Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 348/2017-T
Data da decisão: 2017-11-17  IMT  
Valor do pedido: € 6.217,48
Tema: IMT - Partilha de bens comuns do casal - Renúncia a tornas.
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DECISÃO ARBITRAL

I.     RELATÓRIO

Em 29 de maio de 2017, A…, com o NIF…, residente na Rua …, n.º…, …– Vila Nova de Gaia (doravante designada por Requerente), veio, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), requerer a constituição de Tribunal Arbitral Singular, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante AT ou Requerida), tendo em vista a declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação de Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis do ano de 2007, titulada pelo documento de pagamento n.º…, da quantia de € 6 217,48 (seis mil, duzentos e dezassete euros e quarenta e oito cêntimos), valor económico que atribui ao pedido.

 

Síntese da posição das Partes

a.    Da Requerente:

Como fundamentos do pedido de anulação do ato de liquidação de Imposto sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT), referente ao ano de 2007 e aos factos descritos na escritura de partilha dos bens comuns do casal, celebrada em 9 de outubro de 2007, que lhe deram origem, invoca a Requerente o seguinte:

A liquidação de IMT que se impugna assenta no pressuposto de que da partilha dos bens comuns do casal, outorgada entre a Requerente e o seu Cônjuge na sequência da sua separação judicial de pessoas e bens, resulta a sujeição a IMT da Requerente, por lhe terem sido adjudicados bens imóveis de valor superior ao da sua meação.

Ora, no caso concreto, a partilha efetuada entre a Requerente e o seu Cônjuge não configura transmissão onerosa de bens, nos termos do artigo 2.º, n.º 5, alínea c), do CIMT.

Embora resulte das operações de partilha que a Requerente leva bens a mais do que corresponde à sua meação no valor de € 140 757,61, o marido prescindiu das tornas, nada recebendo.

No caso, o marido da Requerente fez-lhe atribuições patrimoniais sem qualquer contrapartida, o que configura uma doação, nos termos do artigo 940.º, n.º 1, do Código Civil, por nessa adjudicação de bens ter havido mero espírito de liberalidade, sendo-lhe aplicável o regime das transmissões gratuitas de bens entre cônjuges e, consequentemente, sujeita a Imposto do Selo, embora isenta, nos termos do artigo 6.º, alínea e) do Código do Imposto do Selo.

Entendeu a AT, nas decisões de indeferimento da reclamação graciosa e do subsequente recurso hierárquico, que a situação tem enquadramento na alínea c) do n.º 5 do artigo 2.º, do CIMT, em conjugação com o n.º 1 do mesmo artigo, por considerar que o facto tributário ocorreu no momento em que o valor excedente à sua meação foi atribuído à Requerente, na partilha, e que o facto de o marido ter prescindido do recebimento de tornas é que configuraria remissão de dívida, nos termos do n.º 2 do artigo 863.º, do Código Civil.

Discorda a Requerente do momento apontado pela AT para a constituição do facto tributário, em sede de IMT, bem como no que respeita à aplicação do regime da remissão ou da renúncia, por configurar uma cisão artificial da vontade da Requerente e, em especial do seu marido, no ato da partilha.

Motivos pelos quais pede a anulação da liquidação impugnada, com todas as consequências legais.

 

 

b.   Da Requerida:

Notificada nos termos e para os efeitos previstos no artigo 17.º, do RJAT, a AT apresentou resposta e fez juntar o processo administrativo (PA), em que veio defender a legalidade e a manutenção do ato de liquidação objeto do presente pedido de pronúncia arbitral, com os seguintes fundamentos:

Tal como foi decidido na apreciação do Recurso Hierárquico, os pressupostos objetivos da sujeição a imposto, no que se refere à renúncia a tornas, encontram-se previstos no artigo 2.º, n.º 1 e n.º 5, alínea c), do CIMT, em que se estabelece, respetivamente, que “O IMT incide sobre transmissões, a título oneroso, do direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito, sobre bens imóveis situados no território nacional” e que “Em virtude do disposto no n.º1, são também sujeitas ao IMT, designadamente: c) O excesso da quota-parte que ao adquirente pertencer, nos bens imóveis, em ato de divisão ou partilhas, bem como a alienação da herança ou quinhão hereditário”, sendo a quota-parte determinada nos termos do artigo 12.º, n.º 4, regra 11.ª, por referência ao valor patrimonial tributário dos imóveis transmitidos, ou, caso seja superior, ao valor que serviu de base à partilha.

O sujeito passivo do imposto é, nos termos do disposto na alínea a) do art.º 4.º do mesmo código, o adquirente dos bens imóveis.

E conclui-se, naquela decisão, que «No caso vertente, o facto tributário ocorreu no momento em que o valor atribuído à recorrente, na partilha, excedeu a quota-parte a que teria direito. Verifica-se, pois, uma transmissão a título oneroso, consubstanciada na diferença entre a meação do cônjuge e o valor que lhe foi atribuído na partilha dos bens imóveis comuns. Esta diferença, sujeita a tornas, é suficiente para concretizar a onerosidade da transmissão nesta parte e, por via disso, a sujeição a IMT.».

A Requerente defende que através da escritura de partilhas não se constituiu na esfera jurídica do cônjuge um direito a tornas, por este ter prescindido das mesmas, sustentando, por isso, que se tratou de uma transmissão gratuita.

No entanto, o Código do IMT prevê que é sujeito a imposto “o excesso da quota-parte que ao adquirente pertencer, nos bens imóveis, em ato de divisão ou partilhas”.

Pretende a Requerente que se considere tratar-se de uma transmissão gratuita e de nem sequer se ter constituído o direito a tornas, por efeito da renúncia às mesmas, o que não tem qualquer suporte legal.

É que, tendo sido adjudicados à Requerente, na escritura de partilha, bens imóveis de valor superior ao da sua quota-parte nos bens comuns, constitui-se o direito a tornas do outro cônjuge, ficando imediatamente verificado o pressuposto constante da alínea c) do n.º 5 do artigo 2.º do CIMT.

Conclui assim a Requerida que “(…) na medida em que o direito a tornas de que é titular a renunciante foi extinto simplesmente, através de declaração unilateral não recetícia, a renúncia a tornas constituiu uma renúncia abdicatória, a qual não é valorada em IMT, do mesmo modo que é, nomeadamente em IS”.

Uma vez que a questão controvertida nos autos é exclusivamente de direito e, inexistindo exceções e a estando posição das partes plenamente definida nos autos, suportada pelos meios de prova juntos pela Requerente, vem a AT requerer a dispensa da reunião a que se refere o artigo 18.º, do RJAT.

*

Através do despacho arbitral de 4 de outubro de 2017, foi dispensada a realização da reunião a que se refere o artigo 18.º, do RJAT, convidaram-se as Partes a, querendo, produzirem alegações escritas no prazo sucessivo de dez dias, com início na Requerente, advertindo-se esta de que, até ao dia 17 de novembro de 2017, data fixada para prolação da decisão arbitral, deveria proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente.

As partes não produziram alegações.

 

II. SANEAMENTO

1.    O tribunal arbitral singular é competente e foi regularmente constituído em 31 de julho de 2017, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, todos do RJAT.

2.    As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

3.    O processo não padece de vícios que o invalidem.

4.    Não foram invocadas exceções que cumpra apreciar e decidir.

 

III.    FUNDAMENTAÇÃO

III.1 MATÉRIA DE FACTO

a.      Factos provados:

A matéria factual relevante para a compreensão e decisão da causa, motivada pelo exame crítico da prova documental oferecida e do PA juntos aos autos, fixa-se como segue:

a.    Através do ofício n.º… do Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia …, de 2 de fevereiro de 2009, expedido por carta registada com aviso de receção, foi a Requerente notificada para, no prazo de 30 dias a contar da notificação, proceder ao pagamento do IMT, da quantia de € 6 217,48, “correspondente à meação constante da escritura de Partilha celebrada em 09.10.2007, no Cartório Notarial de B…, sito na Rua …, n.º … –…º, sala …, em Vila Nova de Gaia.” – Doc. 2, junto à P. I. e PA;

b.    No dia 29 de outubro de 2007, foi celebrada no Cartório Notarial já indicado, uma escritura de “PARTILHA E DOAÇÃO” – Doc. 4, junto à P.I. e junto ao PA –, na qual outorgaram, na qualidade de primeiro Outorgante, C…, casado com a Segunda Outorgante, mas dela separado judicialmente de pessoas e bens e, na qualidade de segunda Outorgante, A…, casada com o primeiro Outorgante, mas dele separada judicialmente de pessoas a bens, através da qual procederam à partilha dos bens comuns do casal;

c.    Da referida escritura de “PARTILHA E DOAÇÃO” constam os seguintes factos:

1.    Foi apurado um ativo no montante de € 283 515,23, sendo a meação de cada cônjuge do valor de € 141 757,63; do passivo de € 59 000,00, coube a cada um o valor de € 29 500,00;

2.    Foram adjudicados à Requerente bens no valor total de € 282 515,23, levando a mais do que lhe pertencia o montante de 140 747,61; o cônjuge marido assumiu a responsabilidade pelo pagamento integral da dívida de € 59 000,00, cuja meação acresceu ao montante das tornas já apuradas, mas que delas prescindia, nada recebendo;

3.    Ambos os cônjuges aceitaram a partilha nos termos mencionados, “encontrando-se inteira e reciprocamente pagos”;

4.    Na mesma escritura pública, o marido da Requerente fez-lhe doação de um imóvel, bem próprio seu, e por conta da sua quota disponível, com o valor patrimonial tributário de € 27 961,75, doação que a Requerente aceitou, nos termos exarados;

5.    Foi liquidado o Imposto do Selo, no valor global de € 1 348,75, com a seguinte discriminação: € 1 126,06 da partilha e € 223,69 da doação, da verba 1.1 e o montante de € 25,00, da verba 15.1, ambas da Tabela Geral do Imposto do Selo, sem que tivesse sido liquidado IMT pela partilha;

d.    Em 13 de maio de 2009, foi emitida a liquidação de IMT com base na declaração modelo 1 apresentada na mesma data, pela quantia de € 6 217,48, por “Excesso da quota-parte de imóveis em divisões ou partilhas”, sobre um valor global de € 140 757,61, por referência aos seguintes prédios urbanos sitos no concelho de Vila Nova de Gaia:

1.     Artigo …, da freguesia de …, destinado a habitação própria e permanente, como o valor patrimonial tributário (VPT) de € 175 530,00;

2.    Artigo …, da freguesia de …, destinado a habitação, como o (VPT) de € 67 6000;

3.    Artigo …, fração A, da freguesia …, destinado a armazém, com o VPT de € 80 670,00 e,

4.    Artigo …, fração B, freguesia de …, destinado a comércio, com o VPT de 42 510,00;

e.    Contra a referida liquidação de IMT apresentou a Requerente, em 15 de abril de 2009, reclamação graciosa que, instaurada sob o n.º …2009…, foi indeferida por despacho da Senhora Chefe do Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia …, notificado à Requerente pelo ofício n.º…, daquele Serviço, de 20 de julho de 2009;

f.     Em 4 de agosto de 2009, foi apresentado o recurso hierárquico n.º …2009…, indeferido por despacho da Senhora Diretora de Serviços da DSIMT de 24 de janeiro de 2017, cuja decisão foi notificada à Requerente através do ofício n.º 2017…, do Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia …, de 14 de fevereiro de 2017, remetido por carta registada com aviso de receção (registo dos CTT n.º RF…PT) e recebido em 27 do mesmo mês;

g.    Da fundamentação do indeferimento do recurso hierárquico consta o seguinte:

Importará (…) determinar se (…) para efeitos fiscais se verifica ou não (…) o caráter oneroso da transmissão, tendo presente que a onerosidade de um negócio se centra na existência ou não de uma contraprestação.

Para o efeito releva o momento da constituição do facto tributário, visto que é pela verificação do facto tributário que se constitui a relação jurídica tributária (Cfr. art. 36.º da LGT).

(…) o facto ocorreu no momento em que o valor atribuído à recorrente, na partilha, excedeu a quota-parte a que teria direito. Verifica-se, pois, uma transmissão a título oneroso, consubstanciada na diferença entre a meação do cônjuge e o valor que lhe foi atribuído na partilha dos bens imóveis comuns. Esta diferença, sujeita a tornas, é suficiente para concretizar a onerosidade da transmissão nesta parte e, por via disso, a sujeição a IMT.

O facto de o titular do direito às tornas delas ter prescindido, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 863.º do Código Civil, não é determinante para a qualificação do negócio jurídico pela Administração Tributária (Cf. n.º 4 do art.º 36.º da LGT). Com efeito, o facto tributário já se mostrava constituído, não podendo ser influenciado por esse facto posterior.

A renúncia às tornas por parte do marido da recorrente releva para efeitos de sujeição a imposto do selo, em conformidade com o n.º 3 do artigo 1.º do Código do Imposto do Selo, por se tratar de uma transmissão a título gratuito. Sendo o cônjuge beneficiário dessa transmissão, é o mesmo isento de imposto do selo, nos termos do disposto na alínea e) do art.º 6.º do CIS.”.

 

b.      Factos não provados:

Não existem factos com interesse para a decisão da causa que devam considerar-se como não provados.

 

III.2 DO DIREITO

1.    Questão prévia

  Na sentença, deve o juiz pronunciar-se sobre todas as questões que deva apreciar (segmento final do n.º 1 do artigo 125.º, do Código de Procedimento e de Processo Tributário – CPPT, aplicável subsidiariamente ao processo arbitral tributário, por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT).

As questões sobre que recaem os poderes de cognição do tribunal, são, de acordo com o n.º 2 do artigo 608.º, do Código de Processo Civil (CPC), de aplicação subsidiária ao processo arbitral, por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, “as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; (…) salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”.

De entre as questões de conhecimento oficioso em processo tributário, conta-se a da tempestividade do pedido de pronúncia arbitral, pois que a caducidade do direito de impugnar constitui exceção dilatória, nos termos do artigo 89.º, n.ºs 2 e 4, alínea k), do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT.

Embora a AT não invoque qualquer exceção, não deixa de frisar na sua resposta que “Do indeferimento da reclamação a Requerente apresentou Recurso Hierárquico, o qual obteve o nº …2009… também foi indeferido por despacho de 24-01-2017” e que “A Requerente apresenta o presente pedido de pronúncia arbitral em 29/05/2017.”.

Efetivamente, conforme consta do probatório supra, a decisão de indeferimento do recurso hierárquico foi notificada à Requerente através do ofício n.º 2017…, do Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia …, de 14 de fevereiro de 2017, remetido por carta registada com aviso de receção (registo n.º RF…PT), recebido em 27 do mesmo mês.

Verificando-se, assim, que à data do pedido de pronúncia arbitral, em 29 de maio de 2017, já havia decorrido o prazo de 90 dias a que se refere o artigo 10.º, do RJAT. No entanto, foi o ato praticado dentro dos três dias subsequentes ao termo do prazo, como é permitido pelo n.º 5 do artigo 139.º, do CPC, independentemente de justo impedimento e, não prevendo o regime da arbitragem tributária o pagamento de qualquer multa, tem-se o pedido por tempestivo.

 

2.    A questão decidenda

A questão a decidir nos presentes autos é a de saber se, na partilha dos bens comuns do casal, por separação judicial de pessoas e bens, em que um dos cônjuges leva bens imóveis de valor superior ao da sua meação, tendo o outro cônjuge prescindindo das tornas a que tinha direito, se está perante uma transmissão onerosa de direitos reais sobre imóveis, sujeita a Imposto sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT), como defende a AT ou se, pelo contrário, se trata de uma transmissão gratuita, sujeita às regras do Imposto do Selo, como pretende a Requerente.

 

  Na fundamentação da decisão de indeferimento do recurso hierárquico, defendeu a AT que “o facto [tributário] ocorreu no momento em que o valor atribuído à recorrente, na partilha, excedeu a quota-parte a que teria direito”, que “O facto de o titular do direito às tornas delas ter prescindido, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 863.º do Código Civil, não é determinante para a qualificação do negócio jurídico pela Administração Tributária (Cf. n.º 4 do art.º 36.º da LGT) ”, mas que “A renúncia às tornas por parte do marido da recorrente releva para efeitos de sujeição a imposto do selo, em conformidade com o n.º 3 do artigo 1.º do Código do Imposto do Selo, por se tratar de uma transmissão a título gratuito. Sendo o cônjuge beneficiário dessa transmissão, é o mesmo isento de imposto do selo, nos termos do disposto na alínea e) do art.º 6.º do CIS.”.

Já na Resposta, no âmbito do processo arbitral, viria clarificar que “a onerosidade da transmissão centra-se na existência de contraprestação” e que “na medida em que o direito a tornas de que é titular a renunciante foi extinto simplesmente, através de declaração unilateral não recetícia, a renúncia a tornas constituiu uma renúncia abdicatória, a qual não é valorada em IMT, do mesmo modo que é, nomeadamente em IS”.

Ora vejamos:

 

O facto tributário, definido abstratamente pelo legislador nas normas de incidência e sem o qual não se constitui a relação jurídica tributária, é composto por um elemento objetivo e por um elemento subjetivo. Enquanto o elemento objetivo se reporta ao aspeto material, à “situação de facto reveladora da capacidade tipificada na norma tributária”, o elemento subjetivo “consiste na conexão existente entre o elemento objetivo e o sujeito passivo do imposto[1].

 

No caso do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT), para que haja sujeição a imposto, necessário se torna que a situação de facto configure não só uma transmissão do direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito, sobre bens imóveis situados no território nacional (abrangendo ainda, nos termos do artigo 2.º, n.º 5, alínea c), do Código do IMT, “O excesso da quota-parte que ao adquirente pertencer, nos bens imóveis, em ato de divisão ou partilhas, bem como a alienação da herança ou quinhão hereditário), mas também que essa transmissão seja efetuada a título oneroso, conforme o disposto no artigo 2.º, n.º 1, do Código do IMT.

A fim de determinar a onerosidade ou gratuitidade da transmissão de direitos reais sobre bens imóveis operada pela partilha dos bens comuns do casal, há que, lançando mão dos elementos a que se refere o artigo 9.º, do Código Civil, “reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo”, tendo em conta que a letra da lei é o limite mínimo da tarefa interpretativa (no sentido de que é do texto legislativo que tem que se partir para determinar o sentido da norma), mas também o seu limite máximo (no sentido de que não é possível atribuir à norma um sentido que não esteja minimamente previsto na sua letra) e que, em caso de dúvida sobre o sentido das normas de incidência a aplicar, deve atender-se à substância económica dos factos tributários (artigo 11.º, n.º 3, da LGT).

Não define a lei a noção de “transmissão gratuita” ou de “transmissão onerosa”, mas a doutrina faz alusão ao que se deve entender por contratos gratuitos e por contratos onerosos, “consoante originem, de acordo com a intenção das partes, vantagens para uma só delas ou para as duas[2].

Pois bem: reconhece a AT que a onerosidade de um negócio se centra na existência de uma (contra)prestação; por isso considera que, no caso em análise, a contraprestação ocorreu no momento em que, na escritura de partilha, foram adjudicados à Requerente bens imóveis de valor superior ao da sua meação, nascendo para esta a obrigação de pagamento de tornas ao marido, que delas prescindiu. E daí conclui que a transmissão operada pela partilha é uma transmissão onerosa de direitos reais sobre bens imóveis, sujeita a IMT.

No entanto, bem vistas as coisas, há que distinguir os conceitos de obrigação e de prestação.

De facto, segundo a definição do artigo 397.º, do Código Civil, “Obrigação é o vínculo jurídico por virtude do qual uma pessoa fica adstrita para com outra à realização de uma prestação”, criando um direito na esfera da contraparte.

Temos assim que a prestação não equivale à obrigação enquanto vínculo jurídico, antes sendo o seu objeto.

E se, na sua grande maioria, as obrigações se extinguem pelo cumprimento, ou seja, pela realização da prestação ou por outro meio de satisfação do interesse do credor (vg. por dação em cumprimento, consignação, compensação ou novação), “[m]uito diferente desse é o recorte funcional (…) da remissão (art. 863.º)” em que, embora com a aquiescência do devedor, “o direito de crédito não chega a funcionar; o interesse do credor a que a obrigação se encontra adstrita não chega a ser satisfeito, nem sequer indireta ou potencialmente. A obrigação extingue-se sem chegar a haver prestação.”[3]

Daí que o legislador tenha admitido a natureza contratual da remissão, estabelecendo no n.º 2 do artigo 863.º, do Código Civil que, quando tiver o caráter de liberalidade, ou seja, quando não houver vantagem para o remitente, mas apenas para o seu beneficiário, a remissão por negócio entre vivos é havida como doação, em conformidade com os artigos 940.º e seguintes, do Código Civil.

Ora, tendo a declaração de renúncia a tornas por parte do marido da Requerente sido expressa na escritura pública de partilha, que esta aceitou, deverá concluir-se que a mesma foi contratualmente estabelecida.

Perante tal conclusão, e não havendo qualquer prova de que nessa renúncia tenha havido contraprestação (vantagem para o cônjuge marido), não se compreende como possa a AT considerar que o valor adjudicado à Requerente, na parte excedente à sua meação nos bens comum do casal, configura uma transmissão onerosa e, em simultâneo, uma transmissão gratuita, sujeita a Imposto do Selo, ainda que dele isenta, nos termos da alínea e) do artigo 6.º, do Código do Imposto do Selo, como, contraditoriamente, se afirma na decisão de indeferimento do recurso hierárquico.

A posteriori, vem a AT dizer em sede de Resposta que, afinal, “na medida em que o direito a tornas de que é titular a renunciante foi extinto simplesmente, através de declaração unilateral não recetícia, a renúncia a tornas constituiu uma renúncia abdicatória, a qual não é valorada em IMT, do mesmo modo que é, nomeadamente em IS”.

Cumpre, em primeiro lugar, reafirmar que a renúncia ao direito a tornas por parte do marido da Requerente (e só se pode renunciar a direitos já constituídos) não foi veiculada por uma sua declaração unilateral, uma vez que, como já se viu, tal declaração foi expressa na escritura de partilha e ambos os cônjuges aceitaram reciprocamente essa partilha, nos precisos termos exarados naquela escritura.

Nem se diga que a mesma renúncia ao direito a tornas tem tratamentos distintos em sede de IMT e em sede de Imposto do Selo, já que um dos impostos trata de transmissões onerosas de direitos reais sobre imóveis enquanto o outro trata de transmissões gratuitas, independentemente da natureza do bem transmitido.

Se bem compreendemos o iter decisório da AT ao falar de renúncia abdicatória (ou abdicativa), reportada ao direito de crédito relativo às tornas que seriam devidas pela Requerente ao marido, vai no sentido de afirmar que este não renunciou aos direitos reais sobre a sua meação nos bens imóveis comuns, que àquela transmitiu, pois nasceu para ele um direito a tornas.

Porém, tratando-se da partilha de bens comuns do casal, a situação é naturalmente diversa da que acontece no âmbito sucessório em que, no caso de renúncia ao quinhão hereditário se extingue o direito do renunciante, nascendo na esfera jurídica dos beneficiários da renúncia um direito ex novo – o direito de acrescer (artigo 2137.º, do Código Civil), que não carece de aceitação por ser mera consequência legal.

  Acompanhamos pois a doutrina na consideração de que, havendo por parte do renunciante uma intenção donativa e por parte do beneficiário uma vontade de aceitar, o intuito atributivo ou translativo se sobrepõe ao intuito abdicativo, situação em que estamos perante uma doação indireta, figura “que tem em vista recobrir todos aqueles atos jurídicos (…) que têm efetivamente por resultado e fim o enriquecimento patrimonial sem correspetivo por parte de um beneficiário”, ou seja, que têm como substância económica a sua gratuitidade. [4]

No caso dos autos, tendo o marido da Requerente renunciado às tornas (à prestação por esta devida) e atribuindo a AT relevância fiscal à declaração de renúncia, expressa e aceite na escritura de partilha, da qual não resulta que, com a renúncia, o cônjuge marido se tenha pretendido eximir de qualquer encargo, era sobre a AT que recaía o ónus da prova da onerosidade da transmissão, pois, nos termos do n.º 1 do artigo 74.º, da LGT, “O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque.”.

Para tanto, dispunha a AT do poder de aceder a informações e documentos bancários, caso existissem “factos concretamente identificados indiciadores da falta de veracidade do declarado”, como prescrevia a alínea a) do n.º 1 do artigo 63.º-B, da LGT, na redação em vigor à data dos factos.

Não tendo a AT feito prova da onerosidade da transmissão, como lhe competia, e apontando o exercício interpretativo no sentido de que a transmissão em causa foi efetuada a título gratuito e, como tal, excluída da incidência de IMT, não poderá manter-se a liquidação impugnada, dado o erro sobre os pressupostos de direito em que assentou.

 

IV.                 DECISÃO

Com base nos fundamentos de facto e de direito acima enunciados e, nos termos do artigo 2.º do RJAT, decide-se em, julgando inteiramente procedente o presente pedido de pronúncia arbitral, declarar a ilegalidade da liquidação de IMT do ano de 2007, da quantia de € 6 217,48, que se anula, com todas as consequências legais (artigo 24.º, do RJAT).

 

VALOR DO PROCESSO: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 6 217,48 (seis mil, duzentos e dezassete euros e quarenta e oito cêntimos).

CUSTAS: Calculadas de acordo com o artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I a ele anexa, no valor de € 612,00 (seiscentos e doze euros), a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 17 de novembro de 2017.

O Árbitro,

 

/Mariana Vargas/

 

Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do DL 10/2011, de 20 de janeiro.

A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990. 



[1]  Cfr. Diogo Leite Campos e Outros, Lei Geral Tributária, Anotada e comentada, 4.ª Edição, 2012, págs. 293 e 294.

[2] Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5.ª Edição, Almedina, 1991, pág. 295.

[3] - Antunes Varela, Das Obrigações em Geral – Vol. II, 7.ª Edição, Almedina, 1997, págs. 242 e ss.

[4] Sobre a distinção entre renúncia abdicativa e renúncia translativa, vide Francisco M. B. Pereira Coelho, A Renúncia Abdicativa no Direito Civil (Algumas Notas Tendentes à Definição do seu Regime), in STVDIA IVRIDICA, n.º 8, Universidade de Coimbra, 1995. Em especial sobre a doação indireta, págs. 50 e ss.