Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 191/2013-T
Data da decisão: 2014-05-09  Selo  
Valor do pedido: € 64.416,30
Tema: TGIS - Verba 28.1
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Decisão Arbitral

 

Requerente: A…

Requerida: Autoridade Tributária e Aduaneira

 

            Os árbitros, Dra. Alexandra Coelho Martins (árbitro presidente), Dr. Henrique Nogueira Nunes e Dra. Filipa Correia Pinto (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 30 de Setembro de 2013, acordam no seguinte:

 

 

1.         RELATÓRIO

 

1.1. A sociedade A..., com o número de identificação de pessoa colectiva … e sede na …, doravante designada por “Requerente”, requereu a constituição do Tribunal Arbitral ao abrigo do artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”).

 

1.2. O pedido de pronúncia arbitral tem por objecto a ilegalidade e consequente anulação dos actos de liquidação de Imposto do Selo datados de 21 de Março de 2013 e referentes ao ano 2012, no valor total de € 64.416,30, com base na verba 28.1 da respectiva Tabela Geral (“TGIS”), actos, estes, subjacentes aos documentos de cobrança juntos com o pedido de pronúncia arbitral (primeira e segunda prestações) e com o requerimento superveniente (terceira prestação). A título subsidiário, a Requerente peticiona a declaração de nulidade por inconstitucionalidade da norma que aplica o Imposto do Selo aos terrenos para construção.

 

1.3.  A fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, os seguintes vícios:

 

(a)        As notificações para pagamento do Imposto do Selo não contêm a indicação de elementos essenciais, designadamente os actos de liquidação correspondentes, verificando-se a ausência de fundamentação legal;

 

(b)       Erro nos pressupostos, em virtude de:

 

(i)        Não se encontrarem reunidas as condições de tributação previstas na verba 28.1 da TGIS, pois as liquidações dizem respeito a terrenos para construção e não a prédios edificados, com a consequente violação do princípio da legalidade por falta de subsunção na norma de incidência (na redacção em vigor à data dos factos);

(ii)       Os terrenos para construção, por natureza, não poderem ter uma afectação habitacional (conceito material), pois nesse estádio (prévio à edificação) não são aptos a uma utilização normal de habitação e é incerta a verificação efectiva (no futuro) dessa utilização;

(iii)      A construção prevista ou autorizada nesses terrenos nem sequer se destinar exclusivamente à habitação, prevendo o alvará de loteamento o destino de “habitação colectiva e comércio”, pelo que contemplando-se a utilização dos terrenos também para fins comerciais, não se pode concluir pela afectação meramente habitacional;

(iv)      A intenção do legislador e a teleologia da verba 28.1 militarem no sentido da tributação das “habitações de luxo” inaplicável na situação concreta referente a terrenos para construção;

(v)       Ocorrer duplicação de colecta pois, para o mesmo período, foram exigidas duas liquidações respeitantes à verba 28.1 da TGIS, reportadas a dois factos tributários, ambos em 2012, o primeiro em 31 de Outubro e o segundo em 31 de Dezembro (sem prejuízo de existir uma redução de taxa a aplicar para as liquidações emitidas em 2012), na sequência do disposto no artigo 6.º da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro, em conjugação com o artigo 5.º, alínea u) do Código do Imposto do Selo e com o artigo 113.º do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (“IMI”);

(vi)      O Imposto do Selo visar atingir manifestações de capacidade contributiva não abrangidas pela incidência de quaisquer outros impostos e de, no caso concreto, inexistirem indícios dessa capacidade (i.e., operação em que a Requerente tenha participado ou benefício económico que tenha ingressado na sua esfera), a que acresce o facto de os terrenos em causa terem sido tributados em IMI, pelo que a mesma realidade seria tributada duas vezes;

(vii)     Violação do princípio da igualdade, ao não serem sujeitos a imposto prédios urbanos sem afectação para habitação, mesmo que possuam um valor patrimonial tributário significativamente superior a € 1.000.000.

 

1.4.  A Autoridade Tributária e Aduaneira respondeu no sentido de que “a alusão a prédios com afectação habitacional constante da Verba 28 do CIS deverá ser entendida de forma ampla, abrangendo quer os prédios habitacionais edificados, quer os terrenos para construção” aos quais tenha sido atribuída a afectação habitacional no âmbito das referidas avaliações. Conclui pela manutenção dos actos de liquidação e improcedência do pedido.

 

1.5. Em 17 de Janeiro de 2014, teve lugar, na sede do CAAD, a primeira reunião do Tribunal Arbitral Colectivo, de acordo com o artigo 18.º do RJAT. Não foram identificadas excepções, prescindiu-se da produção de prova testemunhal e admitiu-se a junção de documentos relativos à terceira prestação de Imposto do Selo (recepcionados em data superveniente à da apresentação do pedido arbitral). Foram ainda fixados os prazos para a apresentação de alegações (escritas) e para a decisão.

 

1.6. A Requerente apresentou alegações, nas quais manteve a argumentação inicial, desenvolvendo-a, e reiterou o pedido de anulação das liquidações de Imposto do Selo.

 

1.7. Em 28 de Março de 2014 foi decidido, fundamentadamente, prorrogar por 2 meses o prazo para a prolação da decisão arbitral, nos termos do artigo 21.º, n.º 2 do RJAT.

 

* * *

 

1.8. O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, de acordo com o artigo 2.º do RJAT.

 

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março). A cumulação de pedidos é admissível pois estamos perante as mesmas circunstâncias de facto e a interpretação e aplicação dos mesmos princípios e regras de direito (cf. artigo 3.º, n.º 1 do RJAT).

 

Não foram identificadas nulidades no processo.

 

 

2.         QUESTÕES A DECIDIR

 

            Discute-se nos presentes autos a questão (estritamente) jurídica de saber se um terreno para construção pode ser qualificado como “prédio com afectação habitacional” e, em caso afirmativo, enquadrável no âmbito de incidência da verba 28.1 da TGIS, aditada pelo artigo 4.° da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro.

 

3.         MATÉRIA DE FACTO

 

Com relevo para a apreciação e decisão do mérito, dão-se por provados os seguintes factos:

 

A)        A sociedade A..., aqui Requerente, é proprietária dos prédios urbanos descritos na Conservatória do Registo Predial da Maia sob os números … a … e inscritos na matriz predial urbana da freguesia da … como “terreno para construção” sob os artigos …, …, …, … e, ainda, do terreno para construção inscrito na matriz predial urbana da freguesia do … sob o artigo … – de acordo com as correspondentes cadernetas prediais urbanas juntas como Documento n.º 3 ao pedido arbitral.

 

B)        Tais terrenos para construção resultaram de uma operação de loteamento, tendo sido emitido para o efeito o alvará de loteamento n.º … pela Câmara Municipal da …, o qual foi objecto de um aditamento de alteração correspondente ao Alvará de Licença n.º …, de … …, de acordo com o qual foram aprovados seis lotes de terreno para construção nos termos que se transcrevem:

“LOTE N.º A1, com a área de 1003,00m2, destinado à construção de prédio para habitação colectiva e comércio, com a área de implantação de 1003,00m2, área de construção de 5494,00m2 e aparcamento em cave com a área de 2006,00m2, constituído por 33 fogos e 13 comércios, com 2 pisos abaixo da cota de soleira e 9 pisos acima da cota de soleira.

LOTE N.º A2, com a área de 1003,00m2, destinado à construção de prédio para habitação colectiva e comércios, com a área de implantação de 1003,00m2, área de construção de 5599,00m2 e aparcamento em cave com a área de 2006,00m2, constituído por 34 fogos, e 13 comércios, com 2 pisos abaixo da cota de soleira e 9 pisos acima da cota de soleira.

LOTE N.º A3, com a área de 882,00m2, destinado à construção de prédio para habitação colectiva e comércio, com a área de implantação de 882,00m2, área de construção de 6981,00m2 e aparcamento em cave com a área de 1764,00m2, constituído por 48 fogos e 8 comércios, com 2 pisos abaixo da cota de soleira e 9 pisos acima da cota de soleira.

LOTE N.º A4, com a área de 542,00m2, destinado à construção de prédio para habitação colectiva e comércio, com a área de implantação de 542,00m2, área de construção de 3759,00m2, e aparcamento em cave com a área de 1084,00m2, constituído por 25 fogos, e 5 comércios, com 2 pisos abaixo da cota de soleira e 8 pisos acima da cota de soleira.

LOTE N.º B1, com a área de 500,00m2, destinado à construção de prédio habitação colectiva e comércio, com a área de implantação de 500,00m2, área de construção de 4000,00m2, e aparcamento em cave com a área de 1500,00m2, constituído por 29 fogos e 3 comércios, com 3 pisos abaixo da cota de soleira e 8 pisos acima da cota de soleira.

 

LOTE N.º B2, com a área de 560,00m2, destinado à construção de prédio para habitação colectiva, com a área de implantação de 560,00m2, área de construção de 5040,00m2, e aparcamento em cave com a área de 1680,00m2, constituído por 40 fogos, com 3 pisos abaixo da cota de soleira e 8 pisos acima da cota de soleira.” – cf.  Documento n.º 4 junto com o pedido arbitral.

 

C)        Os identificados prédios urbanos, classificados como terrenos para construção, não têm qualquer edificação ou construção erigida sobre o seu solo e, à data dos factos (2012), os respectivos valores patrimoniais tributários eram superiores a € 1.000.000,00, cifrando-se, mais concretamente, em:

 

Identificação do prédio         Valor Patrimonial (€)

………………………           1.311.430,00

………………………           1.158.100,00

………………………           1.492.990,00

………………………           1.425.220,00

………………………           1.053.890,00

– cf. os correspondentes documentos de cobrança e as cadernetas prediais urbanas juntos ao pedido arbitral como Documentos n.ºs 1, 2 e 3, respectivamente.

           

D)        A Autoridade Tributária e Aduaneira, considerando os Valores Patrimoniais Tributários atribuídos aos terrenos para construção supra identificados, entendeu estarem verificados os pressupostos objectivos para a liquidação do Imposto do Selo, decorrentes do aditamento à TGIS da verba n.º 28 previsto na Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro – provado por acordo.

 

E)        Neste âmbito, em Março de 2013, a Requerente foi notificada dos documentos para pagamento de Imposto do Selo seguidamente elencados, relativos à primeira prestação do imposto do ano 2012, com menção da data de liquidação – “2013-03-21” – e data limite de pagamento em Abril de 2013, nos termos do quadro seguinte:

 

Identificação do prédio         Verba da TGIS           Valor Patrimonial (€)  Taxa (%)         Colecta (€)      Identificação do documento            Valor a pagar

…  …. ..          ..…      …        …        …        …

                                                           Total    € 21.472,14

– cf. documentos de notificação para pagamento juntos como Documento n.º 1 ao pedido arbitral e cadernetas prediais urbanas juntas como Documento n.º 3, também provado por acordo.

 

F)        Em Julho de 2013, a Requerente foi notificada dos documentos para pagamento de Imposto do Selo seguidamente elencados, relativos à segunda prestação do imposto do ano 2012, com menção da data de liquidação – “2013-03-21” – e data limite de pagamento em Julho de 2013, nos termos do quadro seguinte:

 

Identificação do prédio         Verba da TGIS           Valor Patrimonial (€)  Taxa (%)         Colecta (€)      Identificação do documento            Valor a pagar

                                                           Total    € 21.472,08

– cf. documentos de notificação para pagamento juntos como Documento n.º 2 ao pedido arbitral e cadernetas prediais urbanas juntas como Documento n.º 3, também provado por acordo.

 

G)        A Requerente foi notificada dos documentos para pagamento de Imposto do Selo seguidamente elencados, relativos à terceira prestação do imposto do ano 2012, com menção da data de liquidação – “2013-03-21” – e data limite de pagamento em Novembro de 2013, nos termos do quadro seguinte:

 

Identificação do prédio         Verba da TGIS           Valor Patrimonial (€)  Taxa (%)         Colecta (€)      Identificação do documento            Valor a pagar

                                                           Total    € 21.472,08

– cf. documentos de notificação para pagamento juntos por requerimento autónomo ao pedido arbitral e cadernetas prediais urbanas juntas como Documento n.º 3, também provado por acordo.

 

H)        Em 29 de Julho de 2013, a Requerente apresentou requerimento de constituição do Tribunal Arbitral junto do CAAD – cf. requerimento electrónico no sistema do CAAD.

 

 

4.         FACTOS NÃO PROVADOS

 

Não existem factos com relevo para a decisão de mérito que não se tenham provado.

 

 

 

 

5.         FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO

 

            Quanto aos factos essenciais a matéria assente encontra-se conformada de forma idêntica por ambas as partes e a convicção do Tribunal formou-se com base nos elementos documentais (oficiais) juntos ao processo e acima discriminados cuja autenticidade e veracidade não foi questionada.

 

 

6.         DO DIREITO

 

6.1.      Vícios formais – notificação insuficiente e falta de fundamentação

 

            A Requerente invoca como causa de invalidade dos actos de liquidação na origem dos documentos para pagamento de Imposto do Selo, mencionados nas alíneas E, F e G da matéria de facto, a circunstância de a notificação destes documentos não conterem a indicação de elementos essenciais, como sejam a indicação dos referidos actos de liquidação e a respectiva fundamentação legal.

 

            É irrefutável que os actos de liquidação de impostos configuram actos impositivos que afectam os direitos e interesses legalmente protegidos dos sujeitos passivos, razão pela qual apenas produzem efeitos na sua esfera quando lhes sejam validamente notificados (cf. artigo 36.º, n.º 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário – “CPPT” – e artigo 77.º, n.º 6 da Lei Geral Tributária – “LGT”). Constitui, neste âmbito, requisito de validade das notificações que o seu conteúdo compreenda “a decisão, os seus fundamentos e meios de defesa e prazo para reagir contra o acto notificado” (cf. artigo 36.º, n.º 1 do CPPT).

 

            A Lei Geral Tributária também consagra o dever de fundamentação dos actos tributários , mesmo que realizado de forma sumária “por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária”. A fundamentação terá de conter “as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo” (cf. artigo 77.º, n.ºs 1 e 2 da LGT, em concretização do artigo 268.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa – “CRP”).

 

            No caso concreto, face aos parâmetros acabados de enunciar, os documentos para pagamento de Imposto do Selo enviados para a Requerente contêm efectivamente lacunas relevantes, pois não fazem sequer referência ao acto de liquidação indicando apenas a respectiva data (“2013-03-21”) e, em matéria de fundamentação, “Verba da TGIS 28.1”, tendo de reconhecer-se a insuficiência dos elementos constantes da notificação e exteriorizados pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

           

            Porém, o vício de fundamentação invocado não se confunde com o dever de comunicação dos fundamentos. Enquanto que a falta de fundamentação constitui um vício susceptível de determinar a anulação do acto que dela padeça, o incumprimento ou cumprimento defeituoso do dever de comunicação dos fundamentos, ou seja, a invalidade da notificação, não se podem reflectir na validade do acto comunicando.

 

            Perante uma notificação insuficiente, como sucede neste caso, cabia à Requerente fazer uso do mecanismo previsto no artigo 37.º, n.º 1 do CPPT, segundo o qual: “pode o interessado, dentro de 30 dias ou dentro do prazo para reclamação, recurso ou impugnação ou outro meio judicial que desta decisão caiba, se inferior, requerer a notificação dos requisitos que tenham sido omitidos ou a passagem de certidão que os contenha, isenta de qualquer pagamento”. Completando o n.º 2 do mesmo artigo que “Se o interessado usar da faculdade concedida no número anterior, o prazo para a reclamação, recurso, impugnação ou outro meio judicial conta-se a partir da notificação ou da entrega da certidão que tenha sido requerida”.

 

            As eventuais deficiências que a notificação apresente apenas atingem a eficácia do acto notificando e não a sua perfeição ou validade, pois, como claramente resulta do artigo 132.º do CPA e do n.º 6 do artigo 77.º da LGT, a comunicação do acto constitutivo de deveres e encargos é apenas uma condição de eficácia. 

 

            Na verdade, sem detrimento do juízo de censura que tal actuação omissiva da Autoridade Tributária e Aduaneira mereça [e em nosso entender merece ], não tendo a Requerente solicitado a passagem de certidão relativa aos elementos (essenciais) omitidos na notificação, designadamente os actos de liquidação em questão e os fundamentos “mais detalhados”  dos mesmos, nem sequer ficou a saber se efectivamente esses elementos inexistem, pois apenas pode ter por seguro que os mesmos não lhe foram comunicados.

 

            Eventuais problemas existentes quanto ao incumprimento ou cumprimento defeituoso do dever de comunicação dos actos tributários e dos seus fundamentos não se podem reflectir na validade do acto comunicando – cf. Acórdão do STA, de 15 de Fevereiro de 2012, processo n.º 872/11. No mesmo sentido, à luz do Código de Procedimento Tributário (“CPT”) que nesta matéria continha idêntico regime ao do CPPT, vejam-se os Acórdãos do STA, de 6 de Outubro de 2005, processo n.º 221/05, e de 24 de Abril de 2002, processo n.º 26636.

 

            À face do que antecede não procede o alegado vício formal invocado pela Requerente de falta de fundamentação.

 

6.2.      Do erro nos pressupostos: âmbito de incidência objectiva da verba 28.1 da TGIS

 

            As liquidações que constituem o objecto desta acção arbitral fundam-se no artigo 1.º do Código do Imposto do Selo, na verba 28.1 da TGIS, aditada pelo artigo 4.º da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro, e no artigo 6.º, n.º 1, alínea f), subalínea i) da mesma Lei (regime transitório), tendo como pressuposto essencial estarmos perante imóveis que sejam enquadráveis no conceito de “prédios com afectação habitacional”.

 

 

            Uma vez que na situação sob escrutínio os imóveis em causa são exclusivamente terrenos para construção, desprovidos de qualquer edificação, e que o correspondente alvará de loteamento contempla a aprovação de seis lotes de terreno para a construção de prédios com dupla finalidade, de habitação colectiva e comércio, importa determinar o sentido da expressão “prédios com afectação habitacional” por forma a concluir se abrange, ou não, os terrenos para construção de afectação mista.

 

            A matéria em análise foi já objecto de extensa jurisprudência arbitral tributária. Referimo-nos designadamente, sem preocupações de exaustividade, às decisões proferidas nos processos seguintes: 42/2013-T, de 18-10-2013; 48/2013-T, de 09-10-2013; 49/2013-T, de 18-09-2013; 53/2013-T, de 02-10-2013; 75/2013-T, de 01-11-2013; 144/2013-T, de 12-12-2013 e 158/2013-T, de 10-02-2014.

 

            A jurisprudência arbitral citada, que acompanhamos, considera que os terrenos para construção estão fora do âmbito da previsão da verba 28.1 da TGIS, na redacção em vigor à data dos factos, nos termos que seguidamente se explicitam, começando por se analisar o contexto legislativo no qual ocorreu o aditamento da verba 28 à TGIS. 

 

A.        Contexto da aprovação da verba 28.1 da TGIS e respectivo regime

 

            Na discussão no Parlamento da Proposta de Lei n.º 96/XII (2.ª), que esteve na origem da Lei n.º 55-A/2012, que aditou a verba 28 à TGIS, o Senhor Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais afirmou que:

 

            “(...) Para que o sistema fiscal promova mais igualdade é fundamental que o esforço de consolidação orçamental seja repartido por todos os contribuintes e incida sobre todos os tipos de rendimento, abrangendo com especial ênfase os rendimentos de capital e as propriedades de elevado valor. Esta matéria, recorde-se, foi amplamente abordada no acórdão do Tribunal Constitucional (...).

            Esta proposta tem três pilares essenciais: a criação de uma tributação especial sobre prédios urbanos de valor superior a 1 milhão de euros; o agravamento da tributação sobre os rendimentos do capital sobre as mais-valias mobiliárias; e o reforço das regras de combate à fraude e à evasão fiscais.

            Em primeiro lugar, o Governo propõe a criação de uma taxa especial para tributar prédios urbanos habitacionais de mais elevado valor. É a primeira vez que em Portugal é criada uma tributação especial sobre propriedades de elevado valor destinadas à habitação. Esta taxa será de 0,5% a 0,8% em 2012 e de 1% em 2013, e incidirá sobre as casas de valor igual ou superior a 1 milhão de euros. Com a criação desta taxa adicional, o esforço fiscal exigido a estes proprietários será significativamente aumentado em 2012 e 2013” (realçado nosso) – cf. Diário da Assembleia da República, I série, n.º 9/XXII-2, de 11 de Outubro de 2012, pp. 31-32.

 

             Quer as casas, quer os prédios urbanos habitacionais aqui referidos não se reconduzem a terrenos para construção. Nota-se que os prédios urbanos habitacionais são um dos conceitos classificatórios constantes do artigo 6.º do Código do IMI claramente distinto dos terrenos para construção. Com efeito, dispõe o citado n.º 1 do artigo 6.º que:

 

            “1 - Os prédios urbanos dividem-se em:

a)         Habitacionais;

b)         Comerciais, industriais ou para serviços;

c)         Terrenos para construção;

d)        Outros.” (realçado nosso)

 

            Assim, prédios urbanos habitacionais e terrenos para construção são, para efeitos de IMI (cuja aplicabilidade, por remissão, ao Imposto do Selo é, como adiante se verá, de convocar), duas categorias distintas, com classificações e definições legais próprias constantes do mencionado artigo 6.º do Código do IMI .

 

            À face do exposto e como salienta a decisão arbitral no processo n.º 75/2013-T, de 1 de Novembro de 2013, afigura-se claro que “no espírito da Proposta da Lei que originou a Lei n.º 55-A/2012 não estava a tributação dos terrenos para construção, não existindo, por outro lado, qualquer evidência em sentido diferente proveniente dos Deputados que aprovaram a lei”.

 

            Fixado o contexto, cabe referir que o regime em causa veio a ser aprovado pela Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro, e, de entre várias alterações que promoveu ao Código do Imposto do Selo, aditou a verba 28 à TGIS, com a seguinte redacção:

 

            “28 – Propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), seja igual ou superior a € 1.000.000 – sobre o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI:

            28.1 – Por prédio com afectação habitacional – 1%;

            28.2 – Por prédio, quando os sujeitos passivos que não sejam pessoas singulares sejam residentes em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável, constante da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças – 7,5 %”. (realçado nosso)

 

            O artigo 6.º da mencionada Lei n.º 55-A/2012 estabeleceu, a título de “Disposições transitórias”, um conjunto de regras relativas à liquidação do imposto previsto na verba 28 da  TGIS , esclarecendo o artigo 67.º, n.º 2 do Código do Imposto do Selo introduzido pela referida Lei que “Às matérias não reguladas no presente Código respeitantes à verba n.º 28 da Tabela Geral aplica-se, subsidiariamente, o disposto no CIMI.”

 

B.        O conceito de “prédio com afectação habitacional”

 

            Importa, assim, interpretar o disposto na verba 28.1 da TGIS e determinar o seu sentido e alcance, atenta a ausência de uma definição legal do conceito de prédio com afectação habitacional (noção fundamental ao recorte da incidência objectiva), seja no próprio Código do Imposto do Selo seja em qualquer outro diploma, incluindo o Código do IMI aplicável por remissão. 

 

            Com efeito, como salientado no Acórdão Arbitral relativo ao processo n.º 53/2013-T, de 2 de Outubro de 2013, o conceito de “prédio com afectação habitacional” não é empregue pela demais legislação tributária, em particular, no que ao caso releva, no Código do Imposto do Selo e no Código do IMI, este último, de aplicação subsidiária no âmbito da verba 28 da TGIS, conforme previsto nos artigos 2.º, n.º 4; 3.º, n.º 3, alínea u); 5.º, alínea u); 23.º, n.º 7; 46.º, n.º 5 e 67.º, n.º 2, todos do Código do Imposto do Selo.

 

            No mesmo sentido, refere a decisão Arbitral no processo n.º 144/2013-T, de 12 de Dezembro de 2013, que este conceito usado pela verba 28.1 (de prédio com afectação habitacional) “não só não surge definido em qualquer disposição do Código do Imposto do Selo, como tão-pouco é usado no Código do IMI, diploma para que expressamente remete o n.º 2 do art.º 67.º do CIS quando estejam em causa matérias não reguladas no CIS relativamente à verba 28.”

 

            As normas fiscais devem ser interpretadas como quaisquer outras, estando ultrapassada a concepção de que lhes assistiria o carácter excepcional que outrora lhes foi assinalado. Como afirma o saudoso Professor J.L. Saldanha Sanches, “a unidade do sistema jurídico e a natureza essencialmente comum dos problemas que se colocam no Direito Fiscal e em outros ramos do Direito fazem com que a adopção de princípios interpretativos com aplicação apenas nas relações jurídicas tributárias dificilmente seja compatível com a unidade sistemática” . 

 

            De igual modo, Sérgio Vasques diz-nos que “a interpretação da lei fiscal não reveste qualquer especificidade, bastando-se com os critérios tradicionais que entre nós figuram no artigo 9.º do Código Civil. O intérprete não deve, assim, cingir-se à letra da lei fiscal, mas reconstituir aqui também, a partir dos textos, o pensamento legislativo, tendo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. Em suma, “também o intérprete das leis fiscais, como o de qualquer outras normas jurídicas, terá de fixar o respectivo sentido, conjugando o ‘elemento gramatical’ com o ‘elemento lógico’ ou ‘teleológico’, incluindo os aspectos racional, sistemático e histórico.””

 

            De notar a este respeito que o artigo 9.º do Código Civil marca a prevalência do espírito sobre a letra da lei, embora tenha colocado expressamente a letra como limite à busca do sentido. Sem prejuízo de considerarmos que a matéria de interpretação das leis não é de índole a ser aprisionada pela via legislativa, encaramos [à semelhança do que também parece ser a posição de Sérgio Vasques] o artigo 9.º do Código Civil como a emanação de um princípio geral hermenêutico, assistindo-lhe, por essa razão, validade intrínseca. Dispõe este preceito que:

 

“1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”

 

            A LGT, no seu artigo 11.º, veio, no campo específico das leis tributárias, consagrar um conjunto de regras de interpretação nos seguintes moldes:

 

 1. Na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam, são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis.

2. Sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer directamente da lei.

3. Persistindo a dúvida sobre o sentido das normas de incidência a aplicar, deve atender-se à substância económica dos factos tributários.

4. As lacunas resultantes de normas tributárias abrangidas na reserva de lei da Assembleia da República não são susceptíveis de integração analógica.

 

            Afigura-se que o texto da LGT nada acrescenta, remetendo para as regras e princípios gerais, para além de incorporar princípios distintos de difícil compatibilização . 

 

            Como se viu acima, o Código do IMI utiliza (no seu artigo 6.º, n.º 1) a noção de prédios urbanos habitacionais, que consagra como uma categoria autónoma e distinta da dos terrenos para construção, mas não prevê o conceito de “prédio com afectação habitacional”, cuja interpretação agora se impõe.

 

            Neste ponto, recorremos, de novo, à jurisprudência arbitral e ao Acórdão proferido no processo n.º 53/2013-T, acima referenciado, que aqui se sufraga e de que se transcreve o seguinte excerto:

 

            “3.2.5. Conceito de «prédio com afectação habitacional» como reportando-se aos prédios habitacionais

 

            O conceito mais próximo do teor literal desta expressão utilizada é manifestamente o de «prédios habitacionais», definido no n.º 2 do artigo 6.º do CIMI como abrangendo «os edifícios ou construções» licenciados para fins habitacionais ou, na falta de licença, que tenham como destino normal fins habitacionais.

 

            A entender-se que a expressão «prédio com afectação habitacional» coincide com [a] de «prédios habitacionais», é manifesto que as liquidações enfermarão de erro sobre os pressupostos de facto e de direito, pois todos os prédios relativamente aos quais foi liquidado o Imposto do Selo ao abrigo da referida verba n.º 28.1 são terrenos para construção, sem qualquer edifício ou construção, exigidos para se preencher aquele conceito de «prédios habitacionais».

 

            Por isso, a adoptar-se a interpretação de que «prédio com afectação habitacional» significa «prédio habitacional», as liquidações cuja declaração de ilegalidade é pedida serão ilegais, por não haver em qualquer dos terrenos qualquer edifício ou construção.

 

            No entanto, a não coincidência dos termos da expressão utilizada na verba n.º 28.1 da TGIS com a que se extrai do n.º 2 do artigo 6.º do CIMI, aponta no sentido de não se ter pretendido utilizar o mesmo conceito.

 

3.2.6. Conceito de «prédio com afectação habitacional» como conceito distinto de «prédios habitacionais»

 

            A palavra «afectação», neste contexto de utilização de um prédio, tem o significado de «acção de destinar alguma coisa a determinado uso»1.

 

            «Quando, como é de regra, as normas (fórmulas legislativas) comportam mais que um significado, então a função positiva do texto traduz-se em dar mais forte apoio a ou sugerir mais fortemente um dos sentidos possíveis. É que, de entre os sentidos possíveis, uns corresponderão ao significado mais natural e directo das expressões usadas, ao passo que outros só caberão no quadro verbal da norma de uma maneira forçada, contrafeita. Ora, na falta de outros elementos que induzam à eleição do sentido menos imediato do texto, o intérprete deve optar em princípio por aquele sentido que melhor e mais imediatamente corresponde ao significado natural das expressões verbais utilizadas, e designadamente ao seu significado técnico-jurídico, no suposto (nem sempre exacto) de que o legislador soube exprimir com correcção o seu pensamento»2.

 

            A relevância do texto da lei é especialmente acentuada em matéria de interpretação de normas de incidência do Imposto do Selo, que se reconduzem a uma amálgama, sob uma denominação comum, de um conjunto incongruente de tributos de naturezas completamente distintas (sobre o rendimento, sobre a despesa, sobre o património, sobre actos, etc.), que não deixa margem apreciável para aplicação do critério interpretativo primordial, que é a unidade do sistema jurídico, que reclama a sua coerência global.

 

            A reconhecida falta de coerência do Imposto do Selo é particularmente exuberante no caso desta verba n.º 28.1, apressadamente incluída à margem do Orçamento Geral do Estado, por um legislador fiscal sem orientação fiscal global perceptível, que vai implementando sucessivamente normas de agravamento fiscal à medida dos revezes da execução orçamental, das imposições dos credores institucionais internacionais (representados pela «troika») e da fiscalização do Tribunal Constitucional. (…)

 

            Neste contexto, não existindo elementos interpretativos seguros que permitam detectar coerência legislativa na solução adoptada na referida verba n.º 28.1 ou o acerto ou desacerto da solução adoptada (relevante para efeitos interpretativos à face do n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil), o teor do texto legal tem de ser o elemento primacial da interpretação, em conformidade com a presunção, imposta pelo mesmo n.º 3 do artigo 9.º, de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

 

            À face daqueles significados das palavras «afectação» e «afectar», que são «dar destino» ou «aplicar», a fórmula utilizada naquela verba n.º 28.1 da TGIS, abrange, manifestamente, os prédios que já estão aplicados a fins habitacionais, pelo que importa indagar se abrangerá também os prédios que, apesar de não estarem ainda aplicados a fins habitacionais, estão a estes destinados e aqueles cujo destino é desconhecido.

 

            À face do teor literal da verba n.º 28.1, é de afastar do âmbito de incidência do Imposto do Selo aí previsto os terrenos para construção de algumas Requerentes que ainda não têm definido qualquer tipo utilização, pois ainda não estão aplicados nem destinados a fins habitacionais. Isto é, os terrenos para construção que não tem utilização definida não podem ser considerados prédios com afectação habitacional, pois não têm ainda nenhuma afectação nem outro destino que não seja a construção de tipo desconhecido. Uma interpretação no sentido de que a verba n.º 28.1 se reporta a prédios cuja afectação é desconhecida não tem o mínimo de correspondência verbal na letra daquela norma, pelo que um hipotético pensamento legislativo desse tipo não pode ser considerado pelo intérprete da lei, em face da proibição que consta do n.º 2 do artigo 9.º do Código Civil.

 

            Mas, isto não basta para esclarecer a situação daqueles terrenos para construção que, não estando ainda aplicados a fins habitacionais, já têm um destino determinado, designadamente, na licença de loteamento (…).

 

            Por isso, haverá que esclarecer quando é que se pode entender que um prédio está afectado a fim habitacional, designadamente se é quando lhe é fixado esse destino num acto de licenciamento ou semelhante, ou apenas quando a efectiva atribuição desse destino é concretizada.

 

            Desde logo, o confronto da verba n.º 28.1 da TGIS com n.º 2 do artigo 6.º do CIMI, que define o conceito de prédios habitacionais, aponta manifestamente, no sentido de ser necessária uma afectação efectiva.

 

            Na verdade, um edifício ou construção licenciado para habitação ou, mesmo sem licença, mas que tenha como destino normal a habitação, é, à face do n.º 2 daquele artigo 6.º um prédio habitacional.

 

            Por isso, no pressuposto de que o legislador da Lei n.º 55-A/2012 soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (como impõe o artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil que se presuma), se pretendesse reportar-se a esses prédios já licenciados para habitação ou que tenham a habitação como destino normal, decerto teria utilizado o conceito de «prédios habitacionais», que expressaria perfeita e claramente o seu pensamento, à face da definição dada por aquele n.º 2 do artigo 6.º do CIMI.

 

            Consequentemente, deve presumir-se que o uso de uma expressão diferente tem em vista uma realidade distinta, pelo que, em boa hermenêutica, «prédio com afectação habitacional», não poderá ser um prédio apenas licenciado para habitação ou destinado a esse fim (isto é, não bastará que seja um «prédio habitacional»), tendo de ser um prédio que tenha já efectiva afectação a esse fim.

 

            Que é este o sentido da expressão «afectação», no mesmo contexto de classificação de prédios que faz o CIMI, confirma-se pelo artigo 3.º em que, relativamente aos prédios rústicos, se faz referência aos que «estejam afectos ou, na falta de concreta afectação, tenham como destino normal uma utilização geradora de rendimentos agrícolas», que evidencia que a afectação é concreta, efectiva. Na verdade, como se vê pela parte final deste texto, um prédio pode ter como destino uma determinada utilização e estar ou não afecto a ela, o que evidencia que a afectação é, a nível da ligação de um prédio a determinada utilização, algo mais intenso que o mero destino e que pode ou não ocorrer, a jusante deste e não a montante4.

 

            De resto, o texto da lei ao adoptar a fórmula «prédio com afectação habitacional», em vez de «prédios urbanos de afectação habitacional», que aparece na referida «Exposição de Motivos», aponta fortemente no sentido de que se exige que a afectação habitacional já esteja concretizada, pois só assim o prédio estará com essa afectação.

 

            No que concerne ao artigo 45.º do CIMI, não tem qualquer relação com a classificação de prédios apenas indicando os factores a ponderar na avaliação de terrenos para construção. O que se pondera aí, ao fazer referência ao «edifício a construir» é a ponderação do destino do terreno, que, como se viu, é algo que, no contexto do CIMI, não implica afectação e ocorre antes desta.

 

            A correcção desta interpretação no sentido de que só prédios que estejam efectivamente afectos à habitação, se inserem no âmbito de incidência da verba n.º 28.1 da TGIS é também confirmada pela ratio legis perceptível da restrição do campo de aplicação da norma aos prédios com afectação habitacional, no contexto das «circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada», que o artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil também erige em elementos interpretativos5.

 

            Desde logo, a limitação da tributação em Imposto do Selo aos «prédios com afectação habitacional» deixa perceber que não se pretendeu abranger no âmbito de incidência do imposto os prédios com afectação a serviços, indústria ou comércio, isto é, os prédios afectos à actividade económica, o que se compreende num contexto em que, como é notório, a economia se encontra em espiral recessiva, publicamente proclamada ao mais alto nível, com as taxas de desemprego a atingir níveis máximos históricos, com avalanche de encerramento de empresas derivado de insustentabilidade económica.

 

            Tendo em mente esta situação e sendo consabido e público que a reanimação da actividade económica e o aumento das exportações são as portas de saída para a crise, compreende-se que não se tomassem legislativamente medidas que dificultassem a actividade económica, designadamente o agravamento da carga fiscal que a dificulta e afecta a competitividade em termos internacionais.

 

            Por isso, é de concluir que os elementos interpretativos disponíveis, inclusivamente as «circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada», apontam claramente no sentido de não se ter pretendido abranger no âmbito de incidência da verba n.º 28.1 as situações de prédios que ainda não estão afectos à habitação, nomeadamente os terrenos para construção detidos por empresas6.”

 

            Neste âmbito, pelas razões acabadas de expor, não pode proceder o entendimento preconizado pela Autoridade Tributária e Aduaneira de que a noção de afectação (habitacional) de um prédio urbano se deve ir buscar ao regime de avaliação dos imóveis constante do artigo 45.º do Código do IMI [que tem em consideração o coeficiente de afectação previsto no artigo 41.º do mesmo Código], “para efeitos de aplicação da verba 28 da Tabela Geral do Imposto do Selo”.

 

            De facto, como bem refere a decisão do processo arbitral n.º 144/2013-T, “Se o sentido primacial de “afectação”, como deixámos dito, sugere um destino efectivo, directo, dado a um determinado bem, não vemos como possa este entendimento ser infirmado pela constatação de que o legislador, no âmbito da avaliação de terrenos para construção, autoriza (a admitir que autoriza) o uso do coeficiente de afectação, tendo em vista o que nele pode vir a ser construído. Na verdade, como bem refere a Requerente, não parece razoável admitir neste cenário o recurso a normas de determinação da matéria colectável para alargar a previsão das normas de incidência.

 

            A situação é tão mais nítida quanto é conhecido que, não obstante os critérios usados no âmbito da determinação do valor patrimonial tributário, com que a Requerente se conformou, o Prédio que nos ocupa (…) não era exclusivamente destinado à construção de habitações. (…) O mesmo é dizer, que nem sequer em termos potenciais ou de expectativa se podia admitir que o terreno para construção em causa estaria afecto, todo ele, à construção de habitações. (…)

 

            Na verdade, uma coisa são as regras que o legislador impõe para determinar o valor patrimonial tributário dos terrenos para construção, não sendo estranho que se atenda à sua capacidade construtiva e à natureza e vocação do que neles possa ser edificado, outra, bem diversa, é pretender que essas regras sejam convocadas para recortar o campo da previsão normativa das regras de incidência.”

 

            Não podíamos estar mais de acordo.

 

C.        O caso concreto

 

            De acordo com a matéria de facto, que resulta consensual, os imóveis subjacentes às liquidações de Imposto do Selo com base na verba 28.1, aqui impugnadas, consubstanciam terrenos para construção, desprovidos de quaisquer edificações. Os referidos terrenos foram alvo de uma operação de loteamento de acordo com a qual foram aprovados seis lotes de terreno, dos quais cinco foram destinados simultaneamente a habitação colectiva e comércio.

 

            Tomando como correcto e válido (como tomamos) o entendimento segundo o qual a verba 28.1 da TGIS postula a necessidade de uma efectiva afectação habitacional de um prédio urbano e não meramente potencial, um terreno para construção não pode considerar-se incluído naquela verba, pois não permite, pela sua própria natureza, ter uma afectação habitacional efectiva e actual.

 

            Acresce que a construção prevista ou autorizada nesses terrenos nem sequer se destina exclusivamente à habitação, prevendo o alvará de loteamento o destino de “habitação colectiva e comércio” para cinco dos seis lotes, pelo que contemplando-se a utilização dos terrenos também para fins comerciais, não se pode concluir pela afectação meramente habitacional.

 

            Assim, na situação vertente não estamos perante prédios com afectação habitacional actual, pelo que não pode incidir sobre os mesmos o Imposto do Selo previsto na verba 28.1 da TGIS, padecendo as liquidações controvertidas de erro nos pressupostos, consubstanciado na violação da referida verba 28.1, devendo as mesmas ser anuladas (cf. artigo 135.º do CPA, de aplicação subsidiária ex vi artigos 2.º alínea d) do CPPT e 29.º, n.º 1, alíneas a) e d) do RJAT). 

 

            No que se refere aos alegados vícios de duplicação de colecta e de inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade (este último, ao contrário do peticionado pela Requerente, caso procedesse, não seria causa de nulidade, mas de anulabilidade, nos termos do artigo 135.º do CPA), o conhecimento de tais questões encontra-se prejudicado pela declaração de ilegalidade das liquidações de Imposto do Selo vertentes, por vício substantivo que impede a respectiva reedição ou renovação.

 

            Como refere o Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2005, de Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, em anotação ao artigo 95.º desse diploma, p. 483 (aplicável por remissão do artigo 2.º alínea c) do CPPT e do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e c) do RJAT) “Se o tribunal julgou procedente o pedido principal, fica precludido o poder jurisdicional quanto a um pedido subsidiário ou formulado em alternativa; e, nos mesmos termos, se a pronúncia adoptada quanto a uma questão consome ou deixa prejudicados outros aspectos da causa que com ela se correlacionem.”

 

            Nestes termos, face à interpretação material preconizada fica prejudicado o conhecimento e a apreciação dos demais vícios imputados aos actos de liquidação.

 

 

7.  DECISÃO

 

            À face do exposto, conclui-se assistir razão à Requerente, pelo que acordam neste Tribunal Arbitral em julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade e de anulação dos actos de liquidação de Imposto do Selo, com as legais consequências.

 

* * *

 

            Fixa-se o valor do processo em Euro 64.416,30, de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º do CPC. 

 

            O montante das custas é fixado em Euro 2.448,00, ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4 do RJAT e da Tabela I anexa ao RCPAT, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira, de acordo com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 do RJAT e 4.º, n.º 4 do RCPAT.

 

            Notifique.

 

            Lisboa, 9 de Maio de 2014

 

 

Os Árbitros,

Dra. Alexandra Coelho Martins

 

Dr. Henrique Nogueira Nunes

 

Dra. Filipa Correia Pinto

 

Texto elaborado em computador nos termos do artigo 131.º, n.º 5 do CPC, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do Decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com versos em branco e revisto.

 

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia antiga.