Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 210/2013-T
Data da decisão: 2016-04-13  IRC  
Valor do pedido: € 248.740,95
Tema: IRC - Tributações autónomas; constitucionalidade do artigo 88.º do CIRC; dedutibilidade; competência do Tribunal Arbitral; tempestividade
Versão em PDF

Decisão Arbitral

 

Os árbitros, José Poças Falcão (árbitro-presidente), Ana Maria Rodrigues e Amândio Silva, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o tribunal arbitral, constituído em 30-10-2013, acordam no seguinte:

 

I. RELATÓRIO

 

1. A…, SA (adiante designada Requerente), pessoa coletiva n.º …, com sede em …, requereu, em 30 de agosto de 2013, a constituição de tribunal arbitral, nos termos do disposto nos artigos 2.º. n.º 1, al. a), 5.º n.º 3, al. a), 6.º, n.º 2, al. a) e 10.º, n.º 1, al. a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (adiante, Regime Jurídico da Arbitragem Tributária ou RJAT) e do artigo 102.º, n.º 1, al. d), do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), tendo em vista a declaração de ilegalidade parcial dos atos de autoliquidação do IRC dos períodos de 2008, 2009, 2010 e 2011, na parte correspondente às tributações autónomas, o que corresponde a um imposto indevidamente liquidado no montante total de € 270.325,47.

2. Em 21 de dezembro de 2012, a Requerente apresentou, ao abrigo do artigo 78.º n.º 1 da Lei Geral Tributária (LGT), o pedido de revisão oficiosa dos referidos atos de autoliquidação.

3. Por terem decorrido mais de quatro meses desde a apresentação do pedido de revisão oficiosa, presumiu a Requerente o indeferimento tácito, nos termos do n.º 1 do artigo 57.º da LGT, e solicitou, ao abrigo do artigo 10.º, n.º 1, al. a), do RJAT, conjugado com o artigo 102.º, n.º 1, al. d), do CPPT, a constituição do tribunal arbitral.

4. No pedido, a Requerente optou por não designar árbitro.

5. Nos termos do n.º 2 do artigo 6.º do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem designou o coletivo de árbitros ora signatários, notificando as partes.

6. O tribunal proferiu a decisão em 12 de maio de 2014.

7. Desta decisão do tribunal arbitral recorreu a Requerente para o Pleno da Seção de Contencioso do Supremo Tribunal Administrativo (STA), invocando oposição entre a decisão arbitral e o acórdão do STA de 18 de maio, recurso n.º 0156711, quanto à questão de saber se o tribunal pode conhecer, na fase judicial/arbitral, vícios do ato tributário que a administração não conheceu na fase administrativa, ou se, ao invés, os poderes de cognição do tribunal se encontram delimitados pelos poderes de cognição da administração tributária na fase administrativa.

8. Em concreto, considerou a Requerente que, ao contrário do decidido, o tribunal arbitral deve pronunciar-se sobre as matérias da constitucionalidade das tributações autónomas e a eventual incompatibilidade com o Direito Comunitário.

9. Os juízes do Pleno da seção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo concluíram que “abrindo a decisão do pedido de revisão oficiosa a porta à discussão judicial do ato de liquidação (de autoliquidação) e devendo-se considerar tal ato como não estabilizado na ordem jurídica, não faria qualquer sentido que se limitasse o âmbito de conhecimento no processo de impugnação judicial às ilegalidades anteriormente suscitadas.”

10. Assim, “tem sido jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal que as questões respeitantes à violação de princípios e parâmetros constitucionais devem ser obrigatoriamente conhecidas pelo juiz loque delas haja notícia no processo, quer as mesmas sejam trazidas aos autos pelas partes na fase inicial do processo, petição inicial, quer na fase final, alegações prévias à sentença...”

E mesmo se passa relativamente ao conhecimento do Direito da União. (...) Além do mais, o conhecimento oficioso, e a todo o tempo, de tais questões é obrigatório para todos órgãos jurisdicionais dos estados membro, tal como resulta do acórdão do TJUE proferido no processo n.º C-312/93...”

11. Assim, foi concedido provimento ao recurso, remetendo-se os autos ao tribunal arbitral para prolação de nova decisão.

12. O tribunal encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objeto do processo.

13. As alegações que sustentam o pedido de pronúncia arbitral da Requerente são, em súmula, as seguintes:

 

Alegações da Requerente

14.1 A Requerente procedeu à entrega das declarações de rendimentos modelo 22, referentes aos exercícios de 2008, 2009, 2010 e 2011.

14.2     Naquelas declarações fiscais, a Requerente apurou e declarou os seguintes montantes a título de tributações autónomas:

Exercício

Tributação Autónoma

(em €)

2008

52.574,00

2009

46.594.60

2010

42.061,32

2011

129.095,55

TOTAL

270.325,47

 

14.3     No presente pedido de pronúncia arbitral, pretende-se a correção das autoliquidações dos exercícios de 2008, 2009, 2010 e 2011, na parte relativa às tributações autónomas, com os seguintes fundamentos:

 (i) As tributações autónomas violam os princípios constitucionais da tributação pelo lucro real, da capacidade contributiva e da proporcionalidade, conforme previstos nos artigos 13.º, 18.º, 103.º, n.º 1 e 104.º, n.º 2, todos da CRP;

(ii) As tributações autónomas violam ainda os princípios basilares do sistema comum do Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) os quais consistem em aplicar aos bens e serviços apenas um único imposto geral sobre o consumo;

14.4     Quanto ao princípio de tributação pelo rendimento real, dispõe o artigo 104.º, n.º 2, da CRP que “(…) a tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o rendimento real”.

Este princípio traduz uma exigência fundamental de proporcionalidade, segundo a qual as obrigações tributárias imputáveis a cada contribuinte devem ser determinadas de acordo com a respetiva capacidade contributiva.

Ou seja, o princípio de tributação do rendimento real é uma concretização dos princípios da capacidade contributiva e da igualdade fiscal que se traduzem na ideia de que só devem pagar impostos aqueles que puderem e na medida das suas capacidades.

As tributações autónomas constituem uma tributação sobre a despesa e não sobre o rendimento, pelo que configuram um imposto indireto e não direto, o qual é determinado de forma totalmente independente do IRC e da derrama.

Neste sentido, para a jurisprudência do Tribunal Constitucional “no caso do IRC, estamos perante um imposto anual em que não se tributa cada rendimento de per si, mas sim o englobamento de todos os rendimentos obtidos num determinado ano, considerando a lei que o facto gerador se tem verificado no último dia do período de tributação (...) no quer respeita à tributação autónoma em IRC, o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa...” (Acórdão n.º 617/2012, de 19 de dezembro).

Acrescenta-se ainda que “com este tipo de tributação teve-se em vista, por um lado, incentivar os contribuintes a ela sujeitos a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afetem negativamente a receita fiscal e, por outro lado, evitar que, através dessas despesas, as empresas procedam à distribuição camuflada de lucros, sobretudo de dividendos, que assim, apenas ficariam sujeitos a IRC enquanto lucros das empresas, bem como combater a fraude e evasão fiscais que tais despesas ocasionem não apenas em relação ao IRS ou IRC, mas também em relação às correspondentes contribuições, tanto de entidades patronais como dos trabalhadores para a segurança social.”

A Requerente defende que as normas relativas à tributação autónoma são normas de tributação que se destinam a corrigir comportamentos com efeitos ao nível do IRC, sendo anti sistémicas e de natureza excecional, dado que “Estamos [...] neste caso perante opções legislativas a exigirem uma justificação especial que as legitime. (...) Perante normas anti sistémicas que se podem manter apenas com base nas especiais relações que as legitimam.” (SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 3.ª Ed., p. 289).

Acrescentam que a ampliação dos factos sujeitos a tributação autónoma e o constante agravamento das taxas que se tem vindo a praticar conduz inquestionavelmente à violação do princípio da igualdade tributária, por violação do princípio da capacidade contributiva (artigos 13.º e 104.º da CRP) e do princípio da equivalência, atento ao incumprimento da regra de proporcionalidade ou da proibição do excesso (artigo 18.º da CRP).

Entendem ainda que o constante aumento das taxas praticado no âmbito da tributação autónoma ultrapassa claramente o âmbito dos objetivos de correção de comportamentos que se pretende desencorajar e que, nesse sentido, estamos perante a violação do princípio da proporcionalidade que consiste precisamente no facto de a tributação autónoma, sendo um imposto sobre o consumo, consubstanciar atualmente um verdadeiro imposto de arrecadação de receita.

Num Estado de Direito, o princípio da proibição do excesso determina que os meios – in casu o constante agravamento das taxas de tributação autónoma – não podem ser desadequados ou desproporcionados ao fim a atingir ou ao resultado a obter (correção das despesas desnecessárias e combate à evasão/fraude fiscal).

Assim, não poderá a tributação autónoma ser considerada como uma tributação que incide sobre o rendimento ou lucro real, nem sequer “fundamentalmente”.

Pelo exposto, sustentam que a tributação autónoma é materialmente inconstitucional por violação do princípio de tributação pelo lucro real, do princípio da capacidade contributiva, enquanto expressão e corolário do princípio da igualdade e do princípio da proporcionalidade, conforme previstos nos artigos 13.º, 18.º, 103.º, n.º 1 e 104.º, n.º 2, da CRP.

14.5     Relativamente à violação do direito comunitário, a Requerente alega, em síntese, que no quadro do mercado interno, devem ter-se em consideração as medidas fiscais tomadas pelos Estados-membros que sejam suscetíveis de dificultar a livre circulação de mercadorias, de serviços e de capitais, bem como de falsear o livre jogo da concorrência.

O regime comunitário compreende regras relativas a (i) estruturas harmonizadas de tributação (definição dos produtos, unidades de medida, isenções); a (ii) níveis de tributação; e à (iii) circulação entre os Estados-membros dos produtos sujeitos a impostos especiais de consumo.

Neste sentido, o IVA foi instituído como o imposto geral sobre o consumo, prevendo-se também a existência de impostos especiais sobre o consumo, justificados estes como mecanismo de combate a externalidades sociais negativas e compensação de custos sociais.

Atendendo a que “as características atuais da tributação autónoma qualificam-na como um imposto geral sobre o consumo/despesa, e não como um imposto especial sobre o consumo, tendo em atenção toda a diversidade e heterogenia da sua base incidência bem como o incumprimento do critério básico definidor de imposto especial de consumo enformado pelo princípio da equivalência e que obriga à diferenciação das taxas consoante o custo social que cada produto gera”, a Requerente conclui que a tributação autónoma protagoniza um conflito frontal com o direito comunitário.

A tributação autónoma tem as características de um imposto sobre o volume de negócios porque não incide sobre uma categoria limitada de bens, serviços ou atividades, antes tributando bens de natureza tão díspar como automóveis, despesas de representação, ajudas de custo e despesas não documentadas.

Acresce ainda que a tributação autónoma onera a circulação de bens e serviços. Em consequência, impõe restrições à procura e impõe aos agentes económicos uma carga tributária adicional a que não estão sujeitos noutros países.

Assim, conclui, a tributação autónoma onera a circulação de bens e serviços de modo comparável ao que caracteriza o IVA.

Embora reconheça a Requerente que apenas se encontra proibida pela legislação comunitária e confirmada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia a cumulação de impostos sobre o volume de negócios similares ao IVA – enquanto imposto sobre o consumo e sobre a despesa – defende que esta proibição de cumulação de impostos sobre o consumo visa impedir que o funcionamento deste imposto seja comprometido por medidas fiscais de um Estado-Membro que onerem a livre circulação de bens e as transações comerciais de modo comparável ao IVA, sendo esse o caso, no seu entender, das tributações autónomas.

Acrescenta que, de acordo com a jurisprudência do TJUE, apenas se admite a coexistência de outros “impostos aduaneiros, taxas e demais encargos” caso exista, conforme definido no Acórdão de 28/07/2011, Proc. n.º C-106/10, uma ligação direta com o facto gerador do imposto.

No caso da tributação autónoma, entende a Requerente que não só não existe qualquer relação direta que legitime a sua coexistência com o IVA, como também, pela sua natureza de imposto sobre o consumo/despesa, a sua manutenção compromete a neutralidade do sistema do IVA.

 

Resposta da Requerida

 

15.1 Na resposta, a Requerida alega, em primeiro lugar, a exceção de impropriedade do meio e incompetência do tribunal arbitral com referência aos exercícios de 2008 e 2009: “...com referência aos exercícios de 2008 e 2009, o presente meio processual deixou de ser o meio próprio porquanto, face ao fundamento do sobredito ato de indeferimento expresso (intempestividade do pedido), este consubstancia um ato administrativo em matéria tributária que não comporta a apreciação da legalidade de ato de liquidação de tributo.” E acrescenta: “Atento aos exercícios de 2010 a 2011, assistindo à R. a faculdade prevista no artigo 70.º do CPTA, não prescinde a AT de vir oportunamente a alterar a sua Resposta, em consonância com a eventual alteração que venha a ser apresentada ao pedido de pronúncia arbitral.”

15.2 Por impugnação, considera, quanto à alegada inconstitucionalidade, que a norma que institui as tributações autónomas está em vigor, pelo que não cabe à Autoridade Tributária e Aduaneira questionar a aplicação de uma norma dimanada de um órgão de soberania.

15.3 No que se refere à sua dedutibilidade fiscal, alega a Requerida que a tributação autónoma foi criada pelo legislador com o objetivo, por um lado, de incentivar os contribuintes a ela sujeitos a reduzirem tanto quanto possível as despesas que concorram negativamente para a formação do lucro tributável e que, como tal, afetam negativamente a receita fiscal, e, por outro lado, de evitar que, através destas despesas, as empresas procedam à distribuição camuflada de lucros, sobretudo dividendos, que não seriam assim tributados. Além disso, subjaz também à tributação autónoma o objetivo de combater a fraude e evasão fiscais que tais despesas ocasionam, não apenas em relação ao IRC ou ao IRS, mas também em relação às correspondentes contribuições, tanto das entidades patronais como dos trabalhadores.

15.4 Assim, considera a Requerida que, “visando a tributação autónoma reduzir a vantagem fiscal alcançada com a dedução ao lucro tributável dos custos sobre os quais incide e ainda combater a evasão fiscal que este tipo de despesas, pela sua natureza, potencia, não poderá ela mesma, através da dedução ao lucro tributável a título de custo do exercício, constituir fator de redução dessa diminuição de vantagem pretendida e determinada pelo legislador.”

 

16. Em resposta às exceções de impropriedade do pedido de pronúncia arbitral e de incompetência do tribunal arbitral invocadas, veio a Requerente afirmar o seguinte:

 a) Não tem razão a Requerida quando considera que a prolação pela Autoridade Tributária e Aduaneira de decisão expressa no âmbito do pedido de revisão oficiosa após a apresentação do presente pedido de pronúncia arbitral na sequência de formação da presunção de indeferimento tácito, obsta à apreciação do pedido;

b) O artigo 57.º, n.ºs 1 e 5, da LGT faz presumir o indeferimento das pretensões dos contribuintes dirigidas à Autoridade Tributária e Aduaneira, após 4 meses, para efeitos de recurso hierárquico, recurso contencioso ou impugnação judicial.

Se o contribuinte fizer uso daquela faculdade e optar, no caso, pelo pedido de constituição do tribunal arbitral, a Autoridade Tributária e Aduaneira só poderá pronunciar-se a respeito da pretensão do contribuinte no âmbito do processo arbitral para revogar, ratificar, reformar ou converter o ato tributário (artigo 13.º do RJAT) e/ou apresentar resposta (artigo 17.º do RJAT). Neste sentido, cita JORGE LOPES DE SOUSA que afirma em anotação ao artigo 106.º do CPPT que “Assim, na sequência de reclamação graciosa ou de recurso hierárquico que tenha sido interposto de decisão de indeferimento da mesma, houve impugnação judicial tendo por objeto o indeferimento tácito, a administração tributária só pode pronunciar-se sobre a legalidade do ato de liquidação nos termos e prazos previstos naqueles artigos 11.º n.º 1 e 112.º. Se, depois deste prazo, for proferida decisão de indeferimento da reclamação graciosa ou do recurso hierárquico, a decisão será ilegal.”;

c) Assim, sustenta que a decisão de indeferimento expresso é ilegal porquanto foi proferida quando a Autoridade Tributária e Aduaneira se encontrava legalmente impedida de se pronunciar sobre a pretensão da Requerente;

d) Sem prejuízo, requer no entanto a ampliação do pedido de pronúncia arbitral por forma a incluir a decisão expressa do pedido de revisão oficiosa em apreço;

e) Acrescenta, ainda, que o objeto mediato do pedido arbitral é a apreciação da legalidade dos atos tributários em apreço, quais sejam, as autoliquidações do IRC dos exercícios de 2008, 2009, 2010 e 2011, sendo o seu objeto imediato a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, concluindo, também por essa razão, pela competência do tribunal arbitral.

 

17. Retorquiu a Requerida, alegando que:

17.1 Só quando o ato de segundo grau incorpora a ilegalidade do ato de primeiro grau, por confirmação do ato de liquidação (como sucede com o ato expresso relativamente aos atos de liquidação de 2010 e 2011), é que o tribunal arbitral será materialmente competente para conhecer do mesmo.

17.2 A contrario, quando o ato de segundo grau não confirme o ato de liquidação, e, consequentemente, não incorpore a sua ilegalidade (como acontece nos atos em matéria tributária que não comportem a apreciação da legalidade da liquidação, de que o ato expresso de indeferimento é exemplo no que respeita aos atos de liquidação de 2008 e 2009) o tribunal arbitral não será materialmente competente para conhecer do mesmo. Nesses casos, a sindicância jurisdicional do ato de segundo grau só poderá ter lugar através da Acão administrativa especial, nos termos do n.º 2 do artigo 97.º do CPPT e do artigo 191.º do CPTA).

17.3 Por outro lado, acrescenta ainda que o prazo para o contribuinte pedir a revisão do ato tributário é, nos termos do n.º 1 artigo 78.º da LGT, o prazo da reclamação graciosa, cujo prazo de interposição, nos termos do artigo 131.º do CPPT, aqui aplicável, é de dois anos.

17.4 Com efeito, refere, não foi intenção do legislador, no n.º 2 do artigo 78.º da LGT, que todos os erros na autoliquidação fossem de considerar imputáveis aos serviços e, como tal, suscetíveis de revisão no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o imposto ainda não tiver sido pago.

17.5 Em conformidade, a pretensão da Requerente relativamente aos exercícios de 2008 e 2009 era de indeferir liminarmente por ser extemporânea, sendo, por isso, totalmente legítima a decisão proferida pela Autoridade Tributária e Aduaneira a esse respeito.

17.6. No dia 10 de janeiro de 2014, foi realizada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, tendo sido dada a palavra aos representantes da Requerente para se pronunciarem sobre as exceções, estes entenderam manter o alegado no requerimento em que se pronunciaram sobre as exceções invocadas pela Requerida em sede de resposta. Por seu turno, a Requerida declarou manter as exceções alegadas e suscitou ainda a incompetência material do tribunal arbitral uma vez que, nos termos em que se encontra formulado, o pedido de pronúncia arbitral configura um pedido de condenação à prática de ato devido, que se encontra fora do âmbito material de competência dos tribunais arbitrais previsto no artigo 2.º do RJAT.

Face às novas alegações, a Requerente solicitou um prazo para se pronunciar por escrito, o que lhe foi concedido.

17.7. No dia 20 de janeiro de 2014, a Requerente pronunciou-se sobre a exceção invocada pela Requerente, afirmando, em síntese, que em momento algum foi pedida a condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira na prática de um ato devido, mas sim a apreciação da legalidade dos atos de autoliquidação de IRC dos exercícios de 2008 a 2011 em resultado do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentado nos termos do artigo 78.º da LGT.

17.8. Em 28 de fevereiro, o tribunal arbitral convidou as partes a fazerem, em 5 dias de prazo sucessivo, a demonstração de se verificarem reunidos os pressupostos processuais de conhecimento do pedido arbitral (versando mormente sobre a tempestividade da impugnação de todas e de cada uma das liquidações em causa, considerando especialmente o disposto no artigo 78.º, n.º 4, da Lei Geral Tributária).

 

18.1 Na resposta, a Requerente considera inequívoca a tempestividade do pedido de revisão oficiosa apresentado em 21.12.2012, porquanto foi apresentado no prazo no prazo de 4 meses previsto nos artigos 78.º, n.º 1 e n.º 2, da LGT.

18.2 Sem prejuízo, caso se considere não assistir fundamento para a revisão oficiosa dos atos de autoliquidação em apreço com fundamento em erro imputável aos serviços, nos termos do n.º 1 e n.º 2 do artigo 78.º da LGT, sustenta que se impõe a revisão oficiosa das autoliquidações de IRC referentes aos exercícios de 2009, 2010 e 2011, com fundamento em injustiça grave ou notória, nos termos do disposto no artigo 78.º, n.º 4, da LGT.

18.3 De harmonia com o citado preceito legal, considerando-se que não existe erro imputável aos serviços, pode haver lugar a revisão da matéria tributável, no prazo de 3 anos, com fundamento em injustiça grave ou notória, considerando-se, neste âmbito, como notória a injustiça ostensiva e inequívoca e como grave a injustiça resultante de tributação exagerada e desproporcionada (cf. artigo 78.º, n.º 4 e n.º 5, da LGT).

18.4 Afirma ser inequívoco que o pedido de revisão oficiosa em apreço, na parte correspondente à contestação da legalidade dos atos de autoliquidação de IRC referentes aos exercícios de 2009, 2010 e 2011, foi apresentado no prazo de 3 anos previsto no citado artigo 78.º, n.º 4, da LGT.

18.5 Por outro lado, conforme decorre do pedido de pronúncia arbitral, argumenta que é manifesta a injustiça grave e notória no caso em apreço porquanto a tributação autónoma conforme prevista no Código do IRC é materialmente inconstitucional por violação do princípio da tributação pelo lucro real, do princípio da capacidade contributiva enquanto expressão e corolário do princípio da igualdade e do princípio da proporcionalidade (cf. artigos 13.º, 18.º, 103.º, n.º 1 e 104.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa).

18.6 Pelo que se impõe a conclusão de que, no caso sub judice, se verifica uma situação de injustiça grave ou notória para efeitos do disposto no artigo 78.º, n.º 4, da LGT.

18.7 Assim, na sua opinião, é inequívoca a tempestividade do pedido de revisão oficiosa dos atos de autoliquidação de IRC referentes aos exercícios de 2009, 2010 e 2011, apresentado no prazo de 3 anos previsto no artigo 78.º, n.º 4, da LGT.

18.8 A Autoridade Tributária e Aduaneira pronunciou-se dizendo que o pedido de revisão oficiosa não foi formulado ao abrigo do n.º 4 do artigo 78.º da LGT pelo que, não tendo o pedido de pronúncia arbitral tal escopo, não pode agora o tribunal arbitral conhecer deste.

Reitera, novamente, que a resposta apresentada não abala a convicção manifestada de que o tribunal arbitral é materialmente incompetente para conhecer do pedido.

 

Nada mais tendo sido arguido ou requerido, cumpre, agora, proferir decisão.

 

II. FUNDAMENTAÇÃO

 

MATÉRIA DE FACTO

1. A Requerente submeteu as correspondentes declarações de rendimentos modelo 22 de IRC dos exercícios de 2008, 2009, 2010 e 2011, em 29/05/2009, 28/05/2010, 02/06/2011 e 28/05/2012, respetivamente.

2. Nessas declarações apresentou um valor total e global de tributações autónomas de €270.325,47, distribuído pelos exercícios seguintes:

Exercício

Tributação Autónoma

(em €)

2008

52.574,00

2009

46.594.60

2010

42.061,32

2011

129.095,55

 

3. De acordo com as declarações modelo 22 junto ao processo, as tributações autónomas são relativas a despesas não documentadas, ajudas de custo, despesas de representação e encargos com viaturas.

4. A Requerente pagou o imposto devido.

5. Em 21.12.2012, a Requerente requereu, ao abrigo do disposto no artigo 78.º, n.º 1, da LGT, um pedido de revisão oficiosa dos atos de autoliquidação daqueles exercícios.

6. Na data em que apresentou o pedido de constituição de tribunal arbitral, a 30 de agosto de 2013, a Requerente ainda não havia sido notificada da resposta da Autoridade Tributária e Aduaneira, tendo já decorrido quatro meses sobre a data de apresentação do pedido.

7. Em 19.11.2013, foi a Requerente notificada do ato de indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa.

A decisão da matéria dos factos provados baseou-se nos documentos juntos ao processo e na não oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira quanto a factos invocados pela Requerente.

Não há factos não provados com relevo para a decisão da causa.

 

Questões a apreciar:

a. Ponto prévio: do(s) ato(s) administrativo-tributário(s) objeto do processo arbitral;

b. Da exceção de incompetência material do CAAD, da extemporaneidade do pedido e da “ilegalidade do pedido”;

c. Do Mérito:

 i. Da alegada inconstitucionalidade do artigo 88.º do CIRC;

ii. Da violação de normas de direito comunitário;

iii. A título subsidiário, da dedutibilidade dos montantes pagos a título de tributação autónoma para efeitos de apuramento do lucro tributável.

 

a) Ponto prévio: do(s) ato(s) administrativo-tributário(s) objeto do processo arbitral

 

A primeira questão a analisar com vista à decisão sobre a competência do presente tribunal arbitral é a de saber qual é o acto administrativo-tributário que é objeto do processo arbitral, por ser dessa questão que decorre a da competência, ou incompetência, material do tribunal.

Do pedido formulado pela Requerente não decorre, de forma expressa, qual ou quais os atos que são objeto do presente processo arbitral. Refere-se apenas, no intróito do pedido de constituição do tribunal arbitral, que “[a Requerente] vem, na sequência da formação da presunção de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa dos atos de autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC), referentes aos exercícios de 2008, 2009, 2010 e 2011, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), 10.º, n.º 1, alínea a), todos do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT) e do artigo 102.º, n.º 1, alínea d) do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), requerer a constituição de tribunal arbitral coletivo (...)”. A Requerente não questiona diretamente a legalidade do acto de indeferimento tácito do pedido de revisão dos actos de autoliquidação de IRC de 2008, 2009, 2010 e 2011, nem questiona diretamente os referidos actos de autoliquidação. Por outro lado, o pedido final foi redigido nos seguintes termos: “(...) deve o presente pedido de pronúncia arbitral ser julgado procedente, por provado, e, em consequência, ser determinada a revisão das autoliquidações de IRC nos termos peticionados”, concluindo-se que o que a Requerente pretende, caso venha a ser-lhe dada razão, é que a AT seja condenada a proceder à revisão das autoliquidações de IRC nos termos peticionados.

Já na pendência do presente processo, foi proferida decisão expressa de indeferimento do pedido de revisão, passando o processo arbitral a ter como seu objeto imediato o acto de indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa, nos termos do artigo 70.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), aplicável subsidiariamente nos termos do art.º 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT.

Vejamos, agora, a questão da competência deste tribunal.

 

b. Da exceção de incompetência material do CAAD, da extemporaneidade do pedido e da “ilegalidade do pedido”

 

A questão da competência do CAAD já foi amplamente discutida no Acórdão do Tribunal Arbitral proferido no Proc. n.º 48/2012-T, de 6 de julho de 2012. Seguiremos o sentido e conclusões desta decisão.

 

Aí se refere que “a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é, em primeiro lugar, limitada às matérias indicadas no art. 2.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT). Numa segunda linha, a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é também limitada pelos termos em que AT se vinculou àquela jurisdição, e que estão concretizados na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, uma vez que o art. 4.º do RJAT estabelece que «a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos».

 

Em face desta segunda limitação da competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, a resolução da questão da competência depende essencialmente dos termos desta vinculação, já que, mesmo que se esteja perante uma situação enquadrável naquele art. 2.º do RJAT, se ela não estiver abrangida pela vinculação prevista na Portaria atrás referida, estará afastada a possibilidade de o litígio ser jurisdicionalmente decidido por este Tribunal Arbitral.

Na alínea a) do art. 2.º desta Portaria n.º 112-A/2011, excluem-se expressamente do âmbito da vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD as «pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário».

A referência expressa ao precedente «recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser interpretada como reportando-se aos casos em que tal recurso é obrigatório, através da reclamação graciosa, que é o meio administrativo indicado naqueles arts. 131.º a 133.º do CPPT, para cujos termos se remete.”

 

No que respeita, em concreto, aos actos de autoliquidação, nos termos do artigo 131.º, n.º 1, do CPPT, “Em caso de erro na autoliquidação, a impugnação será obrigatoriamente precedida de reclamação graciosa dirigida ao dirigente do órgão periférico regional da administração tributária, no prazo de 2 anos após a apresentação da declaração.” O n.º 3 acrescenta, contudo, que “Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, quando o seu fundamento for exclusivamente matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efectuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária, o prazo para a impugnação não depende de reclamação prévia, devendo a impugnação ser apresentada no prazo do n.º 1 do artigo 102”. Assim, a impugnação directa do acto de autoliquidação só pode fazer-se sem prévia reclamação graciosa nos casos em que tiver sido efetuada “de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária”, como resulta do preceituado no artigo 131.º, n.º 3, do CPPT. No caso em apreço, não se está perante uma situação deste tipo, não tendo sequer sido alegadas quaisquer orientações que a Administração Tributária e Aduaneira tivesse emitido com respeito à forma como as autoliquidações foram efetuadas, pelo que tem de concluir-se que a impugnação dos actos de autoliquidação estava dependente de prévia reclamação graciosa.

Assim, conclui-se nos mesmos termos do acórdão citado que “Não tendo havido prévia reclamação graciosa, a declaração direta da ilegalidade do ato de autoliquidação (isto é, sem ser consequência da ilegalidade do ato de indeferimento da revisão oficiosa) está afastada da competência deste Tribunal Arbitral, por a AT ter expressamente excluído tais pretensões do âmbito da sua vinculação à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD.”

 

Importa, porém, apreciar também a questão da competência deste tribunal arbitral para apreciar a legalidade do acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa.

 

Desde logo, é necessário esclarecer se a apreciação de actos de indeferimento de pedidos de revisão do acto tributário, previstos no art. 78.º da LGT, se inclui nas competências atribuídas aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD pelo art. 2.º do RJAT.

 

Seguimos, mais uma vez, o decidido no Acórdão do CAAD, de 23 de outubro de 2012, Proc. n.º 73/2012-T:

Na verdade, neste artigo 2.º não se faz qualquer referência expressa a estes atos, ao contrário do que sucede com a autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, que refere os «pedidos de revisão de atos tributários» e «os atos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de atos de liquidação». No entanto, a fórmula «declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta», utilizada na alínea a) do n.º 1 do art. 2.º do RJAT, numa mera interpretação declarativa, não restringe o âmbito da jurisdição arbitral aos casos em que é impugnado diretamente um ato de um daqueles tipos. Na verdade, a ilegalidade de atos de liquidação pode ser declarada jurisdicionalmente como corolário da ilegalidade de um ato de segundo grau que confirme um ato de liquidação, incorporando a sua ilegalidade. A inclusão nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD dos casos em que a declaração de ilegalidade dos actos aí indicados é efetuada através da declaração de ilegalidade de atos de segundo grau, que são o objeto imediato da pretensão impugnatória, resulta com segurança da referência que naquela norma é feita aos atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta, que expressamente se referem como incluídos entre as competências dos tribunais arbitrais. Com efeito, relativamente a estes actos é imposta, como regra, a reclamação graciosa necessária, nos arts. 131.º a 133.º do CPPT, pelo que, nestes casos, o objeto imediato do processo impugnatório é, em regra, o ato de segundo grau que aprecia a legalidade do ato de liquidação, ato aquele que, se o confirma, tem de ser anulado para se obter a declaração de ilegalidade do ato de liquidação. A referência que na alínea a) do n.º 1 do art. 10.º do RJAT se faz ao n.º 2 do art. 102.º do CPPT, em que se prevê a impugnação de atos de indeferimento de reclamações graciosas, desfaz quaisquer dúvidas de que se abrangem nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD os casos em que a declaração de ilegalidade dos atos referidos na alínea a) daquele art. 2.º do RJAT tem de ser obtida na sequência da declaração da ilegalidade de atos de segundo grau. Aliás, foi precisamente neste sentido que a AT, através da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, interpretou estas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, ao afastar do âmbito dessas competências as «pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», o que tem como alcance restringir a sua vinculação os casos em que esse recurso à via administrativa foi utilizado.

Obtida a conclusão de que a fórmula utilizada na alínea a) do n.º 1 do art. 2.º do RJAT não exclui os casos em que a declaração de ilegalidade resulta da ilegalidade de um ato de segundo grau, ela abrangerá também os casos em que o ato de segundo grau é o de indeferimento de pedido de revisão do acto tributário, pois não se vê qualquer razão para restringir, tanto mais que, nos casos em que o pedido de revisão é efetuado no prazo da reclamação administrativa, ele deve ser equiparado a uma reclamação graciosa[1]. Conclui-se, assim, que não há obstáculo a que a declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação seja obtida, em processo arbitral, através da declaração de ilegalidade de atos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa.

Passar-se-á a analisar a questão de saber se, em relação a pretensões de declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação através da declaração de ilegalidade de atos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa, é exigível a reclamação graciosa prévia, pela alínea a) do art. 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março. Como já se referiu, a referência feita nesta norma ao «recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário» deve interpretar-se como reportando-se apenas aos casos em que tal recurso, através da reclamação graciosa, é imposto por aquelas normas do CPPT. Nos casos em que é formulado um pedido de revisão oficiosa de ato de liquidação é proporcionada à AT, com este pedido, uma oportunidade de se pronunciar sobre o mérito da pretensão do sujeito passivo antes de este recorrer à via judicial, não sendo exigível que, cumulativamente com a possibilidade de apreciação administrativa no âmbito desse procedimento de revisão oficiosa, se exija uma nova apreciação administrativa através de reclamação graciosa[2].

Para além disso, se hipoteticamente se pretendesse naquela Portaria, sem justificação plausível, afastar a jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD nos casos em que é formulado um pedido de revisão oficiosa sem prévia reclamação graciosa (criando, assim, uma nova situação de reclamação graciosa necessária privativa desta jurisdição arbitral), não se compreenderia a referência expressa que na alínea a) do art. 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 é feita aos «termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», pois essa hipotética nova situação de reclamação graciosa necessária não seria exigida «nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário». Conclui-se assim, que a falta de reclamação graciosa não é obstáculo à apreciação pelos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD de pretensões de declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação que seja corolário da ilegalidade de atos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa.”

Mas a Autoridade Tributária e Aduaneira defende também que está afastada da jurisdição deste Tribunal Arbitral, por não estar abrangida pelo art. 2.º, n.º 1, do RJAT, a apreciação de atos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa que não comportam a apreciação da legalidade de atos de liquidação. Trata-se de uma questão diferente das atrás abordadas, que se coloca depois de já se ter concluído que a declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação pode ser obtida, em processo arbitral, através da declaração de ilegalidade de atos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa e que, nestes casos, não é exigida prévia reclamação graciosa.

A questão é, agora, a de saber se se inclui nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD declarar a ilegalidade de atos de autoliquidação quando essa ilegalidade não foi apreciada pelo ato que indeferiu o pedido de revisão oficiosa. No art. 2.º do RJAT, em que se define a «competência dos tribunais arbitrais», não se inclui expressamente a apreciação de pretensões de declaração de ilegalidade de atos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa de atos tributários, pois apenas se indica a competência dos tribunais arbitrais para «a declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta» e «a declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria colectável e de atos de fixação de valores patrimoniais».

Porém, o facto de a alínea a) do n.º 1 do art. 10.º do RJAT fazer referência aos n.ºs 1 e 2 do art. 102.º do CPPT, em que se indicam os vários tipos de atos que dão origem ao prazo de impugnação judicial, inclusivamente a reclamação graciosa, deixa perceber que serão abrangidos no âmbito da jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD todos os tipos de atos passíveis de serem impugnados através processo de impugnação judicial, abrangidos por aqueles n.ºs 1 e 2, desde que tenham por objecto um ato de um dos tipos indicados naquele art. 2.º do RJAT. Aliás, esta interpretação no sentido da identidade dos campos de aplicação do processo de impugnação judicial e do processo arbitral é a que está em sintonia com a autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, concedida pelo art. 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, em que se revela a intenção de o processo arbitral tributário constitua «um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária» (n.º 2).

Por outro lado, este mesmo argumento que se extrai da autorização legislativa conduz à conclusão de que estará afastada a possibilidade de utilização do processo arbitral quando no processo judicial tributário não for utilizável a impugnação judicial ou a ação para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo. Na verdade, sendo este o sentido da referida lei de autorização legislativa e inserindo-se na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República legislar sobre o «sistema fiscal», inclusivamente as «garantias dos contribuintes» [arts. 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP] (4), e sobre a «organização e competência dos tribunais» [art. 165.º, n.º 1, alínea p), da CRP], não pode o referido art. 2.º do RJAT, sob pena de inconstitucionalidade, por falta de cobertura na lei de autorização legislativa que limita o poder do Governo (art. 112.º, n.º 2, da CRP), ser interpretado como atribuindo aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD competência para a apreciação da legalidade de outros tipos de atos, para cuja impugnação não são adequados o processo de impugnação judicial e a ação para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo. Assim, para resolver a questão prévia suscitada apela AT de saber se o art. 2.º, n.º 1, do RJAT, abrange a apreciação do ato de indeferimento de pedido de revisão oficiosa no segmento relativo aos atos de autoliquidação cuja legalidade não é apreciada, torna-se necessário apurar se a legalidade desse ato de indeferimento podia ou não ser apreciada, num tribunal tributário, através de processo de impugnação judicial ou ação para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo.

O ato de indeferimento de um pedido de revisão oficiosa do ato tributário constitui um ato administrativo, à face da definição fornecida pelo art. 120.º do CPA [subsidiariamente aplicável em matéria tributária, por força do disposto no art. 2.º, alínea d), da Lei Geral Tributária, 2.º, alínea d), do CPPT, e 29.º, n.º 1, alínea d), do RJAT], pois constitui uma decisão de um órgão da Administração que, ao abrigo de normas de direito público, visou produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta. Por outro lado, é também inquestionável que se trata de um ato em matéria tributária pois é feita nele a aplicação de normas de direito tributário. Assim, aquele ato de indeferimento do pedido de revisão oficiosa constitui um «ato administrativo em matéria tributária». Das alíneas d) e p) do n.º 1 e do n.º 2 do art. 97.º do CPPT infere-se a regra de a impugnação de atos administrativos em matéria tributária ser feita, no processo judicial tributário, através de impugnação judicial ou ação administrativa especial conforme esses actos comportem ou não comportem a apreciação da legalidade de atos administrativos de liquidação – sendo que, no conceito de «liquidação», em sentido lato, englobam-se todos os actos que se reconduzem a aplicação de uma taxa a uma determinada matéria coletável e, por isso, também os atos de retenção na fonte, de autoliquidação e de pagamento por conta.

À face deste critério de repartição dos campos de aplicação do processo de impugnação judicial e da ação administrativa especial, os atos proferidos em procedimentos de revisão oficiosa de atos de autoliquidação apenas poderão ser impugnados através de processo de impugnação judicial quando comportem a apreciação da legalidade destes mesmos atos de autoliquidação. Se o ato de indeferimento do pedido de revisão oficiosa de ato de retenção na fonte não comportar a apreciação da legalidade deste será aplicável a ação administrativa especial[3].

Esta constatação de que há sempre um meio impugnatório processual adequado para impugnar contenciosamente o ato de indeferimento do pedido de revisão oficiosa de ato de autoliquidação, conduz, desde logo, à conclusão de que não se está perante uma situação em que no processo judicial tributário pudesse ser utilizada a ação para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo, pois a sua aplicação no contencioso tributário tem natureza residual, uma vez que essas ações «apenas podem ser propostas sempre que esse meio processual for o mais adequado para assegurar uma tutela plena, eficaz e efectiva do direito ou interesse legalmente protegido» (art. 145.º, n.º 3, do CPPT). Uma outra conclusão que permite a referida delimitação dos campos de aplicação do processo de impugnação judicial e da ação administrativa especial é a de que, restringindo-se a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD ao campo de aplicação do processo de impugnação judicial, apenas se inserem nesta competência os pedidos de declaração de ilegalidade de atos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa de atos de autoliquidação que comportem a apreciação da legalidade destes atos.

A preocupação legislativa em afastar das competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD a apreciação da legalidade de actos administrativos que não comportem a apreciação da legalidade de atos de liquidação, para além de resultar, desde logo, da directriz genérica de criação de um meio alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo, resulta com clareza da alínea a) do n.º 4 do art. 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril, em que se indicam entre os objetos possíveis do processo arbitral tributário «os atos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de atos de liquidação», pois esta especificação apenas se pode justificar por uma intenção legislativa no sentido de excluir dos objetos possíveis do processo arbitral a apreciação da legalidade dos atos que não comportem a apreciação da legalidade de atos de liquidação.

Por isso, a solução da questão da competência deste Tribunal Arbitral por referência ao conteúdo do ato de indeferimento do pedido de revisão oficiosa depende da análise do ato de indeferimento do pedido de revisão oficiosa.”

 

Resulta da fundamentação do acto de indeferimento do pedido de revisão em causa que o indeferimento se baseou na inadmissibilidade da revisão oficiosa, por intempestividade.

 

É inequívoco que na parte decisória do despacho de indeferimento do pedido de revisão oficiosa apenas se aprecia a questão da admissibilidade do pedido de revisão oficiosa:

- O Parecer que antecede a decisão da Administração Tributária e Aduaneira  termina com a seguinte «proposta de decisão»: “Pelas razões atrás expostas, deve o presente pedido ser rejeitado liminarmente por intempestividade relativamente aos exercícios de 2008 e 2009 e indeferido, relativamente aos restantes exercícios em causa, por, pelos motivos expostos, não poder proceder a tese defendida pela Requerente.”

- Decorrido o prazo para exercício do direito de audição, foi proferida nova “Conclusão e Proposta”, onde se refere que “Em face do exposto, propõe-se que o citado projeto de decisão se convole em definitivo, conforme ali projetado.”

- O despacho que recaiu sobre esta última proposta tem o teor «Converto em definitivo a decisão de indeferimento, com os fundamentos invocados», pelo que não pode haver dúvida de que o que se decidiu foi não estarem reunidos os requisitos para proceder à revisão oficiosa.

 

Mas será que, mesmo assim, o acto de indeferimento expresso do pedido de revisão, quanto aos exercícios de 2008 e 2009, não incluiu a apreciação da legalidade dos mesmos?

 

Na informação elaborada pela Administração Tributária e Aduaneira e que integra a decisão final, em particular na Parte III – Apreciação, a Administração Tributária e Aduaneira analisa a questão da tempestividade do pedido, distinguindo entre os exercícios de 2008 e 2009, por um lado, e de 2010 e 2011, por outro, concluindo que, quanto aos primeiros, o pedido não é tempestivo e que, quanto aos segundos o é. Na Parte IV – Parecer, a Administração Tributária e Aduaneira aprecia então as “duas alegadas ordens de ilegalidade que fundamentam os pedidos (...). A alegada inconstitucionalidade, por violação do princípio da tributação pelo lucro real – e violação do Direito Comunitário por parte da Tributação Autónoma estatuída pelo disposto no (agora) artigo 88.º do CIRC, o que determinará a restituição dos montantes pagos a título de tributação autónoma e, subsidiariamente, A elegibilidade da tributação autónoma apurada conforme o disposto no artigo 88.º, como custo fiscal do exercício, nos termos do CIRC, em especial do disposto nos seus artigos 23.º e 45.º, para efeitos de apuramento do lucro tributável definido no artigo 17.º também do CIRC.

 

De seguida, a Administração Tributária e Aduaneira fundamenta a sua posição de que a ilegalidade e inconstitucionalidade de normas dimanadas de órgãos de soberania não são sindicáveis pela Administração Tributária e Aduaneira, à qual cabe apenas a aplicação da lei existente, estando-lhe vedada a sua não aplicação quando verificados factos que cabem na abrangência da mesma, bem como a posição de que a tributação autónoma calculada nos termos do artigo 88.º do CIRC não pode configurar um gasto fiscal para efeitos de cálculo do lucro tributável do exercício.

 

Ao longo da apreciação que faz acerca da legalidade da tributação autónoma incluída nos actos de autoliquidação, a Administração Tributária e Aduaneira não distingue entre os actos que constituem objeto do pedido de revisão oficiosa, não sendo possível, portanto, dizer que a análise só se debruçou sobre os actos referentes aos exercícios de 2010 e 2011 ou, de outra forma, que não se debruçou sobre a legalidade dos actos referentes aos exercícios de 2008 e 2009. Esta conclusão é coadjuvada pelos pontos 60 e 61 da referida apreciação, em que a Administração Tributária e Aduaneira refere o seguinte: “60. Por último, ainda no tocante ao exercício económico de 2008, refira-se, conforme a própria recorrente assinala, ter sido apresentado previamente ao presente, um pedido de revisão oficiosa com fundamento na aplicabilidade das taxas de tributação autónoma introduzidas pela Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro de 2008, apenas a partir de 06 de dezembro do mesmo. 61. Existindo já um Processo de Revisão Oficiosa, o qual corre termos nesta Direção de Serviços sob o n.º 2012 …, em que se discute a questão das taxas de tributação autónoma a aplicar ao exercício de 2008, deverá tal matéria ser aferida em sede do mesmo, não cabendo aqui qualquer pronúncia a respeito.” Destes pontos se conclui que a Administração Tributária e Aduaneira incluiu todos os exercícios em causa no parecer sobre a legalidade dos actos de autoliquidação (incluindo os referentes aos exercícios de 2008 e 2009), caso contrário não teria tido necessidade de, no final, salvaguardar o exercício de 2008.

 

Pode dizer-se, por conseguinte, que se está perante um acto administrativo que comporta (porque a inclui) a apreciação da legalidade de um acto de autoliquidação, para cuja impugnação em processo judicial tributário é adequado o processo de impugnação judicial. Consequentemente, não se está perante um caso excluído das competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD.

 

Temos, assim, que, quanto à alegada incompetência deste tribunal arbitral para conhecer da legalidade do pedido de revisão oficiosa quanto aos exercícios de 2008 e 2009, a mesma não se verifica em função dos argumentos supra expostos. Assim sendo, é também certo que, no que respeita ao exercicio de 2008, o mesmo foi objeto de outro processo arbitral no âmbito do qual a Administração Tributária e Aduaneira já veio informar (sem oposição da Requerente) ter deferido o pedido formulado pela Requerente. Assim, no presente processo, importa apenas analisar a questão relativamente aos exercícios de 2009, 2010 e 2011.

 

Quanto à questão da extemporaneidade do pedido de revisão oficiosa relativamente ao exercício de 2009, tem razão a Autoridade Tributária e Aduaneira face ao prazo previsto na primeira parte do n.º 1 do artigo 78.º, mas não quanto ao prazo de quatro anos previsto na 2.ª parte da mesma disposição. Caberá, assim, aferir se este último prazo é aplicável ao caso.

 

A revisão ordinária do ato tributário pode ser oficiosa (por iniciativa da Autoridade Tributária e Aduaneira) ou a pedido do contribuinte. Tal decorre expressamente da letra do n.º 1 do artigo 78.º:

(i) “A revisão dos atos tributários pela entidade que os praticou pode ser efetuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade,

ou,

(ii) por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços.”

Do exposto, não pode resultar que o sujeito passivo apenas possa solicitar a revisão do ato tributário no prazo da reclamação graciosa. Com efeito, uma interpretação literal do n.º 7 do artigo 78.º, aliada aos princípios de justiça, legalidade e igualdade que fundamentam o dever de revisão dos atos tributário, permite-nos concluir que o contribuinte pode, no prazo de quatro anos, requerer à Autoridade Tributária e Aduaneira que oficiosamente proceda à revisão do ato tributário. Tal resulta expressamente do n.º 7 do artigo 78.º ao determinar a interrupção do prazo de revisão oficiosa (nosso sublinhado) quando o pedido de revisão é feito pelo contribuinte.

Neste sentido, tem sido o entendimento da nossa jurisprudência: “Mesmo quando oficiosa, a revisão do ato tributário pode ser impulsionada por pedido dos contribuintes, tendo a administração tributária o dever de procede a ela, caso se verifiquem os respetivos pressupostos legais. Perante um pedido do contribuinte, “não se vê como possa a administração demitir-se legalmente de tomar a iniciativa de revisão do ato quando demandada para o fazer através do pedido dos interessados já que tem o dever legal de decidir os pedidos destes, no domínio das suas atribuições” (Acórdão do STA, de 20-03-2012, Proc. n.º 26580, disponível em www.dgsi.pt).

 

Dir-se-á: ainda que assim seja, não é aplicável ao caso o disposto na segunda parte do n.º 1 do artigo 78.º porque o prazo de quatro anos é apenas aplicável quando se trate de “erro imputável aos serviços”, o que manifestamente não é o caso, por se tratar de uma autoliquidação. Não procede este argumento.

Com efeito, devemos, quanto ao conceito de “erro imputável aos serviços”, atender à ficção legal criada pelo n.º 2 do artigo 78.º, sem prejuízo do dever de reclamação ou impugnação pelo contribuinte, “considera-se imputável aos serviços, para efeitos do n.º 1, o erro na autoliquidação”. Com esta ficção, o conceito de erro abrange não só os erros (de facto e de direito) praticados pela Autoridade Tributária e Aduaneira mas também os erros do contribuinte.

Também, neste sentido, se pronunciou o Acórdão do STA, de 28/11/2007, Proc. n.º 532/07: “ (...) Por outro lado, esta ficção de que todos os erros de autoliquidação são imputáveis à administração tributária vale apenas “para efeitos do número anterior “ que estabelece as condições de admissibilidade da revisão oficiosa, fazendo depender a revisão por iniciativa da administração tributária da existência de erro imputável aos serviços. Isto é, esta ficção não vale para outros efeitos, designadamente para determinar o direito a juros indemnizatórios. Por isso, é de concluir que o objetivo que se teve em vista com o n.º 2, foi alargar as situações em que é admissível a revisão em casos de autoliquidação, permitindo-a sempre (e não apenas nos casos em que tivesse havido correção dos elementos evidenciados pela declaração, como sucedia no regime do artigo 94.º, n.º 2, do CPT), inclusivamente quando o erro é imputável ao contribuinte, que passou a ficcionar-se como imputável à administração tributária.”[4]

Mais, conforme se escreveu nas conclusões do Acórdão do STA, de 28/11/2007, Proc. n.º 532/07: “1- O alcance do n° 2 do art° 78° da LGT, ao estabelecer que, para efeitos de admissibilidade de revisão do ato tributário, se consideram imputáveis à administração tributária os erros na autoliquidação, foi o de alargar as possibilidades de revisão nestas situações de autoliquidação, em relação às que existiam no domínio do CPT, solução esta que está em sintonia com a directriz primordial da autorização legislativa em que se baseou o Governo para aprovar a LGT, que era a de reforço das garantias dos contribuintes. II - Aquele art° 78°, n° 2, seria organicamente inconstitucional, por ser incompatível com aquele sentido da autorização legislativa, se fosse interpretado por forma que se reconduza a que a revisão oficiosa, em casos de autoliquidação, só fosse possível quando o contribuinte tivesse previamente apresentado reclamação graciosa e impugnação judicial da autoliquidação.

 

Assim, o pedido de revisão oficiosa do período de 2009 foi apresentado no prazo de quatro anos previsto na 2.ª parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, pelo que improcede a exceção de intempestividade.

Por último, a Autoridade Tributária e Aduaneira suscitou ainda a incompetência material do tribunal arbitral uma vez que, nos termos em que se encontra formulado, o pedido de pronúncia arbitral configura um pedido de condenação à prática de ato devido, que se encontra fora do âmbito material de competência dos tribunais arbitrais previsto no artigo 2.º do RJAT.

Ora, da análise do pedido de pronúncia arbitral não subsistem dúvidas de que a Requerente pretende a anulação parcial dos atos de autoliquidação do IRC de 2008, 2009, 2010 e 2011, com os fundamentos supra descritos.

Como refere JORGE LOPES DE SOUSA, “(…) sendo o fim essencial do processo de impugnação judicial a eliminação jurídica de um ato em matéria tributária, desde que o impugnante o identifique e identifique os vícios que entende o afetam, poderá entender-se que há um pedido implícito de anulação ou declaração de nulidade ou inexistência daquele ato. O essencial será que seja percetível a intenção do impugnante.[5]

Assim, improcede também a exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral com o fundamento de o pedido de pronúncia arbitral configurar um pedido de condenação à prática de ato devido.

 

II. DO MÉRITO

 

1.      Evolução e finalidade das tributações autónomas

Para devido enquadramento das questões a apreciar, é necessário compreender como surgiram as tributações autónomas e qual a sua natureza e finalidade (s).

a)      Evolução legislativa

A figura da tributação autónoma aparece, pela primeira vez, na Lei n.º 2/88, de 26 de janeiro (Orçamento de Estado para 1998), que dá uma nova redação ao artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 375/74, e visava a aplicação de uma taxa sobre as despesas confidenciais, nos seguintes termos:

Alteração ao Decreto-Lei n.º 375/74, de 20 de Agosto, na parte relativa ao regime das despesas não documentadas

 O artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 375/74, de 20 de Agosto, passa a ter a seguinte redacção:

 Art. 27.º - 1 - As empresas comerciais ou industriais, e bem assim as empresas com escrita devidamente organizada que se dediquem a explorações agrícolas, silvícolas ou pecuárias, que efectuem despesas confidenciais ou não documentadas ficam sujeitas, para esse tipo de despesas, à taxa de contribuição industrial agravada em 20%.

 2 - A realização das despesas a que se refere o número anterior que ultrapassem 2% da facturação total constitui infracção punida com multa de igual montante.

Com a entrada em vigor do Código do IRC, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442/88, de 30 de novembro, aquela disposição foi revogada.

No ano seguinte, a tributação autónoma das despesas confidenciais é reintroduzida na nossa ordem jurídica pelo artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 192/90, de 9 de junho:

Art. 4.º As despesas confidenciais ou não documentadas efectuadas no âmbito do exercício de actividades comerciais, industriais ou agrícolas por sujeitos passivos de IRS que possuam ou devam possuir contabilidade organizada ou por sujeitos passivos de IRC não enquadrados nos artigos 8.º e 9.º do respectivo Código são tributadas autonomamente em IRS ou IRC, conforme os casos, a uma taxa de 10% sem prejuízo do disposto na alínea h) do n.º 1 do artigo 41.º do CIRC.

Posteriormente, a Lei n.º 39-B/94, de 27 de dezembro, agrava a taxa de tributação para 25%, para além da sua não dedutibilidade. No ano seguinte, a Lei n.º 52-C/96, de 27 de dezembro, aumentou a taxa de tributação autónoma para 30% e aditou o n.º 2 com a seguinte redacção: “A taxa referida no número anterior será elevada para 40% nos casos em que tais despesas sejam efectuadas por sujeitos passivo de IRC, total ou parcialmente isentos, ou que não exerçam, a título principal, actividades de natureza comercial, industrial ou agrícola.”

Com a Lei de Orçamento do Estado para 1999 (Lei n.º 87-B/98, de 31 de dezembro), as taxas foram aumentadas para de 30% para 32% e de 40% para 60%.

Em 2000, a Lei n.º 3-B/2000, de 4 de abril, alargou o âmbito de aplicação das tributações autónomas às despesas de representação e encargos com viaturas ligeiras de passageiros, nos seguintes termos:

«Artigo 4.º

1 - ...

2 - ...

3 - As despesas de representação e os encargos relacionados com viaturas ligeiras de passageiros efectuadas por sujeitos passivos de IRS que possuam ou devam possuir contabilidade organizada no âmbito do exercício de actividades comerciais, industriais ou agrícolas, ou por sujeitos passivos de IRC não isentos e que exerçam, a título principal, actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, são tributadas autonomamente em IRS ou IRC, consoante os casos, a uma taxa de 6,4%.

4 - Consideram-se encargos relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, nomeadamente, as reintegrações, rendas ou alugueres, seguros, despesas com manutenção e conservação, combustíveis e o imposto municipal sobre veículos.

5 - Excluem-se do disposto no n.º 3 os encargos relacionados com viaturas afectas à exploração do serviço público de transportes ou destinadas a serem alugadas no exercício da actividade normal do sujeito passivo.

6 - Consideram-se despesas de representação, nomeadamente, os encargos suportados com recepções, refeições, viagens, passeios e espectáculos oferecidos no País ou no estrangeiro a clientes ou a fornecedores ou ainda a quaisquer outras pessoas ou entidades.»

Com a denominada Lei da Reforma Fiscal, Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, o legislador decidiu revogar o artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 192/90, de 9 de junho, e introduzir o artigo 69.º-A[6] ao Código do IRC, com a seguinte redacção:

“1 - As despesas confidenciais ou não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50%, sem prejuízo do disposto na alínea h) do n.º 1 do artigo 41.º.

2 - A taxa referida no número anterior é elevada para 70% nos casos em que tais despesas sejam efectuadas por sujeitos passivos total ou parcialmente isentos, ou que não exerçam, a título principal, actividades de natureza comercial, industrial ou agrícola.

3 - São tributados autonomamente, a taxa correspondente a 20% da taxa normal mais elevada, as despesas de representação e os encargos relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, barcos de recreio, aeronaves de turismo, motos e motociclos, efectuados ou suportados por sujeitos passivos não isentos e que exerçam, a título principal, actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola.

4 - Consideram-se encargos relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, barcos de recreio, aeronaves de turismo, motos e motociclos, nomeadamente, as reintegrações, rendas ou alugueres, seguros, despesas com manutenção e conservação, combustíveis e impostos incidentes sobre a sua posse ou utilização.

5 - Excluem-se do disposto no n.º 3 os encargos relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, barcos de recreio, aeronaves de turismo, motos e motociclos, afectos à exploração do serviço público de transportes, destinados a serem alugados no exercício da actividade normal do sujeito passivo, bem como as reintegrações relacionadas com viaturas relativamente às quais tenha sido celebrado o acordo previsto no n.º 8 da alínea c) do n.º 3 do artigo 2.º do Código do IRS.

6 - Consideram-se despesas de representação, nomeadamente, os encargos suportados com recepções, refeições, viagens, passeios e espectáculos oferecidos no País ou no estrangeiro a clientes ou a fornecedores ou ainda a quaisquer outras pessoas ou entidades.

7 - São sujeitas ao regime dos n.os 1 ou 2, consoante os casos, sendo as taxas aplicáveis, respectivamente, 35% ou 55%, as despesas correspondentes a importâncias pagas ou devidas, a qualquer título, a pessoas singulares ou colectivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável, tal como definido nos termos do Código, salvo se o sujeito passivo puder provar que tais encargos correspondem a operações efectivamente realizadas e não têm um carácter anormal ou um montante exagerado

8 - Excluem-se do disposto no n.º 3 os sujeitos passivos a que seja aplicado o regime previsto no artigo 46.º-A.

Nos anos seguintes, as taxas e base de incidência das despesas com viaturas e despesas de representação foram alteradas pelas Leis n.ºs 109-B/2001, de 27 de Dezembro, 32-B/2002, de 30 de Setembro e 107-B/2003, de 31 de dezembro; A Lei n.º 55-B/2004, de 30 de dezembro sujeita a tributação autónoma as ajudas de custo e despesas com deslocação em viatura própria; O Decreto-Lei n.º 192/2005, de 7 de novembro, aditou os nºs 11 e 12 que sujeitam a tributação autónoma os lucros distribuídos a entidades isentas total ou parcialmente de IRC.

A Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, alterou a redação dos n.ºs 3 e 4 que passam a dispor o seguinte:

São tributados autonomamente, excluindo os veículos movidos exclusivamente a energia eléctrica:

a) À taxa de 10%, os encargos dedutíveis relativos a despesas de representação e os relacionados com viaturas ligeiras de passageiros ou mistas, motos ou motociclos, efectuados ou suportados por sujeitos passivos não isentos subjectivamente e que exerçam, a título principal, actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola; [Redacção dada pela Lei n.º 64/2008, de 5 de Dezembro]

b) À taxa de 5%, os encargos dedutíveis, suportados pelos sujeitos passivos mencionados no número anterior, respeitantes a viaturas ligeiras de passageiros ou mistas cujos níveis homologados de emissão de CO2 sejam inferiores a 120g/km, no caso de serem movidos a gasolina, e inferiores a 90g/km, no caso de serem movidos a gasóleo, desde que, em ambos os casos, tenha sido emitido certificado de conformidade. [Redacção dada pela Lei n.º 64/2008, de 5 de Dezembro]

4 - São tributados autonomamente, à taxa de 20%, os encargos dedutíveis, suportados pelos sujeitos passivos mencionados no número anterior, respeitantes a viaturas ligeiras de passageiros ou mistas cujo custo de aquisição seja superior a € 40.000, quando os sujeitos passivos apresentem prejuízos fiscais nos dois exercícios anteriores àquele a que os referidos encargos digam respeito.

A Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril, alterou o n.º 4, eliminando a referência ao custo de aquisição superior a € 40.000,00 e passando a indicar o custo de aquisição superior ao montante fixado na al. e) do n.º 1 do artigo 34.º do Código do IRC.

A evolução do regime[7]das tributações autónomas até 2011 permite-nos, desde já, algumas conclusões. Na origem, o regime de tributações autónomas visava apenas as despesas confidenciais. Posteriormente, as tributações autónomas passaram a incidir sobre encargos dedutíveis ou parcialmente dedutíveis, como é o caso das viaturas ligeiras de passageiros ou das ajudas de custo.

Caberá agora perceber qual a natureza e finalidade das tributações autónomas, bem como a sua relação com o Código do IRC.

 

b)     Finalidade das tributações autónomas na jurisprudência e doutrina

A descrição do pensamento e evolução dos nossos tribunais superiores sobre as tributações autónomas já foi tratada, com mestria e eloquência, no Acórdão do CAAD, de 20 de setembro de 2012, Proc. n.º 7/2011, nos seguintes termos:

24. O acórdão da 2.ª Secção do STA de 21 de Março de 2012 (2.ª secção, processo 830/11, de 21.3.2012, Relatora Conselheira Fernanda Maçãs) sobre tributação de despesas confidenciais e sua relação com o regime de transparência fiscal e leis interpretativas, vem dizer-nos que “as tributações autónomas, embora formalmente inseridas no Código do IRC, sempre tiveram um tratamento próprio, uma vez que não incidem sobre o rendimento, cuja formação se vai dando ao longo do ano, mas antes sobre certas despesas avulsas que representam factos tributários autónomos sujeitos a taxas diferentes das de IRC”. Este acórdão foi proferido a propósito do art.º 12.º do CIRC, na redação que vigorava à data da prática dos factos: “as sociedades e outras entidades a que, nos termos do artigo 5.º, seja aplicável o regime da transparência fiscal, não são tributadas em IRC”. Mas desta não tributação em IRC das entidades que beneficiam do regime de transparência fiscal, são excluídas as tributações autónomas, como é o caso das despesas confidenciais.

25. É reconhecido pela jurisprudência do STA (2.ª secção, processo 830/11, de 21.3.2012, Relatora Conselheira Fernanda Maçãs) que sob a designação de tributações autónomas se escondem realidades muito diversas, incluindo, nos termos do n.º 1 do (então) art.º 81.º do CIRC, as despesas confidenciais ou não documentadas, que são tributadas autonomamente, à taxa de 50%, que será elevada para 70%, nos casos de despesas efectuadas por sujeitos passivos total ou parcialmente isentos, ou que não exerçam, a título principal, actividades de natureza comercial, industrial ou agrícola (n.º 2 do [então] art.º 81.º) e que não são consideradas como custo no cálculo do rendimento tributável em IRC (já as despesas de representação e as relacionadas com viaturas ligeiras, nos termos do disposto no (então) art. 81.º n.º 3 do CIRC os seus custos são fiscalmente aceites ainda que dentro de certos limites).

26. Também o Tribunal Constitucional se pronunciou sobre as diversas realidades abrangidas pela tributação autónoma. No acórdão n.º 18/2011, diz-nos o Tribunal Constitucional: “No entanto, o artigo 81.º do mesmo Código, considerando a redacção anterior à Lei n.º 64/2008, estabelecia taxas de tributação autónoma, visando designadamente, por um lado, na situação prevista nos n.ºs 1 e 2, as despesas não documentadas, que são tributadas à taxa de 50 % (sem prejuízo da sua não consideração como custo nos termos do artigo 23.º), e, por outro lado, nas situações previstas nos n.ºs 3 e 4, os encargos dedutíveis como custos, que eram tributados a 5%, em geral, e a 15% quando se tratasse de despesas relativas a viaturas ligeiras ou mistas cujo custo de aquisição seja superior a € 40 000, quando suportados por sujeitos passivos que apresentem prejuízos fiscais nos dois exercícios anteriores.” Para o Tribunal Constitucional, o regime tem uma finalidade “penalizadora” e de “desmotivar práticas” que podem “envolver situações de ilicitude penal ou de menor transparência fiscal”.

27. Podemos afirmar que a penalização aparece assim associada a uma finalidade antiabuso, sendo que o abuso não pode ser elidido (isto é, não pode ser demonstrado que o beneficiário das despesas não documentadas declarou esses rendimentos para efeitos fiscais). Assim, continua o Tribunal no mesmo acórdão: “No caso dos ns. 1 e 2, estamos perante despesas que são incluídas na contabilidade da empresa, e podem ter sido relevantes para a formação do rendimento, mas não estão documentadas e não podem ser consideradas como custos, e que, por isso, são penalizadas com uma tributação de 50%. A lógica fiscal do regime assenta na existência de um presumível prejuízo para a Fazenda Pública, por não ser possível comprovar, por falta de documentação, se houve lugar ao pagamento do IVA ou de outros tributos que fossem devidos em relação às transacções efectuadas, ou se foram declarados para efeitos de incidência do imposto sobre o rendimento os proventos que terceiros tenham vindo a auferir através das relações comerciais mantidas com o sujeito passivo do imposto. Para além disso, a tributação autónoma, não incidindo directamente sobre um lucro, terá ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afectar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de ilicitude penal ou de menor transparência fiscal.”

28. O Tribunal Constitucional, no citado acórdão n.º 18/11, diz-nos ainda que os outros factos sujeitos a tributação autónoma, correspondem a “encargos comprovadamente indispensáveis à realização dos proveitos” e que por isso a proibição da aplicação retroativa da lei nova não se aplica, pois tais encargos teriam sido incorridos independentemente do regime fiscal aplicável: isto significa que a tributação autónoma também recai sobre encargos que correspondem ao núcleo do conceito de rendimento real, rendimento líquido e cumprimento de obrigações contabilísticas. Este argumento do Tribunal Constitucional, a propósito da aplicação retroativa da lei fiscal às tributações autónomas (e esta matéria da aplicação da lei no tempo não cabe no objeto desta decisão), interessa-nos para salientar que o Tribunal reconhece que este regime constitui uma limitação à tributação do rendimento real (a qual é garantida pelo art.º 104.º n.º 2 da CRP).

29. Mais do que isso, o acórdão n.º 18/11 do Tribunal Constitucional vem dizer que as tributações autónomas pretendem desincentivar a dedução de despesas a que as empresas têm direito, mas que afetam a receita fiscal. Este último argumento é um argumento interpretativo ilegítimo no Direito Fiscal. Todas as normas fiscais em sentido estrito têm como objetivo a obtenção de receitas, e este objetivo não pode autojustificar-se, pois ele próprio é limitado pelos princípios constitucionais fiscais basilares dos Estados de Direito: princípio da capacidade contributiva e tributação do rendimento real como regra.

30. Mas a verdade é que nos diz o Tribunal Constitucional o seguinte:

“Por sua vez, os ns. 3 e 4 do artigo 81.º referem-se a encargos dedutíveis como custos para efeitos de IRC, isto é, a encargos que comprovadamente foram indispensáveis à realização dos proveitos, à luz do que estabelece o artigo 23.º, n.º 1, do CIRC, sendo a tributação prevista nesses preceitos explicada por uma intenção legislativa de incentivar as empresas a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afectem negativamente a receita fiscal.

A nova redacção dada aos n.ºs 3 e 4 do artigo 81.º pela Lei n.º 60/2008 veio reforçar esta perspectiva, diferenciando diversas situações possíveis, que são tributadas, consoante os casos, à taxa de 5%, 10% ou 20%, com o que se pretende não só desincentivar a realização de despesa como estimular as empresas a optarem por soluções que sejam mais vantajosas do ponto de vista do interesse público. Assim se compreende a exclusão da tributação em relação à aquisição de veículos exclusivamente movidos a energia eléctrica, como consta da 2.ª parte do corpo do n.º 3, e a previsão de um tratamento mais favorável para encargos suportados com a aquisição de veículos menos poluentes (alínea b) do n.º 3), e um tratamento mais gravoso para as despesas mais avultadas, a que se refere o n.º 4 deste artigo 81.º.

Neste contexto, estando em causa encargos que, por natureza, são indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos que estão sujeitos a imposto, não é aceitável a alegação de que o impugnante teria incorrido em despesas, na perspectiva da continuidade do regime legal anteriormente existente, que já não efectuaria caso pudesse contar entretanto com um agravamento da taxa de tributação.”

31. Em sentido diferente, em voto de vencido, o Conselheiro Vítor Gomes vem defender que a aplicação retroativa da tributação autónoma mais gravosa configurava um caso de retroatividade proibida pelo n.º 3 do artigo 103.º da CRP, porque “[e]mbora formalmente inserida no CIRC e o montante que permita arrecadar seja liquidado no seu âmbito e a título de IRC, a norma em causa respeita a uma imposição fiscal que é materialmente distinta da tributação nesta cédula (…). Com efeito, estamos perante uma tributação autónoma, como diz a própria letra do preceito. E isso faz toda a diferença. Não se trata de tributar um rendimento no fim do período tributário, mas determinado tipo de despesas em si mesmas, pelas compreensíveis razões de política fiscal que o acórdão aponta. A manifestação de riqueza sobre que vai incidir essa parcela da tributação (o facto revelador de capacidade tributária que se pretende alcançar) é a simples realização dessa despesa, num determinado momento. Cada despesa é, para este efeito, um facto tributário autónomo, a que o contribuinte fica sujeito, venha ou não a ter rendimento tributável em IRC no fim do período. Deste modo, o agravamento da taxa vai agravar a situação do sujeito passivo num momento em que o facto gerador é coisa do passado (as despesas de representação foram pagas ao seu beneficiários, os encargos com viaturas ligeiras foram suportados ou contraídos, etc.). É certo que esta parcela de imposto só vem a ser liquidada num momento posterior e conjuntamente com o IRC. Porém, a determinação do valor global da matéria colectável sujeita à incidência das taxas de tributação autónoma no fim do período tributário é o mero somatório das diversas despesas dessa natureza, a que se aplica a taxa agora agravada. Essa operação de apuramento do montante tributável a este título não espelha um facto tributário de formação sucessiva, mas a mera agregação dos valores sobre que incide a alíquota do imposto. (…) O facto gerador de imposto em IRC determina-se por relação ao fim do período de tributação (n.º 9 do artigo 8.º do CIRC), mas a tributação autónoma agora em causa não comunga desse pressuposto, porque não atinge o rendimento (artigo 1.º do CIRC) mas a despesa enquanto tal.”

32. No mesmo sentido deste voto de vencido, diz-nos o STA, no citado processo n.º 830/11, acórdão de 21.3.2012: a tributação autónoma, “pese embora tratar-se de uma forma de tributação prevista no CIRC, nada tem a ver com a tributação do rendimento, mas sim com a tributação de certas despesas, que o legislador entendeu, pelas razões atrás apontadas fazê-lo de forma autónoma.

A tributação autónoma não atinge o rendimento, mas sim a despesa enquanto tal, quer porque cada despesa é havida como constituindo facto tributário autónomo sujeito a taxas diferentes das de IRC. E não obstante as despesas confidenciais só virem a ser tributadas conjuntamente com o IRC, a verdade, porém, é que a matéria colectável sujeita à incidência das taxas de tributação autónoma é o mero somatório das diversas parcelas de despesa”.

E continua o STA: “No fundo, o legislador terá criado as taxas de tributação autónomas com vista a penalizar a realização de determinadas despesas, uma vez que não se sabendo quem é o respectivo beneficiário, impõe-se a necessidade de evitar que as mesmas constituam remunerações a pessoas cuja identidade se desconhece. Se assim não fosse, estaríamos a aceitar como custo este tipo de despesas, sem que pudesse haver, dada a sua natureza confidencial, a tributação dos rendimentos auferidos por parte dos seus beneficiários, quer em sede de IRS quer em sede de IRC.”

33. Em recente acórdão (n.º 310/12, de 20 de junho, Relator Conselheiro João Cura Mariano), o Tribunal Constitucional vem reformular a doutrina do acórdão n.º 18/11, aproximando-se do então voto de vencido do Conselheiro Vítor Gomes e do acórdão do STA n.º 830/11, todos citados nos parágrafos anteriores.

“Contrariamente ao que acontece na tributação dos rendimentos em sede de IRS e IRC, em que se tributa o conjunto dos rendimentos auferidos num determinado ano (o que implica que só no final do mesmo se possa apurar a taxa de imposto, bem como o escalão no qual o contribuinte se insere), no caso tributa-se cada despesa efetuada, em si mesma considerada, e sujeita a determinada taxa, sendo a tributação autónoma apurada de forma independente do IRC que é devido em cada exercício, por não estar diretamente relacionada com a obtenção de um resultado positivo, e por isso, passível de tributação.

Assim, e no caso do IRC, estamos perante um imposto anual, em que não se tributa cada rendimento percebido de per si, mas sim o englobamento de todos os rendimentos obtidos num determinado ano, considerando a lei que o facto gerador do imposto se tem por verificado no último dia do período de tributação (cfr. artigo 8.º,n.º 9, do CIRC).

Já no que respeita à tributação autónoma em IRC, o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa, não se estando perante um facto complexo, de formação sucessiva ao longo de um ano, mas perante um facto tributário instantâneo.

Esta característica da tributação autónoma remete-nos, assim, para a distinção entre impostos periódicos (cujo facto gerador se produz de modo sucessivo, pelo decurso de um determinado período de tempo, em regra anual, e tende a repetir-se no tempo, gerando para o contribuinte a obrigação de pagar imposto com caráter regular) e impostos de obrigação única (cujo facto gerador se produz de modo instantâneo, surge isolado no tempo, gerando sobre o contribuinte uma obrigação de pagamento com caráter avulso).

Na tributação autónoma, o facto tributário que dá origem ao imposto, é instantâneo: esgota-se no ato de realização de determinada despesa que está sujeita a tributação (embora, o apuramento do montante de imposto, resultante da aplicação das diversas taxas de tributação aos diversos atos de realização de despesa considerados, se venha a efetuar no fim de um determinado período tributário). Mas o facto de a liquidação do imposto ser efetuada no fim de um determinado período não transforma o mesmo num imposto periódico, de formação sucessiva ou de caráter duradouro. Essa operação de liquidação traduz-se apenas na agregação, para efeito de cobrança, do conjunto de operações sujeitas a essa tributação autónoma, cuja taxa é aplicada a cada despesa, não havendo qualquer influência do volume das despesas efetuadas na determinação da taxa.”

34. É sabido que a tributação autónoma não é equivalente à indedutibilidade de custo das despesas não documentadas e por isso esta última não postula a primeira, como decorre dos princípios elementares da tributação do rendimento acréscimo (rendimento líquido) segundo a contabilidade organizada.”

A generalidade da doutrina não se afasta substancialmente do entendimento dos tribunais. Como refere RUI MORAIS, “está em causa uma tributação que incide sobre certas despesas dos sujeitos passivos, as quais são havidas com constituindo factos tributários. É difícil descortinar a natureza desta forma de tributação e, mais ainda, a razão pela qual aparece prevista nos códigos dos impostos sobre o rendimento.” (RUI DUARTE MORAIS, Apontamentos ao IRC, Almedina, 2009, pp. 202-203).

No mesmo sentido, JOSÉ ALBERTO PINHEIRO PINTO afirma que “não se trata propriamente de IRC – que visa tributar o rendimento das pessoas colectivas e não despesa por elas efectuadas -, mas da substituição de uma tributação de rendimentos “implícitos” de pessoas singulares, que se considera não exequível directamente”. Também CASALTA NABAIS considera que se “trata de uma tributação sobre a despesa e não sobre o rendimento” (CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 6.ª Ed., p. 614).

No caso, é aceite pela generalidade da doutrina e jurisprudência que as tributações autónomas visam prevenir práticas abusivas de remuneração de trabalhadores, gerentes e sócios/accionistas da sociedade. Como refere SALDANHA SANCHES, “Neste tipo de tributação, o legislador procura responder à questão reconhecidamente difícil do regime fiscal de despesas que se encontram na zona de intersecção da esfera pessoal e da esfera empresarial, de modo a evitar remunerações em espécie mais atraentes por razões exclusivamente fiscais ou a distribuição oculta de lucros. Apresenta a norma uma característica semelhante à que vamos encontrar na sanção legal contra custos não documentados, com uma subida de taxa quando a situação do sujeito passivo não corresponde a uma situação de normalidade fiscal.” (SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 3.ª Ed., Coimbra Editora, 2007, p. 406). “Trata-se de uma tributação que se explica pela necessidade de prevenir e evitar que, através dessas despesas, as empresa procedam à distribuição camuflada de lucros, sobretudo de dividendos que, assim, ficariam sujeitos ao IRC enquanto lucros da sociedade, bem como combater a fraude e evasão fiscais que tais despesas ocasionam…” (CASALTA NABAIS, Idem, p. 614).

 

Da análise da evolução e base incidência das tributações autónomas podem concluir que a finalidade das tributações autónomas são:

(i)                 Penalizar comportamentos presuntivamente evasivos ou fraudulentos, desincentivando a sua prática;

(ii)               Operam como mecanismos de substituição tributária: em vez de se tributar o beneficiário efetivo (trabalhadores ou gerentes), sujeita-se a empresa a uma tributação especial;

Analisada a finalidade das tributações autónomas, caberá aferir se estas tributações autónomas violam ou não o princípio de tributação do rendimento real previsto no artigo 104.º n.º 2 da CRP.

 

i)                    Da violação do princípio de tributação pelo rendimento real (artigo 104.º n.º 2 da CRP)

 

Nos termos do n.º 2 do artigo 104.º da CRP, a tributação das empresas incide fundamentalmente, sobre o seu rendimento real.

Deste modo, o legislador constitucional estabeleceu a obrigatoriedade da tributação das empresas, nas suas mais variadas formas – os vários tipos de sociedades ou as empresas em nome individual –, de acordo com o lucro ou rendimento real. Mas o que é o rendimento real?

No contexto histórico da evolução dos impostos sobre o rendimento, a referência à tributação do lucro “real” opõe-se à tributação do lucro “normal” (consagrado no regime fiscal anterior para a maioria das empresas[8]) como tal considerado o rendimento que podia ser obtido em condições normais de exploração, independentemente dos condicionalismos económicos que possam afectar a actividade[9]. Com efeito, neste regime, não se pretendia tributar um lucro aproximado ao lucro efectivo, mas apenas aquele que seria expectável num plano puramente teórico-económico e determinável segundo um processo meramente mecânico.

A tributação do “rendimento real” afasta-se assim deste mecanismo presuntivo de rendimento e visa a conformação da tributação à capacidade do sujeito passivo de imposto. Trata-se da concretização do princípio da capacidade contributiva, pedra basilar do nosso sistema fiscal. O princípio da capacidade contributiva (embora não tenha consagração constitucional expressa) decorre do princípio constitucional da igualdade, numa dupla vertente: por um lado, todos devem pagar impostos, mas, por outro, todos devem pagar de acordo com um critério uniforme: a capacidade económica de cada um.

O texto constitucional admite, ainda assim, alguns desvios ao princípio da tributação pelo lucro real. Recorde-se que, como referimos, a Constituição consagra que a tributação das empresas incide fundamentalmente (e não, exclusivamente) sobre o seu rendimento real. Se por um lado a expressão “fundamentalmente” visa estabelecer uma obrigação de apuramento do lucro tributável tendo por base essencialmente o rendimento real; poderá afirmar-se, por outro lado, que são admitidas correções ou presunções que, não correspondendo a uma alteração substancial do rendimento real, o conformem aos objetivos e princípios do Direito Fiscal.

Este entendimento tem reflexos importantes na configuração concreta do apuramento do rendimento tributável. O legislador terá que procurar a “justa medida” do princípio da tributação pelo lucro real. Deve, por isso, exigir-se que as alterações introduzidas ao princípio da tributação sobre o lucro real sejam justificadas por outros objetivos da tributação.

Veja-se a este respeito os mecanismos de avaliação indireta previstos no artigo 87.º e seguintes[10] que admitem métodos de avaliação indireta nos casos de (i) regime simplificado de tributação; (ii) impossibilidade de comprovação e quantificação direta e exata dos elementos indispensáveis à correta determinação da matéria tributável; e (iii) a matéria tributável do sujeito passivo se afastar, sem razão justificada, mais de 30% para menos ou, durante três anos seguidos, mais de 15% para menos, do que resultaria da aplicação de indicadores objetivos de atividade de base técnico-científica referidos na presente lei. Estes mecanismos constituem, neste contexto, exceções ao princípio constitucional da tributação do rendimento real, apenas admissíveis por impossibilidade de tributação de acordo com as regras de determinação do rendimento real ou por expressa opção do contribuinte.

Segundo o Tribunal Constitucional, “o rendimento real fiscalmente relevante não é, em si próprio, uma realidade de valor fisicamente apreensível, mas antes um conceito normativamente modelado e contabilisticamente mensurável, (…).

Por outro lado, a injunção constitucional da tributação segundo o rendimento real não pode deixar de atender, necessariamente, aos princípios da praticabilidade e de operacionalidade do sistema, pelo que não pode deixar de se lhes reconhecer natureza constitucional, sob pena dos arquétipos legalmente construídos não conseguirem realizar, com a aproximação possível, o princípio da universalidade e da igualdade no pagamento dos impostos.

Um sistema inexígel ou um sistema que não permita o controlo dos rendimentos e da evasão fiscal, na medida aproximada à realidade existente, conduz em linha reta à distorção, na prática, do princípio da capacidade contributiva e da tributação segundo o rendimento real.

São estas as dificuldades que explicam que a Constituição se tenha limitado a prever que a imposição fiscal deve incidir fundamentalmente sobre o rendimento real, não “excluindo com tal disposição o recurso a outras formas fiscais estranhas ao mito do apuramento declarativo-contabilístico do rendimento “ José Guilherme Xavier de Bastos (O princípio de tributação do rendimento real e a Lei Geral Tributária in Fiscalidade n.º 5).”

           

No dizer de Casalta Nabais, “a CRP, ao exigir que a tributação das empresas se norteie pelo rendimento real, está apenas a “recortar” o quadro típico ou caracterizador do sistema fiscal […] e não “estabelecer ou “desenhar a cheio” esse mesmo quadro (Alguns aspetos do quadro constitucional das empresas” in Fisco, n.ºs 103/104, pp. 19). Assim sendo, “o artigo 104.º n.º 2 não obsta ao estabelecimento de regimes que se afastem da regra da tributação pelo rendimento real.” (CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 7.ª Ed., 2012, pp.177-178).

Do exposto, resulta que, atentos aos fins e objetivos que se visam obter, as tributações autónomas são admissíveis no plano constitucional, consistindo num regime excecional no enquadramento constitucional de tributação do rendimento. Ainda que admissíveis, caberá aferir se, conforme alegado pela Recorrente, as normas em análise em cada um dos períodos fiscais objeto de impugnação, violam ou não o princípio da proporcionalidade e proibição do excesso (artigos 13.º, 18.º e 104.º da CRP).

O respeito pelo princípio da proporcionalidade impõe a proibição do excesso, em três diferentes dimensões: a adequação ou idoneidade (as medidas devem revelar-se como um meio adequado para a prossecução dos fins visados); a exigibilidade, necessidade ou indispensabilidade (as medidas devem revelar-se necessárias porque os fins visados não podem ser obtidos por outros meios menos onerosos para os direitos, liberdades e garantias); e, por fim, a proporcionalidade em sentido estrito (os meios devem situar-se na justa medida).

A resposta a esta pergunta deverá atender a cada uma das tributações autónomas a que o sujeito passivo foi sujeito já que se tratam de realidades jurídicas distintas.

Relativamente à tributação autónoma sobre as despesas não documentadas, o Tribunal Constitucional, no acórdão 18/11, enquadrou devidamente o objetivo desta tributação: penalizar de desmotivar práticas que podem, inclusive, envolver situações de ilicitude penal de menor transparência. Tem, pois, uma natureza anti-abuso de práticas que causam prejuízo à receita (as despesas reais poderiam ser sujeitas a outros impostos) e pouco transparentes na prática comercial e de sã concorrência entre os atores económicos.

 

Do exposto, não vislumbramos nem o Requerente invocou, em concreto, a violação pelo n.º 1 do artigo 88.º do Código do IRC (anterior artigo 81.º) do princípio da proporcionalidade em qualquer uma das suas dimensões.

As tributações autónomas com despesas de representação e ajudas de custos têm uma natureza diversa: o legislador pretende incentivar o contribuinte a reduzir os gastos com estas práticas porque potenciam o pagamento camuflado de remunerações a trabalhadores e gerentes com a consequente não tributação em IRS ou segurança social. As taxas de tributação autónoma são, nestes casos, de 5% e 10%, agravadas em 10%, a partir de 2011, por o sujeito passivo apresentar prejuízos (n.º 14 do artigo 88.º, aditado pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro).

Tratando-se, neste caso, de taxa reduzidas e justificadas, não consideramos ter sido violado o princípio da proporcionalidade, nem, mais uma, vez a Requerente alegou que no caso concreto houve uma violação de qualquer uma das vertentes do princípio da proporcionalidade.

Caberá, agora, analisar o regime de tributação autónoma das viaturas ligeiras e passageiros.

Como se referiu supra, com este tipo de tributação teve-se em vista, por um lado, incentivar os contribuintes a ela sujeitos a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afetem negativamente a receita fiscal e, combater elisão fiscal que tais despesas ocasionem não apenas em relação ao IRS ou IRC, mas também em relação às correspondentes contribuições, tanto das entidades patronais como dos trabalhadores, para a segurança social. Neste caso, ao abrigo do princípio da praticabilidade, a tributação autónoma assume também a natureza de substituição tributária: é sujeito a tributação autónoma o rendimento imputável a um terceiro beneficiário não identificado ou em que o benefício não é objetivamente determinável. Como refere Saldanha Sanches, “Neste tipo de tributação, o legislador procura responder à questão reconhecidamente difícil do regime fiscal de despesas que se encontram na zona de interseção da esfera pessoal e da esfera empresarial, de modo a evitar remunerações em espécie mais atraentes por razões exclusivamente fiscais…” (cfr. Manual de Direito Fiscal, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 2007, pág. 407).

A aplicação das tributações autónomas está também intimamente ligada à limitação prevista na al. e) do n.º 1 do artigo 34.º do Código do IRC (artigo 33.º na versão anterior ao Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho): não são aceites como gastos as depreciações de viaturas que ultrapassem o limite aí previsto (a partir de 2010, os limite consta da Portaria n.º 467/2010, de 7 de Julho).

Assim, além deste limite, os gastos com as viaturas são ainda sujeitos a tributação autónoma. Ou seja, o legislador afasta, em sede de IRC, os gastos com viaturas cujo custo de aquisição ultrapasse determinado limite e sujeita-os ainda a tributação autónoma.

As taxas de tributação autónoma foram ainda agravadas em 10%, a partir de 2011, por o sujeito passivo apresentar prejuízos (n.º 14 do artigo 88.º, aditado pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro). Mais, a base de incidência também foi alterada: até 2011, a taxa de tributação autónoma apenas incidia sobre os gastos de depreciação fiscalmente dedutíveis; com a alteração introduzida pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a tributação autónoma passa a incidir sobre os gastos suportados (ou contabilísticos).

Face ao exposto, há que aplicar ao disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 88.º do CIRC o teste de proporcionalidade. Vejamos.

Admitimos, quanto ao primeiro critério, que a tributação autónoma seja idónea e adequada para alcançar os fins que pretende alcançar.

Consideramos, porém, que não há uma adequação meio-fim, por existirem outros meios mais justos e proporcionais para atingir aqueles resultados. Com efeito, se o objetivo é, conforme se enunciou, incentivar os contribuintes a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afetem negativamente a receita fiscal do próprio IRC, tal desiderato é alcançado com a não dedução dos respeitos encargos, conforme previsto na al. e) do n.º 1 do artigo 34.º.

Por outro lado, se o que se pretende é tributar legitimamente rendimentos em espécie de que beneficiam terceiros (trabalhadores ou membros de órgãos sociais), o nosso ordenamento fiscal já prevê a possibilidade de tributação destes rendimentos em sede de IRS. Bem andou, por isso, o legislador quando introduziu, pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, a alínea b) do n.º 6 que exclui de tributação as viaturas ligeiras de passageiros relativamente às quais tenha sido celebrado o acordo previsto no n.º 9) da alínea b) do n.º 3 do artigo 2.º do Código do IRS. Deste modo, se a viatura é atribuída a um trabalhador ou membro de órgão social por acordo escrito, a remuneração em espécie é tributada na sede do efetivo beneficiário do rendimento, em obediência ao princípio da capacidade contributiva.

Ao não admitir, à data, a não tributação autónoma por a utilização da viatura já ter sido sujeito a tributação em sede de IRS, o legislador adotou uma medida excessiva e violou, consequentemente, o princípio da proporcionalidade na vertente necessidade ou indispensabilidade.

Por último, admite-se que esta disposição viole, em casos concretos, o princípio da proporcionalidade na vertente proporcionalidade em sentido estrito por infligir um sacrifício fiscal excessivo para a concretização dos objetivos e fins que se pretendem atingir.

No caso, a Requerente não alegou nem provou ter existido, no caso concreto, a violação do princípio da proporcionalidade, nem no sentido de a utilização da viatura já ter sido objeto de tributação em sede de IRS, nem a violação do princípio da proporcionalidade em sentido estrito, por não se ter identificado, em concreto, quais as viaturas sujeitas a tributação autónoma e o imposto pago em cada uma delas, demonstrando-se inequivocamente que o imposto pago ultrapassa os fins de substituição tributária subjacente à criação da tributação autónoma.

 

ii)                   Da violação do Direito Comunitário: sistema comum do Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA)

 

A Requerente alega, em síntese, que no quadro do mercado interno, devem ter-se em consideração as medidas fiscais tomadas pelos Estados-membros que sejam suscetíveis de dificultar a livre circulação de mercadorias, de serviços e de capitais, bem como de falsear o livre jogo da concorrência.

O regime comunitário compreende regras relativas a (i) estruturas harmonizadas de tributação (definição dos produtos, unidades de medida, isenções); a (ii) níveis de tributação; e à (iii) circulação entre os Estados-membros dos produtos sujeitos a impostos especiais de consumo.

Neste sentido, atendendo a que “as características atuais da tributação autónoma qualificam-na como um imposto geral sobre o consumo/despesa, e não como um imposto especial sobre o consumo, tendo em atenção toda a diversidade e heterogenia da sua base incidência bem como o incumprimento do critério básico definidor de imposto especial de consumo enformado pelo princípio da equivalência e que obriga à diferenciação das taxas consoante o custo social que cada produto gera”, a Requerente conclui que a tributação autónoma protagoniza um conflito frontal com o direito comunitário.

Importa, assim, aferir da eventual incompatibilidade das tributações autónomas com as normas comunitárias relativas ao IVA.

O facto de o IVA se tratar de um imposto geral sobre o consumo, levanta a questão da respetiva compatibilidade com outros impostos.

Nos termos do artigo 401.º da Diretiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28 de Novembro (Diretiva IVA), admite-se que os Estados membros mantenham ou estabeleçam impostos sobre os contratos de seguros, sobre jogos e apostas, sobre consumos especiais, direitos de registo e, em geral, qualquer imposto, direito ou taxa que não tenham a natureza de imposto sobre o volume de negócios, desde que estes não deem origem, nas transações entre os Estados membros, a formalidades nas fronteiras.

Com esta norma, pretende-se evitar que o normal funcionamento do sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado seja alterado em virtude da adoção pelos Estados membros de tributos incidentes sobre bens ou serviços de forma comparável à que caracteriza o IVA. Por isso, a questão essencial consiste em saber o que se deve entender por um tributo que não tenha a natureza de imposto sobre o volume de negócios.

No caso Raymond Beaulande c. Directeur des Services Fiscaux de Nantes[11], para que o tributo seja considerado incompatível nos termos da referida norma da Sexta Diretiva, é necessário que apresente as características essenciais do IVA, ou seja, aplicar-se de forma geral ao consumo de bens e serviços, de forma proporcional ao respetivo preço, em cada uma das fases do circuito económico, incidindo apenas sobre o valor acrescentado em cada uma dessas fases.

Já no Caso Hans-Dieter e Ute Kerrut c. Finanzamt Mönchengladbach-Mitte[12], o Tribunal admitiu a existência de regimes tributários concorrentes, mesmo que a sua cobrança conduza a uma acumulação com o IVA numa mesma operação, declarando que o direito comunitário não impedia os Estados membros de aplicarem impostos a transmissões e a transações distintos dos impostos sobre o volume de negócios.

Quanto a Portugal, o Tribunal, nomeadamente no Caso Solisnor[13], tendo-se levantado a questão da incompatibilidade do imposto de selo com o IVA, concluiu que, não se tratando de um imposto geral, não é incompatível.

Em suma, para que um tributo seja considerado incompatível com as regras da Diretiva IVA é necessário que esse tributo partilhe das características essenciais do IVA, a saber: (i) Incidência sobre a generalidade das transacções económicas, facto que exclui os tributos que apenas incidam sobre determinados bens ou serviços;(ii) Imposto proporcional ao valor da contraprestação (aplicação de taxas ad valorem, facto que exclui os tributos que prevêem taxas específicas); (iii) Incidência sobre todas as fases do circuito económico, facto que exclui tributos monofásicos, ou que apenas cubram uma parcela do circuito económico, como a produção e o comércio por grosso; (iv) Aplicação ao valor acrescentado das actividades económicas, através do mecanismo do crédito de imposto; (v) Repercussão no consumidor através do preço dos bens e/ou serviços.

Do exposto, conclui-se que as tributações autónomas, por não partilharem as características essenciais do IVA, não são incompatíveis com o Direito Comunitário.

 

iii)                A título subsidiário, da dedutibilidade dos montantes pagos a título de tributação autónoma para efeitos de apuramento do lucro tributável

 

A título subsidiário, a Requerente advoga que “sempre os montantes pagos pelo sujeito passivo a título de tributação autónoma deverão ser considerados como encargos dedutíveis para efeitos de apuramento do lucro tributável”, na medida em que, no seu entender, “configurando a tributação autónoma um imposto indireto, porquanto, (...), é um tributo que incide sobre a despesa e não sobre o rendimento, o encargo incorrido pelo sujeito passivo com a tributação autónoma não pode deixar de ser considerado dedutível para efeitos de determinação do lucro tributável.”

 

Vejamos, então.

 

A dúvida acerca da dedutibilidade das tributações autónomas no âmbito da anterior redação do Código do IRC surge em consequência da margem interpretativa criada pela conjugação de duas normas: por um lado, o princípio geral de dedutibilidade de encargos comprovadamente indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nomeadamente, os de natureza fiscal e parafiscal, que resultava do artigo 23.º, n.º 1, alínea f), do Código do IRC. Por outro lado, a regra de não dedutibilidade prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 45.º do mesmo Código, nos termos da qual não eram dedutíveis para efeitos de determinação do lucro tributável o IRC e quaisquer outros impostos que directa ou indirectamente incidam sobre os lucros.

 

Em concreto, as dúvidas surgem porque a norma prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 45.º do Código do IRC não menciona expressamente as tributações autónomas e porque o princípio geral em sede de IRC era o da dedutibilidade de encargos indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora. Assim, face a um princípio geral de dedutibilidade de encargos e à ausência de referência expressa às tributações autónomas, a dúvida surge sobre se o legislador quis incluí-las na exceção de não dedutibilidade prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 45.º.

 

As dúvidas surgidas a propósito da dedutibilidade das tributações autónomas em sede de IRC são, portanto, perfeitamente justificáveis face à incerteza criada pelo elemento literal das normas enunciadas. Assim, será necessário aprofundar a análise além do seu elemento literal, buscando nas razões de ser do regime das tributações autónomas a resposta às dúvidas criadas.

 

Os fins das tributações autonomas supra explanados, leva-nos, de imediato, a uma constatação fundamental: a de que, se se admitisse a dedutibilidade das tributações autónomas sobre despesas não dedutíveis, se estaria a admitir a dedutibilidade de um encargo não indispensável para realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora. Com efeito, se o gasto sobre o qual incide a tributação autónoma não é, em si mesmo, dedutível, é porque (para o sistema de IRC) o mesmo não é indispensável para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora. Ora, se assim é, a tributação autónoma que sobre ele incide também o não será, pelo que se estaria a admitir a dedução de um encargo em frontal desacordo com o princípio geral de que os encargos só são dedutíveis em sede de IRC se lhes estiver inerente aquela indispensabilidade para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora. Assim, tal como não são dedutíveis os tributos incidentes sobre factos não relacionados com a realização de rendimentos sujeitos a IRC, também as tributações autónomas que incidem sobre despesas não dedutíveis terão, forçosamente, que estar excluídas de tributação sob pena de se admitir uma evidente contradição sistemática no Código do IRC, o que não é de aceitar face aos princípios interpretativos consagrados no artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil (que a LGT manda aplicar nos termos do no n.º 1 do seu artigo 11.º), os quais determinam que o intérprete deve presumir que o legislador “soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” e “que consagrou as soluções mais acertadas”.

 

Perguntar-se-á então: e quanto às tributações autónomas que incidem sobre despesas dedutíveis? Não deverá aí concluir-se que, sendo dedutível a despesa, deverá ser dedutível a tributação autónoma, ela própria, como encargo  suportado por força da realização de tal despesa, seguindo o acessório o caminho do principal (acessorium principale sequitur)?

 

Aqui, a questão interpretativa que importa dilucidar prende-se com a definição do conteúdo adequado da expressão linguística “IRC e quaisquer outros impostos que direta ou indiretamente incidam sobre lucros” (consagrada na alínea a) do n.º 1 do artigo 45.º do Código do IRC), decidindo-se então se aí se devem considerar incluídas as tributações autónomas ou não.

 

A Requerente defende que, configurando a tributação autónoma um tributo que incide sobre a despesa e não sobre o rendimento, esta tributação não poderá ser considerada “IRC” para efeitos da exclusão da dedutibilidade prevista na alínea a) do n.º 1 do art. 45.º do Código do IRC.

 

É verdade que as tributações autónomas se aplicam quando há despesa realizada, mas será que, ainda assim, elas não servem um propósito coadjuvante do IRC stricto sensu, podendo então dizer-se que, ainda que operando de forma diferente, designadamente porque são apuradas de forma distinta, se integram no sistema global do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas? Por outras palavras: será que a tributação agravada de determinados tipos de despesas dedutíveis não é, ainda assim, uma forma indireta de tributar o rendimento dos sujeitos passivos que nelas incorrem, assim incorporando o objetivo geral que preside ao IRC e que o distingue enquanto imposto sobre os lucros? E ainda de outra forma: será que o regime de um imposto que se define como imposto sobre os lucros e onde, consequentemente, as despesas ou gastos desempenham um papel fundamental na delimitação da matéria tributável, não pode incluir em si mesmo tributações autónomas sobre determinados tipos de despesas que, contribuindo para a diminuição da base tributável são, além disso, de discutível empresarialidade?

 

Parece-nos que todas estas questões devem ser respondidas afirmativamente. Com efeito, além do caso das tributações autónomas que incidem sobre despesas não dedutíveis e cuja previsão se justifica enquanto mecanismo anti-evasão, também no caso das tributações autónomas que incidem sobre despesas dedutíveis está presente a vontade do legislador de impedir a erosão da base tributável através da realização de despesas que, embora não possam ser proibidas de todo pelo sistema do IRC porque, em alguns casos, poderão mesmo ser necessárias à realização do rendimento tributável e/ou à manutenção da fonte produtora, são despesas que partilham entre si um risco de não empresarialidade, isto é, um risco de não serem realizadas com fins empresariais, mas sim extra-empresariais ou privados. Nesses casos, o legislador opta, assim, por aceitar a sua dedutibilidade, mas onerando-a com uma tributação autónoma.

 

Na verdade, estamos, em ambos os casos, perante um mecanismo cujo objetivo último é o de contribuir para a “normalização” da tributação em sede de IRC, isto é, para o funcionamento deste imposto na sua forma mais pura e mais próxima das suas raízes de imposto sobre o lucro obtido pelas pessoas coletivas. Nesse sentido, as tributações autónomas não são mais do que mecanismos coadjuvantes do eixo central do IRC, que é o de tributar lucros permitindo a dedução das despesas em que os sujeitos passivos têm que incorrer com vista à realização dos rendimentos tributáveis.

 

Trata-se, assim, de não mais do que um mecanismo de tributação indireta do rendimento, que visa prevenir a perda de receita fiscal por evasão fiscal ou por confusão das esferas empresariais e privadas.

 

Em concreto no que se refere às tributações autónomas que incidem sobre despesas dedutíveis, as mesmas visam compensar, por essa via, a perda de receita fiscal que a realização e dedução de tais despesas ocasionaria na sua ausência. Assim, enquanto se permite que o sujeito passivo deduza a despesa, onera-se a sua dedução com a tributação autónoma reduzindo-se, assim, a receita fiscal perdida com a dedução da despesa e desincentivando-se a utilização futura do tipo de encargos que gerou a tributação autónoma.

 

Como refere o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 18/2011, a propósito dos encargos relacionados com viaturas: “[estes] referem-se a encargos dedutíveis como custos para efeitos de IRC, isto é, a encargos que comprovadamente foram indispensáveis à realização dos proveitos, à luz do que estabelece o artigo 23.º, n.º 1, do CIRC, sendo a tributação prevista nesses preceitos [atuais n.º 3 e 4 do art. 88.º do CIRC] explicada por uma intenção legislativa de incentivar as empresas a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afetem negativamente a receita fiscal”.

 

No mesmo sentido vão as palavras de Saldanha Sanches quando afirma que ”Neste tipo de tributação [autónoma], o legislador procura responder à questão reconhecidamente difícil do regime fiscal que se encontra na zona de interseção da esfera pessoal e da esfera empresarial, de modo a evitar remunerações em espécie mais atraentes por razões exclusivamente fiscais ou a distribuição oculta de lucros.” (cf. “Manual de Direito Fiscal”, 3ª Edição, Coimbra Editora, 2007, p. 406).

 

Face ao exposto, embora se reconheça que o regime das tributações autónomas constitui, no quadro do IRC, um regime especial quanto à forma de apuramento da tributação, isso não o afasta da sua natureza intrínseca de regime de tributação do rendimento das pessoas coletivas. É verdade que este regime pode, por via dessa integração e do processo de complexificação que vem sofrendo, ter-se tornado multifacetado e diversificado no seu modo de atuação, mas não deixa por isso de ser um regime dedicado à tributação do rendimento das pessoas coletivas e à obtenção de receita fiscal por essa via. Se esta é, por vezes, obtida através da tributação de determinadas despesas que reduzem o lucro tributável, ainda assim se consegue vislumbrar aí uma forma de tributação desse mesmo lucro tributável que é própria dos objetivos que subjazem ao IRC – de resto, as próprias tributações autónomas são devidas a título deste imposto.

 

Por fim, não colide com a interpretação que acaba de se fazer acerca da natureza das tributações autónomas e, em especial, acerca da questão da sua (não) dedutibilidade em sede de IRC a recente alteração efetuada ao Código do IRC pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro[14], que veio revogar o antigo artigo 45.º, estabelecendo-se agora no artigo 23.º-A do CIRC que “Não são dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável os seguintes encargos, mesmo quando contabilizados como gastos do período de tributação: a) O IRC, incluindo as tributações autónomas, e quaisquer outros impostos que direta ou indiretamente incidam sobre os lucros.”

 

Esta alteração veio, segundo se entende, clarificar que, relativamente aos períodos a que a norma em causa se aplica, os gastos com tributações autónomas não são dedutíveis para efeitos fiscais, tornando assim expresso na letra da lei algo que já decorria dos seus termos, ainda que indiretamente.

 

Nestes termos e com estes fundamentos, o tribunal arbitral entende que as tributações autónomas integram o regime jurídico do IRC, sendo devidas a este título e estando, por isso, abrangidas pelo disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 45.º (atual artigo 23.º - A) do CIRC, e que, em consequência, os montantes pagos com referência a essas tributações autónomas não constituem encargos dedutíveis para efeitos de apuramento do lucro tributável, devendo improceder a presente acção arbitral.

 

***

 

III. DECISÃO

 

Termos em que se decide neste tribunal arbitral:

a)         Julgar procedente a alegação de inconstitucionalidade dos números 3 e 4 do artigo 88.º, nas versões em vigor, em 2008, 2009, 2010 e 2011, na parte relativa às tributações autónomas sobre viaturas ligeiras de passageiros em que tenha havido tributação em sede de IRS na esfera do trabalhador ou membro do órgão social, nos termos do n.º 9 da al. b) do n.º 3 do artigo 2.º do Código do IRS, por violação do princípio da proporcionalidade;

b)        Julgar improcedente a alegação de violação da Diretiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28 de Novembro (Diretiva IVA);

c)         Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral quanto à dedutibilidade em sede de IRC da tributações autónomas.

 

IV. VALOR DO PROCESSO

 

De harmonia com o disposto no artigo 315.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária atribui-se ao processo o valor de € 248.740,95.

 

V. CUSTAS

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 4.284,00 nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.

 

·         Notifique-se.

 

Lisboa, 13 de abril de 2016

 

O Tribunal Arbitral

 

(José Poças Falcão)

 

(Ana Maria Rodrigues)

 

(Amândio Silva)

Com voto de vencido em anexo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO DE VENCIDO

 

Acompanho inteiramente a decisão, excepto quanto ao ponto relativo à dedutibilidade dos montantes pagos a título de tributação autónoma para efeitos de apuramento do lucro tributável, cujos pressupostos e conclusões não subscrevo.

Passo a expor, de forma sucinta, as razões que me afastam da posição que fez vencimento.

1.      O pressuposto da decisão é, em síntese, a consideração de que as tributações autónomas constituem, ainda que indirectamente, um imposto sobre o rendimento, pelo que a sua não dedutibilidade está expressamente prevista na al . a) do n.º 1 do artigo 45.º do Código do IRC. Para tal, defende-se que as “tributações autónomas não são mais do que mecanismos coadjuvantes do eixo central do IRC…”. Trata-se de um “mecanismo de tributação indirecta do rendimento que visa prevenir a perda de receita fiscal por evasão fiscal ou por confusão das esferas empresariais e privadas.”. Conclui, por isso, que apesar de “obtida através da tributação de determinadas despesas que reduzem o lucro tributável, ainda assim se consegue vislumbrar aí uma forma de tributação desse mesmo lucro tributável que é própria dos objectivos que subjazem ao IRC…”.

Acrescenta-se, por fim, para reforço daquele entendimento que a expressa previsão na actual al. a) do artigo 23.º-A do CIRC ( versão introduzida pela Lei n.º 2/2004, de 16 de janeiro) da não dedutibilidade das tributações autónomas constitui uma clarificação que torna expresso na letra da lei algo que já decorria dos seus termos, ainda que indiretamente.

 

2.      Não é esse, contudo, o meu entendimento.

 

3.      Em consonância com a generalidade da doutrina e jurisprudência, considero que não há qualquer ligação umbilical entre o Código do IRC e as tributações autónomas, pelo que não consigo vislumbrar nas tributações autónomas uma forma de tributação do rendimento. Apesar de inseridas formalmente no Código do IRC, dizem respeito a uma tributação distinta do imposto sobre o rendimento.

 

 

4.      Em boa verdade, a relação entre as tributações autónomas e o Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas é similar à dos demais impostos (por exemplo, o Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis, o Imposto Municipal de Imóveis e Imposto do Selo) que incidem sobre o património, gastos ou operações realizadas por pessoas colectivas que, no caso, são também sujeitos passivos de IRC. Os factos que geram estes impostos influenciam sempre os gastos ou rendimentos do sujeito passivo e, consequentemente, o lucro tributável. Por outro lado, todos os impostos citados são dedutíveis ao IRC, sem que a sua natureza e objectivos sejam postos em causa.

 

5.      Pelo exposto, como não estamos perante um imposto que incide directa ou indirectamente sobre os lucros, não há, face à letra da lei, qualquer obstáculo legal que impeça, à data dos factos, a dedução das tributações autónomas.

 

6.      A lei não se restringe, sabemo-lo, apenas à letra da lei. É isso mesmo que se afirma no artigo 11.º n.º 1 da Lei Geral Tributária: “Na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e os princípios gerais de interpretação e aplicação das leis”. Para tal, devemos recorrer a outros elementos disponíveis de interpretação jurídica, como sejam os elementos extraliterais: o histórico, o sistemático e o teleológico, para os quais aponta o artigo 9.º do Código Civil. Quais os fins e objectivos das tributações autónomas objeto que são objecto da presente impugnação? Como enquadra-los face aos princípios que norteiam o nosso sistema fiscal?

 

7.      Lembramos que, no caso, a tributação autónoma incidiu, ainda que de forma distinta, sobre os encargos com viaturas ligeiras de passageiros, despesas de representação e ajudas de custos mas com prosseguindo um objectivo comum: tributar gastos das empresas que podem constituir rendimentos na esfera individual dos trabalhadores ou membros dos órgãos sociais. Ou seja, o legislador considerou que, face à dificuldade em aferir se aqueles gastos constituem, pelo menos em parte, uma vantagem pessoal dos trabalhadores ou membros dos órgãos sociais, deveriam ser objecto de tributação especial.

 

8.      Estas tributações autónomas assumem, assim, a natureza de normas anti-abuso inilidíveis, em que o sujeito passivo de IRC assume o papel de substituto tributário dos terceiros potenciais beneficiários dos rendimentos. Não partilhamos, por isso, quanto aos fins destas tributações autónomas, os argumentos defendidos da sua natureza repressiva/punitiva ou desincentivadora. Tal assunção viola, em nossa opinião, os princípios ne bis in idem quando se trate de prática punidas pelo Regime Geral das Infracções Tributárias e de tributação do rendimento real.

 

9.      Face ao exposto, haverá razões para se defender que a dedutibilidade destas tributações autónomas ao lucro tributável anula os efeitos que se visam prosseguir? A dedução deste imposto ao lucro tributável – à semelhança de qualquer outro imposto - reduz o lucro tributável ou aumenta o prejuízo fiscal mas não anula a carga tributária suportada pelo contribuinte: o imposto devido a título de tributações autónomas será sempre claramente superior à eventual redução de IRC obtida com a sua dedução.

 

10.  Acrescentamos, a título complementar, que o argumento de que a dedutibilidade das tributações autónomas põe em causa os fins anti-abuso que as normas visam prosseguir parte da premissa, não provada, de que estas tributações autónomas prosseguem exclusivamente aqueles objectivos. As alterações que o regime das tributações autónomas sofreu nos últimos anos permitem concluir que as tributações autónomas não visam apenas combater eventuais abusos mas também arrecadar receita tout court.

 

11.  Por outro lado, mais importante que um argumento de quantum, a não dedutibilidade destas tributações autónomas, porque relativas a gastos em si mesmo dedutíveis, violaria as regras de apuramento do lucro tributável, previstas nos artigos 17.º e 23.º do Código do IRC.

 

12.  Mais, a imposição, não justificada, da não dedutibilidade das tributações autónomas que incidem sobre gastos dedutíveis, constitui, na minha opinião, uma violação das regras de tributação do rendimento real e capacidade contributiva.

 

13.  Por último, a alteração introduzida à al. a) do n.º 1 do artigo 23.º-A (anterior 45.º) do Código do IRC, com a expressa referência à não dedutibilidade das tributações autónomas não tem, face ao exposto, natureza clarificadora mas inovadora. Não configurando as tributações autónomas IRC ou um imposto que incide directa ou indirectamente sobre os lucros, a alteração introduzida não esclareceu mas alterou o enquadramento em sede de IRC das tributações autónomas.

Neste sentido se pronunciou, aliás, o STA, numa situação similar. No acórdão do STA, de 21 de março de 2011, Proc. 830/11, o STA concluiu que quando o artigo 32.º n.º 4 da Lei n.º 109-B/2001 veio acrescentar ao artigo 12.º do Código do IRC que ficavam ressalvadas da não tributação em IRC no regime de transparência fiscal as “tributações autónomas”, o legislador veio clarificar que as sociedades enquadradas no regime de transparência fiscal ficavam sujeitas às tributações autónomas porque “as tributações autónomas, embora formalmente inseridas no Código do IRC, sempre tiveram um tratamento próprio, um vez que não incidem sobre o rendimento, cuja formação, ao longo do ano, mas antes sobre certas despesas avulsas que representam factos tributários autónomos, sujeitos a taxas diferentes de IRC.”

Assim, quando o artigo 12.º do Código do IRC se referia, antes daquela alteração, ao IRC, não incluía as tributações autónomas. Se assim foi à data, não podemos dar, agora, à al. a) do n.º 1 do artigo 23.º-A a mesma natureza clarificadora mas com sentido contrário: quando a al. a) do n.º 1 do artigo 45.º do CIRC se referia ao IRC, incluía as tributações autónomas. Reitero, assim, que a interpretação do STA numa situação similar, assume a clara distinção, pelo próprio Código do IRC, dos conceitos de “IRC” e “tributações autónomas”.

 

Lisboa, 13 de maio de 2016

(Amândio Silva)


 

 

 

 

 

Decisão arbitral[15]

 

Os árbitros, Jorge Lino Ribeiro Alves de Sousa (árbitro-presidente), José Vieira dos Reis, e Amândio Silva, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o tribunal arbitral, constituído em 30-10-2013, acordam no seguinte:

 

I. RELATÓRIO

1. A…, SA (adiante designada Requerente), pessoa coletiva n.º …, com sede em …, requereu, em 30 de agosto de 2013, a constituição de tribunal arbitral, nos termos do disposto nos artigos 2.º. n.º 1, al. a), 5.º n.º 3, al. a), 6.º, n.º 2, al. a) e 10.º, n.º 1, al. a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (adiante, Regime Jurídico da Arbitragem Tributária ou RJAT) e do artigo 102.º, n.º 1, al. d), do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), tendo em vista a declaração de ilegalidade parcial dos atos de autoliquidação do IRC dos períodos de 2008, 2009, 2010 e 2011, na parte correspondente às tributações autónomas, o que corresponde a um imposto indevidamente liquidado no montante total de € 270.325,47.

2. Em 21 de dezembro de 2012, a Requerente apresentou, ao abrigo do artigo 78.º n.º 1 da Lei Geral Tributária (LGT), o pedido de revisão oficiosa dos referidos atos de autoliquidação.

3. Por terem decorrido mais de quatro meses desde a apresentação do pedido de revisão oficiosa, presumiu a Requerente o indeferimento tácito, nos termos do n.º 1 do artigo 57.º da LGT, e solicitou, ao abrigo do artigo 10.º, n.º 1, al. a), do RJAT, conjugado com o artigo 102.º, n.º 1, al. d), do CPPT, a constituição do tribunal arbitral.

4. No pedido, a Requerente optou por não designar árbitro.

5. Nos termos do n.º 2 do artigo 6.º do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem designou o coletivo de árbitros ora signatários, notificando as partes.

6. O tribunal encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objeto do processo.

7. As alegações que sustentam o pedido de pronúncia arbitral da Requerente são, em súmula, as seguintes:

Alegações da Requerente

7.1 A Requerente procedeu à entrega das declarações de rendimentos modelo 22,  referentes aos exercícios de 2008, 2009, 2010 e 2011.

7.2 Naquelas declarações fiscais, a Requerente apurou e declarou os seguintes montantes a título de tributações autónomas:

Exercício

Tributação Autónoma

2008

€ 52.574,00

2009

€ 46.594.60

2010

€ 42.061,32

2011

€ 129.095,55

TOTAL

270.325,47

 

7.3 Na sequência dos acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 310/2012, de 20 de junho de 2012 e 382/2012, de 12 de Julho de 2012, que declararam inconstitucional, na parte em que faz retroagir a 1 de janeiro de 2008 a alteração das taxas de tributação autónoma previstas no artigo 81.º, n.º 3 (atual artigo 88.º), a norma prevista no artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, a Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa da autoliquidação de 2008.

7.4 Na sequência da formação da presunção de indeferimento tácito desse pedido, apresentou junto do CAAD um pedido de pronúncia arbitral, o qual correu termos com o n.º 129/2013-T.

7.5 No âmbito do processo n.º 129/2013-T, a AT comunicou que o pedido de revisão oficiosa havia sido deferido, revogou o ato objeto de pronúncia arbitral e restituiu o montante de € 21.548,52.

7.6 No presente pedido de pronúncia arbitral, pretende-se a correção das autoliquidações dos exercícios de 2008, 2009, 2010 e 2011, na parte relativa às tributações autónomas, com os seguintes fundamentos:

 (i) As tributações autónomas violam os princípios constitucionais da tributação pelo lucro real, da capacidade contributiva e da proporcionalidade, conforme previstos nos artigos 13.º, 18.º, 103.º, n.º 1 e 104.º, n.º 2, todos da CRP;

(ii) As tributações autónomas violam ainda os princípios basilares do sistema comum do Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) os quais consistem em aplicar aos bens e serviços apenas um único imposto geral sobre o consumo;

(iii) Caso improcedam os argumentos anteriores, a Requerente defende que, consubstanciando a tributação autónoma um imposto sobre a despesa, o encargo suportado pelo sujeito passivo com a mesma deve ser deduzido ao lucro tributável, nos termos dos artigos 17.º, 23.º, 45.º, n.º 1, al. a), todos do CIRC, por interpretação a contrario.

7.7 Quanto ao princípio de tributação pelo rendimento real, dispõe o artigo 104.º, n.º 2, da CRP que “(…) a tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o rendimento real”.

Este princípio traduz uma exigência fundamental de proporcionalidade, segundo a qual as obrigações tributárias imputáveis a cada contribuinte devem ser determinadas de acordo com a respetiva capacidade contributiva.

Ou seja, o princípio de tributação do rendimento real é uma concretização dos princípios da capacidade contributiva e da igualdade fiscal que se traduzem na ideia de que só devem pagar impostos aqueles que puderem e na medida das suas capacidades.

As tributações autónomas constituem uma tributação sobre a despesa e não sobre o rendimento, pelo que configuram um imposto indireto e não direto, o qual é determinado de forma totalmente independente do IRC e da derrama.

Neste sentido, para a jurisprudência do Tribunal Constitucional “no caso do IRC, estamos perante um imposto anual em que não se tributa cada rendimento de per si, mas sim o englobamento de todos os rendimentos obtidos num determinado ano, considerando a lei que o facto gerador se tem verificado no último dia do período de tributação (...) no quer respeita à tributação autónoma em IRC, o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa...” (Acórdão n.º 617/2012, de 19 de dezembro).

Acrescenta-se ainda que “com este tipo de tributação teve-se em vista, por um lado, incentivar os contribuintes a ela sujeitos a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afetem negativamente a receita fiscal e, por outro lado, evitar que, através dessas despesas, as empresas procedam à distribuição camuflada de lucros, sobretudo de dividendos, que assim, apenas ficariam sujeitos a IRC enquanto lucros das empresas, bem como combater a fraude e evasão fiscais que tais despesas ocasionem não apenas em relação ao IRS ou IRC, mas também em relação às correspondentes contribuições, tanto de entidades patronais como dos trabalhadores para a segurança social.”

A Requerente defende que as normas relativas à tributação autónoma são normas de tributação que se destinam a corrigir comportamentos com efeitos ao nível do IRC, sendo anti sistémicas e de natureza excecional, dado que “Estamos [...] neste caso perante opções legislativas a exigirem uma justificação especial que as legitime. (...) Perante normas anti sistémicas que se podem manter apenas com base nas especiais relações que as legitimam.” (SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 3.ª Ed., p. 289).

Acrescentam que a ampliação dos factos sujeitos a tributação autónoma e o constante agravamento das taxas que se tem vindo a praticar conduz inquestionavelmente à violação do princípio da igualdade tributária, por violação do princípio da capacidade contributiva (artigos 13.º e 104.º da CRP) e do princípio da equivalência, atento ao incumprimento da regra de proporcionalidade ou da proibição do excesso (artigo 18.º da CRP).

Entendem ainda que o constante aumento das taxas praticado no âmbito da tributação autónoma ultrapassa claramente o âmbito dos objetivos de correção de comportamentos que se pretende desencorajar e que, nesse sentido, estamos perante a violação do princípio da proporcionalidade que consiste precisamente no facto de a tributação autónoma, sendo um imposto sobre o consumo, consubstanciar atualmente um verdadeiro imposto de arrecadação de receita.

 

Num Estado de Direito, o princípio da proibição do excesso determina que os meios – in casu o constante agravamento das taxas de tributação autónoma – não podem ser desadequados ou desproporcionados ao fim a atingir ou ao resultado a obter (correção das despesas desnecessárias e combate à evasão/fraude fiscal).

Assim, não poderá a tributação autónoma ser considerada como uma tributação que incide sobre o rendimento ou lucro real, nem sequer “fundamentalmente”.

Pelo exposto, sustentam que a tributação autónoma é materialmente inconstitucional por violação do princípio de tributação pelo lucro real, do princípio da capacidade contributiva, enquanto expressão e corolário do princípio da igualdade e do princípio da proporcionalidade, conforme previstos nos artigos 13.º, 18.º, 103.º, n.º 1 e 104.º, n.º 2, da CRP.

7.8 Relativamente à violação do direito comunitário, a Requerente alega, em síntese, que no quadro do mercado interno, devem ter-se em consideração as medidas fiscais tomadas pelos Estados-membros que sejam suscetíveis de dificultar a livre circulação de mercadorias, de serviços e de capitais, bem como de falsear o livre jogo da concorrência.

O regime comunitário compreende regras relativas a (i) estruturas harmonizadas de tributação (definição dos produtos, unidades de medida, isenções); a (ii) níveis de tributação; e à (iii) circulação entre os Estados-membros dos produtos sujeitos a impostos especiais de consumo.

Neste sentido, o IVA foi instituído como o imposto geral sobre o consumo, prevendo-se também a existência de impostos especiais sobre o consumo, justificados estes como mecanismo de combate a externalidades sociais negativas e compensação de custos sociais.

Atendendo a que “as características atuais da tributação autónoma qualificam-na como um imposto geral sobre o consumo/despesa, e não como um imposto especial sobre o consumo, tendo em atenção toda a diversidade e heterogenia da sua base incidência bem como o incumprimento do critério básico definidor de imposto especial de consumo enformado pelo princípio da equivalência e que obriga à diferenciação das taxas consoante o custo social que cada produto gera”, a Requerente conclui que a tributação autónoma protagoniza um conflito frontal com o direito comunitário.

A tributação autónoma tem as características de um imposto sobre o volume de negócios porque não incide sobre uma categoria limitada de bens, serviços ou atividades, antes tributando bens de natureza tão díspar como automóveis, despesas de representação, ajudas de custo e despesas não documentadas.

Acresce ainda que a tributação autónoma onera a circulação de bens e serviços. Em consequência, impõe restrições à procura e impõe aos agentes económicos uma carga tributária adicional a que não estão sujeitos noutros países.

Assim, conclui, a tributação autónoma onera a circulação de bens e serviços de modo comparável ao que caracteriza o IVA.

Embora reconheça a Requerente que apenas se encontra proibida pela legislação comunitária e confirmada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia a cumulação de impostos sobre o volume de negócios similares ao IVA – enquanto imposto sobre o consumo e sobre a despesa – defende que esta proibição de cumulação de impostos sobre o consumo visa impedir que o funcionamento deste imposto seja comprometido por medidas fiscais de um Estado-Membro que onerem a livre circulação de bens e as transações comerciais de modo comparável ao IVA, sendo esse o caso, no seu entender, das tributações autónomas.

Acrescenta que, de acordo com a jurisprudência do TJUE, apenas se admite a coexistência de outros “impostos aduaneiros, taxas e demais encargos” caso exista, conforme definido no Acórdão de 28/07/2011, Proc. n.º C-106/10, uma ligação direta com o facto gerador do imposto.

No caso da tributação autónoma, entende a Requerente que não só não existe qualquer relação direta que legitime a sua coexistência com o IVA, como também, pela sua natureza de imposto sobre o consumo/despesa, a sua manutenção compromete a neutralidade do sistema do IVA.

7.9 Por fim, acrescenta a Requerente que, não procedendo o supra exposto, devem os montantes pagos a título de tributação autónoma ser considerados como encargos dedutíveis para efeitos de apuramento do lucro tributável, na medida em que, configurando a tributação autónoma um imposto indireto que incide sobre a despesa e não sobre o rendimento, o encargo incorrido pelo sujeito passivo não pode deixar de ser considerado dedutível para efeitos de determinação do lucro.

Acrescenta que a al. a) do n.º 1 do artigo 45.º do Código do IRC determina que não são dedutíveis “O IRC e quaisquer outros impostos que, direta ou indiretamente, incidam sobre os lucros”. A contrario, sustenta, é inequívoco que, não incidindo a tributação autónoma, direta ou indiretamente, sobre os lucros, mas ao invés sobre a despesa, o encargo incorrido pelo sujeito passivo com a tributação autónoma é dedutível.

Acrescenta ainda que a tributação autónoma configura um encargo fiscalmente dedutível, desde logo, porque as despesas subjacentes também o eram e que, tanto assim é que, até ao exercício de 2012, uma das condições de sujeição a tributação autónoma era, precisamente, a dedutibilidade fiscal do encargo subjacente.

8. Por seu turno, a Requerida Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, na qual se defendeu nos seguintes termos:

Resposta da Requerida

8.1 Na resposta, a Requerida alega, em primeiro lugar, a exceção de impropriedade do meio e incompetência do tribunal arbitral com referência aos exercícios de 2008 e 2009: “...com referência aos exercícios de 2008 e 2009, o presente meio processual deixou de ser o meio próprio porquanto, face ao fundamento do sobredito ato de indeferimento expresso (intempestividade do pedido), este consubstancia um ato administrativo em matéria tributária que não comporta a apreciação da legalidade de ato de liquidação de tributo.” E acrescenta: “Atento aos exercícios de 2010 a 2011, assistindo à R. a faculdade prevista no artigo 70.º do CPTA, não prescinde a AT de vir oportunamente a alterar a sua Resposta, em consonância com a eventual alteração que venha a ser apresentada ao pedido de pronúncia arbitral.”

8.2 Por impugnação, considera, quanto à alegada inconstitucionalidade, que a norma que institui as tributações autónomas está em vigor, pelo que não cabe à Autoridade Tributária e Aduaneira questionar a aplicação de uma norma dimanada de um órgão de soberania.

8.3 No que se refere à sua dedutibilidade fiscal, alega a Requerida que a tributação autónoma foi criada pelo legislador com o objetivo, por um lado, de incentivar os contribuintes a ela sujeitos a reduzirem tanto quanto possível as despesas que concorram negativamente para a formação do lucro tributável e que, como tal, afetam negativamente a receita fiscal, e, por outro lado, de evitar que, através destas despesas, as empresas procedam à distribuição camuflada de lucros, sobretudo dividendos, que não seriam assim tributados. Além disso, subjaz também à tributação autónoma o objetivo de combater a fraude e evasão fiscais que tais despesas ocasionam, não apenas em relação ao IRC ou ao IRS, mas também em relação às correspondentes contribuições, tanto das entidades patronais como dos trabalhadores.

8.4 Assim, considera a Requerida que, “visando a tributação autónoma reduzir a vantagem fiscal alcançada com a dedução ao lucro tributável dos custos sobre os quais incide e ainda combater a evasão fiscal que este tipo de despesas, pela sua natureza, potencia, não poderá ela mesma, através da dedução ao lucro tributável a título de custo do exercício, constituir fator de redução dessa diminuição de vantagem pretendida e determinada pelo legislador.”

9. Em resposta às exceções de impropriedade do pedido de pronúncia arbitral e de incompetência do tribunal arbitral invocadas, veio a Requerente afirmar o seguinte:

 a) Não tem razão a Requerida quando considera que a prolação pela Autoridade Tributária e Aduaneira de decisão expressa no âmbito do pedido de revisão oficiosa após a apresentação do presente pedido de pronúncia arbitral na sequência de formação da presunção de indeferimento tácito, obsta à apreciação do pedido;

b) O artigo 57.º, n.ºs 1 e 5, da LGT faz presumir o indeferimento das pretensões dos contribuintes dirigidas à Autoridade Tributária e Aduaneira, após 4 meses, para efeitos de recurso hierárquico, recurso contencioso ou impugnação judicial.

Se o contribuinte fizer uso daquela faculdade e optar, no caso, pelo pedido de constituição do tribunal arbitral, a Autoridade Tributária e Aduaneira só poderá pronunciar-se a respeito da pretensão do contribuinte no âmbito do processo arbitral para revogar, ratificar, reformar ou converter o ato tributário (artigo 13.º do RJAT) e/ou apresentar resposta (artigo 17.º do RJAT). Neste sentido, cita JORGE LOPES DE SOUSA que afirma em anotação ao artigo 106.º do CPPT que “Assim, na sequência de reclamação graciosa ou de recurso hierárquico que tenha sido interposto de decisão de indeferimento da mesma, houve impugnação judicial tendo por objeto o indeferimento tácito, a administração tributária só pode pronunciar-se sobre a legalidade do ato de liquidação nos termos e prazos previstos naqueles artigos 11.º n.º1 e 112.º. Se, depois deste prazo, for proferida decisão de indeferimento da reclamação graciosa ou do recurso hierárquico, a decisão será ilegal.”;

c) Assim, sustenta que a decisão de indeferimento expresso é ilegal porquanto foi proferida quando a Autoridade Tributária e Aduaneira se encontrava legalmente impedida de se pronunciar sobre a pretensão da Requerente;

d) Sem prejuízo, requer no entanto a ampliação do pedido de pronúncia arbitral por forma a incluir a decisão expressa do pedido de revisão oficiosa em apreço;

e) Acrescenta, ainda, que o objeto mediato do pedido arbitral é a apreciação da legalidade dos atos tributários em apreço, quais sejam, as autoliquidações do IRC dos exercícios de 2008, 2009, 2010 e 2011, sendo o seu objeto imediato a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, concluindo, também por essa razão, pela competência do tribunal arbitral.

 

10. Retorquiu a Requerida, alegando que:

10.1 Só quando o ato de segundo grau incorpora a ilegalidade do ato de primeiro grau, por confirmação do ato de liquidação (como sucede com o ato expresso relativamente aos atos de liquidação de 2010 e 2011), é que o tribunal arbitral será materialmente competente para conhecer do mesmo.

10.2 A contrario, quando o ato de segundo grau não confirme o ato de liquidação, e, consequentemente, não incorpore a sua ilegalidade (como acontece nos atos em matéria tributária que não comportem a apreciação da legalidade da liquidação, de que o ato expresso de indeferimento é exemplo no que respeita aos atos de liquidação de 2008 e 2009) o tribunal arbitral não será materialmente competente para conhecer do mesmo. Nesses casos, a sindicância jurisdicional do ato de segundo grau só poderá ter lugar através da Acão administrativa especial, nos termos do n.º 2 do artigo 97.º do CPPT e do artigo 191.º do CPTA).

10.3 Por outro lado, acrescenta ainda que o prazo para o contribuinte pedir a revisão do ato tributário é, nos termos do n.º 1 artigo 78.º da LGT, o prazo da reclamação graciosa, cujo prazo de interposição, nos termos do artigo 131.º do CPPT, aqui aplicável, é de dois anos.

10.4 Com efeito, refere, não foi intenção do legislador, no n.º 2 do artigo 78.º da LGT, que todos os erros na autoliquidação fossem de considerar imputáveis aos serviços e, como tal, suscetíveis de revisão no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o imposto ainda não tiver sido pago.

10.5 Em conformidade, a pretensão da Requerente relativamente aos exercícios de 2008 e 2009 era de indeferir liminarmente por ser extemporânea, sendo, por isso, totalmente legítima a decisão proferida pela Autoridade Tributária e Aduaneira a esse respeito.

 

11. No dia 10 de janeiro de 2014, foi realizada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT. Tendo sido dada a palavra aos representantes da Requerente para se pronunciarem sobre as exceções, estes entenderam manter o alegado no requerimento em que se pronunciaram sobre as exceções invocadas pela Requerida em sede de resposta. Por seu turno, a Requerida declarou manter as exceções alegadas e suscitou ainda a incompetência material do tribunal arbitral uma vez que, nos termos em que se encontra formulado, o pedido de pronúncia arbitral configura um pedido de condenação à prática de ato devido, que se encontra fora do âmbito material de competência dos tribunais arbitrais previsto no artigo 2.º do RJAT.

Face às novas alegações, a Requerente solicitou um prazo para se pronunciar por escrito, o que lhe foi concedido.

 

12. No dia 20 de janeiro de 2014, a Requerente pronunciou-se sobre a exceção invocada pela Requerente, afirmando, em síntese, que em momento algum foi pedida a condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira na prática de um ato devido, mas sim a apreciação da legalidade dos atos de autoliquidação de IRC dos exercícios de 2008 a 2011 em resultado do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentado nos termos do artigo 78.º da LGT.

 

13. Em 28 de fevereiro, o tribunal arbitral convidou as partes a fazerem, em 5 dias de prazo sucessivo, a demonstração de se verificarem reunidos os pressupostos processuais de conhecimento do pedido arbitral (versando mormente sobre a tempestividade da impugnação de todas e de cada uma das liquidações em causa, considerando especialmente o disposto no artigo 78.º, n.º 4, da Lei Geral Tributária).

13.1 Na resposta, a Requerente considera inequívoca a tempestividade do pedido de revisão oficiosa apresentado em 21.12.2012, porquanto foi apresentado no prazo no prazo de 4 meses previsto nos artigos 78.º, n.º 1 e n.º 2, da LGT.

13.2 Sem prejuízo, caso se considere não assistir fundamento para a revisão oficiosa dos atos de autoliquidação em apreço com fundamento em erro imputável aos serviços, nos termos do n.º 1 e n.º 2 do artigo 78.º da LGT, sustenta que se impõe a revisão oficiosa das autoliquidações de IRC referentes aos exercícios de 2009, 2010 e 2011, com fundamento em injustiça grave ou notória, nos termos do disposto no artigo 78.º, n.º 4, da LGT.

13.3 De harmonia com o citado preceito legal, considerando-se que não existe erro imputável aos serviços, pode haver lugar a revisão da matéria tributável, no prazo de 3 anos, com fundamento em injustiça grave ou notória, considerando-se, neste âmbito, como notória a injustiça ostensiva e inequívoca e como grave a injustiça resultante de tributação exagerada e desproporcionada (cf. artigo 78.º, n.º 4 e n.º 5, da LGT).

13.4 Afirma ser inequívoco que o pedido de revisão oficiosa em apreço, na parte correspondente à contestação da legalidade dos atos de autoliquidação de IRC referentes aos exercícios de 2009, 2010 e 2011, foi apresentado no prazo de 3 anos previsto no citado artigo 78.º, n.º 4, da LGT.

13.5 Por outro lado, conforme decorre do pedido de pronúncia arbitral, argumenta que é manifesta a injustiça grave e notória no caso em apreço porquanto a tributação autónoma conforme prevista no Código do IRC é materialmente inconstitucional por violação do princípio da tributação pelo lucro real, do princípio da capacidade contributiva enquanto expressão e corolário do princípio da igualdade e do princípio da proporcionalidade (cf. artigos 13.º, 18.º, 103.º, n.º 1 e 104.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa).

13.6 Pelo que se impõe a conclusão de que, no caso sub judice, se verifica uma situação de injustiça grave ou notória para efeitos do disposto no artigo 78.º, n.º 4, da LGT.

13.7 Assim, na sua opinião, é inequívoca a tempestividade do pedido de revisão oficiosa dos atos de autoliquidação de IRC referentes aos exercícios de 2009, 2010 e 2011, apresentado no prazo de 3 anos previsto no artigo 78.º, n.º 4, da LGT.

13.8 A Autoridade Tributária e Aduaneira pronunciou-se dizendo que o pedido de revisão oficiosa não foi formulado ao abrigo do n.º 4 do artigo 78.º da LGT pelo que, não tendo o pedido de pronúncia arbitral tal escopo, não pode agora o tribunal arbitral conhecer deste.

Reitera, novamente, que a resposta apresentada não abala a convicção manifestada de que o tribunal arbitral é materialmente incompetente para conhecer do pedido.

 

Nada mais tendo sido arguido ou requerido, cumpre, agora, proferir decisão.

 

II. FUNDAMENTAÇÃO

MATÉRIA DE FACTO

1. A Requerente submeteu as correspondentes declarações de rendimentos modelo 22 de IRC dos exercícios de 2008, 2009, 2010 e 2011, em 29/05/2009, 28/05/2010, 02/06/2011 e 28/05/2012, respetivamente.

2. Nessas declarações apresentou um valor total de tributações autónomas de €270.325,47, distribuído pelos exercícios seguintes:

Exercício

Tributação Autónoma

2008

€ 52.574,00

2009

€ 46.594.60

2010

€ 42.061,32

2011

€ 129.095,55

 

3. A Requerente pagou o imposto devido.

4. Em 21.12.2012, a Requerente requereu, ao abrigo do disposto no artigo 78.º, n.º 1, da LGT, um pedido de revisão oficiosa dos atos de autoliquidação daqueles exercícios.

5. Na data em que apresentou o pedido de constituição de tribunal arbitral, a 30 de agosto de 2013, a Requerente ainda não havia sido notificada da resposta da Autoridade Tributária e Aduaneira, tendo já decorrido quatro meses sobre a data de apresentação do pedido.

6. Em 19.11.2013, foi a Requerente notificada do ato de indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa.

A decisão da matéria dos factos provados baseou-se nos documentos juntos ao processo e na não oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira quanto a factos invocados pela Requerente.

 

Não há factos não provados com relevo para a decisão da causa.

 

Questões a apreciar:

a. Ponto prévio: do(s) ato(s) administrativo-tributário(s) objeto do processo arbitral;

b. Da exceção de incompetência material, da extemporaneidade do pedido e da “ilegalidade do pedido”;

c. Do Mérito:

 i. Da alegada inconstitucionalidade do artigo 88.º do CIRC e da violação de normas de direito comunitário;

ii. A título subsidiário, da dedutibilidade dos montantes pagos a título de tributação autónoma para efeitos de apuramento do lucro tributável.

 

 

a) Ponto prévio: do(s) ato(s) administrativo-tributário(s) objeto do processo arbitral

 

A primeira questão a analisar com vista à decisão sobre a competência do presente tribunal arbitral é a de saber qual é o acto administrativo-tributário que é objeto do processo arbitral, por ser dessa questão que decorre a da competência, ou incompetência, material do tribunal.

Do pedido formulado pela Requerente não decorre, de forma expressa, qual ou quais os atos que são objeto do presente processo arbitral. Refere-se apenas, no intróito do pedido de constituição do tribunal arbitral, que “[a Requerente] vem, na sequência da formação da presunção de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa dos atos de autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC), referentes aos exercícios de 2008, 2009, 2010 e 2011, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), 10.º, n.º 1, alínea a), todos do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT) e do artigo 102.º, n.º 1, alínea d) do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), requerer a constituição de tribunal arbitral coletivo (...)”. A Requerente não questiona diretamente a legalidade do acto de indeferimento tácito do pedido de revisão dos actos de autoliquidação de IRC de 2008, 2009, 2010 e 2011, nem questiona diretamente os referidos actos de autoliquidação. Por outro lado, o pedido final foi redigido nos seguintes termos: “(...) deve o presente pedido de pronúncia arbitral ser julgado procedente, por provado, e, em consequência, ser determinada a revisão das autoliquidações de IRC nos termos peticionados”, concluindo-se que o que a Requerente pretende, caso venha a ser-lhe dada razão, é que a AT seja condenada a proceder à revisão das autoliquidações de IRC nos termos peticionados.

Já na pendência do presente processo, foi proferida decisão expressa de indeferimento do pedido de revisão, passando o processo arbitral a ter como seu objeto imediato o acto de indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa, nos termos do artigo 70.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), aplicável subsidiariamente nos termos do art.º 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT.

Vejamos, agora, a questão da competência deste tribunal.

 

b. Da exceção de incompetência material, da extemporaneidade do pedido e da “ilegalidade do pedido”

 

A questão da competência já foi amplamente discutida no Acórdão do Tribunal Arbitral proferido no Proc. n.º 48/2012-T, de 6 de julho de 2012. Seguiremos o sentido e conclusões desta decisão.

 

Aí se refere que “a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é, em primeiro lugar, limitada às matérias indicadas no art. 2.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT). Numa segunda linha, a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é também limitada pelos termos em que AT se vinculou àquela jurisdição, e que estão concretizados na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, uma vez que o art. 4.º do RJAT estabelece que «a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos».

 

Em face desta segunda limitação da competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, a resolução da questão da competência depende essencialmente dos termos desta vinculação, já que, mesmo que se esteja perante uma situação enquadrável naquele art. 2.º do RJAT, se ela não estiver abrangida pela vinculação prevista na Portaria atrás referida, estará afastada a possibilidade de o litígio ser jurisdicionalmente decidido por este Tribunal Arbitral.

Na alínea a) do art. 2.º desta Portaria n.º 112-A/2011, excluem-se expressamente do âmbito da vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD as «pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário».

A referência expressa ao precedente «recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser interpretada como reportando-se aos casos em que tal recurso é obrigatório, através da reclamação graciosa, que é o meio administrativo indicado naqueles arts. 131.º a 133.º do CPPT, para cujos termos se remete.”

 

No que respeita, em concreto, aos actos de autoliquidação, nos termos do artigo 131.º, n.º 1, do CPPT, “Em caso de erro na autoliquidação, a impugnação será obrigatoriamente precedida de reclamação graciosa dirigida ao dirigente do órgão periférico regional da administração tributária, no prazo de 2 anos após a apresentação da declaração.” O n.º 3 acrescenta, contudo, que “Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, quando o seu fundamento for exclusivamente matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efectuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária, o prazo para a impugnação não depende de reclamação prévia, devendo a impugnação ser apresentada no prazo do n.º 1 do artigo 102”. Assim, a impugnação directa do acto de autoliquidação só pode fazer-se sem prévia reclamação graciosa nos casos em que tiver sido efetuada “de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária”, como resulta do preceituado no artigo 131.º, n.º 3, do CPPT. No caso em apreço, não se está perante uma situação deste tipo, não tendo sequer sido alegadas quaisquer orientações que a Administração Tributária e Aduaneira tivesse emitido com respeito à forma como as autoliquidações foram efetuadas, pelo que tem de concluir-se que a impugnação dos actos de autoliquidação estava dependente de prévia reclamação graciosa.

Assim, conclui-se nos mesmos termos do acórdão citado que “Não tendo havido prévia reclamação graciosa, a declaração direta da ilegalidade do ato de autoliquidação (isto é, sem ser consequência da ilegalidade do ato de indeferimento da revisão oficiosa) está afastada da competência deste Tribunal Arbitral, por a AT ter expressamente excluído tais pretensões do âmbito da sua vinculação à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD.”

 

Importa, porém, apreciar também a questão da competência deste tribunal arbitral para apreciar a legalidade do acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa.

 

Desde logo, é necessário esclarecer se a apreciação de actos de indeferimento de pedidos de revisão do acto tributário, previstos no art. 78.º da LGT, se inclui nas competências atribuídas aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD pelo art. 2.º do RJAT.

 

Seguimos, mais uma vez, o decidido no Acórdão do CAAD, de 23 de outubro de 2012, Proc. n.º 73/2012-T:

Na verdade, neste artigo 2.º não se faz qualquer referência expressa a estes atos, ao contrário do que sucede com a autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, que refere os «pedidos de revisão de atos tributários» e «os atos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de atos de liquidação». No entanto, a fórmula «declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta», utilizada na alínea a) do n.º 1 do art. 2.º do RJAT, numa mera interpretação declarativa, não restringe o âmbito da jurisdição arbitral aos casos em que é impugnado diretamente um ato de um daqueles tipos. Na verdade, a ilegalidade de atos de liquidação pode ser declarada jurisdicionalmente como corolário da ilegalidade de um ato de segundo grau que confirme um ato de liquidação, incorporando a sua ilegalidade. A inclusão nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD dos casos em que a declaração de ilegalidade dos actos aí indicados é efetuada através da declaração de ilegalidade de atos de segundo grau, que são o objeto imediato da pretensão impugnatória, resulta com segurança da referência que naquela norma é feita aos atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta, que expressamente se referem como incluídos entre as competências dos tribunais arbitrais. Com efeito, relativamente a estes actos é imposta, como regra, a reclamação graciosa necessária, nos arts. 131.º a 133.º do CPPT, pelo que, nestes casos, o objeto imediato do processo impugnatório é, em regra, o ato de segundo grau que aprecia a legalidade do ato de liquidação, ato aquele que, se o confirma, tem de ser anulado para se obter a declaração de ilegalidade do ato de liquidação. A referência que na alínea a) do n.º 1 do art. 10.º do RJAT se faz ao n.º 2 do art. 102.º do CPPT, em que se prevê a impugnação de atos de indeferimento de reclamações graciosas, desfaz quaisquer dúvidas de que se abrangem nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD os casos em que a declaração de ilegalidade dos atos referidos na alínea a) daquele art. 2.º do RJAT tem de ser obtida na sequência da declaração da ilegalidade de atos de segundo grau. Aliás, foi precisamente neste sentido que a AT, através da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, interpretou estas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, ao afastar do âmbito dessas competências as «pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», o que tem como alcance restringir a sua vinculação os casos em que esse recurso à via administrativa foi utilizado.

Obtida a conclusão de que a fórmula utilizada na alínea a) do n.º 1 do art. 2.º do RJAT não exclui os casos em que a declaração de ilegalidade resulta da ilegalidade de um ato de segundo grau, ela abrangerá também os casos em que o ato de segundo grau é o de indeferimento de pedido de revisão do acto tributário, pois não se vê qualquer razão para restringir, tanto mais que, nos casos em que o pedido de revisão é efetuado no prazo da reclamação administrativa, ele deve ser equiparado a uma reclamação graciosa[16]. Conclui-se, assim, que não há obstáculo a que a declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação seja obtida, em processo arbitral, através da declaração de ilegalidade de atos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa.

Passar-se-á a analisar a questão de saber se, em relação a pretensões de declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação através da declaração de ilegalidade de atos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa, é exigível a reclamação graciosa prévia, pela alínea a) do art. 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março. Como já se referiu, a referência feita nesta norma ao «recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário» deve interpretar-se como reportando-se apenas aos casos em que tal recurso, através da reclamação graciosa, é imposto por aquelas normas do CPPT. Nos casos em que é formulado um pedido de revisão oficiosa de ato de liquidação é proporcionada à AT, com este pedido, uma oportunidade de se pronunciar sobre o mérito da pretensão do sujeito passivo antes de este recorrer à via judicial, não sendo exigível que, cumulativamente com a possibilidade de apreciação administrativa no âmbito desse procedimento de revisão oficiosa, se exija uma nova apreciação administrativa através de reclamação graciosa[17].

Para além disso, se hipoteticamente se pretendesse naquela Portaria, sem justificação plausível, afastar a jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD nos casos em que é formulado um pedido de revisão oficiosa sem prévia reclamação graciosa (criando, assim, uma nova situação de reclamação graciosa necessária privativa desta jurisdição arbitral), não se compreenderia a referência expressa que na alínea a) do art. 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 é feita aos «termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», pois essa hipotética nova situação de reclamação graciosa necessária não seria exigida «nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário». Conclui-se assim, que a falta de reclamação graciosa não é obstáculo à apreciação pelos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD de pretensões de declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação que seja corolário da ilegalidade de atos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa.”

Mas a Autoridade Tributária e Aduaneira defende também que está afastada da jurisdição deste Tribunal Arbitral, por não estar abrangida pelo art. 2.º, n.º 1, do RJAT, a apreciação de atos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa que não comportam a apreciação da legalidade de atos de liquidação. Trata-se de uma questão diferente das atrás abordadas, que se coloca depois de já se ter concluído que a declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação pode ser obtida, em processo arbitral, através da declaração de ilegalidade de atos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa e que, nestes casos, não é exigida prévia reclamação graciosa.

A questão é, agora, a de saber se se inclui nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD declarar a ilegalidade de atos de autoliquidação quando essa ilegalidade não foi apreciada pelo ato que indeferiu o pedido de revisão oficiosa. No art. 2.º do RJAT, em que se define a «competência dos tribunais arbitrais», não se inclui expressamente a apreciação de pretensões de declaração de ilegalidade de atos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa de atos tributários, pois apenas se indica a competência dos tribunais arbitrais para «a declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta» e «a declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria colectável e de atos de fixação de valores patrimoniais».

Porém, o facto de a alínea a) do n.º 1 do art. 10.º do RJAT fazer referência aos n.ºs 1 e 2 do art. 102.º do CPPT, em que se indicam os vários tipos de atos que dão origem ao prazo de impugnação judicial, inclusivamente a reclamação graciosa, deixa perceber que serão abrangidos no âmbito da jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD todos os tipos de atos passíveis de serem impugnados através processo de impugnação judicial, abrangidos por aqueles n.ºs 1 e 2, desde que tenham por objecto um ato de um dos tipos indicados naquele art. 2.º do RJAT. Aliás, esta interpretação no sentido da identidade dos campos de aplicação do processo de impugnação judicial e do processo arbitral é a que está em sintonia com a autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, concedida pelo art. 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, em que se revela a intenção de o processo arbitral tributário constitua «um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária» (n.º 2).

Por outro lado, este mesmo argumento que se extrai da autorização legislativa conduz à conclusão de que estará afastada a possibilidade de utilização do processo arbitral quando no processo judicial tributário não for utilizável a impugnação judicial ou a ação para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo. Na verdade, sendo este o sentido da referida lei de autorização legislativa e inserindo-se na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República legislar sobre o «sistema fiscal», inclusivamente as «garantias dos contribuintes» [arts. 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP] (4), e sobre a «organização e competência dos tribunais» [art. 165.º, n.º 1, alínea p), da CRP], não pode o referido art. 2.º do RJAT, sob pena de inconstitucionalidade, por falta de cobertura na lei de autorização legislativa que limita o poder do Governo (art. 112.º, n.º 2, da CRP), ser interpretado como atribuindo aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD competência para a apreciação da legalidade de outros tipos de atos, para cuja impugnação não são adequados o processo de impugnação judicial e a ação para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo. Assim, para resolver a questão prévia suscitada apela AT de saber se o art. 2.º, n.º 1, do RJAT, abrange a apreciação do ato de indeferimento de pedido de revisão oficiosa no segmento relativo aos atos de autoliquidação cuja legalidade não é apreciada, torna-se necessário apurar se a legalidade desse ato de indeferimento podia ou não ser apreciada, num tribunal tributário, através de processo de impugnação judicial ou ação para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo.

O ato de indeferimento de um pedido de revisão oficiosa do ato tributário constitui um ato administrativo, à face da definição fornecida pelo art. 120.º do CPA [subsidiariamente aplicável em matéria tributária, por força do disposto no art. 2.º, alínea d), da Lei Geral Tributária, 2.º, alínea d), do CPPT, e 29.º, n.º 1, alínea d), do RJAT], pois constitui uma decisão de um órgão da Administração que, ao abrigo de normas de direito público, visou produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta. Por outro lado, é também inquestionável que se trata de um ato em matéria tributária pois é feita nele a aplicação de normas de direito tributário. Assim, aquele ato de indeferimento do pedido de revisão oficiosa constitui um «ato administrativo em matéria tributária». Das alíneas d) e p) do n.º 1 e do n.º 2 do art. 97.º do CPPT infere-se a regra de a impugnação de atos administrativos em matéria tributária ser feita, no processo judicial tributário, através de impugnação judicial ou ação administrativa especial conforme esses actos comportem ou não comportem a apreciação da legalidade de atos administrativos de liquidação – sendo que, no conceito de «liquidação», em sentido lato, englobam-se todos os actos que se reconduzem a aplicação de uma taxa a uma determinada matéria coletável e, por isso, também os atos de retenção na fonte, de autoliquidação e de pagamento por conta.

À face deste critério de repartição dos campos de aplicação do processo de impugnação judicial e da ação administrativa especial, os atos proferidos em procedimentos de revisão oficiosa de atos de autoliquidação apenas poderão ser impugnados através de processo de impugnação judicial quando comportem a apreciação da legalidade destes mesmos atos de autoliquidação. Se o ato de indeferimento do pedido de revisão oficiosa de ato de retenção na fonte não comportar a apreciação da legalidade deste será aplicável a ação administrativa especial[18].

Esta constatação de que há sempre um meio impugnatório processual adequado para impugnar contenciosamente o ato de indeferimento do pedido de revisão oficiosa de ato de autoliquidação, conduz, desde logo, à conclusão de que não se está perante uma situação em que no processo judicial tributário pudesse ser utilizada a ação para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo, pois a sua aplicação no contencioso tributário tem natureza residual, uma vez que essas ações «apenas podem ser propostas sempre que esse meio processual for o mais adequado para assegurar uma tutela plena, eficaz e efectiva do direito ou interesse legalmente protegido» (art. 145.º, n.º 3, do CPPT). Uma outra conclusão que permite a referida delimitação dos campos de aplicação do processo de impugnação judicial e da ação administrativa especial é a de que, restringindo-se a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD ao campo de aplicação do processo de impugnação judicial, apenas se inserem nesta competência os pedidos de declaração de ilegalidade de atos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa de atos de autoliquidação que comportem a apreciação da legalidade destes atos.

A preocupação legislativa em afastar das competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD a apreciação da legalidade de actos administrativos que não comportem a apreciação da legalidade de atos de liquidação, para além de resultar, desde logo, da directriz genérica de criação de um meio alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo, resulta com clareza da alínea a) do n.º 4 do art. 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril, em que se indicam entre os objetos possíveis do processo arbitral tributário «os atos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de atos de liquidação», pois esta especificação apenas se pode justificar por uma intenção legislativa no sentido de excluir dos objetos possíveis do processo arbitral a apreciação da legalidade dos atos que não comportem a apreciação da legalidade de atos de liquidação.

Por isso, a solução da questão da competência deste Tribunal Arbitral por referência ao conteúdo do ato de indeferimento do pedido de revisão oficiosa depende da análise do ato de indeferimento do pedido de revisão oficiosa.”

 

Resulta da fundamentação do acto de indeferimento do pedido de revisão em causa que o indeferimento se baseou na inadmissibilidade da revisão oficiosa, por intempestividade.

 

É inequívoco que na parte decisória do despacho de indeferimento do pedido de revisão oficiosa apenas se aprecia a questão da admissibilidade do pedido de revisão oficiosa:

- O Parecer que antecede a decisão da Administração Tributária e Aduaneira  termina com a seguinte «proposta de decisão»: “Pelas razões atrás expostas, deve o presente pedido ser rejeitado liminarmente por intempestividade relativamente aos exercícios de 2008 e 2009 e indeferido, relativamente aos restantes exercícios em causa, por, pelos motivos expostos, não poder proceder a tese defendida pela Requerente.”

- Decorrido o prazo para exercício do direito de audição, foi proferida nova “Conclusão e Proposta”, onde se refere que “Em face do exposto, propõe-se que o citado projeto de decisão se convole em definitivo, conforme ali projetado.”

- O despacho que recaiu sobre esta última proposta tem o teor «Converto em definitivo a decisão de indeferimento, com os fundamentos invocados», pelo que não pode haver dúvida de que o que se decidiu foi não estarem reunidos os requisitos para proceder à revisão oficiosa.

 

Mas será que, mesmo assim, o acto de indeferimento expresso do pedido de revisão, quanto aos exercícios de 2008 e 2009, não incluiu a apreciação da legalidade dos mesmos?

 

Na informação elaborada pela Administração Tributária e Aduaneira e que integra a decisão final, em particular na Parte III – Apreciação, a Administração Tributária e Aduaneira analisa a questão da tempestividade do pedido, distinguindo entre os exercícios de 2008 e 2009, por um lado, e de 2010 e 2011, por outro, concluindo que, quanto aos primeiros, o pedido não é tempestivo e que, quanto aos segundos o é. Na Parte IV – Parecer, a Administração Tributária e Aduaneira aprecia então as “duas alegadas ordens de ilegalidade que fundamentam os pedidos (...). A alegada inconstitucionalidade, por violação do princípio da tributação pelo lucro real – e violação do Direito Comunitário por parte da Tributação Autónoma estatuída pelo disposto no (agora) artigo 88.º do CIRC, o que determinará a restituição dos montantes pagos a título de tributação autónoma e, subsidiariamente, A elegibilidade da tributação autónoma apurada conforme o disposto no artigo 88.º, como custo fiscal do exercício, nos termos do CIRC, em especial do disposto nos seus artigos 23.º e 45.º, para efeitos de apuramento do lucro tributável definido no artigo 17.º também do CIRC.

 

De seguida, a Administração Tributária e Aduaneira fundamenta a sua posição de que a ilegalidade e inconstitucionalidade de normas dimanadas de órgãos de soberania não são sindicáveis pela Administração Tributária e Aduaneira, à qual cabe apenas a aplicação da lei existente, estando-lhe vedada a sua não aplicação quando verificados factos que cabem na abrangência da mesma, bem como a posição de que a tributação autónoma calculada nos termos do artigo 88.º do CIRC não pode configurar um gasto fiscal para efeitos de cálculo do lucro tributável do exercício.

 

Ao longo da apreciação que faz acerca da legalidade da tributação autónoma incluída nos actos de autoliquidação, a Administração Tributária e Aduaneira não distingue entre os actos que constituem objeto do pedido de revisão oficiosa, não sendo possível, portanto, dizer que a análise só se debruçou sobre os actos referentes aos exercícios de 2010 e 2011 ou, de outra forma, que não se debruçou sobre a legalidade dos actos referentes aos exercícios de 2008 e 2009. Esta conclusão é coadjuvada pelos pontos 60 e 61 da referida apreciação, em que a Administração Tributária e Aduaneira refere o seguinte: “60. Por último, ainda no tocante ao exercício económico de 2008, refira-se, conforme a própria recorrente assinala, ter sido apresentado previamente ao presente, um pedido de revisão oficiosa com fundamento na aplicabilidade das taxas de tributação autónoma introduzidas pela Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro de 2008, apenas a partir de 06 de dezembro do mesmo. 61. Existindo já um Processo de Revisão Oficiosa, o qual corre termos nesta Direção de Serviços sob o n.º 2012 …, em que se discute a questão das taxas de tributação autónoma a aplicar ao exercício de 2008, deverá tal matéria ser aferida em sede do mesmo, não cabendo aqui qualquer pronúncia a respeito.” Destes pontos se conclui que a Administração Tributária e Aduaneira incluiu todos os exercícios em causa no parecer sobre a legalidade dos actos de autoliquidação (incluindo os referentes aos exercícios de 2008 e 2009), caso contrário não teria tido necessidade de, no final, salvaguardar o exercício de 2008.

 

Pode dizer-se, por conseguinte, que se está perante um acto administrativo que comporta (porque a inclui) a apreciação da legalidade de um acto de autoliquidação, para cuja impugnação em processo judicial tributário é adequado o processo de impugnação judicial. Consequentemente, não se está perante um caso excluído das competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD.

 

Temos, assim, que, quanto à alegada incompetência deste tribunal arbitral para conhecer da legalidade do pedido de revisão oficiosa quanto aos exercícios de 2008 e 2009, a mesma não se verifica em função dos argumentos supra expostos. Assim sendo, é também certo que, no que respeita ao exercicio de 2008, o mesmo foi objeto de outro processo arbitral no âmbito do qual a Administração Tributária e Aduaneira já veio informar (sem oposição da Requerente) ter deferido o pedido formulado pela Requerente. Assim, no presente processo, importa apenas analisar a questão relativamente aos exercícios de 2009, 2010 e 2011.

 

Quanto à questão da extemporaneidade do pedido de revisão oficiosa relativamente ao exercício de 2009, tem razão a Autoridade Tributária e Aduaneira face ao prazo previsto na primeira parte do n.º 1 do artigo 78.º, mas não quanto ao prazo de quatro anos previsto na 2.ª parte da mesma disposição. Caberá, assim, aferir se este último prazo é aplicável ao caso.

 

A revisão ordinária do ato tributário pode ser oficiosa (por iniciativa da Autoridade Tributária e Aduaneira) ou a pedido do contribuinte. Tal decorre expressamente da letra do n.º 1 do artigo 78.º:

(i) “A revisão dos atos tributários pela entidade que os praticou pode ser efetuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade,

ou,

(ii) por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços.”

Do exposto, não pode resultar que o sujeito passivo apenas possa solicitar a revisão do ato tributário no prazo da reclamação graciosa. Com efeito, uma interpretação literal do n.º 7 do artigo 78.º, aliada aos princípios de justiça, legalidade e igualdade que fundamentam o dever de revisão dos atos tributário, permite-nos concluir que o contribuinte pode, no prazo de quatro anos, requerer à Autoridade Tributária e Aduaneira que oficiosamente proceda à revisão do ato tributário. Tal resulta expressamente do n.º 7 do artigo 78.º ao determinar a interrupção do prazo de revisão oficiosa (nosso sublinhado) quando o pedido de revisão é feito pelo contribuinte.

Neste sentido, tem sido o entendimento da nossa jurisprudência: “Mesmo quando oficiosa, a revisão do ato tributário pode ser impulsionada por pedido dos contribuintes, tendo a administração tributária o dever de procede a ela, caso se verifiquem os respetivos pressupostos legais. Perante um pedido do contribuinte, “não se vê como possa a administração demitir-se legalmente de tomar a iniciativa de revisão do ato quando demandada para o fazer através do pedido dos interessados já que tem o dever legal de decidir os pedidos destes, no domínio das suas atribuições” (Acórdão do STA, de 20-03-2012, Proc. n.º 26580, disponível em www.dgsi.pt).

 

Dir-se-á: ainda que assim seja, não é aplicável ao caso o disposto na segunda parte do n.º 1 do artigo 78.º porque o prazo de quatro anos é apenas aplicável quando se trate de “erro imputável aos serviços”, o que manifestamente não é o caso, por se tratar de uma autoliquidação. Não procede este argumento.

Com efeito, devemos, quanto ao conceito de “erro imputável aos serviços”, atender à ficção legal criada pelo n.º 2 do artigo 78.º, sem prejuízo do dever de reclamação ou impugnação pelo contribuinte, “considera-se imputável aos serviços, para efeitos do n.º 1, o erro na autoliquidação”. Com esta ficção, o conceito de erro abrange não só os erros (de facto e de direito) praticados pela Autoridade Tributária e Aduaneira mas também os erros do contribuinte.

Também, neste sentido, se pronunciou o Acórdão do STA, de 28/11/2007, Proc. n.º 532/07: “ (...) Por outro lado, esta ficção de que todos os erros de autoliquidação são imputáveis à administração tributária vale apenas “para efeitos do número anterior “ que estabelece as condições de admissibilidade da revisão oficiosa, fazendo depender a revisão por iniciativa da administração tributária da existência de erro imputável aos serviços. Isto é, esta ficção não vale para outros efeitos, designadamente para determinar o direito a juros indemnizatórios. Por isso, é de concluir que o objetivo que se teve em vista com o n.º 2, foi alargar as situações em que é admissível a revisão em casos de autoliquidação, permitindo-a sempre (e não apenas nos casos em que tivesse havido correção dos elementos evidenciados pela declaração, como sucedia no regime do artigo 94.º, n.º 2, do CPT), inclusivamente quando o erro é imputável ao contribuinte, que passou a ficcionar-se como imputável à administração tributária.”[19]

Mais, conforme se escreveu nas conclusões do Acórdão do STA, de 28/11/2007, Proc. n.º 532/07: “1- O alcance do n° 2 do art° 78° da LGT, ao estabelecer que, para efeitos de admissibilidade de revisão do ato tributário, se consideram imputáveis à administração tributária os erros na autoliquidação, foi o de alargar as possibilidades de revisão nestas situações de autoliquidação, em relação às que existiam no domínio do CPT, solução esta que está em sintonia com a directriz primordial da autorização legislativa em que se baseou o Governo para aprovar a LGT, que era a de reforço das garantias dos contribuintes. II - Aquele art° 78°, n° 2, seria organicamente inconstitucional, por ser incompatível com aquele sentido da autorização legislativa, se fosse interpretado por forma que se reconduza a que a revisão oficiosa, em casos de autoliquidação, só fosse possível quando o contribuinte tivesse previamente apresentado reclamação graciosa e impugnação judicial da autoliquidação.

 

Assim, o pedido de revisão oficiosa do período de 2009 foi apresentado no prazo de quatro anos previsto na 2.ª parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, pelo que improcede a exceção de intempestividade.

Por último, a Autoridade Tributária e Aduaneira suscitou ainda a incompetência material do tribunal arbitral uma vez que, nos termos em que se encontra formulado, o pedido de pronúncia arbitral configura um pedido de condenação à prática de ato devido, que se encontra fora do âmbito material de competência dos tribunais arbitrais previsto no artigo 2.º do RJAT.

Ora, da análise do pedido de pronúncia arbitral não subsistem dúvidas de que a Requerente pretende a anulação parcial dos atos de autoliquidação do IRC de 2008, 2009, 2010 e 2011, com os fundamentos supra descritos.

Como refere JORGE LOPES DE SOUSA, “(…) sendo o fim essencial do processo de impugnação judicial a eliminação jurídica de um ato em matéria tributária, desde que o impugnante o identifique e identifique os vícios que entende o afetam, poderá entender-se que há um pedido implícito de anulação ou declaração de nulidade ou inexistência daquele ato. O essencial será que seja percetível a intenção do impugnante.[20]

Assim, improcede também a exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral com o fundamento de o pedido de pronúncia arbitral configurar um pedido de condenação à prática de ato devido.

 

c. Do Mérito:

I. Das alegadas inconstitucionalidade do artigo 88.º do CIRC e violação de normas de direito comunitário

 

No pedido apresentado, a Requerente alega que as tributações autónomas violam os princípios constitucionais da tributação pelo lucro real, da capacidade contributiva e da proporcionalidade, conforme previstos nos artigos 13.º, 18.º, 103.º, n.º 1 e 104.º, n.º 2, todos da CRP, bem como das regras comunitárias sobre o sistema comum do Imposto sobre o Valor Acrescentado.

Na resposta, a Administração Tributária e Aduaneira considera que está vinculada à aplicação das normas vigentes e ao princípio da legalidade, logo, não lhe compete avaliar da ilegalidade da norma mas apenas da sua aplicação ao caso concreto.

Ora, a aferição do exato sentido desta vinculação da Administração Tributária e Aduaneira é fundamental, atendendo a que o ato tributário imediato que sustenta o presente processo arbitral é o pedido de revisão oficiosa no qual, como referido supra, a ora Requerente solicita à Administração Tributária e Aduaneira que anule o ato tributário, por força de um erro de direito na sua formação.

Ora, constituindo este erro de direito a alegada inconstitucionalidade ou até a violação de princípios de Direito Comunitário pela norma que sustenta o ato tributário, é fundamental aferir se, com este fundamento, a Administração Tributária e Aduaneira dispunha de poderes para revogar um ato tributário.

Conforme se diz no Acórdão do CAAD proferido no Proc. n.º 188/2013-T, “é pacificamente reconhecido [que o pedido de revisão oficiosa] é um meio de autocontrole da Administração Tributária que permite que, dentro dos prazos ali referidos, aquela corrija um erro seu, de facto ou de direito.

Por meio de um trabalho hermenêutico paulatinamente desenvolvido, tendo em conta o dever de objetividade e legalidade que obriga a Administração em geral, e a Tributária em especial, e com apoio em alguns segmentos normativos do nosso ordenamento jurídico-tributário, chegou-se ao entendimento, hoje incontestado, de que o exercício do poder-dever da Administração Tributária rever atos ilegais pode ser desencadeado pelo contribuinte, e que a subsequente decisão (ou violação do dever de decidir) da Administração Tributária, são contenciosamente sindicáveis.

Contudo, entendeu-se igualmente que a abertura da via contenciosa desta forma operada, não é total nem incondicional, mas está limitada aos próprios condicionalismos legalmente impostos ao poder de revisão de atos tributários pela Administração. Assim, e por exemplo, tendo em conta a utilização da expressão «erro imputável aos serviços», tem-se entendido que a Administração Tributária pode proceder à revisão oficiosa, nos termos do artigo 78.º/1 da LGT, nos casos de erro sobre os pressupostos de facto e de direito, mas já não vícios formais ou procedimentais.”

Consequentemente, na fase contenciosa subsequente a um pedido de revisão oficiosa, apenas se poderá conhecer dos erros sobre os pressupostos de facto e de direito do acto tributário sob revisão, mas já não dos respectivos vícios formais ou procedimentais. Ou seja, não sendo admissível o conhecimento pela Autoridade Tributária e Aduaneira, na sequência de um pedido de revisão oficiosa ao abrigo do artigo 78.º, n.º 1, da LGT, de vícios formais ou procedimentais, não é, igualmente admissível ao Tribunal conhecer de tais vícios.

 

Ou seja, a fase contenciosa que se segue a um pedido de revisão oficiosa não abrange, à semelhança da reclamação graciosa, qualquer ilegalidade, mas apenas os vícios de facto ou de direito de que a Autoridade Tributária e Aduaneira possa conhecer.

A Autoridade Tributária e Aduaneira está sujeita ao princípio da legalidade, nos termos do artigo 55.º da LGT e artigo 266.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa. Neste sentido, tem sido pacificamente entendido na doutrina e jurisprudência que “a menos que esteja em causa o desrespeito por normas constitucionais diretamente aplicáveis e vinculativas, como as que se referem a direitos, liberdades e garantias (cf. Artigo 18.º n.º 1 da CRP (Diz o artigo 18.º da CRP no seu n.º 1: «Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.»), a AT não pode recusar-se a aplicar a norma com fundamento em inconstitucionalidade (com interesse sobre a questão, vejam-se os pareceres do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República referidos na Coletânea dos Pareceres da Procuradoria-Geral da República, volume V, pontos 10, 3, 3.2 – respetivamente, com as epígrafes «Fiscalização da constitucionalidade», «Fiscalização sucessiva» e «(In)aplicação de norma inconstitucional (poderes e deveres da Administração Pública)» –, cuja doutrina seguimos.). É que a Administração em geral está sujeita ao princípio da legalidade, consagrado constitucionalmente (art. 266.º, n.º 2, da CRP (Diz o art. 266.º CRP: «1. A Administração Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.

Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem atuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé».) e a AT está-lo também por força do disposto no art. 55.º da LGT.

A nosso ver, a AT deverá aguardar a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, a emitir pelo Tribunal Constitucional (TC), nos termos do art. 281.º da CRP.” (Acórdão do STA, de12/10/2011, Proc. n.º 860/10).

Na mesma senda, diz VIEIRA DE ANDRADE que “Este conflito [entre a constitucionalidade e o princípio da legalidade] não pode resolver-se através da prevalência automática do direito constitucional sobre o direito legal. Não é disso que se trata, porque o que está em causa é não a constitucionalidade da lei, mas o juízo que sobre essa constitucionalidade possam fazer os órgãos administrativos. Por um lado, a Administração não é um órgão de fiscalização da constitucionalidade; por outro lado, a submissão da Administração à lei não visa apenas a proteção dos direitos dos particulares, mas também a defesa e prossecução de interesses públicos […]. A concessão ao poder administrativo de ilimitados poderes para controlo da inconstitucionalidade das leis a aplicar levaria a uma anarquia administrativa, inverteria a relação Lei-Administração e atentaria frontalmente contra o princípio da divisão dos poderes, tal como está consagrado na nossa Constituição” (Direito Constitucional, Almedina, 1977, pág. 270).

O mesmo raciocínio é aplicável, mutatis mutandis, à alegada violação das normas comunitárias.

Assim, devem ser excluídas do objeto do presente processo as questões de constitucionalidade e de violação do direito comunitário suscitadas pela Requerente.

 

II. A título subsidiário, da dedutibilidade dos montantes pagos a título de tributação autónoma para efeitos de apuramento do lucro tributável

 

A título subsidiário, a Requerente advoga que “sempre os montantes pagos pelo sujeito passivo a título de tributação autónoma deverão ser considerados como encargos dedutíveis para efeitos de apuramento do lucro tributável”, na medida em que, no seu entender, “configurando a tributação autónoma um imposto indireto, porquanto, (...), é um tributo que incide sobre a despesa e não sobre o rendimento, o encargo incorrido pelo sujeito passivo com a tributação autónoma não pode deixar de ser considerado dedutível para efeitos de determinação do lucro tributável.”

 

Assim, deverá este tribunal decidir se as quantias pagas no quadro das tributações autónomas por um sujeito passivo de IRC devem ser consideradas um encargo dedutível para efeitos do apuramento do lucro tributável sobre o qual incide aquele imposto.

A esse respeito, entende a Requerente que “consubstanciando a tributação autónoma um imposto sobre a despesa e, desse modo, um imposto indireto, o encargo suportado pelo sujeito passivo com a tributação autónoma não pode deixar de ser considerado dedutível, porquanto consubstancia efetivamente um encargo para o sujeito passivo à semelhança, aliás, dos encargos sobre que incide” e que “deste modo, configurando a tributação autónoma um imposto sobre a despesa, e não sobre o rendimento, os encargos suportados com aquela não são subsumíveis ao citado artigo 45.º, n.º 1, alínea a) do Código do IRC.”

 

A Requerente sustenta ainda que “a tributação autónoma configura, à semelhança de qualquer imposto indireto - geral ou especial - um gasto aceite para efeitos fiscais nos termos dos artigos 17.º, n.º 1 do artigo 23.º e alínea a) n.º 1 do artigo 45.º do Código do IRC”, configurando um “encargo fiscalmente dedutível”, “desde logo porque as despesas subjacentes - despesas de representação, despesas com viaturas automóveis e despesas com deslocações e ajudas de custo - são fiscalmente dedutíveis.”

 

Vejamos, então.

 

A dúvida acerca da dedutibilidade das tributações autónomas no âmbito da anterior redação do Código do IRC surge em consequência da margem interpretativa criada pela conjugação de duas normas: por um lado, o princípio geral de dedutibilidade de encargos comprovadamente indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nomeadamente, os de natureza fiscal e parafiscal, que resultava do artigo 23.º, n.º 1, alínea f), do Código do IRC. Por outro lado, a regra de não dedutibilidade prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 45.º do mesmo Código, nos termos da qual não eram dedutíveis para efeitos de determinação do lucro tributável o IRC e quaisquer outros impostos que directa ou indirectamente incidam sobre os lucros.

 

Em concreto, as dúvidas surgem porque a norma prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 45.º do Código do IRC não menciona expressamente as tributações autónomas e porque o princípio geral em sede de IRC era o da dedutibilidade de encargos indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora. Assim, face a um princípio geral de dedutibilidade de encargos e à ausência de referência expressa às tributações autónomas, a dúvida surge sobre se o legislador quis incluí-las na exceção de não dedutibilidade prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 45.º.

 

As dúvidas surgidas a propósito da dedutibilidade das tributações autónomas em sede de IRC são, portanto, perfeitamente justificáveis face à incerteza criada pelo elemento literal das normas enunciadas. Assim, será necessário aprofundar a análise além do seu elemento literal, buscando nas razões de ser do regime das tributações autónomas a resposta às dúvidas criadas.

 

As tributações autónomas foram introduzidas no ordenamento jurídico português através do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 192/90, de 9 de Junho, que previu a tributação autónoma, à taxa de 10%, das despesas confidenciais ou não documentadas.

 

Mais tarde, as tributações autónomas foram incluídas no Código do IRC, através da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, que veio integrar a previsão das tributações autónomas no diploma que regula o IRC.

 

Desde então o regime das tributações autónomas, inserido no Código do IRC, tem vindo a passar por um processo de expansão progressiva.

 

Atualmente, são vários os tipos de tributações autónomas que encontramos no artigo 88.º do Código do IRC:

i) Tributação autónoma sobre despesas não documentadas;

ii) Tributação autónoma sobre encargos com viaturas;

iii) Tributação autónoma sobre despesas de representação;

iv) Tributação autónoma sobre importâncias pagas ou devidas, a qualquer título, a pessoas singulares ou coletivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável;

v) Tributação autónoma sobre despesas com ajudas de custo e com compensações pela deslocação de trabalhadores em viatura própria ao serviço da entidade patronal;

vi)  Tributação autónoma sobre os lucros distribuídos por entidades sujeitas a IRC a sujeitos passivos que beneficiam de isenção total ou parcial;

vii) Tributação autónoma sobre gastos ou encargos relativos a indemnizações ou quaisquer compensações devidas não relacionadas com a concretização de objectivos de produtividade previamente definidos na relação contratual, quando se verifique a cessação de funções de gestor, administrador ou gerente, bem como sobre os gastos relativos à parte que exceda o valor das remunerações que seriam auferidas pelo exercício daqueles cargos até ao final do contrato, quando se trate de rescisão de um contrato antes do termo;

viii) Tributação autónoma sobre gastos ou encargos relativos a bónus e outras remunerações variáveis pagas a gestores, administradores ou gerentes.

 

Da análise deste elenco podemos retirar duas ilações de princípio:

(i) A primeira é a de que as tributações autónomas incidem quer sobre encargos dedutíveis, quer sobre encargos não dedutíveis;

(ii) A segunda é a de que as tributações autónomas não servem apenas um objetivo, mas sim dois:

- Umas visam evitar a erosão da base tributável em sede de IRC, fazendo incidir tributação sobre encargos que podem ser deduzidos pelos sujeitos passivos de IRC, mas que, sendo-o, se transformam num agravamento da tributação, pretendendo, portanto, servir como desincentivo à despesa com tais encargos;

- Outras visam penalizar comportamentos presuntivamente evasivos ou fraudulentos.

 

A primeira ilação leva-nos, de imediato, a uma constatação fundamental: a de que, se se admitisse a dedutibilidade das tributações autónomas sobre despesas não dedutíveis, se estaria a admitir a dedutibilidade de um encargo não indispensável para realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora. Com efeito, se o gasto sobre o qual incide a tributação autónoma não é, em si mesmo, dedutível, é porque (para o sistema de IRC) o mesmo não é indispensável para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora. Ora, se assim é, a tributação autónoma que sobre ele incide também o não será, pelo que se estaria a admitir a dedução de um encargo em frontal desacordo com o princípio geral de que os encargos só são dedutíveis em sede de IRC se lhes estiver inerente aquela indispensabilidade para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora. Assim, tal como não são dedutíveis os tributos incidentes sobre factos não relacionados com a realização de rendimentos sujeitos a IRC, também as tributações autónomas que incidem sobre despesas não dedutíveis terão, forçosamente, que estar excluídas de tributação sob pena de se admitir uma evidente contradição sistemática no Código do IRC, o que não é de aceitar face aos princípios interpretativos consagrados no artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil (que a LGT manda aplicar nos termos do no n.º 1 do seu artigo 11.º), os quais determinam que o intérprete deve presumir que o legislador “soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” e “que consagrou as soluções mais acertadas”.

 

Perguntar-se-á então: e quanto às tributações autónomas que incidem sobre despesas dedutíveis? Não deverá aí concluir-se que, sendo dedutível a despesa, deverá ser dedutível a tributação autónoma, ela própria, como encargo  suportado por força da realização de tal despesa, seguindo o acessório o caminho do principal (acessorium principale sequitur)?

 

Aqui, a questão interpretativa que importa dilucidar prende-se com a definição do conteúdo adequado da expressão linguística “IRC e quaisquer outros impostos que direta ou indiretamente incidam sobre lucros” (consagrada na alínea a) do n.º 1 do artigo 45.º do Código do IRC), decidindo-se então se aí se devem considerar incluídas as tributações autónomas ou não.

A Requerente defende que, configurando a tributação autónoma um tributo que incide sobre a despesa e não sobre o rendimento, esta tributação não poderá ser considerada “IRC” para efeitos da exclusão da dedutibilidade prevista na alínea a) do n.º 1 do art. 45.º do Código do IRC.

 

É verdade que as tributações autónomas se aplicam quando há despesa realizada, mas será que, ainda assim, elas não servem um propósito coadjuvante do IRC stricto sensu, podendo então dizer-se que, ainda que operando de forma diferente, designadamente porque são apuradas de forma distinta, se integram no sistema global do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas? Por outras palavras: será que a tributação agravada de determinados tipos de despesas dedutíveis não é, ainda assim, uma forma indireta de tributar o rendimento dos sujeitos passivos que nelas incorrem, assim incorporando o objetivo geral que preside ao IRC e que o distingue enquanto imposto sobre os lucros? E ainda de outra forma: será que o regime de um imposto que se define como imposto sobre os lucros e onde, consequentemente, as despesas ou gastos desempenham um papel fundamental na delimitação da matéria tributável, não pode incluir em si mesmo tributações autónomas sobre determinados tipos de despesas que, contribuindo para a diminuição da base tributável são, além disso, de discutível empresarialidade?

 

Parece-nos que todas estas questões devem ser respondidas afirmativamente. Com efeito, além do caso das tributações autónomas que incidem sobre despesas não dedutíveis e cuja previsão se justifica enquanto mecanismo anti-evasão, também no caso das tributações autónomas que incidem sobre despesas dedutíveis está presente a vontade do legislador de impedir a erosão da base tributável através da realização de despesas que, embora não possam ser proibidas de todo pelo sistema do IRC porque, em alguns casos, poderão mesmo ser necessárias à realização do rendimento tributável e/ou à manutenção da fonte produtora, são despesas que partilham entre si um risco de não empresarialidade, isto é, um risco de não serem realizadas com fins empresariais, mas sim extra-empresariais ou privados. Nesses casos, o legislador opta, assim, por aceitar a sua dedutibilidade, mas onerando-a com uma tributação autónoma.

 

Na verdade, estamos, em ambos os casos, perante um mecanismo cujo objetivo último é o de contribuir para a “normalização” da tributação em sede de IRC, isto é, para o funcionamento deste imposto na sua forma mais pura e mais próxima das suas raízes de imposto sobre o lucro obtido pelas pessoas coletivas. Nesse sentido, as tributações autónomas não são mais do que mecanismos coadjuvantes do eixo central do IRC, que é o de tributar lucros permitindo a dedução das despesas em que os sujeitos passivos têm que incorrer com vista à realização dos rendimentos tributáveis.

 

Trata-se, assim, de não mais do que um mecanismo de tributação indireta do rendimento, que visa prevenir a perda de receita fiscal por evasão fiscal ou por confusão das esferas empresariais e privadas.

 

Em concreto no que se refere às tributações autónomas que incidem sobre despesas dedutíveis, as mesmas visam compensar, por essa via, a perda de receita fiscal que a realização e dedução de tais despesas ocasionaria na sua ausência. Assim, enquanto se permite que o sujeito passivo deduza a despesa, onera-se a sua dedução com a tributação autónoma reduzindo-se, assim, a receita fiscal perdida com a dedução da despesa e desincentivando-se a utilização futura do tipo de encargos que gerou a tributação autónoma.

 

Como refere o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 18/2011, a propósito dos encargos relacionados com viaturas: “[estes] referem-se a encargos dedutíveis como custos para efeitos de IRC, isto é, a encargos que comprovadamente foram indispensáveis à realização dos proveitos, à luz do que estabelece o artigo 23.º, n.º 1, do CIRC, sendo a tributação prevista nesses preceitos [atuais n.º 3 e 4 do art. 88.º do CIRC] explicada por uma intenção legislativa de incentivar as empresas a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afetem negativamente a receita fiscal”.

 

No mesmo sentido vão as palavras de Saldanha Sanches quando afirma que ”Neste tipo de tributação [autónoma], o legislador procura responder à questão reconhecidamente difícil do regime fiscal que se encontra na zona de interseção da esfera pessoal e da esfera empresarial, de modo a evitar remunerações em espécie mais atraentes por razões exclusivamente fiscais ou a distribuição oculta de lucros.” (cf. “Manual de Direito Fiscal”, 3ª Edição, Coimbra Editora, 2007, p. 406).

 

Face ao exposto, embora se reconheça que o regime das tributações autónomas constitui, no quadro do IRC, um regime especial quanto à forma de apuramento da tributação, isso não o afasta da sua natureza intrínseca de regime de tributação do rendimento das pessoas coletivas. É verdade que este regime pode, por via dessa integração e do processo de complexificação que vem sofrendo, ter-se tornado multifacetado e diversificado no seu modo de atuação, mas não deixa por isso de ser um regime dedicado à tributação do rendimento das pessoas coletivas e à obtenção de receita fiscal por essa via. Se esta é, por vezes, obtida através da tributação de determinadas despesas que reduzem o lucro tributável, ainda assim se consegue vislumbrar aí uma forma de tributação desse mesmo lucro tributável que é própria dos objetivos que subjazem ao IRC – de resto, as próprias tributações autónomas são devidas a título deste imposto.

 

Por fim, não colide com a interpretação que acaba de se fazer acerca da natureza das tributações autónomas e, em especial, acerca da questão da sua (não) dedutibilidade em sede de IRC a recente alteração efetuada ao Código do IRC pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro[21], que veio revogar o antigo artigo 45.º, estabelecendo-se agora no artigo 23.º-A do CIRC que “Não são dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável os seguintes encargos, mesmo quando contabilizados como gastos do período de tributação: a) O IRC, incluindo as tributações autónomas, e quaisquer outros impostos que direta ou indiretamente incidam sobre os lucros.”

 

Esta alteração veio, segundo se entende, clarificar que, relativamente aos períodos a que a norma em causa se aplica, os gastos com tributações autónomas não são dedutíveis para efeitos fiscais, tornando assim expresso na letra da lei algo que já decorria dos seus termos, ainda que indiretamente.

 

Nestes termos e com estes fundamentos, o tribunal arbitral entende que as tributações autónomas integram o regime jurídico do IRC, sendo devidas a este título e estando, por isso, abrangidas pelo disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 45.º (atual artigo 23.º - A) do CIRC, e que, em consequência, os montantes pagos com referência a essas tributações autónomas não constituem encargos dedutíveis para efeitos de apuramento do lucro tributável, devendo improceder a presente acção arbitral.

 

***

 

III. DECISÃO

 

Termos em que se decide neste tribunal arbitral:

a)         Julgar improcedentes as aduzidas exceções de incompetência e de iniempestividade;

b)        Não tomar conhecimento das suscitadas questões de constitucionalidade e de violação do direito comunitário;

c)Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral.;

d) Condenar a Requerente nas custas do processo.

 

IV. VALOR DO PROCESSO

 

De harmonia com o disposto no artigo 315.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária atribui-se ao processo o valor de € 248.740,95.

 

V. CUSTAS

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 4.284,00 nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 12 de maio de 2014

 

[Adotou-se a ortografia resultante do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, tendo sido atualizada, em conformidade, por razões de uniformidade, a ortografia, quer das citações efetuadas, quer dos textos legais utilizados].

 

 

(Jorge Lino Ribeiro Alves de Sousa)

 

 

(José Vieira dos Reis)

 

 

(Amândio Silva)

 

 

 

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO DE VENCIDO

 

Acompanho inteiramente a decisão, excepto quanto ao ponto relativo à dedutibilidade dos montantes pagos a título de tributação autónoma para efeitos de apuramento do lucro tributável, cujos pressupostos e conclusões não subscrevo.

Passo a expor, de forma sucinta, as razões que me afastam da posição que fez vencimento.

1.      O pressuposto da decisão é, em síntese, a consideração de que as tributações autónomas constituem, ainda que indirectamente, um imposto sobre o rendimento, pelo que a sua não dedutibilidade está expressamente prevista na al . a) do n.º 1 do artigo 45.º do Código do IRC. Para tal, defende-se que as “tributações autónomas não são mais do que mecanismos coadjuvantes do eixo central do IRC…”. Trata-se de um “mecanismo de tributação indirecta do rendimento que visa prevenir a perda de receita fiscal por evasão fiscal ou por confusão das esferas empresariais e privadas.”. Conclui, por isso, que apesar de “obtida através da tributação de determinadas despesas que reduzem o lucro tributável, ainda assim se consegue vislumbrar aí uma forma de tributação desse mesmo lucro tributável que é própria dos objectivos que subjazem ao IRC…”.

Acrescenta-se, por fim, para reforço daquele entendimento que a expressa previsão na actual al. a) do artigo 23.º-A do CIRC (versão introduzida pela Lei n.º 2/2004, de 16 de janeiro) da não dedutibilidade das tributações autónomas constitui uma clarificação que torna expresso na letra da lei algo que já decorria dos seus termos, ainda que indiretamente.

 

2.      Não é esse, contudo, o meu entendimento.

Acompanho, quanto à natureza das tributações autónomas, a mais recente jurisprudência dos tribunais superiores. Sem a preocupação de ser exaustivo, considerou o STA que “as tributações autónomas, embora formalmente inseridas no Código do IRC, sempre tiveram um tratamento próprio, uma vez que não incidem sobre o rendimento, cuja formação se vai dando ao longo do ano, mas antes sobre certas despesas avulsas que representam factos tributários autónomos sujeitos a taxas diferentes das de IRC”(…) Conclui que “pese embora tratar-se de uma forma de tributação prevista no CIRC, nada tem a ver com a tributação do rendimento, mas sim com a tributação de certas despesas, que o legislador entendeu, pelas razões atrás apontadas fazê-lo de forma autónoma.” (Acórdão do STA de 21/03/2012, proc. 830/11). Posteriormente, o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 310/12, de 20 de junho, referiu que “Contrariamente ao que acontece na tributação dos rendimentos em sede de IRS e IRC, em que se tributa o conjunto dos rendimentos auferidos num determinado ano (o que implica que só no final do mesmo se possa apurar a taxa de imposto, bem como o escalão no qual o contribuinte se insere), no caso tributa-se cada despesa efetuada, em si mesma considerada, e sujeita a determinada taxa, sendo a tributação autónoma apurada de forma independente do IRC que é devido em cada exercício, por não estar diretamente relacionada com a obtenção de um resultado positivo, e por isso, passível de tributação.”

 

3.      A generalidade da doutrina não se afasta do entendimento dos tribunais superiores. Como refere RUI MORAIS, “está em causa uma tributação que incide sobre certas despesas dos sujeitos passivos, as quais são havidas com constituindo factos tributários. É difícil descortinar a natureza desta forma de tributação e, mais ainda, a razão pela qual aparece prevista nos códigos dos impostos sobre o rendimento.” (RUI DUARTE MORAIS, Apontamentos ao IRC, Almedina, 2009, pp. 202-203). No mesmo sentido, JOSÉ ALBERTO PINHEIRO PINTO afirma que “não se trata propriamente de IRC – que visa tributar o rendimento das pessoas colectivas e não despesa por elas efectuadas -, mas da substituição de uma tributação de rendimentos “implícitos” de pessoas singulares, que se considera não exequível directamente”. Também CASALTA NABAIS considera que se “trata de uma tributação sobre a despesa e não sobre o rendimento” (CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 6.ª Ed., p. 614).

 

4.      Nem se diga que o objectivo desta norma é assegurar a verdade fiscal do sujeito passivo que suporta o imposto sobre o rendimento e as tributações autónomas. Tal regularidade fiscal seria assegurada pela não aceitação daquelas despesas como dedutíveis, nos termos do artigo 45.º do Código do IRC (ora 23.º-A) quando, no caso, as despesas sujeitas a tributação autónoma são tidas como gastos dedutíveis.

 

5.      Assim, em consonância com a generalidade da doutrina e jurisprudência, considero que não há qualquer ligação umbilical entre o Código do IRC e as tributações autónomas, pelo que não consigo vislumbrar nas tributações autónomas uma forma de tributação do rendimento. Apesar de inseridas formalmente no Código do IRC, dizem respeito a uma tributação distinta do imposto sobre o rendimento.

 

6.      Em boa verdade, a relação entre as tributações autónomas e o Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas é similar à dos demais impostos (por exemplo, o Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis, o Imposto Municipal de Imóveis e Imposto do Selo) que incidem sobre o património, gastos ou operações realizadas por pessoas colectivas que, no caso, são também sujeitos passivos de IRC. Os factos que geram estes impostos influenciam sempre os gastos ou rendimentos do sujeito passivo e, consequentemente, o lucro tributável. Por outro lado, todos os impostos citados são dedutíveis ao IRC, sem que a sua natureza e objectivos sejam postos em causa.

 

7.      Pelo exposto, como não estamos perante um imposto que incide directa ou indirectamente sobre os lucros, não há, face à letra da lei, qualquer obstáculo legal que impeça, à data dos factos, a dedução das tributações autónomas.

 

8.      A lei não se restringe, sabemo-lo, apenas à letra da lei. É isso mesmo que se afirma no artigo 11.º n.º 1 da Lei Geral Tributária: “Na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e os princípios gerais de interpretação e aplicação das leis”. Para tal, devemos recorrer a outros elementos disponíveis de interpretação jurídica, como sejam os elementos extraliterais: o histórico, o sistemático e o teleológico, para os quais aponta o artigo 9º do Código Civil. Quais os fins e objectivos das tributações autónomas objeto que são objecto da presente impugnação? Como enquadra-los face aos princípios que norteiam o nosso sistema fiscal?

 

9.      Lembramos que, no caso, a tributação autónoma incidiu, ainda que de forma distinta, sobre os encargos com viaturas ligeiras de passageiros, despesas de representação e ajudas de custos mas com prosseguindo um objectivo comum: tributar gastos das empresas que podem constituir rendimentos na esfera individual dos trabalhadores ou membros dos órgãos sociais. Ou seja, o legislador considerou que, face à dificuldade em aferir se aqueles gastos constituem, pelo menos em parte, uma vantagem pessoal dos trabalhadores ou membros dos órgãos sociais, deveriam ser objecto de tributação especial.

 

10.  Estas tributações autónomas assumem, assim, a natureza de normas anti-abuso inilidíveis, em que o sujeito passivo de IRC assume o papel de substituto tributário dos terceiros potenciais beneficiários dos rendimentos. Não partilhamos, por isso, quanto aos fins destas tributações autónomas, os argumentos defendidos da sua natureza repressiva/punitiva ou desincentivadora. Tal assunção viola, em nossa opinião, os princípios ne bis in idem quando se trate de prática punidas pelo Regime Geral das Infracções Tributárias e de tributação do rendimento real.[22]

 

11.  Face ao exposto, haverá razões para se defender que a dedutibilidade destas tributações autónomas ao lucro tributável anula os efeitos que se visam prosseguir? A dedução deste imposto ao lucro tributável – à semelhança de qualquer outro imposto - reduz o lucro tributável ou aumenta o prejuízo fiscal mas não anula a carga tributária suportada pelo contribuinte: o imposto devido a título de tributações autónomas será sempre claramente superior à eventual redução de IRC obtida com a sua dedução.

 

12.  Acrescentamos, a título complementar, que o argumento de que a dedutibilidade das tributações autónomas põe em causa os fins anti-abuso que as normas visam prosseguir parte da premissa, não provada, de que estas tributações autónomas prosseguem exclusivamente aqueles objectivos. As alterações que o regime das tributações autónomas sofreu nos últimos anos permitem concluir que as tributações autónomas não visam apenas combater eventuais abusos mas também arrecadar receita tout court.

 

13.  Por outro lado, mais importante que um argumento de quantum, a não dedutibilidade destas tributações autónomas, porque relativas a gastos em si mesmo dedutíveis, violaria as regras de apuramento do lucro tributável, previstas nos artigos 17.º e 23.º do Código do IRC.

 

14.  Mais, a imposição, não justificada, da não dedutibilidade das tributações autónomas que incidem sobre gastos dedutíveis, constitui, na minha opinião, uma violação das regras de tributação do rendimento real e capacidade contributiva.

 

15.  Por último, a alteração introduzida à al. a) do n.º 1 do artigo 23.º-A (anterior 45.º) do Código do IRC, com a expressa referência à não dedutibilidade das tributações autónomas não tem, face ao exposto, natureza clarificadora mas inovadora. Não configurando as tributações autónomas IRC ou um imposto que incide directa ou indirectamente sobre os lucros, a alteração introduzida não esclareceu mas alterou o enquadramento em sede de IRC das tributações autónomas.

Neste sentido se pronunciou, aliás, o STA, numa situação similar. No acórdão do STA, de 21 de março de 2011, Proc. 830/11, o STA concluiu que quando o artigo 32.º n.º 4 da Lei n.º 109-B/2001 veio acrescentar ao artigo 12.º do Código do IRC que ficavam ressalvadas da não tributação em IRC no regime de transparência fiscal as “tributações autónomas”, o legislador veio clarificar que as sociedades enquadradas no regime de transparência fiscal ficavam sujeitas às tributações autónomas porque “as tributações autónomas, embora formalmente inseridas no Código do IRC, sempre tiveram um tratamento próprio, um vez que não incidem sobre o rendimento, cuja formação, ao longo do ano, mas antes sobre certas despesas avulsas que representam factos tributários autónomos, sujeitos a taxas diferentes de IRC.”

Assim, quando o artigo 12.º do Código do IRC se referia, antes daquela alteração, ao IRC, não incluía as tributações autónomas. Se assim foi à data, não podemos dar, agora, à al. a) do n.º 1 do artigo 23.º-A a mesma natureza clarificadora mas com sentido contrário: quando a al. a) do n.º 1 do artigo 45.º do CIRC se referia ao IRC, incluía as tributações autónomas. Reitero, assim, que a interpretação do STA numa situação similar, assume a clara distinção, pelo próprio Código do IRC, dos conceitos de “IRC” e “tributações autónomas”.

 

Lisboa, 12 de maio de 2014

 

Amândio Silva

 

 

 

 

 

 

 

 



[1]             Essencialmente neste sentido, podem ver-se os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo no acórdão de 12-7 2006, proferido no processo n.º 402/06, e de 14-11-2007, processo n.º 565/07.

[2]             Como se entendeu no citado acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12-6-2006, proferido no processo n.º 402/2006.

[3]             No sentido de o meio processual adequado para conhecer da legalidade de acto de decisão de procedimento de revisão oficiosa de acto de liquidação ser a acção administrativa especial (que sucedeu ao recurso contencioso, nos termos do art. 191.º do CPTA) se nessa decisão não foi apreciada a legalidade do acto de liquidação, podem ver-se os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 20-5-2003, processo n.º 638/03; de 8-10-2003, processo n.º 870/03; de 15-10-2003, processo n.º 1021/03; de 24-3-2004, processo n.º 1588/03, de 6-11-2008, processo n.º 357/08. Adoptando o entendimento de que o processo de impugnação judicial é o meio processual adequado para impugnar actos de indeferimento de reclamações graciosas que tenham apreciado a legalidade de actos de liquidação, podem ver-se os acórdãos do STA de 15-1-2003, processo n.º 1460/02; de 19-2-2003, processo n.º 1461/02; e de 29-2-2012, processo n.º 441/11.

 

[5]             JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e Processo Tributário, Vol. 1, 2006, p. 782.

[6]             Por força da renumeração do Código, este artigo passou a artigo 91.º, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 198/2001, de 31 de Julho e artigo 88.º com a reforma do Código do IRC, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho.

[7]             Acrescentaríamos ainda que o artigo 88.º viria ainda a ser alterado pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro e pela Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro.

[8]             O Código da Contribuição Industrial separava os contribuintes em três grupos: A, B e C. Os grupos B e C eram tributados sobre os lucros presumidos ou normalizados, respetivamente.

[9]             XAVIER DE BASTOS, “O Princípio de Tributação do Rendimento Real e a Lei Geral Tributária”, Fiscalidade, n.º 5, 2001, cit., p. 10.

[10]           A avaliação indireta parte de indícios, presunções ou outros elementos de que a administração disponha para determinação do valor dos rendimentos ou bens tributáveis (n.º 2 do artigo 83.º da LGT).

[11]           Acórdão de 16 de Dezembro de 1992, Proc. C-208/91, Colect., p. I-6709.

[12]           Acórdão de 8 de Julho de 1986, Proc 73/85, Rec., p. 2219.

[13]           Acórdão de 17 de Setembro de 1997, Proc. C-130/96, Colect., p. I-5053.

[14]           Que procedeu à reforma da tributação das pessoas colectivas, alterando o Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-B/88, de 30 de novembro, o Decreto Regulamentar n.º 25/2009, de 14 de setembro, e o Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de novembro.

[15] Decisão Arbitral anulada pelo acórdão do STA proferido no âmbito do Recurso n.º 793/14-50, de 03-06-2015.

[16] Essencialmente neste sentido, podem ver-se os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo no acórdão de 12-7 2006, proferido no processo n.º 402/06, e de 14-11-2007, processo n.º 565/07.

[17] Como se entendeu no citado acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12-6-2006, proferido no processo n.º 402/2006.

[18] No sentido de o meio processual adequado para conhecer da legalidade de acto de decisão de procedimento de revisão oficiosa de acto de liquidação ser a acção administrativa especial (que sucedeu ao recurso contencioso, nos termos do art. 191.º do CPTA) se nessa decisão não foi apreciada a legalidade do acto de liquidação, podem ver-se os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 20-5-2003, processo n.º 638/03; de 8-10-2003, processo n.º 870/03; de 15-10-2003, processo n.º 1021/03; de 24-3-2004, processo n.º 1588/03, de 6-11-2008, processo n.º 357/08. Adoptando o entendimento de que o processo de impugnação judicial é o meio processual adequado para impugnar actos de indeferimento de reclamações graciosas que tenham apreciado a legalidade de actos de liquidação, podem ver-se os acórdãos do STA de 15-1-2003, processo n.º 1460/02; de 19-2-2003, processo n.º 1461/02; e de 29-2-2012, processo n.º 441/11.

 

[20] JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e Processo Tributário, Vol. 1, 2006, p. 782.

[21] Que procedeu à reforma da tributação das pessoas colectivas, alterando o Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-B/88, de 30 de novembro, o Decreto Regulamentar n.º 25/2009, de 14 de setembro, e o Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de novembro.

 

[22] Seguimos, neste sentido, as considerações e entendimento vertidos no Acórdão do CAAD, de 20/09/2012, Proc. n.º 7/2011.