Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 204/2013-T
Data da decisão: 2014-02-17  IVA  
Valor do pedido: € 646.701,15
Tema: Contrato de empreitada executado por consórcio externo
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Decisão Arbitral

 

 

       Os árbitros Dr. José Poças Falcão (árbitro-presidente), Professor Doutor Luís Meneses Leitão e Dra. Filipa Barros (árbitros vogais), designadas pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral Colectivo, constituído em 29 de Outubro de 2013, acordam no seguinte:

 

 

1.    RELATÓRIO

 

       1.1. A…, adiante “Requerente”, contribuinte fiscal número …, com sede em …, vem, ao abrigo do artigo 2.º, n.º 1, alínea a) e artigo 10º n.º 1, alínea a) e n.º 2 da alínea do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, doravante referido por “RJAT”[1], requerer a constituição de Tribunal Arbitral para pronúncia sobre a ilegalidade e consequente anulação dos actos de  liquidação de IVA n.º …, n.º …, n.º …, n.º …, n.º … e n.º …, relativas aos períodos 02, 04, 06, 07, 08 e 12, do ano de 2010, no valor global ou total de €588.750,00 .

       Peticiona ainda a anulação de liquidações de juros compensatórios no montante total de €57.951,15.

 

       É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), autora dos actos tributários supra identificados.

 

       A fundamentar o seu pedido alega a Requerente, no essencial, o seguinte:

 

  1. A Requerente contratou um serviço de empreitada para a concepção e construção de uma Estação de Triagem de Resíduos Sólidos Urbanos.
  2. Atenta a sua complexidade, a obra foi adjudicada e executada por duas empresas, em regime de consórcio, que actuaram conjuntamente, congregando competências e recursos diferentes, ainda que complementares entre si.
  3. A Requerente defende que Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) desconsiderou os contornos jurídicos e operativos subjacentes ao contrato de consórcio, no caso um consórcio externo, pois embora a obra em causa tenha uma componente de construção civil em sentido estrito, mais a cargo de um dos consorciados – B… (doravante B…) – e uma vertente relativa às partes integrantes – a cargo da Empresa C… (doravante C…) – responsável pela preparação da solução técnica, fornecimento e instalação dos equipamentos, estas duas componentes funcionaram articuladamente, tendo sido executadas em conjunto e só como um todo poderiam conduzir ao resultado final pretendido.
  4. Mais refere que foi outorgado um contrato de empreitada com as entidades consorciadas, nos termos previstos nos artigos 1207º e 1210º do Código Civil, o qual admite que o empreiteiro possa fornecer todos os materiais necessários à boa execução da obra, subsistindo esta figura independentemente da quantidade e valor dos materiais e de quem os fornece.
  5. Neste contexto, a Requerente considera aplicável à totalidade da empreitada contratada ao consórcio B... / C..., a taxa reduzida de IVA prevista na verba 2.19 da Lista I, anexa ao Código do IVA, não sendo de admitir a aplicação da taxa reduzida unicamente à componente fornecida pela empresa portuguesa B... que realizou a construção da Estação de Triagem de Resíduos Sólidos Urbanos.
  6. Para tanto a Requerente argumenta que o conceito de bens imóveis constante da verba 2.19 da lista I anexa ao Código do IVA, abrange a construção de todos os tipos de imóveis, mesmo imóveis para serviços de tratamento de lixo, como aquele que o consórcio B... / C... construiu em conjunto, em consonância com o conceito de bem imóvel previsto no Código do Imposto Municipal sobre Bens Imóveis (Código do IMI).
  7. Adicionalmente, sustenta que os equipamentos electromecânicos fornecidos pela empresa espanhola C... foram na sua totalidade incorporados fisicamente no imóvel construído, fazendo parte integrante do mesmo, e não desempenhando a sua função fora desse mesmo imóvel.
  8. Ademais, sendo um fornecimento enquadrado no âmbito de um contrato de empreitada, a Requerente atribui a erro declarativo a qualificação da operação como uma transmissão intracomunitária de bens mencionada pela C... no Sistema de Informação e Trocas Intracomunitárias – VIES. Com efeito, nos termos do artigo 17º, n.º2 alínea b) da Directiva 2006/112/CE “Não é considerada transferência com destino a outro Estado-membro a expedição ou transporte de bens no âmbito de uma das seguintes operações: a entrega de bens que devam ser objecto de instalação ou montagem pelo fornecedor ou por sua conta, efectuada pelo sujeito passivo no território do Estado-membro de chegada, da expedição ou do transporte nas condições previstas no artigo 36º.”
  9. Porquanto, e a menos que a Autoridade Tributária tivesse demonstrado que a C... se limitara a transportar para Portugal os equipamentos electromecânicos que foram incorporados na Estação de Triagem de Resíduos Sólidos Urbanos e que fora a outra empresa a responsável pela montagem e entrega à ora Requerente, o fornecimento e montagem dos referidos equipamentos nunca poderia qualificar-se como uma transmissão intracomunitária de bens seguida por uma aquisição intracomunitária de bens em Portugal, nos termos da leitura conjugada dos artigos 4.º n.º 3 e 9.º n.º 2 do Regime do IVA nas Transmissões Intracomunitárias, (RITI), bem como do n.º 1 e 2 do artigo 6º do Código do IVA, que enquadra a operação em apreço como uma transmissão interna de bens.

 

A Autoridade Tributária respondeu por impugnação, considerando, resumidamente, o seguinte:

 

  1. De acordo com a informação constante do sistema VIES, a Requerente efectuou no exercício de 2010, aquisições intracomunitárias no montante de €3.924.997,00, tendo tal valor sido indicado por um único fornecedor – … – C…, muito embora não tenha reportado os valores correspondentes nos campos 10 (Aquisições Intracomunitárias – Base Tributável) e 11 (Aquisições Intracomunitárias – IVA Liquidado) das Declarações Periódicas de IVA relativas aos vários períodos de 2010.
  2. Pelo contrário, a Requerente informou ter inscrito as referidas operações nos campos 1 (operações no mercado interno – base tributável) e 2 (operações no mercado interno – IVA liquidado à taxa reduzida) da Declaração Periódica por considerar que o fornecimento dos equipamentos se integra no âmbito do contrato de empreitada contratada ao consórcio B... / C..., aplicando-se a taxa reduzida de IVA prevista na verba 2.19 da Lista I, anexa ao Código do IVA.
  3. Ora, a Autoridade Tributária considera que o conceito de empreitada prevê a inclusão de materiais, no entanto, apenas cabem na referida verba 2.19 da Lista I, anexa ao Código do IVA as empreitadas destinadas à construção de imóveis, não se aplicando a taxa reduzida de 6% à aquisição de equipamentos electromecânicos, operação sujeita à taxa normal, nos termos previstos na alínea c), do n.º 1 do artigo 18º do Código do IVA.
  4. Para tanto argumenta que, muito embora o contrato de empreitada tenha sido celebrado por um valor global de € 5.624.013,31, do mesmo consta claramente evidenciado, por um lado, a valorização dos trabalhos de construção no total de €1.699.609,31 e, por outro, o fornecimento do equipamento no valor de €3.925.004,00, donde decorre que a parte do contrato relativa à empreitada de construção civil do imóvel representa apenas 30 % do custo total do mesmo, sendo de 70% a parte relativa à aquisição de equipamentos electromecânicos nela instalados.
  5. Neste sentido, a Autoridade Tributária entende que a parte do contrato relativo à construção civil do imóvel é “meramente residual, ou predominantemente acessória”, relativamente à outra parte respeitante à aquisição e instalação de equipamentos electromecânicos, que define de “essencial”.
  6. E assim, conclui, que o contrato em causa estipula a realização de duas prestações distintas e autónomas entre si, uma componente relativa à construção de infra-estruturas, subsumível na verba 2.19 da Lista I Anexa ao Código do IVA, e uma componente de fornecimento de equipamento, de valor muito superior à primeira, não podendo esta confundir-se com o conceito de materiais utilizados na construção, na medida em que um equipamento não é um material.
  7. Acresce que, de acordo com o entendimento da Autoridade Tributária, a operação efectuada pela C... à Requerente, traduzindo-se num mero fornecimento de equipamentos com instalação e montagem, é enquadrável no artigo 3.º do RITI, nos termos do qual se considera aquisição intracomunitária como “a obtenção do poder de dispor, por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, de um bem móvel corpóreo cuja expedição ou transporte para território nacional, pelo vendedor, pelo adquirente ou por conta destes, com destino ao adquirente, tenha tido início noutro Estado-membro” e, ainda, do n.º 1 do artigo 8.º do mesmo diploma, ao dispor que “são tributáveis as aquisições intracomunitárias de bens cujo lugar de chegada da expedição ou transporte com destino ao adquirente se situe em território nacional”.
  8. Finalmente, aduz a Autoridade Tributária que o facto da empresa espanhola C... ter preenchido as suas declarações, para efeitos IVA, qualificando o fornecimento de equipamentos no âmbito da construção da estação de triagem de resíduos sólidos urbanos, como uma aquisição intracomunitária, é revelador do entendimento que o sujeito passivo adopta quanto à natureza da operação e ao respectivo enquadramento fiscal, concluindo, deste modo, pela manutenção na ordem jurídica dos actos tributários de liquidação adicional de IVA e respectivos juros compensatórios.

 

       1.3. No dia 10 de Janeiro de 2014 realizou-se a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, tendo sido prescindidas as alegações orais (cf. Acta da Reunião do Tribunal Arbitral Colectivo).

 

2.    SANEAMENTO

      

       O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, em conformidade com o artigo 2.º do RJAT.

 

       As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março). 

      

  Não foram identificadas nulidades no processo

 

3.    FUNDAMENTAÇÃO

 

  Discute-se na presente acção o conceito de empreitada previsto na verba 2.19 da Lista I anexa ao Código do IVA, designadamente se taxa reduzida é aplicável à totalidade de um contrato de empreitada, realizado em regime de consórcio externo por duas entidades independentes, que teve por objecto a concepção e construção de uma estação de triagem de resíduos sólidos urbanos, ou se a taxa reduzida é aplicável apenas à componente do contrato relativa à construção do imóvel, configurando o fornecimento de equipamento electromecânico a incorporar no imóvel como uma componente autónoma, excluído do conceito de empreitada constante da verba 2.19 da Lista I Anexa ao Código do IVA e, por conseguinte, sujeito a tributação, em sede de IVA, à taxa normal prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 18.º do Código daquele imposto. 

 

 

3.1. Matéria de facto

 

       Para apreciação desta questão importa ter em conta os seguintes factos provados:

 

  1.  

       A Requerente, uma Associação de Municípios, iniciou a sua actividade em …, estando colectada para o exercício de “Actividades de Organizações Económicas e Patronais” – CAE 94110, desenvolvendo a sua actividade na área da distribuição de água, - actividade sujeita a IVA - e na área de recolha e tratamento do lixo - actividade isenta de IVA;

 

  1.  

       De acordo com a informação constante do sistema VIES, a Requerente efectuou no exercício de 2010, aquisições intracomunitárias no montante de €3.924.997,00, originárias de Espanha, tendo tal valor sido indicado por um único fornecedor – ...– C…;

 

  1.  

       A Requerente não mencionou nenhum dos referidos valores nos campos 10 (Aquisições Intracomunitárias – Base Tributável) e 11 (Aquisições Intracomunitárias – IVA Liquidado), das declarações periódicas de IVA relativas aos vários períodos do exercício de 2010;

 

  1.  

       Por força do reporte declarativo adoptado pela Requerente foram detectadas divergências no sistema VIES entre o valor das aquisições intracomunitárias declaradas pela Requerente na declaração periódica de IVA e os valores mencionados pelo seu fornecedor intracomunitário, a empresa C...;

 

  1.  

       Através do Ofício n.º …, a Requerente foi notificada pela Direcção de Finanças de …, para indicar o motivo da liquidação do IVA à taxa reduzida, relativamente à aquisição do equipamento fornecido pela sociedade C...;

 

  1.  

       No âmbito dos esclarecimentos prestados à Direcção de Finanças de …, a Requerente informou que as referidas operações se encontravam inscritas nos campos 1 (operações no mercado interno – base tributável) e 2 (operações no mercado interno – IVA liquidado à taxa reduzida;

 

  1.  

       A Requerente apresentou cópias das facturas anteriormente emitidas pela C... e por esta reportadas no sistema VIES, as quais contêm no descritivo a seguinte informação:” Concepção e Construção da Estação de Triagem de Resíduos Sólidos Urbanos”-  cf. Relatório de Inspecção do Serviço de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de ... e Ofício n.º … de 22 de Fevereiro de 2013 a fls. 2 a 7 do Anexo 1;

  

  1.  

       As facturas titulam operações realizadas no âmbito de um concurso público lançado pela Requerente tendo em vista a celebração de um contrato de empreitada de obras públicas para a “Concepção e Construção de uma Estação de Triagem de Resíduos Sólidos Urbanos”;

 

  1.  

       A 20 de Setembro de 2008, as empresas C... e B..., associadas em regime de consórcio externo, apresentaram uma proposta conjunta ao concurso público lançado pela Requerente para a “Concepção e Construção da Estação de Triagem de Resíduos sólidos Urbanos”;

 

 

  1.  

       A 21 de Novembro de 2008 ambas as empresas, C... e B..., outorgaram, no âmbito do programa de concurso, um documento identificado como “Modelo de Declaração de Garantias”, nos termos que qual declararam garantir a prossecução dos seguintes objectivos:”

  1. Promover a valorização dos resíduos sólidos urbanos;
  2. Reduzir a quantidade de resíduos sólidos urbanos a enviar para deposição em aterro;
  3. Utilizar processo de tratamento de resíduos sólidos urbanos com impactos ambientais reduzidos;
  4. Obtenção de uma fracção orgânica dos resíduos urbanos (FORSU) de qualidade e na quantidade de acordo com os requisitos exigidos pelo sistema de digestão anaeróbica da VALORGA.”

– cf. Doc. n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral.

 

  1.  

       A 5 de Março de 2009 foi deliberado pela Requerente, em reunião do Conselho de Administração, adjudicar ao sobredito Consórcio B... / C…, com sede em ... e em …, respectivamente, a empreitada de “Concepção e Construção da Estação de Triagem de Resíduos Sólidos Urbanos”, de acordo com a proposta e correspondente lista de preços unitários, que lhe serviu de base, orçando a adjudicação ao montante total de € 5.624.013,31, acrescido de IVA à taxa legal em vigor de 5%, – cf. cópia do Contrato de Empreitada a fls. 19 a 22 do Anexo 2 do PA e cópia dos autos de medição juntos ao pedido de pronúncia arbitral (Docs. n.ºs 3 a 5). 

 

  1.  

       No dia 10 de Março do 2009 as entidades adjudicatárias do concurso público realizado pela Requerente haviam operado a conversão do Acordo prévio de Promessa de Constituição de Consórcio Externo, tendo outorgado, entre si, o contrato de “Constituição de Consórcio Externo”. 

 

  1.  

       Resulta da Cláusula Quarta do Contrato de Consórcio Externo o tipo de fornecimentos e prestações a realizar pela empresa C...:

- “À C... incumbirá directamente a responsabilidade por toda a actividade de direcção dos trabalhos contratados, pela implementação de todos os estudos, projectos e demais serviços, pelo fornecimento dos equipamentos constantes da lista anexa ao presente contrato e pelo fornecimento e montagem das instalações de força motriz, comando e controle dos equipamentos industriais, incluindo a respectiva montagem, assistência técnica e formação de pessoal e, bem assim, a realização de todos os contactos com as diferentes entidades ou organismos oficiais intervenientes no processo devidamente acompanhada e assessorada pela 2ª outorgante, se for caso disso, podendo para o efeito da realização da sua prestação contratar os técnicos ou especialistas que considere necessários”; 

 

  1.  

 

     Resulta da Cláusula Quinta do Contrato de Consórcio Externo o tipo de fornecimentos e prestações a realizar pela empresa B...:

- “À B... incumbirá directamente a responsabilidade da Coordenação Geral dos trabalhos contratados e pela implementação de todos os estudos, projectos e demais serviços, pelo fornecimento dos equipamentos constantes da lista anexa ao presente contrato celebrado com a A…”

 

  1.  

       As entidades adjudicatárias acordaram nos seguintes moldes de repartição da facturação relativa ao preço total das transmissões e prestações efectuadas pelo consórcio:

  1. € 3.925.004,00 – a facturar directamente e em separado pela empresa C... à Requerente;
  2. € 1.699.009,31 – a facturar directamente e em separado pela empresa B... à Requerente;

 

  1.  

       A obra foi executada pelas entidades adjudicatárias – Consórcio B... /C..., nos termos previstos no clausulado do contrato de empreitada junto aos autos e em observância das quantidades de trabalho, fornecimentos e importâncias constantes dos autos de medição discriminativos realizados pela Requerente na qualidade de “dono de obra”

 

  1.  

       A Requerente foi notificada pela Ordem de Serviço …, da Direcção de Finanças de ..., do início da acção inspectiva, de âmbito parcial, em sede de IVA, para o exercício de 2010, remetida na sequência “da verificação de divergências do montante de aquisições intracomunitárias declaradas pelo sujeito passivo na Declaração Periódica e os valores mencionados pelos fornecedores intracomunitários no Sistema de Informações de Trocas Intracomunitárias – VIES” (…) “no montante de €3.924.997,00”. 

 

  1.  

       Pelo Ofício … de 30 de Janeiro de 2013, a Requerente foi notificada para exercer o direito de audição, que o fez no prazo concedido para o efeito.

 

 

  1.  

       Perante os argumentos aduzidos em direito de audição pela Requerente entendeu a Requerida que o “sujeito passivo não apresentou fundamentos novos, que permitam enquadrar as operações em causa numa verba da lista I anexa ao Código do IVA” propondo a manutenção das correcções propostas - cf. citado anexo I, do PA.

 

 

  1.  

       Por ofício n.º ..., datado de 22 de Fevereiro de 2013, foi a Requerente notificada da decisão final da acção inspectiva, que preconiza a liquidação adicional de IVA, no valor de €588.750,00, com os seus fundamentos, sobre a qual recaiu despacho concordante da Chefe de Divisão da Direcção de Finanças de ... (por subdelegação do Director de Finanças Adjunto).

 

  1.  

       Como fundamentos da liquidação de IVA refere a Informação da Direcção de Finanças de ...:

      

  • “Da análise das cópias das facturas (Anexo 1-fls 1-7) e restantes elementos enviados pelo sujeito passivo constatou-se que as mesmas dizem respeito ao fornecimento de equipamento, no âmbito de um concurso público para empreitada de concepção e construção de uma “Estação de triagem de resíduos sólidos urbanos”. 
  • Verificou-se da documentação enviada e relativa ao referido concurso (Anexo 2-fls 1-22) que o mesmo foi concessionado a duas entidades:

-C….- NIF …

-B... NIF …

  • Sendo ainda que de acordo com a mesma documentação (anexo 2 – fls. 8-18) à B... cabia a responsabilidade de realização de:
  1. Projecto de Execução;
  2. Arquitectura e arranjos exteriores (estaleiro; Movimento de Terras; Demolições; Cantarias; Revestimentos; Serralharias; Arranjos Exteriores);
  3. Fundações, estruturas e revestimentos metálicos (betão armado, estrutura metálica e revestimentos metálicos)
  4. Infra-estruturas: (rede de água; rede de esgotos, rede de esgotos pluviais, instalações eléctricas/telefónicas.  
  • Por sua vez, à C… cabia a responsabilidade de fornecimento, instalação e montagem dos equipamentos electromecânicos.
  • Os serviços da responsabilidade da B... estão sujeitos à taxa reduzida em virtude de os trabalhos (prestação de serviços) executados se enquadrarem na verba 2.19 da Lista I anexa ao CIVA – Empreitadas de Bens Imóveis sem que são donos de obra autarquias locais, associações de municípios …, desde que, em qualquer caso, as referidas empreitadas sejam directamente contratadas com o empreiteiro.”
  • Acresce que, sendo a empreitada a única modalidade contratual admitida na previsão legal da referida verba, apenas as prestações de serviços que constituam objecto de contratos de empreitada, para a construção de imóveis, directamente celebrados entre as entidades previstas na citada verba como passiveis de figurar na posição de donos de obra e os respectivos empreiteiros, poderão beneficiar da aplicação da taxa reduzida de liquidação em IVA, por se considerarem enquadradas na mencionada verba 2.19, conforme resulta da conjugação da redacção deste normativo com o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 18º do CIVA.
  • De acordo com o disposto no n.º 1 do art.º 4º do CIVA, “são consideradas como prestações de serviços as operações efectuadas a título oneroso, que não constituem transmissões, aquisições intracomunitárias ou importação de bens”.
  • O fornecimento de equipamento pela C... configura uma aquisição intracomunitária de bens pelo que a mesma não é passível de se enquadrar na verba 2.19 da Lista Anexa ao CIVA, pois esta como atrás se referiu apenas compreende as prestações de serviços relativas à construção de bens imóveis, o que não é caso.
  • A confirmar o atrás referido, está o facto de o fornecedor C… ter declarado para efeitos do sistema VIES, as referidas operações como transmissões de bens e não como prestações de serviços, já que esse era o correcto procedimento.
  • O sujeito passivo não justificou a aplicação da taxa reduzida. A aquisição do equipamento electromecânico, não se enquadra nas listas I e II anexas ao Código do IVA, estando enquadrada na alínea c), do n.º 1 do artigo 18.º do CIVA.
  • Assim, o IVA deveria ter sido liquidado à taxa normal, nos termos do disposto na alínea c), do n.º 1, do CIVA, o que não aconteceu, pelo que o mesmo irá ser apurado oficiosamente. 

(…)”

  1.  

       Em consequência, foram emitidas as liquidações adicionais IVA n.º ..., n.º ..., n.º ..., n.º ..., n.º ... e n.º ..., relativas aos períodos 02, 04, 06, 07, 08 e 12, do ano de 2010, no valor global de €588.750,00 e de juros compensatórios no valor de €57.951,15.

 

 

3.2. Factos não provados

 

       Não se constataram factos com relevo para a apreciação do mérito da causa que não se tenham provado.

 

3.3 Motivação

 

       O Tribunal fundou a sua convicção nos elementos documentais juntos ao processo, designadamente, além dos mencionados supra [3.1], no processo administrativo junto pela AT e relatório dos Serviços de Inspeção Tributária, em conjugação com a inexistência de controvérisa das partes quanto aos factos essenciais objeto do processo e considerados provados.

 

3.4 Do Direito

 

       Os actos tributários sujeitos à apreciação e decisão são tão só os actos de liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado n.º ..., n.º ..., n.º ..., n.º ..., n.º ... e n.º ..., relativos aos períodos 02, 04, 06, 07, 08 e 12, do ano de 2010, no valor de €588.750,00 respectivamente, e liquidações de juros compensatórios no valor de €57.951,15., pedindo a Requerente a declaração de ilegalidade desses actos tributários, com fundamento na violação do disposto no artigo 18º n.º 1 alínea a) do Código do IVA, bem como da verba 2.19 da Lista I anexa ao Código do IVA, e do disposto no artigo 4.º n.º 3, artigo 9.º n.º 2  e artigo 11.º n.º 1 e 2 do RITI.  

      

Vejamos seguidamente a questão.

 

Está em causa nestes autos a interpretação da verba 2.19 da Lista I anexa ao Código do IVA, a qual sujeita à taxa reduzida de 6% as seguintes operações:

 

"As empreitadas de bens imóveis em que são donos da obra autarquias locais, empresas municipais cujo objecto consista na reabilitação e gestão urbanas detidas integralmente por organismos públicos, associações de municípios, empresas públicas responsáveis pela rede pública de escolas secundárias ou associações e corporações de bombeiros, desde que, em qualquer caso, as referidas obras sejam directamente contratadas com o empreiteiro".

 

É manifesto que o contrato para a Concepção e Construção da Estação de Triagem de Resíduos Sólidos Urbanos celebrado entre a Requerente e o Consórcio B.../ C…, respectivamente, constitui um contrato de empreitada, em que o dono da obra é uma associação de municípios.

 

Efectivamente, nos termos do artigo 1207º do Código Civil (CC) o requisito essencial do contrato de empreitada é a realização de uma obra, o que neste caso sucede, sendo que o regime jurídico do contrato de empreitada admite claramente, que o empreiteiro possa fornecer todos os materiais necessários à execução da obra (cfr. artigo 1210º do CC.).

 

Por sua vez, o Código dos Contratos Públicos [anexo do DL nº 18/2008 –  cfr arts 343º-1 e 2] define empreitada de obras públicas nos seguintes termos:

        "Entende-se por empreitada de obras públicas o contrato oneroso que tenha por objecto quer a execução quer, conjuntamente, a concepção e a execução de uma obra pública que se enquadre nas subcategorias previstas no regime de ingresso e permanência na actividade de construção.

       Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se obra pública o resultado de quaisquer trabalhos de construção, reconstrução, ampliação, alteração ou adaptação, conservação, restauro, reparação, reabilitação, beneficiação e demolição de bens imóveis executados por conta de um contraente público."

 

Uma Associação de Municípios, adjudicante num contrato de empreitada é um contraente público – Cfr artigos 2º e 3º, do Código dos Contratos Públicos e Lei 45/2008, de 27/8 [Regime Jurídico do Associativismo Municipal].

 

A dúvida, no caso, reside em se determinar se ainda está em causa a construção de bens imóveis, como defende a Requerente ou se o fornecimento de equipamentos pela C... deve antes ser visto como um fornecimento de bens móveis, sendo dessa forma considerado uma aquisição intracomunitária de bens, conforme defende a Autoridade Tributária.

 

Efectivamente, no entender desta, uma vez que consta do contrato de empreitada (num valor global de 5.624.013,31 €), a separação entre trabalhos de construção (1.669.609,31 €) e o fornecimento do equipamento (3.925.004,00 €), tal demonstraria que a construção do imóvel representa apenas 30 por cento do valor total do contrato, concluindo que as transacções financeiras relativas à construção do imóvel são meramente residuais. A Autoridade Tributária considera que o facto de o fornecedor do equipamento ter sido incumbido da direcção e coordenação do projecto não afasta o facto de ele apenas fornecer o equipamento, uma vez que, é normal atento o valor e as características de tal equipamento, que o fornecedor assegure que a parte relativa à construção seja compatível com a instalação do mesmo, relevando que a parte essencial deste concurso é, não o que se refere à construção do imóvel, mas sim o que se reporta à aquisição e instalação dos equipamentos, sendo comum incluir no preço estabelecido o valor de instalação.

 

No fundo a Autoridade Tributária está a sustentar que o negócio em questão não constitui do ponto de vista substantivo uma verdadeira empreitada, mas sim uma compra e venda de bens com obrigação de instalação, entendendo por isso haver que distinguir o fornecimento dos equipamentos do âmbito da empreitada.

 

A doutrina civilística não acompanha, no entanto, essa posição nem o faz a jurisprudência dos nossos tribunais.

 

Efectivamente, a doutrina tem entendido que, apesar de existirem algumas dificuldades relativamente à distinção entre a compra e venda e a empreitada, o contrato será de empreitada quando as partes tiveram fundamentalmente em conta o resultado do trabalho a prestar pelo empreiteiro, sendo de compra e venda sempre que o primeiro plano seja dado antes aos materiais fornecidos, para cuja transmissão o trabalho funciona apenas como um meio[2].

 

Neste sentido escreve PEDRO ROMANO MARTINEZ: "no direito português, o contrato pelo qual alguém se obriga a realizar certa obra é, em princípio, uma empreitada, e o fornecimento pelo empreiteiro das matérias necessárias à sua execução não vai, por via de regra, alterar a natureza do contrato. Deve, então, qualificar-se como de empreitada o contrato em que o subministro de material constitui um meio para a realização da obra. Em contrapartida, enquadra-se na noção de compra e venda o contrato mediante o qual alguém se obriga a fornecer um bem fabricado em série ou por encomenda com base em amostra ou catálogo, desde que não haja que proceder a adaptações consideráveis”[3].

 

Decisivo parece ser a avaliação económica da operação, por forma a averiguar se o preço aparece como o correspectivo da alienação do bem (considerado como produto acabado) ou visa antes o pagamento do serviço de produção do bem. De acordo com este critério a construção em terreno do adquirente deve ser primordialmente qualificada como uma empreitada, já que, não obstante o valor dos materiais a fornecer pelo empreiteiro, o princípio superficies solo cedit leva a considerar toda a construção como acessória do solo, sendo assim a actividade do empreiteiro o fundamental no contrato[4].

 

Já a jurisprudência tem ido ainda mais longe, considerado normalmente qualificáveis como empreitada todos os contratos em que o alienante se compromete a realizar qualquer actividade material, mesmo que em conexão com a transmissão dos bens. Tal ocorreu, por exemplo, relativamente à alienação de casas pré-fabricadas, com obrigação de proceder à sua montagem, à alienação de elevadores com obrigação de proceder à sua instalação no prédio, ao fornecimento e instalação de caldeiras ou de equipamento hoteleiro[5].

 

No caso presente, é manifesto que o objecto primordial do contrato é a construção da estação de triagem de resíduos sólidos urbanos. Ora, uma estação de triagem de resíduos não pode funcionar sem o fornecimento de equipamentos mecânicos, pelo que a empreitada não seria realizada se o empreiteiro se limitasse a construir o edifício, deixando a estação sem os equipamentos mecânicos necessários ao seu funcionamento. Efectivamente, sem os mesmos a estação não estaria em condições de cumprir as funções para que foi encomendada, sendo por isso manifesto que os equipamentos fazem parte da estação, sendo incluídos na empreitada relativa à sua construção.

 

Não colhe, por outro lado, vir sustentar que a parte da construção é pequena em relação ao volume geral da obra, o que seria motivo para autonomizar o valor dos equipamentos. Efectivamente, é naturalíssimo que na construção de estruturas deste tipo o valor do edifício seja muito inferior ao dos equipamentos que nele são incorporados. É o que habitualmente sucede com as fábricas em que a maquinaria nela incorporada vale muito mais que o edifício. Nunca deixaria, no entanto, de se defender que a empreitada de construção de uma fábrica abrange a instalação dos respectivos equipamentos sob pena de a mesma não se considerar realizada.

 

Também não colhe vir dizer que os equipamentos incorporados na construção não têm natureza imobiliária. Efectivamente, o art. 204º, nº1, e) do Código Civil qualifica expressamente como imóveis as partes integrantes dos prédios rústicos e urbanos, sendo considerada parte integrante "toda a coisa móvel materialmente ligada ao prédio com carácter de permanência" (art. 204º, nº3, CC). Da mesma forma que um elevador é considerado parte integrante de um prédio, os equipamentos necessários ao funcionamento de uma estação de triagem de resíduos sólidos urbanos são considerados como suas partes integrantes, tendo por isso natureza imobiliária. No fundo, estão os mesmos sujeitos ao regime de transmissão da propriedade previsto no art. 1212º, nº2, do Código Civil relativamente ao contrato de empreitada, considerando-se adquiridos pelo dono da obra à medida que vão sendo incorporados no solo.

 

É portanto de concluir que a operação em causa se integra na verba 2.19 da Lista I anexa ao Código do IVA. Esse entendimento não é naturalmente posto em causa pelo facto de a C... ter feito a sua declaração no sentido de que se tratava de uma aquisição intracomunitária de bens, uma vez que o lapso existente nessa declaração não tem a virtualidade de alterar a qualificação do contrato que para efeitos da legislação portuguesa é claramente um contrato de empreitada.

 

4.    DISPOSITIVO

 

De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

Julgar totalmente procedentes os pedidos de anulação das liquidações adicionais de IVA n.ºs ..., ..., ..., ..., ... e ..., relativas aos períodos 02, 04, 06, 07, 08 e 12, do ano de 2010, no valor global de €588.750,00 e de juros compensatórios no valor de €57.951,15, conforme pedido.

 

5. Valor do processo

De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 646.701,15.

7. Custas

 

Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 9.486,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Lisboa, 17-2-2014

Os Árbitros

 

 

 

(José Poças Falcão)

 

 

 

 

(Filipa Barros)

 

 

 

 

(Luís Menezes Leitão)

 

[Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, número 5 do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, com versos em branco e revisto pelo Colectivo de Árbitros].

 



[1] Acrónimo de Regime Jurídico da Arbitragem Tributária.

[2] Cfr. VAZ SERRA, “Anotação Ac. STJ 14/6/1972”, na RLJ 106 (1973-1974), pp. 191-192, 197-200 e 107 (1974-1975), p. 108 (106, pp. 197-198) e RIBEIRO DE FARIA, Direito das Obrigações, II, Coimbra, Almedina, s.d., mas (1987) p. 380.

[3] Cfr. PEDRO ROMANO MARTINEZ, Contrato de Empreitada, Coimbra, Almedina, 1994, p. 38.

[4] Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, III, 9ª ed., Coimbra, Almedina, 2014, p. 457.

[5] Cfr. a recolha de jurisprudência citada em MENEZES LEITÃO, op. cit., pp. 457-458.