidadas a apresentar uma proposta de condições para aquisição dos 2 primeiros grupos da Central, e uma proposta para fornecimento da electricidade produzida por estes grupos à B... (…)  (ponto 1.7)

- As entidades consultadas são ainda convidadas a apresentar uma proposta de referência para o fornecimento da electricidade produzida pelo 3Q e 4Q grupos da Central, que servirá de base para as futuras negociações com vista ao estabelecimento do contrato de compra da energia relativo a estes grupos, as quais ocorrerão imediatamente antes do início da respectiva construção (ponto 1.8).

- À entidade consultada seleccionada em resultado desta consulta, será asse¬gu¬rada pelo Governo Português a transmissão da licença de produção de energia eléctrica, relativa à Central ..., com vista à celebração com a B... dos contratos de compra desta Central e de fornecimento numa primeira fase da energia eléctrica produzida pelo 1Q e 2Q grupos, por um período de vinte e oito anos.

Nessa altura a entidade consultada formalizará a constituição da sociedade que irá adquirir e explorar a Central, submetendo-se a legislação em vigor no país· para o exercício desta actividade. (ponto 1.11).

f)            Em cumprimento do que então dispunha o art. 85º do Tratado de Roma (relativo à proibição de acordos restritivos da concorrência e suas exceções), o acordo celebrado entre a B..., então empresa detida integralmente pelo Estado, e a Requerente foi su¬jeito a aprovação pela Direção-geral da Concorrência da CEE, a qual obrigou à alte¬ra¬ção de várias das disposições constantes do projeto inicial.

g)            A concordância com a versão final de tal acordo ficou expressa pela Comunicação no Jornal Oficial das Comunidades Europeias – Caso IV/34.598 – Central ..., em 23 de Abril de 1996.

h)           De tal Comunicação consta, nomeadamente, o seguinte: The selection of the Generator has been the result of a call for tenders at an international level. The Generator was selected as the winning candidates a result (inter alia) of bidding a price for capacity over the term of the PPA which offered the most competitive cost of power to B… and to  B… costumers of all the candidate consortia.

i)             Tal acordo inseriu-se no objetivo de criar concorrência no mercado de produção de energia elétrica, abrindo-o à iniciativa privada.

j)             Foi efetuado um procedimento de inspeção interno à Requerente, que originou as liquidações ora impugnadas.

k)            No quadro de tal inspeção, a Requerente forneceu documentação que, a seu ver, comprovaria estar isenta do pagamento da contribuição em causa, a qual foi remetida à DGEG, para que esta, no âmbito da sua competência técnica na matéria, emitisse parecer.

l)             Foi elaborada, pela DGEG, a informação n.º 287/2018, de 03.08.2018, a qual remeteu para a informação n.º 71/2016, anteriormente elaborada, a qual versava sobre a mesma situação, ainda que relativamente a diferente exercício.

m)          Esta informação concluiu como se segue: A exceção prevista na alínea d) do artigo 4.º diz respeito a licenças ou direitos contratuais atribuídos na sequência de concurso público, e salvo melhor opinião o procedimento evidenciado pelas empresas não nos parece configurar a figura do concurso público previsto no Código de Contratação Pública.

n)           Mais, refere tal informação que todas as centrais do Decreto-Lei n.º 240/2004, de 27 de dezembro, celebraram o Acordo de Cessação antecipada do CAE (Contrato de Aquisição de Energia) ao abrigo deste diploma e atualmente com CMEC (Contrato para a Manutenção do Equilíbrio Contratual) não suscitaram a isenção ao abrigo da alínea d) do artigo 4.º da CESE, situação que apenas ocorreu para estas duas centrais (a Requerente e outra) que não celebraram esse Acordo, mantendo os respetivos CAE.

o)           No ponto III de tal informação, intitulado “repercussões e implicações da isenção de pagamento ou não da CESE por parte dos centros electroprodutores titulares de CAE” (entre os quais aparece expressamente mencionada a Requerente), que aqui se dá por reproduzido, é feito um alerta para o facto de tais titulares poderem, por força de tais contratos, requerer o recálculo da respetiva remuneração, caso se verifique um acrés¬ci-mo de custos decorrentes de alterações legislativas, de modo a que sejam colocados na mesma situação em que se encontrariam caso não tivesse ocorrido tal alteração legislativa. É aí, ainda, analisada a e situação que se geraria caso titulares de CAE pe-direm o recálculo das respetivas remunerações contratuais em resultado de obrigação de pagamento da CESE.

p)           Esta informação foi sancionada pelo Senhor Diretor-geral da DGEG, como se segue: Concordo com o exposto na presente informação. À consideração do Senhor Secretário de Estado a homologação sobre o entendimento da DGEG de que não existe informação recolhida que comprove a existência de concurso público, pelo que não se deve considerar que estes Centros Eletroprodutores titulares de CAE, A... (…), estão isentos ao abrigo do disposto na alínea d) do artigo 4.º da CESE.

q)           A 13.08.2018, o Senhor Secretário de Estado da Energia despachou a informação DGEG n.º 287/2018, nos seguintes termos: Visto. Deve a DGEG fornecer à AT todos os ele¬men¬tos necessários à boa decisão sobre esta questão.

r)            Nos termos do novo n.º 12 do art.º 7.º do RCESE, a DGEG passou a enviar à AT, até 31 de janeiro de cada ano, a lista dos sujeitos passivos que exercem as atividades elen-ca¬das no art.º 2.º do RCESE, bem como eventual enquadramento no art.º 4.º do mesmo regime. Em tal lista a Requerente figura como sujeito passivo não isento, sendo que não houve alteração de circunstâncias factuais entre o exercício em causa nos pre-sen¬tes autos e aquele (s) a que se refere tal lista.

s)            De várias intervenções públicas de membros de sucessivos Governos resulta o enten¬di-mento destes de que o Contrato de aquisição de Energia (CAE) relativo à Central ... resultou de um concurso público (audição parlamentar do então Ministro da Indústria e Energia, Eng. C..., em 4 de julho de 2018 e entrevista do Dr. D..., na altura Secretário de Estado da Energia, publicada, a 3 de julho de 2018, pelo Observador).

t)            Da proposta de Lei do Orçamento do Estado para 2019 constava uma norma visando restringir o leque dos operadores isentos da CESE.

u)           Tal proposta foi entendida, pela imprensa à época, como visando obrigar alguns pro-dutores de energia, entre eles, especificamente, a Requerente, ao pagamento da CESE, de que estariam isentos.

v)            Tal proposta não foi aprovada.

w)          A A... solicitou, em 26/11/2019, a prorrogação do prazo para o exercício do direito de audição prévia, ao abrigo do disposto no n.º 6 do artigo 60.º da Lei Geral Tributária (LGT).

x)            Tal requerimento foi indeferido nos seguintes termos: O prazo que a Lei Geral Tri¬bu¬tá-ria (LGT) concede, que varia entre 15 e 25 dias, tem que ser necessariamente conciliado com os prazos que a própria Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) tem nos termos da lei, designadamente pelo Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tribu¬tá¬ria e Aduaneira (RCPITA) e pelo art. 45º da LGT, sob pena de preclusão do prazo de ca¬du¬cidade do direito à liquidação.

y)            Apesar de a Requerente, no entender da AT, ter exercido o seu direito para além do prazo concedido, foi o mesmo considerado na versão definitiva do RIT.

z)            A Requerente solicitou que lhe fosse fornecida cópia da lista dos sujeitos passivos, elaborada pela DGEG em cumprimento do novo n.º 12 do artigo 7.º do regime jurídico da CESE, lista essa expressamente mencionada no RIT.

aa)         A AT recusou tal pedido, invocando para tal a garantia dos restantes contribuintes, incluídos na lista elaborada pela DGEG, em termos de sigilo e confidencialidade e de forma a prevenir a perversão dos normativos legais em vigor (cfr. p. 29/41 do RIT).

Os factos dados como provados são consensuais, não tendo sido objeto de impugnação, sendo, na totalidade, confirmados por documentos tidos por idóneos.

III – Factos não provados

Não existem factos não provados relevantes para a boa decisão da causa.

 

IV – O Direito

Não tendo a Requerente indicado qualquer relação de subsidiariedade entre os vícios que imputa às liquidações impugnadas, começar-se-á pela apreciação da questão da isenção invocada pela Requerente, atento o disposto no art. 124.º, n.º 2, al. a), do CPPT.

                IV.1 -. A questão central que cumpre apreciar no presente acórdão é a de saber se a Re-querente se encontra abrangida pelo regime de isenção previsto na alínea d) do artigo 4.º do Regime Jurídico da Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energé¬tico (CESE).

 Dispõe a referida alínea que é isenta da contribuição extraordinária sobre o setor ener¬gé-tico “a produção de eletricidade por intermédio de centros eletroprodutores com licenças ou direitos contratuais atribuídos na sequência de concurso público, des¬de que os respetivos produtores não se encontrem em incumprimento das obriga¬ções resultantes da adjudicação no âmbito de tais procedimentos”.

A questão cifra-se, assim, em saber se foi na sequência de concurso público que foi emitida a licença ou o direito contratual ao abrigo do qual funciona o centro eletro¬pro¬dutor por intermédio do qual a Requerente produz eletricidade.

A análise deve ser colocada em dois planos: o da determinação, em abstrato, do sentido e alcance da previsão da alínea d) do artigo 4.º do Regime Jurídico da CESE; e o da subsunção ou não, em concreto, da situação da Requerente a essa previsão nor¬ma¬tiva.

IV.2. Comecemos, pois, pelo primeiro plano da análise.

A alínea d) do artigo 4.º do Regime Jurídico da CESE tem em vista isentar desta contri-bui¬ção extraordinária “centros eletroprodutores com licenças ou direitos contra¬tuais atribuídos na sequência de concurso público”.

Na economia do preceito, ocupa papel central o conceito de concurso pú¬blico.

Vejamos, pois, a respeito desse conceito.

O conceito de concurso público tem longa tradição na ordem jurídica portuguesa. Tradicionalmente, correspondia aos procedimentos que, no Direito Europeu da Con¬tra¬¬ta¬¬ção Pública, são qualificados como procedimentos abertos, por serem lançados atra¬vés da publicação de um anúncio, com vista a permitir a participação, sem dis¬tinção, de todos os eventuais interes¬sa¬dos, desde que preencham os requisitos neces¬sá¬rios para o efei¬to. E contrapunha-se, desse modo, aos procedimentos de ajuste di¬reto, assim como aos concursos sem publicação de anúncio, isto é, aos procedimentos que, no Direito Europeu da Con¬tra¬¬ta¬¬ção Pública, são qualificados como procedi¬men¬tos fechados, por não serem lançados atra¬vés da publicação de um anúncio, mas atra¬vés de convite, dirigido a uma ou mais entidades, para a apresentação de propostas.

Em 2008, o vigente Código dos Contratos Públicos (CCP) veio, entretanto, regu¬lar o pro¬¬¬¬¬-ce¬dimento de concurso público, no âmbito da contratação pública, com um âmbito mais restrito, contrapondo-o à no¬va figura do concur¬so limitado por prévia qua¬lificação. Dentro do universo dos pro¬ce¬¬dimentos abertos, por serem lançados atra¬vés da publicação de um anúncio, e, portanto, dos procedimentos que, até aí, corres¬pon¬diam, indiferenciadamente, ao con¬ceito de concurso público, esta¬bele¬ceu, assim, o CCP uma distinção, consoante os con¬correntes necessitem ou não de pre¬encher requi¬sitos de pré-qualificação para po¬derem apresentar propostas: se neces¬sitarem de pre¬encher esses requisitos, o concurso é um concur¬so limitado por prévia qua¬lificação; se não necessitarem, é um concurso público.

É de notar que, na economia do CCP, tanto o concurso público, como o concurso limitado por prévia qualificação, são procedimentos aber¬tos, por serem lançados atra¬vés da publicação de um anúncio, com vista a permitir a participação, sem dis¬tinção, de todos os eventuais interes¬sa¬dos que preencham os requisitos necessários para o efei¬to, e, portanto, são concur¬sos públicos, no sentido tradicional da expressão. O que sucede é apenas que o concurso limitado por prévia qualificação é mais exigente quan¬to aos requisitos de cujo preenchimento faz depender a possibilidade de os in¬teres¬sados apresentarem propostas.

Esta circunstância explica que, do ponto de vista da possibilidade da sua utili¬za¬ção pelas entidades adjudicantes, o CCP, de harmonia com o regime das Diretivas da União Europeia sobre a matéria, dê o mesmo tratamento ao con¬curso públi¬co e ao concurso limitado por prévia qualificação, permitindo que elas escolham livre¬men¬te se recorrem a um ou a outro. Com efeito, a escolha do concurso limitado por pré¬via qualificação não compromete a publicidade e a transparência da contratação: do que se trata é apenas de estabelecer, à partida, requisitos mais exigentes de partici¬pa¬ção dos eventuais interessados.

IV.3. Atendendo ao quadro que acaba de ser descrito, coloca-se a questão de saber em que sentido o legislador da alínea d) do artigo 4.º do Regime Jurídico da CESE terá pre-tendido utilizar o conceito de concurso público.

Em nosso entender, não é no sentido que resulta do CCP que o conceito é utiliza¬do no preceito em análise. E isto, por diversas ordens de razão.

Desde logo, porque, tendo o legislador em vista, no preceito em causa, situações que necessariamente se cons¬¬ti¬tuí¬ram em momento anterior ao da entrada em vigor do CCP, não é natural que ele adote como referência um conceito que o CCP introduziu com carácter inovatório. Tanto mais, na medida em que não se vê razão justificativa para que o fizesse.

Com efeito, se é tradicional, na nossa ordem jurídica, que o legis¬la¬¬dor dê, para diversos efeitos, tratamento diferen¬ciado às situações constituídas me¬di¬ante concurso público em relação às demais, isso devia-se à circunstância de que, como foi ex¬plicado, a figura do concurso público abrangia o universo dos procedi¬mentos abertos, lançados atra¬vés da publicação de um anúncio, em contraponto aos procedi¬men¬tos fechados, de ajuste direto ou concurso sem publicação de anúncio, lançados atra¬vés de convite, dirigido a uma ou mais enti-da¬des, para a apresentação de propostas.

Pelo contrário, como foi dito, o CCP dá o mesmo tratamento ao con¬curso públi¬co e ao concurso limitado por prévia qualificação, do ponto de vista da possibilidade da sua utili¬za¬ção pelas entidades adjudicantes, precisamente porque, sendo ambos procedi¬mentos abertos, a escolha entre um e outro só pode ser determinada por razões de ordem técnica, relacionadas com o maior ou menor grau de complexidade dos contratos a celebrar.

Ora, colocando-se a questão nestes termos, não se vê por que razão o legislador da alínea d) do artigo 4.º do Regime Jurídico da CESE haveria de pretender restringir o âmbito de aplicação do preceito às situações de concurso público, com a configu¬ra¬ção que lhe é dada pelo Código dos Contratos Públicos, com exclusão das situações resultantes de concurso limitado por prévia qualificação.

A isto acresce que a utilização do tipo procedimental de concurso público, com a configuração que o CCP lhe confere, faz sentido, no âmbito dos procedimentos de formação do vasto universo dos con¬tra¬tos submetidos às regras da contratação públi¬ca, para a seleção de concorrentes à cele¬bra¬ção de con¬tratos de objeto indiferenciado, em relação aos quais não se justifica a impo¬si¬ção de requisitos de pré-qualificação de natureza técnica ou financeira dos con¬corr¬en¬tes, sendo nesse pressuposto que se jus¬tifica e compreende a contraposição que, no CCP, tal como sucede nas Diretivas euro¬peias da contratação pública, é estabelecido entre concursos com e sem a im¬posição de re¬qui¬sitos de pré-qualificação.

Pelo contrário, no domínio específico que a alínea d) do artigo 4.º do Re¬gime Jurídico da CESE tem em vista, a questão coloca-se de modo diferente, pois não é de conceber que a atribuição de licenças ou direitos contratuais para a produção de eletri¬ci¬dade por intermédio de centros eletroprodutores possa ser objeto de um con¬curso no qual não sejam impo¬stos requisitos de pré-qualificação de natureza técnica e finan¬ceira.

Mais do que isso: não se vê a que situação concreta se poderia aplicar a previsão da alínea d) do artigo 4.º do Regime Jurídico da CESE, se ela fosse interpretada no sentido de exigir que as licenças ou direitos contratuais a que se refere tivessem sido atribuídos na sequência de um concurso público com a configuração específica que o Código dos Contratos Públicos associa ao conceito (com efeito, e ao contrário do que admite a Requerida, os procedimentos previstos no Decreto-Lei n.º 182/95 e 183/95, ambos de 27 de julho, para a aquisição de licenças de exploração de centros eletro¬pro¬dutores, no âmbito da celebração de contratos de produção de energia, também não pre¬¬viam a existência de concursos públicos, com a configuração específica que o Có¬digo dos Contratos Públicos associa ao conceito).

Considerando, pois, que tem em vista situações que necessariamente se cons¬¬ti¬tuí¬ram em momento anterior ao da entrada em vigor do Código dos Contratos Pú¬bli¬cos; que nenhuma razão parece justificar, para o efeito em análise, a diferenciação entre as situações constituídas por concurso público e por concur¬so li¬mitado por prévia quali¬fi¬cação; e, para mais, que nos movemos num do¬mínio em que não há lugar à apli¬ca¬bilidade do tipo procedimental de concurso pú¬blico, com a configuração espe¬cí¬fica que o CCP lhe confere, não se afigura que tenha sido por referência a este tipo de pro¬ce¬di¬men¬to que o legislador da alínea d) do artigo 4.º do Regime Jurí¬dico da CESE pre¬tendeu utilizar o conceito de concurso público.

No entender deste Tribunal, a alínea d) do artigo 4.º do Regime Jurídico da CESE uti¬liza, pois, o conceito de concurso público no sentido amplo, tradicional na ordem ju¬rídica portuguesa, tanto no âmbito da contratação pública, como fora dele, que abran¬¬ge o universo dos procedimentos que, no Direito Europeu da Con¬tra¬¬ta¬¬ção Pú¬bli¬ca, são qualificados como procedimentos abertos, por serem lançados atra¬vés da pu¬bli¬cação de um anúncio, com vista a permitir a participação, sem dis¬tinção, de todos os eventuais interes¬sa¬dos, desde que preencham os requisitos necessários para o efeito.

IV.4. Passemos agora à análise da questão de saber se a situação da Requerente deve ser subsumida à previsão da alínea d) do artigo 4.º do Regime Jurídico da CESE.

Em sentido contrário à possibilidade de tal subsunção, afirma a Requerida que “para os efeitos do gozo da isenção em causa o que releva é o procedimento levado a cabo para a obtenção da licença de exploração”. Ora, a licen¬ça de exploração foi atribuída pelo Diretor-Geral de Energia nos termos do n.º 2 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 99/91, de 2 de março, e, portanto, no termo do procedimento regulado pelo Decreto-Lei n.º 100/91, de 2 de março, que não era um procedimento concor¬ren¬cial, mas um procedimento desencadeado pela apre¬-sentação de requerimento do interes¬sa¬do, que ao órgão competente cum¬¬pria decidir, de acordo com o preâmbulo do diplo¬ma, mediante uma “apreciação da conformidade da energia primária com as políticas energé¬ti¬cas do País” que precedia a fase de licenciamento técnico da central.

No entender deste Tribunal, esta perspetiva da situação é, no entanto, uma perspetiva redutora, que não apre¬ende, em toda a sua plenitude, o contexto em que ela se inscreve.

É verdade que a licen¬ça de exploração foi atribuída pelo Diretor-Geral de Energia nos termos do n.º 2 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 99/91, de 2 de março, e, por¬tan¬to, no termo do procedimento regulado pelo Decreto-Lei n.º 100/91, de 2 de março, que não era um procedimento concor¬ren¬cial. Tal como o procedimento regula¬do por este Decreto-Lei se encontrava nele configurado em abstrato, ele podia, pois, ser efe¬tiva¬men¬te desencadeado por qualquer interes¬sa¬do que, motu proprio, decidisse empre¬ender um projeto de produção de energia — hipótese na qual, como referido no pre¬âm¬¬¬¬¬bulo do diplo¬ma, haveria que se começar, naturalmente, por proceder a uma “apre¬¬¬ciação da conformidade da energia primária com as políticas energé¬ti¬cas do País” an¬tes de se avançar para a fase de licenciamento técnico da central.

A verdade, porém, é que não foi nessa circunstância que, em concreto, a Reque¬ren¬te se apresentou a requerer a licença de exploração. Se a Requerente se apresentou a requerer a licença de exploração, condição naturalmente necessária para que o cen¬tro eletroprodutor pudesse funcionar, foi porque ela já era titular de uma situação jurídica previamente constituída pelo Estado Português no âmbito de outro procedi¬men¬to, anterior a esse, que tinha sido desencadeado por iniciativa do Estado Portu¬guês, com vista à concretização do projeto de produção elétrica em causa. De onde resulta que, quando ela se apresentou a requerer a li-cen¬ça de exploração, a Reque¬rente não veio submeter um projeto próprio à apre¬¬¬ciação da sua conformidade com as polí¬ti¬cas energé¬ti¬cas do País, mas apenas pedir o licen¬ciamento técnico de uma central cuja conformidade com as políticas energé¬ti¬cas do País já estava adquirida.

Ora, esta circunstância reveste-se da maior importância para o efeito da presente análise. Nas concretas circunstâncias do caso em presença, o procedimento no âmbito do qual a licen¬ça de exploração foi atribuída pelo Diretor-Geral de Energia não pode, pois, ser entendido de forma isolada, como se nada tivesse existido a montante dele. Pelo contrário: se a licença de exploração foi atribuída à Requerente, não foi apenas porque o projeto por ela apresentado preencheu os requisitos técnicos necessários ao seu licenciamento; foi, antes disso, porque ela era titular de uma situação jurídica dirigida à constituição do direito de proceder a essa exploração que tinha sido constituída no âmbito de um procedimento anterior ao procedimento de licenciamento propriamente dito.

Na verdade, o Estado Português tinha lançado, em 1991, um procedimento dirigi¬do a selecionar um investidor estrangeiro interessado em adquirir, financiar a cons¬trução, e operar a central termoelétrica em causa, para produção de energia na moda¬lidade de Built, Operate and Own. E, no programa do referido procedimento, esta¬belecia-se que à en¬ti¬da¬de que viesse a ser selecionada seria assegurada pelo Governo Português a trans¬mis¬são da licença de produção de energia elétrica relativa à central em causa, com vista à celebração com a B... dos contratos de compra da mesma e de forne¬ci¬men¬to da ener¬gia elétrica produzida, acrescentando-se que, nessa altura, a en¬ti¬dade se¬le¬¬cio¬na¬da for¬ma¬lizaria a constituição da sociedade que iria adquirir e ex¬plorar a cen¬tral, sub¬meten¬do-se à legislação em vigor para o exercício desta ati¬vi¬dade.

O que, no caso em presença, sucedeu foi, pois, que, no termo de um pro¬cedi¬men¬to lançado pelo Estado Português, foi adjudicado a um investidor o direito de adquirir, financiar a construção, e operar a central termoelétrica, tendo sido esta¬be¬lecido que, na sequência disso, viria a ser constituída uma socieda¬de que iria adquirir e explorar a central, para o que teria, designadamente, de obter o licen¬cia¬mento técnico da mesma, em conformidade com a legislação em vigor para o exercício da atividade. E foi assim que a Requerente veio a ser consti¬tuí¬da e neste contexto peculiar que ela veio a reque¬rer a atribuição da li¬cen¬ça de exploração da central termoelétrica, em conformidade com o disposto nos Decretos-Leis n.º 99/91 e 100/91.

IV.5. Colocando-se a questão nos termos em que acaba de ser colocada, verifica-se, pois, que, ao contrário do que sustenta a Requerida, para os efeitos de se determinar, nos presentes autos, se a Requerente se encontra abrangida pelo regime de isenção que reivindica, o que releva não é o procedimento levado a cabo para a obtenção da licen¬ça de exploração, mas o procedimento, anterior a esse, no qual, como vimos, foi cons¬tituída a situação jurí¬di¬ca em cuja titularidade a Requerente se fundou para reque¬rer a licença de explo¬ra¬ção.

Vejamos, pois.

Esse procedimento comportou duas fases: uma fase de pré-qualificação de inte¬res¬sados na aquisição e operação da central termoelétrica; e uma fase designada como de consulta aos interessados que foram objeto de pré-qualificação, em que estes eram solicitados a apresentar propostas. A fase de pré-qualificação foi lançada através da pu¬blicação de um anúncio.

Independentemente da peculiar terminologia nele utilizado, deve reconhecer-se que se tratou, pois, de um concurso, e de um concurso com configuração idêntica àque¬¬¬¬la que, hoje, corresponde, no modelo do CCP, ao concurso limitado por prévia qua¬¬¬lificação.

Com efeito, estamos perante um concurso público, no sentido amplo, tradicional na ordem ju¬rídica portuguesa, que foi atrás explicitado, na medida em que se trata de um procedimento aberto, que foi lançado atra¬vés da pu¬bli¬cação de um anúncio, com vista a possibilitar o acesso à fase da pré-qualificação de todos os even¬¬tuais interes¬sa¬dos, sem dis¬tinção. Mas de um concurso em que são impostos requisitos de pré-qua¬li¬ficação de cujo preenchimento depende a possibilidade de os interessados apre¬sen¬¬tarem propostas.

IV.6. Isto mesmo foi reconhecido pela Comissão Europeia através do aviso publicado no então Jornal Oficial das Comu¬nidades Europeias, onde se reconheceu expressamente que a seleção da A... ocorreu no âmbito de um “concurso a nível internacional”, tendo aque¬la empresa sido selecionada como vencedora “em função, nomeadamente, de ter apre¬sentado a proposta de um preço (…) que oferecia, entre todos os consórcios candidatos, o custo mais competitivo de energia à B... e aos clientes da B...”. 

É certo que o aviso surgiu no quadro de um procedimento em matéria de concorrência. Basicamente, nos termos do artigo 2.º do Regulamento (CEE) n.º 17/62, as empresas notifica-vam à Comissão acordos por si celebrados com vista à obtenção de um certificado negativo, isto é, para que a Comissão Europeia confirmasse que considerava que não havia motivos para atuar ao abrigo do n.º 1 do então artigo 85.º do Tratado de Roma da então CEE, hoje artigo 101.º do TFUE, ou, em alternativa, para que a Comissão Europeia pudesse concluir que, mes-mo que o acordo fosse restritivo da concorrência, este preenchia todos os requisitos cumula¬ti-vos estabelecidos no n.º 3 do mesmo artigo.

Seja como for, no âmbito desse procedimento, a Comissão realizou uma prévia avaliação e, por isso, ainda que submetendo as conclusões provisórias à publicidade crítica – nos termos da normação então aplicável –, assumiu que não houve qualquer infração às regras europeias em matéria de concorrência plasmadas no artigo 85.º do Tratado CEE em vigor à época.

Significa isto que a publicação do aviso confirma que, para a Comissão Europeia, existiu concorrência pelo mercado na escolha da A..., tendo, pois, a Requerente sido sele¬cio¬nada através de procedimento aberto. Os três aspetos essenciais a ter em atenção neste qua¬dro, na apreciação que a Comissão Europeia fez a propósito da compatibilidade dos acordos posteriores com o direito da concorrência, são (i) a conclusão de que houve um concurso internacional, (ii) que a Requerente venceu o concurso ao ter apresentado o preço mais com-petitivo e (iii) havia outros candidatos para além da Requerente. 

Pelas razões expostas, deve, pois, entender-se que o procedimento na se¬quên¬cia do qual a Requerente obteve a licença de exploração foi um concurso pú¬blico, no sentido em que de deve entender que o conceito é utilizado na alí¬nea d) do artigo 4.º do Regime Jurídico da CESE, e, por conseguinte, que a Re¬que¬rente se encontra abrangida pelo regime de isenção previsto naquele preceito.

IV.7 – A Requerida considera que uma interpretação da alínea d) do artigo 4.º do Regime Jurí¬dico da CESE “no sentido de que a atribuição das licenças de produção de energia eléctrica nos termos dos Decretos-Lei n.º 99/91 e n.º 100/91, ambos de 2 de Março, configuram con¬cur¬sos pú¬blicos para efeitos de aplicação da isenção nela prevista”, deve ser julgada incons¬titu¬cional, por “violação dos princípios da legalidade (tipicidade e reserva de lei parlamentar) e da protec¬ção jurídica e da confiança (n.º 2 e 3 do art.º 103.º da CRP)”.

Fundamenta a sua posição no princípio da reserva de lei parlamentar, uma vez que é da competência da Assembleia da República ou, salvo autorização, do Governo e das Assem-bleias Legislativas das Regiões Autónomas, nos termos dos artigos 165.º, n.º 1, alínea i) e 238.º das CRP, respetivamente, fixar a disciplina dos impostos, observando todos os elementos essen¬ciais do imposto, nos termos do artigo 103.º, n.º 2 da CRP - incidência, taxa, benefícios fiscais e garantias dos contribuintes. Neste sentido, vem a Requerida invocar que “só estão isentos da CESE os sujeitos passivos (e aqui é irrefutável que a incidência objectiva e subjectiva está veri¬fi¬ca¬da) que se dediquem à «…produção de eletricidade por intermédio de centros eletroprodu¬tores com licenças ou direitos contratuais atribuídos na sequência de concurso público.”

Refere ainda a Requerida que a interpretação que contesta viola “o princípio constitu¬cio-nal da separação e interdependência de poderes, consagrado nos artigos 2.º e 111.º da CRP, cons¬tituindo-se o mesmo como referência e limite aos poderes de cognição dos tribunais no exercício da sua função no seio do Estado de Direito (cfr. artigos 202.º e 203.º da CRP), bem como do princípio constitucional da igualdade (cfr. artigo 13.º da CRP) o que aqui se deduz para todos os efeitos legais”.

 

IV.8 – Importa começar por sublinhar que a questão da violação dos princípios da legalidade (tipicidade e reserva de lei parlamentar) e da separação e interdependência de poderes respeita, em rigor, não à norma que se extrai da alínea d) do artigo 4.º do Regime Jurídico da CESE, mas antes ao próprio processo de obtenção da norma aplicável.

Significa isto que a alegada violação dos princípios da legalidade em matéria tributária e da separação e interdependência de poderes advém, no fundo, de o tribunal ter supostamente adotado uma interpretação errónea e abusiva da isenção consagrada na alínea d) do artigo 4.º do Regime Jurídico da CESE e, nessa medida, através de uma criação jurisdicional sem qual-quer base na lei, ter alargado o âmbito da isenção legalmente prevista, invadindo assim o es¬pa-ço reservado à lei parlamentar pelo artigo 102.º, n.º 2 e 3, da Constituição.

Ora, estando o tribunal convencido da bondade da interpretação adotada, explicitada longamente na fundamentação da decisão, não pode, obviamente, deixar de concluir que a argumentação da Requerida assenta numa premissa que, pura e simplesmente, não se ve¬rifica: a de que este tribunal adotou uma interpretação da alínea d) do artigo 4.º do Regime Jurídico da CESE que não tem “na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso” (artigo 9.º, n.º 2, in fine, do Código Civil).

IV.9 – Não é evidente o significado da referência da Requerida à violação do princípio da proteção jurídica e da confiança.

Com efeito, uma tal invocação surge em conexão com a suposta ofensa do “princípio da legalidade (tipicidade e reserva de lei parlamentar)” e a Requerida convoca, para ambos os casos, o disposto nos “n.º 2 e 3 do art.º 103.º da CRP)”. Ora, se assim for, a perturbação da confiança adveniente do pretenso erro de julgamento não procede pelas mesmas razões referidas no parágrafo anterior.

Todavia, mesmo que a Requerida esteja a invocar uma violação autónoma do princípio da proteção da confiança, forçoso será concluir que uma tal alegação não tem qualquer funda-men¬to. Por um lado, protegendo o princípio da proteção da confiança pessoas indivi¬dua¬li-záveis que se encontram numa situação de confiança, não se percebe quem terá confiado e qual a situação de confiança que carece de tutela. Por outro lado, não se alcança como se po-deriam encontrar verificados os diversos requisitos ou testes de que depende a tutela cons¬ti-tucional da confiança, a começar pela legitimidade da confiança, passando pelo investimento na confiança, e incluindo a identificação do ato que impôs o sacrifício da confiança e sua não jus¬tificação à luz da prossecução de outros interesses públicos em concreto prevalecentes.

 

 

IV.10 – Considerações distintas merece a invocação pela Requerida da violação do prin¬cí-pio constitucional da igualdade.

Neste caso, está indiscutivelmente em causa a invocação de uma inconstitucionalidade normativa. Basi¬ca¬mente, na perspetiva da Requerida, a alínea d) do artigo 4.º do Regime Jurí-dico da CESE, ao isentar do pagamento dessa contribuição, grosso modo, os produtores de ele¬tri¬cidade em instalações de cogeração ou com licenças ou direitos contratuais adquiridos na se¬quência de concursos públicos, estaria a excluir tal categoria de produtores de um tributo pú-blico imposto sobre os agentes do sector energético em geral, enquanto supostos causadores ou beneficiários dos gastos ou ganhos decorrentes da implementação de medidas públicas de garantia da sustentabilidade do sector.

Importa começar por lembrar que o controlo do respeito pelo princípio da igualdade deve ser um controlo meramente negativo, não sendo legítimo aos tribunais invocar o princípio da igualdade para orientar em concreto a opção por um ou outro critério valorativo. Como refere há muito o Tribunal Constitucional, “a prevalência da igualdade como valor supremo do orde-na¬mento tem de ser caso a caso compaginada com a liberdade que assiste ao legislador de ponderar os diversos interesses em jogo e diferenciar o seu tratamento no caso de entender que tal se justifica” (Ac. n.º 231/94). 

Em coerência, justamente por força dos limites à intensidade de controlo da igualdade decorrentes do princípio da separação de poderes, o Tribunal Constitucional, fora dos casos de proi¬bição de discriminação em função de alguma categoria suspeita do n.º 2 do artigo 13.º e da obri¬gação de diferenciação – hipóteses não aplicáveis ao caso -, considera que o princípio da igual¬dade envolve uma proibição de arbítrio (cfr., por todos, Acs. n.os 412/02 e 569/08). Signi¬fi¬ca isto que o Tribunal Constitucional só deve considerar uma lei discriminatória “se e na medi¬da em que não descortinar qualquer fundamento material para a distinção” (GOMES CANOTILHO, A concretização da Constituição pelo legislador e pelo Tribunal Constitucional, in Nos dez anos da Constituição, Lisboa, 1987, pág. 354).

Ora, no caso da alínea d) do artigo 4.º do Regime Jurídico da CESE, a isenção do pagamento da con¬tribuição concedida aos produtores de eletricidade em instalações de cogeração ou com licenças ou direitos contratuais adquiridos na sequência de concursos públicos não é, de forma alguma, desprovida de fundamento.

Há, na verdade, razões que podem justificar que se confira uma especial proteção ou uma pro¬te¬ção reforçada aos produtores de eletricidade por intermédio de centros electroprodu¬to¬res que tenham licenças ou direitos contratuais atribuídos na sequência de concurso público. Com efeito, nesses casos, a entidade adjudicante não ofereceu uma vantagem económica a uma em-presa privada por si livremente selecionada e a empresa que obteve a adjudicação não teve de fazer um esforço de otimização da sua proposta semelhante àquele que faria se estivesse em competição com outros concorrentes. Pelo contrário, está-se a falar de uma adju¬dicação no quadro de um procedimento aberto à concorrência, no qual se puderam apre¬sentar diver¬sos concorrentes, os quais, confiando nas condições de execução assumidas pela entidade adju-dicante, elaboraram, com base nelas, as suas melhores propostas com¬pe¬ti¬ti¬vas, assu¬mindo um conjunto de custos e investimentos e esperando, em compensação, a obtenção de uma determinada rentabilidade. Ora, surgindo supervenientemente uma contribuição ex¬tra¬or¬di¬nária sobre o setor energético, compreende-se que, nestes casos, o legislador não quei¬ra pôr em causa os compromissos anteriormente assumidos, incorrendo na consequente res¬pon¬sa¬bi¬li¬dade. Estamos, pois, longe de uma situação de arbítrio legislativo.

 

IV.11. O pedido da Requerida de ser julgado inconstitucional a alínea d) do art.º 4.º da RCESE, por violação dos princípios da legalidade (tipicidade e reserva de lei parlamentar) e da proteção jurídica e da confiança (n.º 2 e 3 do art.º 103.º da CRP), quando interpretada no sentido de que a atribuição das licenças de produção de energia elétrica nos termos dos Decretos-Lei n.º 99/91 e n.º 100/91, ambos de 2 de Março, configuram concursos públicos para efeitos de aplicação da isenção nela prevista, é, pois indeferido, pelas razões já supra explicitadas.

 

IV.12. Pelo exposto, considera-se prejudicada, por inútil, a apreciação dos demais vícios arguidos pela Requerente.

 

V – DECISÃO

 

Termos em que se conclui pela total procedência da impugnação e, consequentemente, pela anulação total da liquidação n.º 2019 CESE... de Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético (CESE), relativa ao exercício de 2015, e, ainda, das respetivas de liquidações de juros compensatórios e de juros de mora, no valor total de € 3.172.829,78, sendo € 2.723.204,50 respeitantes a tributo e € 449.625,28 a juros.

 

Valor do processo: € 3.172.829,78.

 

28 de janeiro de 2021

 

Rui Duarte Morais

Rui Medeiros

Mário Aroso de Almeida