Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 41/2012-T
Data da decisão: 2012-06-28  IRC  
Valor do pedido: € 31.956,15
Tema: Derrama
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Decisão Arbitral 1

Processo n.º 41/2012-T

 

Autor / Requerente: Sociedade “…”

 

 

Requerida: Autoridade Tributária e Aduaneira

 

 

I - RELATÓRIO

 

1. Em 17 de Fevereiro de 2012, a sociedade “…”, pessoa colectiva número … com sede social na …, submeteu ao Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) o pedido de constituição de tribunal arbitra singular, nos termos do disposto nos artigos 10.º n.º 1 alínea a) e 2.º n.º 1 alínea a) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, (de ora em diante designado, Regime Jurídico da Arbitragem Tributária ou RJAT) visando a declaração de ilegalidade parcial do acto tributário de liquidação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“IRC”) relativo ao exercício de 2008, com o n.º …, de … de Julho de 2010, emitido pela Direcção-Geral dos Impostos na parte correspondente à derrama e ao respectivo reembolso do montante de € 31.956,15 (trinta e um mil novecentos e cinquenta e seis euros e quinze cêntimos) acrescido do pagamento dos respectivos juros indemnizatórios calculados sobre o montante pago indevidamente pela Requerente.

 

2. No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente optou por não designar árbitro.

 

3. Nos termos do n.º 1 do artigo 6.º do RJAT, por decisão do Presidente do Conselho Deontológico, de 22 de Fevereiro de 2012, foi designado como árbitro único o signatário Olívio Augusto Mota Amador, que aceitou o encargo no prazo legalmente estipulado.

 

4. O tribunal arbitral foi constituído em 2 de Maio de 2012, na sede do CAAD (cfr., acta de constituição do tribunal arbitral).

 

5. Realizou-se, de seguida, em 22 de Maio de 2012, a primeira reunião do tribunal arbitral, nos termos e com os objectivos previstos no artigo 18.º do RJAT.

As partes não apresentaram correcções às peças processuais.

As partes foram expressamente ouvidas sobre a apresentação de alegações orais em audição marcada para o efeito. Ambas as partes prescindiram da apresentação de alegações orais. Assim, nos termos do artigo 18.º n.º 2 do RJAT o Árbitro decidiu o prosseguimento do processo designando data para a prolação da decisão arbitral. (cfr., acta da primeira reunião do tribunal arbitral).

 

6. A fundamentar o pedido de pronúncia arbitral a Requerente alegou, em resumo, o seguinte:

6.1. Até ao Oficio-Circulado n.º 20132 da Direcção de Serviços do IRC, de 14 de Abril de 2008, sempre foi entendimento que a derrama municipal é calculada sobre a colecta do Grupo. Quando estamos perante um Grupo tributado no âmbito do Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (“RETGS”), a unidade económica relevante para efeitos fiscais é o próprio Grupo e não as sociedades que o constituem, enquanto entes jurídicos distintos.

6.2. Para efeitos do RETGS o lucro tributável relevante é o do Grupo, calculado pela sociedade dominante através da soma algébrica dos lucros tributáveis e dos prejuízos fiscais individuais de cada uma das sociedades que o compõem.

6.3. Não é razoável defender-se como faz o Oficio-Circulado n.º 20132, de 14 de Abril de 2008, que a derrama municipal deve incidir sobre o lucro tributável de cada sociedade que pertença ao Grupo, ignorando os prejuízos fiscais apurados no mesmo exercício por algumas das sociedades do mesmo Grupo. Os prejuízos do exercício das sociedades que compõem o perímetro do Grupo sujeito ao RETGS mais não são do que resultados fiscais negativos que concorrem para o apuramento do único lucro tributável relevante e sobre o qual irá ser determinado o imposto a pagar: o lucro tributável do Grupo.

6.4. O cálculo da derrama municipal nos termos previstos no Oficio-Circulado n.º 20132, de 14 de Abril de 2008, subverte a lógica de tributação subjacente ao RETGS e contraria o princípio constitucional da tributação sobre o lucro real das empresas na medida que ignora o “lucro real” do Grupo.

6.5. O chamado “direito circulatório” não é fonte de direito, não vinculando, por isso, os contribuintes nem podendo ser invocado para a liquidação de tributos ou para a sua manutenção.

6.6. O apuramento da derrama municipal vertido no Oficio-Circulado n.º 20132 é contrário à própria letra da lei uma vez que, no limite, poderá determinar a incidência da derrama municipal sobre um lucro isento de imposto (v.g. lucros distribuídos entre sociedades de um Grupo sujeito ao RETGS que não reúnam as condições para aplicar o mecanismo de eliminação da dupla tributação económica previsto no n.º 1 do artigo 51.º do Código do IRC

6.7. A alteração operada pela Lei das Finanças Locais (“LFL”) de 2007 teve apenas como objectivo impossibilitar a dedução dos prejuízos fiscais apurados em exercícios anteriores à base de incidência da derrama municipal e não impedir que os prejuízos apurados no exercício por um estabelecimento não fossem considerados no apuramento da derrama municipal da sociedade a que pertencem, sendo este raciocínio extensível aos diversos estabelecimentos das diferentes sociedades que compõem um Grupo sujeito ao RETGS.

6.8. A derrama municipal não tem regras próprias de determinação da matéria colectável e, como tal, deverá seguir o modo de calculo do imposto base (o IRC).

6.9. A Autora requer que, sendo procedente a decisão arbitral ora requerida, lhe sejam pagos, nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT e dos artigos 43.º e 100.º, ambos da LGT, os respectivos juros indemnizatórios por pagamento indevido da prestação tributária.

 

7. No pedido de pronúncia arbitral a Autor juntou dezanove (19) documentos.

 

8. Em 16 de Maio de 2012, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou resposta na qual, em síntese abreviada, alegou o seguinte:

8.1. A derrama face à LFL de 2007 deixou de assumir natureza acessória, pois deixou claramente de atender, quer à matéria colectável, quer à própria colecta de IRC enquanto pressupostos da sua aplicabilidade. Sendo um imposto autónomo, apenas se socorre das regras de cálculo do IRC para apuramento do lucro tributável, pois que as especificidades da tributação em sede de IRC só a este dirão respeito, não sendo legalmente acolhidas para efeitos de sujeição à derrama. Donde ser forçoso concluir que a derrama consubstancia um imposto autónomo.

8.2. Quanto aos rendimentos sujeitos a derrama, todas as sociedades do grupo geram rendimentos sujeitos e não isentos de IRC a que corresponde um lucro tributável que individualmente cada uma apura na sua própria declaração de rendimentos.

8.3. Sobre a norma de incidência contida no n.º 1 do artigo 14.º da LFL, no contexto do RETGS, discorda-se que as razões subjacentes à criação deste regime especial de tributação, em sede de IRC, tendo em vista a unidade económica constituída pelo Grupo, possam afectar o âmbito de incidência da derrama, atendendo a que se trata de um imposto autónomo do IRC, que prossegue interesses distintos.

8.4. Essa autonomia da derrama municipal saiu especialmente reforçada com a LFL de 2007 ao deixar de prever como base tributável da derrama a colecta de IRC para passar a prever o lucro tributável sujeito e não isento, afastando-se, assim das vicissitudes do IRC ao nível da determinação da matéria colectável e apuramento da colecta.

8.5. A repartição da receita obtida por via da derrama pelos Municípios em cuja área o rendimento é gerado, tal como se encontra delineada no artigo 14.º da LFL, aprovada pela Lei n.º 2/2007, de 15 de Janeiro, tem na sua base a aplicação da derrama a cada sujeito passivo sujeito e não isento de IRC, independentemente de o mesmo integrar o perímetro fiscal de um Grupo tributado pelo RETGS.

8.6. O entendimento veiculado pelo Ofício-Circulado n.º 20132, de 14 de Abril de 2008, subjacente à autoliquidação de derrama controvertida, não enferma de qualquer erro na interpretação e aplicação da lei aos factos.

8.7. A derrama incidirá sobre o lucro tributável de cada uma das sociedades do Grupo, sendo essa a base tributável deste imposto. Efectivamente, todas as sociedades que integram o perímetro têm a obrigação legal de proceder à entrega da sua própria declaração de rendimentos, na qual apuram o seu próprio lucro tributável. Lucro tributável esse que será determinante para efeitos de cálculo da derrama devida pela sociedade.

8.8. Inexistindo qualquer estatuição que considere não sujeitos ou isentos de IRC os rendimentos das sociedades que integram o perímetro de um grupo de sociedades, não se vislumbra como possam os mesmos estar afastados de tributação em sede de derrama.

8.9. Tributar cada uma das sociedades que integram o perímetro, tendo por base o seu próprio lucro tributável, é aliás a melhor forma de conferir exequibilidade ao instrumento de financiamento dos Municípios que se consubstancia na derrama.

8.10. A alteração legislativa concretizada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro – Lei do Orçamento do Estado para 2012 – que procedeu à alteração do artigo 14.º da Lei n.º 2/2007, aí passando a consagrar expressamente que “quando seja aplicável o regime especial de tributação dos grupos de sociedades, a derrama incide sobre o lucro tributável individual de cada uma das sociedades do grupo, sem prejuízo do disposto no artigo 115.º do Código do IRC”. Esta alteração legislativa procura obstar à dimanação de jurisprudência eivada de inconstitucionalidade - por violação dos princípios constitucionais ínsitos nos artigos 81.º e 238.º da CRP – vícios de que uma decisão arbitral que acolha tal posição igualmente padecerá.

8.11. Quanto ao pedido de juros indemnizatórios não assiste razão à Autora porque no caso dos autos inexiste erro imputável aos serviços, requisito fundamental, a que alude o disposto no artigo 43.º da LGT, para o pagamento de juros indemnizatórios.

 

9. Para além das alegações relativas ao mérito da causa, a Requerida, na sua resposta, defendeu-se previamente por excepção, tendo invocado o seguinte:

9.1. Existe a impossibilidade da Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”) estar em juízo como única demandada em matéria respeitante a derrama municipal, imposto co-administrado com o Município

9.2. Os Municípios têm interesse em agir na área geográfica onde foram gerados os rendimentos. No presente caso os Municípios tem um interesse pessoal e directo no seu resultado, devendo qualquer decisão que seja proferida sobre o litígio fazer necessariamente caso julgado em relação a estes. É possível a sanação da invocada impossibilidade através de um incidente de intervenção principal provocada, a apreciar pelo tribunal arbitral

9.3. A incompetência do Tribunal arbitral para proferir decisão de mérito sobre a questão em litígio, porquanto esta não será apta a fazer caso julgado em relação aos Municípios, que não estão vinculados à jurisdição do CAAD. Assim, no caso de ser dado provimento ao pedido da Requerente, fica esta impossibilitada de executar a decisão arbitral contra os Municípios, por não ter quanto a eles a natureza de caso julgado.

 

10. Na mesma data da resposta a Requerida procedeu à junção do Processo Administrativa Tributário (PAT).

 

11. A Requerente em articulado superveniente admitido no processo, em 22 de Maio de 2012, (cfr., acta da primeira reunião do Tribunal Arbitral) pronunciou-se sobre as excepções (e incidente) arguidas pela Requerida na sua resposta tendo alegado, em síntese, o seguinte:

11.1 Quanto à alegada ilegitimidade passiva da Requerida, entende a Autora que os municípios limitam-se a ser os destinatários do produto obtido através da cobrança da derrama municipal, sendo que a sua intervenção reduz-se à decisão de aplicar a derrama em determinado ano e a determinar a respectiva taxa, conforme o disposto no artigo 14.º da LFL. Sendo a AT a entidade que administra a derrama municipal

11.2. Nas diversas acções intentadas junto dos tribunais administrativos e fiscais relativos à forma de calculo da derrama, no âmbito do RETGS, tem sido sempre a AT a parte demandada, sem que esta tenha arguido a sua ilegitimidade ou que esta excepção tenha sequer sido invocada pelo próprio tribunal.

11.3. Quanto à alegada incompetência do Tribunal Arbitral para apreciação da questão sub judice. Entende a Requerente que a vinculação de entidades à jurisdição dos tribunais arbitrais não se encontra dependente do facto de estas serem credoras dos tributos subjacentes às questões controvertidas, mas sim do facto de serem essas as entidades responsáveis pela administração dos mesmos.

11.4. Quanto à intervenção provocada dos municípios, nos presentes autos só está a ser discutida a legalidade da divida relativa à derrama, bem como os fundamentos da respectiva liquidação pela Requerida e isto basta para que a decisão que for proferida se imponha aos Municípios. Os Municípios, estando o imposto liquidado e estando a ser discutida a sua legalidade não têm interesse jurídico relevante em termos de intervenção processual em sede de discussão da legalidade.

11.5. Em resumo, a requerente conclui que a AT possui legitimidade passiva para ser demandada no presente processo arbitral. A vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais abrange as matérias relativas ao apuramento e liquidação da derrama. A intervenção provocada dos municípios é um acto inútil e ilegal.

 

II. QUESTÕES DECIDENDAS

12. As questões prévias suscitadas pela Requerida que é necessário apreciar e decidir no presente processo arbitral, são as seguintes: i) competência do Tribunal Arbitral; ii) legitimidade da Requerente; iii) incidente de intervenção provocada.

A apreciação de cada uma destas excepções supõe, evidentemente, que a respectiva decisão não seja prejudicada pela solução dada a outra (artigo 660.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, aplicável por força da al. e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT).

 

13. Se as invocadas excepções não procederem será realizado o julgamento de mérito sobre o objecto do pedido de pronúncia arbitral, ou seja, saber se para efeitos de determinação da derrama de sociedade, que se encontra sujeita ao RETGS, releva o lucro tributável do Grupo, calculado pela sociedade dominante, através da soma algébrica dos lucros tributáveis e dos prejuízos fiscais apurados nas declarações periódicas individuais, ou ao invés, releva o lucro tributário individual de cada uma das sociedades que integram o seu perímetro institucional, apurado de acordo com as regras gerais do IRC na esfera de cada uma das sociedades.

 

14. Será decidido, ainda, caso a excepções invocadas não procedam e a decisão de mérito venha a ser de procedência, a questão dos juros indemnizatórios a liquidar a favor da Requerente.

 

III. QUESTÕES PRÉVIAS

 

15. A Requerida na resposta suscitou as questões prévias seguintes (vd., supra n. 9.º):

i) Excepção dilatória da ilegitimidade passiva do Director-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira;

ii) Excepção dilatória da incompetência do tribunal arbitral;

iii) Incidente de intervenção provocada.

A Requerente em articulado superveniente pronunciou-se sobre as excepções deduzidas pela Requerida (vd., supra n.º 11.º)

 

16. Primeiro, começaremos por apreciar a invocada excepção dilatória da incompetência do tribunal arbitral. Se o tribunal arbitral for considerado incompetente fica impedido de apreciar as demais excepções e incidentes, assim, a decisão sobre esta excepção deve preceder o conhecimento de qualquer outra questão2.

 

A alegada incompetência do tribunal arbitral para apreciar a questão sub judice é fundamentada no facto dos municípios não se encontrarem submetidos à jurisdição arbitral, por falta de vinculação. Acresce que no caso da derrama são os municípios os sujeitos activos da relação jurídico tributária controvertida e não a AT.

A competência dos tribunais arbitrais está definida no artigo 2.º do RJAT.

O artigo 4.º n.º 1 do RJAT3 remete a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais para portaria conjunta dos Ministros das Finanças e da Justiça. Nestes termos a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março estabelece, no artigo 1.º, a vinculação à jurisdição arbitral dos serviços seguintes:

  1. Direcção Geral das Contribuições e Impostos (DGCI);

  2. Direcção Geral das Alfandegas e dos Impostos Especiais de Consumo (DGAIEC)

O Decreto-Lei n.º 118/2011, de 15 de Dezembro aprovou a estrutura orgânica da AT, entidade que resultou da fusão da DGCI com a DGAIE e com a Direcção Geral de Informática e Apoio aos Serviços Tributários e Aduaneiros (DGITA).

A fusão destes serviços produz efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2012. Após a entrada em vigor do diploma, as referências feitas na legislação à DGCI, à DGAIEC e à DGITA consideram-se feitas à AT (art. 12.º n.º 2 alínea a) do Decreto-Lei n.º 118/2011, de 15 de Dezembro).

Nos termos da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, a AT está vinculada à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD e que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhe esteja cometida (artigo 2,º n.º 1 do RJAT) As situações que estão excepcionadas da jurisdição arbitral constam das quatro alíneas do artigo 2.º da Portaria citada. A matéria em litígio não se enquadra em nenhuma das situações excludentes constantes do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O pedido objecto dos presentes autos arbitrais é a declaração de ilegalidade do acto de liquidação de derrama municipal, com base em vício de violação de lei directamente imputado á liquidação.

Os municípios têm o poder de deliberar o lançamento anual de uma derrama, nos termos da LFL. Essa deliberação deve ser comunicada por via electrónica pela câmara municipal à AT até 31 de Dezembro do ano anterior ao da cobrança, por parte dos serviços competentes do Estado (art. 14.º n.º 9 da LFL). Os procedimentos de liquidação e cobrança ficarão sendo encargo exclusivo da AT, sendo depois o produto cobrado remetido por transferência para o município interessado pela AT (art. 14.º n.º 11 da LFL).

À AT cabe conduzir o procedimento de liquidação e cobrança da derrama municipal, designadamente conferir e confirmar a respectiva autoliquidação pelo contribuinte ou proceder às correspondentes liquidações oficiosas e fiscalizar o cumprimento das obrigações tributárias em sede do mesmo tributo.

Além disso, a AT pode emitir orientações genéricas relativas à aplicação da derrama, apreciar as reclamações graciosas, responder aos pedidos de informação vinculativa e representar em juízo a Fazenda Pública em caso de controvérsias com a derrama municipal.

Em resumo, a derrama é administrada pela AT, logo a AT está vinculada à jurisdição arbitral nos presentes autos.

Concluímos que a matéria em litígio está incluída na competência deste Tribunal Arbitral, com a consequente vinculação da AT à presente arbitragem, sendo improcedente a excepção dilatória de incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria.

 

17. Em seguida analisamos a excepção dilatória da ilegitimidade passiva do Director-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira. A Requerida vem declarar-se parte ilegítima para ser demandada no presente processo arbitral, porque considera que a legitimidade passiva para intervir no litígio será dos municípios.

Da analise do artigo 14.º da LFL resulta claramente que a administração da derrama cabe à AT e não aos municípios (vd. supra n.º 16).

A circunstância de o município ser credor (sujeito activo) da derrama não acarreta directa e necessariamente a ilegitimidade da AT, porque esta entidade nem sempre é credora dos múltiplos impostos que administra, a maioria dos quais é receita do Estado.

Aos tributos de que as autarquias locais sejam sujeitos activos a competência material para os correspondentes procedimentos administrativos de arrecadação continua a ser detido pelos serviços tributários do Estado, neste caso pela AT.

Nesta matéria seguimos o disposto na Decisão Arbitral, de 29 de Março de 2012, no proc. n.º 19/2011-T. A citada Decisão Arbitral afirma: “…assegurando a AT, nos termos legalmente previstos, a administração da derrama municipal relativamente a cujos actos intermédios ou finais (administrativos) detém a competência decisória, temos de concluir assistir a essa entidade (uti singuli), não só a correspondente legitimatio ad causam (interesse directo em contradizer), como também os poderes para a representação da entidade credora em juízo arbitral no que tange à discussão da legalidade de actos de liquidação ou de autoliquidação das receitas tributárias a que se reportam os autos.”

Atendendo ao exposto, é julgada improcedente a excepção de ilegitimidade passiva da AT.

 

18. A Requerida pretende ainda que os Municípios têm interesse em intervir nestes autos em sede de “intervenção provocada”.

A apreciação da questão prévia da intervenção principal provocada dos municípios fica prejudicada, porque de acordo com o exposto no n.º anterior entendemos que a AT possui legitimidade passiva para ser demandada em exclusivo no presente processo arbitral.

A Requerida é autora do acto de liquidação realizado de acordo com o seu entendimento expresso no Ofício-Circulado n.º 20132, de 14 de Abril de 2008, de que ela própria também é Autora. Aliás, os Municípios não foram ouvidos na elaboração do citado Ofício-Circulado nem, em sede de reclamação, os municípios tiveram qualquer intervenção neste processo. Os Municípios estando o imposto liquidado e discutindo-se a sua legalidade não tem interesse jurídico relevante em termos de intervenção processual.

De acordo com o exposto é julgado improcedente o incidente de intervenção provocado dos Municípios.

 

 

 

 

IV. SANEAMENTO

19. O Tribunal é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5º. e 6.º n.º 1 do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011 de 22 de Março.

O processo não enferma de vícios que o invalidem.

O Tribunal já se pronunciou sobre todas as questões prévias suscitadas (vd. supra n.ºs 15 a 18).

 

V. FUNDAMENTOS DE FACTO

20. Tendo em conta o processo administrativo tributário e a prova documental junta aos autos cumpre agora apresentar a matéria factual relevante para a compreensão da decisão, que se fixa como se segue:

  1. A Autora é sociedade dominante e responsável pela autoliquidação do IRC do Grupo ao qual, no exercício de 2008, foi aplicável o RETGS e que era composto por si e pelas sociedades: …; …; …; …; ...; …; …; ...; …; ….

 

  1. Em … de Julho de 2010, a Requerente entregou uma declaração anual Modelo n.º 22 de substituição, referente ao exercício de 2008.


 

  1. A declaração, identificada na alínea anterior, deu origem a nota de liquidação do IRC, relativo ao exercício de 2008, com o n.º …, de … de Julho de 2010, nos termos do qual o montante da derrama a pagar foi de €1.174.096,58.


 

  1. O montante da derrama, que consta da alínea anterior, foi apurado de acordo com o entendimento preconizado no Ofício-Circulado n.º 20132, de 14 de Abril de 2008, da Direcção de Serviços do IRC, de 14 de Abril de 2008.


 

  1. A derrama apurada em função do lucro tributável do Grupo (€76.653.719,94) é de €1.142.140,43 com a aplicação da taxa de 1,49%, de acordo com o art. 14.º n.º 2 da LFL (Cfr., doc. nº 19 anexo ao pedido de pronúncia arbitral).


 

  1. A Autora pede a restituição do montante de € 31.956,15 resultante da diferença entre a derrama devida pelo Grupo no montante de € 1.142.140,43 e o valor apurado pela AT no valor de € 1.174.096,58.


 

  1. A … de Maio de 2011 a Autora apresentou reclamação graciosa do acto de liquidação, identificado na alínea c), junto do Director de Finanças de … (Proc. n.º RG …/11).


 

  1. Em 17 de Novembro de 2011, a reclamação graciosa foi indeferida e a Requerente foi notificada, em 22 de Novembro de 2011.

 

 

VI. FUNDAMENTOS DE DIREITO

 

21. A matéria de facto está fixada (vd., supra n.º 20) e importa agora determinar o Direito aplicável aos factos subjacentes de acordo com as questões já enunciadas (vd., supra n.º 13).

 

22. Uma das manifestações do poder tributário próprio das autarquias locais, previsto no n.º 4 do artigo 238.º da Constituição da República Portuguesa (“CRP”), é o lançamento da derrama nos termos da LFL. (Cfr., José Casalta Nabais, Por um Estado Fiscal Suportável. Estudos de Direito Fiscal, Coimbra, Almedina, pp. 574).

 

23. Na LFL de 1998 (Lei n.º 42/98 de 6 de Agosto), a derrama incidia em função da colecta determinada pelos sujeitos passivos do IRC. Nos termos do n.º 1 do artigo 18.º daquele diploma os municípios podiam “… lançar anualmente uma derrama, até ao limite máximo de 10% sobre a colecta do imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC), que proporcionalmente corresponda ao rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos que exerçam, a título principal, uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola.”

 

24. A LFL de 2007 (Lei n.º 2/2007 de 15 de Janeiro) estabeleceu um novo regime para a derrama. O artigo 14.º n.º 1 da LFL estabelece que “Os municípios podem deliberar lançar anualmente uma derrama, até ao limite máximo de 1,5% sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC), que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável nesse território.”

 

25. Observa-se aqui, como salienta o Rui Duarte Morais, a derrama, com a LFL de 2007, deixou de ser um adicional ao IRC para passar a ser um adicionamento, ou seja, deixou de ser calculada por aplicação de uma taxa à colecta, passando a ser calculada por aplicação de uma taxa à matéria colectável. (Cfr., Rui Duarte Morais, “Passado, presente e futuro da derrama”, in Fiscalidade. Revista de Direito e Gestão Fiscal, n.º 38, Abril-Junho 2009, pp. 112).

 

26. Poderá mesmo afirmar-se que, da análise da LFL de 2007, resulta que a derrama pode ter regras próprias, por exemplo, de determinação da matéria colectável, de liquidação, de pagamento, de obrigações acessórias diferenciadas das normas do IRC.

Só que a LFL não regula de forma completa a relação jurídico tributária da derrama. O regime da derrama, à data do presente caso arbitral, era omisso relativamente a regras específicas de determinação da matéria colectável. Por isso, concordamos com Manuel Anselmo Torres quando afirma que “…a lei não adianta quaisquer regras ou princípios dos quais pudesse extrair uma definição própria ou autónoma de matéria colectável da derrama. Há, por isso que a procurar no regime do IRC. (Cfr., Manuel Anselmo Torres, “Relevância dos prejuízos fiscais na matéria colectável da derrama”, in Fiscalidade. Revista de Direito e Gestão Fiscal, n.º 38, Abril-Junho 2009, pp. 159). Assim, concluímos que, á data dos factos do presente caso, a LFF era omissa relativamente a regras próprias para a determinação da matéria colectável da derrama, devendo aplicar-se o regime do IRC.

 

27. Na factualidade objecto dos presentes autos arbitrais (vd., supra n.º 20 A)) resulta que a Requerente estava sujeita ao RETGS.

Na versão inicial do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“CIRC”) existia a possibilidade, ainda que muita restrita, de os grupos de sociedades residentes em Portugal optar por ser tributados pelo lucro consolidado. Tal sistema foi eliminado pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro tendo em sua substituição surgido o “regime especial de tributação dos grupos de sociedades” (Cfr., Rui Duarte Morais, Apontamentos ao Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, Coimbra, Almedina, 2007, pp. 155).

 

28. No âmbito do RETGS, estabelece o n.º 1 do actual artigo 69.º do CIRC4 que “existindo um grupo de sociedades, a sociedade dominante pode optar pela aplicação do regime especial de determinação da matéria colectável em relação a todas as sociedades do grupo.”

Nos termos do n.º 1 do artigo 70.º do CIRC 5 “…o lucro tributável do grupo é calculado pela sociedade dominante, através da soma algébrica dos lucros tributáveis e dos prejuízos fiscais apurados nas declarações periódicas individuais de cada uma das sociedades pertencentes ao grupo.”

 

29. Quando é aplicado o RETGS a derrama deve incidir sobre o lucro tributável do Grupo e não já sobre o lucro individual de cada uma das sociedades que o integram, porque a matéria colectável da derrama tem por referencia o mesmo lucro tributável agregado. Só não seria assim, se existisse uma norma legal que estatuísse uma regra de determinação da matéria colectável especifica para a derrama e diferente da que consta do n.º 1 do artigo 70.º do CIRC6. Mas essa norma não existia à data dos factos objecto de análise nos presentes autos arbitrais.

 

30. A jurisprudência mais recente do Supremo Tribunal Administrativo tem defendido a posição referida no ponto anterior (Vd., Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 2 de Fevereiro de 2011 (processo n.º 909/2010) e 22 de Junho de 2011 (processo n.º 0309/11), ambos disponíveis em www.dgsi.pt.

 

31. O Ofício-Circulado n.º 20132, de 14 de Abril de 2008 afirma: “No âmbito do regime especial de tributação de grupos de sociedades, a determinação do lucro tributável do grupo é feita pela forma referida no artigo 64.º do Código do IRC, correspondendo à soma algébrica dos lucros tributáveis e dos prejuízos fiscais apurados nas declarações periódicas individuais. Se é verdade que nas declarações periódicas individuais não há um verdadeiro apuramento de colecta, o mesmo já não se pode dizer relativamente ao lucro tributável. Com efeito, cada sociedade apura um lucro tributável na sua declaração individual. Assim, para as sociedades que integram o perímetro do grupo abrangido pelo regime especial de tributação de grupos de sociedades, a derrama deverá ser calculada e indicada individualmente por cada uma das sociedades na sua declaração, sendo preenchido, também individualmente, o Anexo A, se for caso disso. O somatório das derramas assim calculadas será indicado no campo 364 do Quadro10 da correspondente declaração do grupo, competindo o respectivo pagamento à sociedade dominante…”

 

32. O Oficio-Circulado não é fonte de direito fiscal e integra o chamado direito circulatório composto por orientações genéricas dirigidas aos serviços da administração fiscal relativas à interpretação e aplicação das normas tributárias (artigo 59.º n.º 3 alínea b) da LGT).

No presente caso arbitral verificamos que a interpretação constante do Oficio-Circulado n.º 20132, de 14 de Abril de 2008 viola a lei não podendo ser invocado para fundamentar a liquidação da derrama.

 

33. Por fim, é necessário analisar o facto da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, que aprova a Lei do Orçamento do Estado para 2012, no artigo 57.º ter procedido à alteração de vários preceitos da LFL (Lei n.º 2/2007 de 15 de Janeiro) e aditado um novo n.º 8 ao art. 14.º da LFL com a redacção seguinte: “Quando seja aplicável o regime especial de tributação dos grupos de sociedades, a derrama incide sobre o lucro tributável individual de cada uma das sociedades do grupo, sem prejuízo do disposto no artigo 115.º do Código do IRC.”

Assim, entrou em vigor, no dia 1 de Janeiro de 2012, uma norma específica de determinação da matéria colectável para a derrama.

 

34. Daqui sai reforçado o entendimento que o legislador alterou o regime vigente, porque estava ciente que a anterior redacção do artigo 14.º da LFL não permitia sustentar a interpretação constante do Oficio-Circulado n.º 20132, de 14 de Abril de 2008.

 

35. A norma do n.º 8 do artigo 14.º da LFL não tem natureza interpretativa, porque não existe qualquer referência, directa ou indirecta na norma ou no articulado do Orçamento do Estado, ao seu carácter interpretativo.

Além disso, tendo em conta o princípio da proibição da retroactividade da lei fiscal, constante do disposto no n.º 3 do artigo 103 da CRP, a referida norma também não pode ser aplicada retroactivamente.

 

36. Em face do exposto, o regime constante no n.º 8 do artigo 14.º da LFL, deve vigorar apenas para o futuro, ou seja, desde 1 de Janeiro de 2012, sendo insusceptível de aplicação no presente caso arbitral que respeita ao exercício de 2008.

 

37. Em suma, a liquidação objecto dos presentes autos arbitrais é ilegal por vício de violação de lei por erro nos pressupostos de direito.

 

38. Peticiona ainda a Requerente o pagamento de juros indemnizatórios. Como resulta do exposto a liquidação da derrama enferma de ilegalidade Assim, nos termos conjugados dos n.º s 1 e 2 do art. 43.º da LGT, e do art. 61.º do CPPT são devidos juros desde o dia seguinte ao do pagamento indevido até à data da emissão da respectiva nota de crédito, à taxa apurada de harmonia com o disposto no n.º 4 do artigo 43.º da LGT.

 

VII. DECISÃO

 

Em face do exposto, o presente Tribunal Arbitral decide:

  1. Julgar procedente e provada a impugnação;

  2. Anular parcialmente o acto de liquidação n.º …, de … de Julho de 2010 da derrama municipal relativa ao exercício de 2008, de que foi sujeito passivo a ora Requerente na parte correspondente ao montante de € 31.956,15 (trinta e um mil euros novecentos e cinquenta e seis euros e quinze cêntimos) com base em vício de violação de lei;

  3. Condenar a Requerida a restituir a quantia indevidamente liquidada e paga, acrescida do pagamento de juros indemnizatórios a determinar nos termos dos artigos 43.º da LGT e 61.º do CPPT.

 

Custas calculadas nos termos da Tabela I do Regulamento de Custas dos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT) em função do valor do pedido, a cargo da Requerida em € 1.836,00 (mil oitocentos e trinta e seis euros).

Notifique-se

 

Lisboa, Centro de Arbitragem Administrativa, 27 de Junho de 2012

O Árbitro

 

(Olívio Mota Amador)

1 Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 138.º n.º 5 do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por remissão do artigo 29.º n.º 1 alínea e) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico de Arbitragem Tributária), com versos em branco e por mim revisto.

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia antiga.

 

2 Vd., Artigo 13.º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos e artigo 288.º n.º 1 alínea a) do Código do Processo Civil.

3 Na redacção dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 31 de Dezembro

4À data dos factos era o artigo 63.º n.º 1 do CIRC

5 À data dos factos era o artigo 64.º n.º 1 do CIRC

6 À data dos factos era o artigo 64.º n.º 1 do CIRC