Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 52/2014-T
Data da decisão: 2014-07-06  IUC  
Valor do pedido: € 6.048,00
Tema: Incidência subjetiva
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Decisão Arbitral

 

 

I RELATÓRIO

 

A.... Lda., (abreviadamente também designada por “autora” ou “A...”), com sede na Rua …, Trancoso, vem, ao abrigo do artigo 2.º, n.º 1, alínea a) e artigo 10º n.º 1, alínea a) e n.º 2 da alínea do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro  (doravante referido por “RJAT”)[1], requerer a constituição de Tribunal Arbitral Singular para pronúncia sobre a ilegalidade dos seguintes  atos tributários de liquidação de IUC (Imposto único de Circulação), notificados à autora, para pagamento, em 15-11-2013:

-  Imposto Único de Circulação, referente aos anos de 2010, 2011 e 2012 (vide Docs. 1, 2, 3 e 4 juntos em anexo) no valor total de 6048,00 € (seis mil e quarenta e oito euros) e relativo aos veículos com as seguintes matrículas:

- … (Nr. Liquidação …);

- … (Nr. Liquidação …);

- … (Nr. Liquidação …);

- … (Nr. Liquidação …).

 

 

Para o efeito, a Requerente invoca vício de violação de lei por erro da AT quanto aos respetivos pressupostos de facto, defendendo não ser a responsável pelo pagamento do imposto controvertido.

Em síntese, a Requerente invoca que à data em que é devido o imposto referente àquelas viaturas já não era proprietária das mesmas, conforme pretende atestar através de faturas juntas à PI e por apelo ao cancelamento das matrículas no IMTT a 02/05/2013, considerando que o sujeito passivo do IUC é, no caso, o proprietário dos veículos à data dos factos tributários e que a titularidade registada na Conservatória do Registo Automóvel constitui presunção ilidível.

 

A autora não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT, o signatário foi designado pelo presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente Tribunal Arbitral singular, tendo aceitado nos termos legalmente previstos.

 

Em 11-3-2014 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

O Tribunal ficou constituído em 26-3-2014 [artigo 11º-1/c), do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228º, da Lei nº 66-B/2012, de 31-12]

 

Em 12-5-2014, a Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta e juntou os processos administrativos, defendendo que o pedido de pronúncia arbitral deve ser julgado improcedente e que os atos tributários impugnados se devem manter na ordem jurídica.

 

Por despacho de 2-6-2014, o Tribunal dispensou a reunião prevista no artigo 18º, do RJAT.

 

Foram apresentadas alegações finais escritas por ambas as partes

 

Saneador/Pressupostos processuais

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do RJAT.

Tratando-se do mesmo tributo (IUC) e ponderada a identidade dos fundamentos de facto e de direito em todas as impugnações das liquidações, verificam-se os pressupostos previstos nos arts 104º, do CPPT e 3º, do RJAT, para a cumulação dos pedidos.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades e não foram suscitadas questões que possam obstar à apreciação do mérito da causa.

 

II FUNDAMENTAÇÃO

Os factos provados

É o seguinte o quadro factual essencial assente para enquadrar jurídica e legalmente as questões suscitadas:

a.  As liquidações controvertidas infra referidas têm a sua origem nas conclusões alcançadas no âmbito de dos processos administrativos de IUC anexos                                                               

Matrícula

Ano/mês da matrícula/dia

Liquidação 2010

Liquidação 2011

Liquidação 2012

2008/03/05

500,00

500,00

512,00

2008/05/28

500,00

500,00

512,00

2008/06/27

500,00

500,00

512,00

2001/01/24

500,00

500,00

512,00

 

b.  No âmbito daqueles processos, foram proferidas decisões, por despacho de 23/09/2013 do Chefe do Serviço de Finanças de Trancoso, a indeferir a pretensão da Requerente quanto à sua não sujeição a IUC;

c.  Conforme consta das informações que serviram de base àqueles decisões, nos termos do art. 3º e nº 1 e art. 6º do CIUC, foi entendido que a Requerente é sujeito passivo do imposto por ser à data dos factos tributários em apreço a entidade em nome de quem os veículos estavam registados, sendo o registo e a alteração de propriedade dos veículos automóveis da competência do Instituto dos Registos e Notariado, I.P. (IRN), a que acresce o facto de também naquelas datas não constar o cancelamento das referidas matrículas no Instituto de Mobilidade e dos Transportes Terrestres, IP (IMTT), entidade competente para o seu cancelamento, concluindo-se que a AT não se substitui a quaisquer daquelas entidades e que o imposto em causa é devido;

d. Por sua vez, aquando da notificação das liquidações oficiosas a ora Requerente veio requerer a alteração de enquadramento da categoria C para a categoria D dos veículos com as matrículas …, alterações que foram efectuadas com base numa certidão emitida pelo Instituto da Mobilidade e dos Transportes, IP (IMT);

e.  Emitindo-se novas liquidações com base no novo enquadramento, num total supra discriminado em a.,  de € 6.048,00…

f.  …e que foram pagas pela Requerente a 12/12/2013, no âmbito do Decreto-Lei nº 151-A/2013, de 31/10;

g.  O cancelamento das matrículas mencionadas em a. pelo IMTT, ocorreu a 02/05/2013, conforme “prints” retirados do sistema informático referente ao seu histórico  (Doc 1, junto com a resposta);

h.  As liquidações controvertidas respeitam a imposto que se tornou exigível no mês da respectiva matrícula e com referência aos anos de 2010, 2011 e 2012, correspondendo, por conseguinte, a períodos de imposto anteriores à data do referido cancelamento de matrículas a 02/05/2013;

i.   O registo de propriedade dos veículos em apreço no IRN continua em nome da ora Requerente;

j. A autora exerce a atividade de transporte de mercadorias por conta de outrem;

k. Em 10 de janeiro de 2010 e 10 de dezembro de 2009, a autora vendeu os veículos mencionados em a. em 10 de janeiro de 2010 e 10 de dezembro de 2009 [Docs 17, 17, 18 e 19, juntos com o presente pedido de pronúncia arbitral].

 

Motivação

Os factos mencionados estão documentalmente comprovados ou não foram especificamente impugnados.

Designadamente as datas de matrícula dos veículos mencionados estão documentadas nos processos administrativos juntos pela AT.

Concretamente e relativa à prova das alegadas vendas dos veículos, a requerente apresentou as respetivas faturas [Docs 17, 17, 18 e 19, juntos com o presente pedido de pronúncia arbitral].

A requerida não impugnou esses documentos, invocando, designadamente, a sua falsidade ou simulação das vendas.

Por outro lado, sendo  a autora uma empresa ou sociedade comercial sujeita a regras de controlo contabilístico, designadamente para apuramento das suas obrigações tributárias, será ou seria relativamente fácil comprovar a existência real  e/ou subsistência dessas transações[2].

Os atos de venda dos veículos automóveis estão assim suficientemente comprovados, independentemente da suficiência ou não das faturas para efetivação do registo comercial.

É que uma coisa são os elementos necessários para efetivação do registo, outra é a prova do negócio sujeito a registo.

E a este propósito, não pode deixar de ser assinalado que o contrato de compra e venda de veículo automóvel é contrato verbal e não está assim sujeito a forma específica. [3]

 

II FUNDAMENTAÇÃO (continuação)

O Direito

Atenta as posições das Partes assumidas nos argumentos apresentados, constituem questões centrais dirimentes saber:

 

A - Se, na data da ocorrência dos factos geradores do imposto [artigo 3º-1, do CIUC[4]] os proprietários dos veículos não forem os que constam do registo, serão apesar disso estes que serão sempre considerados os sujeitos passivos do IUC, não sendo por consequência ilidível a presunção de titularidade revelada pelo registo OU, dito doutro modo, se a norma de incidência subjetiva constante do artigo 3º nº 1 do CIUC, estabelece ou não uma presunção e

 

B – Se, no caso de se concluir pelo estabelecimento duma presunção de titularidade, as faturas são meio idóneo de prova de venda de veículos com vista à ilisão dessa mesma titularidade.[5]

 

Estas questões foram já, no essencial, abordadas em diversas decisões do CAAD, algums delas já publicadas em www.caad.org.pt  e outras em vias de publicação  [Cfr., v. g.,  decisões proferidas nos processos nºs 14/2013, 26/2013, 27/2013, 73/2013, 170/2013 e 294/2013[6]].

Não se antolham razões para inverter o alterar  o sentido essencial desta Jurisprudência.

Vejamos então:

Dispõe o artigo 3º do CIUC (Código do Imposto único de Circulação):

“ARTIGO 3º

INCIDÊNCIA SUBJETIVA

             1 – São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

         2 – São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”.

 

Estabelece, por seu lado, o nº1 do artigo 11º da LGT que “na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam, são observadas as regras e princípios gerais da interpretação e aplicação das leis”.

 Resolver as dúvidas que se suscitem na aplicação de normas jurídicas pressupõe a realização de uma atividade interpretativa.

Há assim que ponderar  qual a melhor interpretação[7] do art. 3º, nº 1 do CIUC, à luz, em primeiro lugar, do elemento literal, ou seja  aquele em que se visa detetar o pensamento legislativo que se encontra objetivado na norma, para se verificar se a mesma contempla uma presunção, ou se determina, em definitivo, que o sujeito passivo do imposto é o proprietário que figura no registo.

A questão que se coloca é, no caso sub juditio, a de saber se a expressão “considerando-se” utilizada pelo legislador no CIUC, em vez da expressão “presumindo-se”, que era a que constava nos diplomas que antecederam o CIUC, terá retirado a natureza de presunção ao dispositivo legal em apreço.

A nosso ver e ao contrário do que defende doutamente a AT, a resposta tem necessariamente de ser negativa, uma vez que da análise do nosso ordenamento jurídico se retira de forma clara que as duas expressões têm sido utilizadas pelo legislador com sentido equivalente, seja ao nível de presunções ilidíveis, seja no quadro das presunções inilidíveis, pelo que nada habilita a extrair a conclusão pretendida pela Autoridade Tributária por uma mera razão semântica.

Na verdade, assim acontece em variadas normas legais que consagram presunções utilizando o verbo “considerar”, de que se indicam, meramente a título de exemplo, as seguintes:

~ no âmbito do direito civil - o nº 3 do art. 243º do Código Civil, quando estabelece que considera-se sempre de má-fé o terceiro que adquiriu o direito posteriormente ao registo da ação de simulação, quando a este haja lugar”;

 ~  também no âmbito do direito da propriedade industrial o mesmo se passa, quando o art. 59º, nº 1 do Código da Propriedade Industrial dispõe que “(…)as invenções cuja patente tenha sido pedida durante o ano seguinte à data em que o inventor deixar a empresa, consideram-se feitas durante a execução do contrato de trabalho (…)”;

   ~ e, por último, no âmbito do direito tributário, quando os nºs 3 e 4 do art. 89-A da LGT dispõem que incumbe ao contribuinte o ónus da prova que os rendimentos declarados correspondem à realidade e que, não sendo feita essa prova, presume-se (“considera-se” na letra da Lei) que os rendimentos são os que resultam da tabela que consta no nº 4 do referido artigo.

Esta conclusão de haver total equivalência de significados entre as duas expressões, que o legislador utiliza indiferentemente, satisfaz a condição estabelecida no art. 9º, nº 2 do Código Civil, uma vez que se encontra assegurado o mínimo de correspondência verbal para efeitos da determinação do pensamento legislativo.

 

Importa, de seguida, submeter a norma em apreço aos demais elementos de interpretação lógica, designadamente, o elemento histórico, o racional ou teleológico e o de ordem sistemática.

Dissertando sobre a atividade interpretativa diz FRANCESCO FERRARA que esta “é a operação mais difícil e delicada a que o jurista pode dedicar-se, e reclama fino trato, senso apurado, intuição feliz, muita experiência e domínio perfeito não só do material positivo, como também do espírito de uma certa legislação. (…) A interpretação deve ser objetiva, equilibrada, sem paixão, arrojada por vezes, mas não revolucionária, aguda, mas sempre respeitadora da lei” (Cfr. Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leistradução de MANUEL DE ANDRADE, (2ª ed.), Arménio Amado, Editor, Coimbra, 1963, p. 129).

Como refere BAPTISTA MACHADO “a disposição legal apresenta-se ao jurista como um enunciado linguístico, como um conjunto de palavras que constituem um texto. Interpretar consiste evidentemente em retirar desse texto um determinado sentido ou conteúdo de pensamento.

O texto comporta múltiplos sentidos (polissemia do texto) e contém com frequência expressões ambíguas ou obscuras. Mesmo quando aparentemente claro à primeira leitura, a sua aplicação aos casos concretos da vida faz muitas vezes surgir dificuldades de interpretação insuspeitadas e imprevisíveis. Além de que, embora aparentemente claro na sua expressão verbal e portador de um só sentido, há ainda que contar com a possibilidade de a expressão verbal ter atraiçoado o pensamento legislativo – fenómeno mais frequente do que parecerá à primeira vista “ (Cfr. Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, pp.175/176).

“A finalidade da interpretação é determinar o sentido objetivo da lei, a vis potestas legis.(…) A lei não é o que o legislador quis ou quis exprimir, mas tão somente aquilo que ele exprimiu em forma de lei. (…) Por outro lado, o comando legal tem um valor autónomo que pode não coincidir com a vontade dos artífices e redatores da lei, e pode levar a consequências inesperadas e imprevistas para os legisladores. (…) O intérprete deve buscar não aquilo que o legislador quis, mas aquilo que na lei aparece objetivamente querido: mens legis e não a mens legislatoris  (Cfr. FRANCESCO FERRARA,Ensaio, pp. 134/135).

Entender uma lei “não é somente aferrar de modo mecânico o sentido aparente e imediato que resulta da conexão verbal; é indagar com profundeza o pensamento legislativo, descer da superfície verbal ao conceito íntimo que o texto encerra e desenvolvê-lo em todas as suas direções possíveis”(loc. cit., p.128).

Com o objetivo de desvendar o verdadeiro sentido e alcance dos textos legais, o intérprete lança mão dos fatores  interpretativos que são essencialmente o elemento gramatical (o texto, ou a “letra da lei”) e o elemento lógico, o qual, por sua vez, se subdivide em elemento racional (ou teleológico), elemento sistemático e elemento histórico. (Cfr. BAPTISTA MACHADO, loc. Cit., p. 181; J.OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito – Introdução e Teoria Geral 2ª Ed., Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, p.361).

Entre nós, é o artigo 9º do Código Civil (CC) que fornece as regras e os elementos fundamentais à interpretação correta e adequada das normas.

O texto do nº 1 do artigo 9º do CC começa por dizer que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dela o “pensamento legislativo”.

Sobre a expressão “pensamento legislativo” diz-nos BAPTISTA MACHADO que o artigo 9º do CC “não tomou posição na controvérsia entre a doutrina subjetivista e a doutrina objetivista. Comprova-o o facto de se não referir, nem à “vontade do legislador” nem à “vontade da lei”, mas apontar antes como escopo da atividade interpretativa a descoberta do “pensamento legislativo” (artº. 9º, 1º). Esta expressão, propositadamente incolor, significa exatamente que o legislador não se quis comprometer” (loc. cit., p. 188).

No mesmo sentido se pronunciam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA em anotação ao artigo 9º do CC (Cfr. Código Civil Anotado – vol. I, Coimbra ed., 1967, p. 16 ).

E sobre o nº 3 do artigo 9º do CC refere aquele autor: “ este nº 3 propõe-nos, portanto, um modelo de legislador ideal que consagrou as soluções mais acertadas (mais corretas, justas ou razoáveis) e sabe exprimir-se por forma correta. Este modelo reveste-se claramente de características objetivistas, pois não se toma para ponto de referência o legislador concreto (tantas vezes incorreto, precipitado, infeliz) mas um legislador abstrato: sábio, previdente, racional e justo” (loc. cit. p. 189/190).

Logo a seguir este insigne Professor chama a atenção de que o nº 1 do artigo 9º, refere mais três elementos de interpretação a “ unidade do sistema jurídico”, as “circunstâncias em que a lei foi elaborada” e as “condições específicas do tempo em que é aplicada” (loc. cit, p. 190).

Quanto às “circunstâncias do tempo em que a lei foi elaborada”, explica BAPTISTA MACHADO que esta expressão “representa aquilo a que tradicionalmente se chama a occasio legis: os fatores conjunturais de ordem política, social e económica que determinaram ou motivaram a medida legislativa em causa” (loc. cit., p.190).

Relativamente às “condições específicas do tempo em que é aplicada” diz este autor que este elemento de interpretação “tem decididamente uma conotação atualista (loc. cit., p. 190) no que coincide com a opinião expressa por PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA nas anotações ao artigo 9º do CC.

No que respeita à “unidade do sistema jurídico” BAPTISTA MACHADO considera este o fator interpretativo mais importante: “a sua consideração como fator decisivo ser-nos-ia sempre imposta pelo princípio da coerência valorativa ou axiológica da ordem jurídica” (loc. cit., p. 191).

É também este autor que nos diz, relativamente ao elemento literal ou gramatical (texto ou “letra da lei”) que este “é o ponto de partida da interpretação. Como tal, cabe-lhe desde logo uma função negativa: a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou pelo menos uma qualquer correspondência ou ressonância nas palavras da lei.

Mas cabe-lhe igualmente uma função positiva, nos seguintes termos: se o texto comporta apenas um sentido, é esse o sentido da norma – com a ressalva, porém, de se poder concluir com base noutras normas que a redação do texto atraiçoou o pensamento do legislador” (loc. cit., p. 182).

 

Referindo-se ao elemento racional ou teleológico, diz este autor que ele consiste “na razão de ser da lei (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao elaborar a norma. O conhecimento deste fim, sobretudo quando acompanhado do conhecimento das circunstâncias (políticas, sociais, económicas, morais, etc.,) em que a norma foi elaborada ou da conjuntura política-económica-social que motivou a decisão legislativa (occasio legis) constitui um subsídio da maior importância para determinar o sentido da norma. Basta lembrar que o esclarecimento da ratio legis nos revela a valoração ou ponderação dos diversos interesses que a norma regula e, portanto, o peso relativo desses interesses, a opção entre eles traduzida pela solução que a norma exprime” (loc. cit., pp. 182/183).

 É ainda BAPTISTA MACHADO que nos diz, agora no que respeita ao elemento sistemático (contexto da lei e lugares paralelos) que “este elemento compreende a consideração das outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos).Compreende ainda o lugar sistemático que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico.

Baseia-se este subsídio interpretativo no postulado da coerência intrínseca do ordenamento, designadamente no facto de que as normas contidas numa codificação obedecem por princípio a um pensamento unitário” (loc.cit., p. 183).

Como ensina JOSEF KOHLER, citado por MANUEL DE ANDRADE “(…) Em particular havemos de tomar em consideração o encandeamento das diversas leis do país, porque uma exigência fundamental de toda a sã legislação é que as leis se ajustem umas às outras e não redundem em congérie de disposições desconexas (Ensaio, p. 27).

 

Descendo ao caso dos autos:

Através da análise do elemento histórico, extrai-se a conclusão que, desde a entrada em vigor do Decreto-Lei 59/72, de 30 de Dezembro, o primeiro a regular esta matéria, até ao Decreto-Lei nº 116/94, de 3 de Maio, o último a anteceder o CIUC [cfr Lei nº 22-A/2007, com as alterações da Lei 67-A/2007 e 3-B/2010], foi consagrada a presunção [grifado nosso] dos sujeitos passivos do IUC serem as pessoas em nome das quais os veículos se encontravam matriculados à data da sua liquidação.

            Verifica-se, portanto, que a lei fiscal teve, desde sempre, o objetivo de tributar o verdadeiro e efetivo proprietário e utilizador do veículo, afigurando-se indiferente a utilização de uma ou outra expressão que, como vimos, têm na nossa ordem jurídica um sentido coincidente.

            O mesmo se diga quando nos socorremos dos elementos de interpretação de natureza racional ou teleológica.

            Com efeito, o atual e novo quadro da tributação automóvel consagra princípios que visam sujeitar os proprietários dos veículos a suportarem os prejuízos por danos viários e ambientais causados por estes, como se alcança do teor do art. 1º do CIUC.

            Ora a consideração destes princípios, designadamente, o princípio da equivalência, que merecem tutela constitucional e consagração no direito comunitário, e são também reconhecidos em outros ramos do ordenamento jurídico, determina que os aludidos custos sejam suportados pelos reais proprietários, os causadores dos referidos danos, o que afasta, de todo, uma interpretação que visasse impedir os presumíveis proprietários de fazer prova de que já não o são por a propriedade estar na esfera jurídica de outrem[8].

Assim, também, da interpretação efetuada à luz dos elementos de natureza racional e teleológica, atento aquilo que a racionalidade do sistema garante e os fins visados pelo novo CIUC, resulta claro que o nº 1 do art. 3º do CIUC consagra uma presunção legal ilidível.

Em face do exposto, importa concluir que a ratio legis do imposto aponta no sentido de serem tributados os efetivos proprietários-utilizadores dos veículos pelo que a expressão “considerando-se” está usada no normativo em apreço num sentido semelhante a “presumindo-se”, razão pela qual dúvidas não há que está consagrada uma presunção legal.

 

Por outro lado, estabelece o art. 73º da LGT que “(…) as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário, pelo que são ilidíveis (…)”.

Assim sendo, consagrando o art. 3º, nº 1 do CIUC uma presunção juris tantum [e, portanto, ilidível], a pessoa que está inscrita no registo como proprietária do veículo e que, por essa razão foi considerada pela Autoridade Tributária como sujeito passivo do imposto, pode apresentar elementos de prova visando demonstrar que o titular da propriedade, na data do facto tributário, é outra pessoa, para quem a propriedade foi transferida.

 

Analisados os elementos carreados para o processo pela Requerente e os factos provados, extrai-se a conclusão que aquela não era a proprietária dos veículos a que respeitam as liquidações em apreço à data dos respetivos factos tributários, por, entretanto, já ter transferido a propriedade dos mesmos, nos termos da lei civil.

 Os elementos documentais, constituídos por cópias das respetivas faturas de venda – que não foram impugnados pela AT -, gozam da força probatória prevista no artigo 376º, do Código Civil e da  presunção de veracidade que é conferida pelo art.º 75º, nº 1 da LGT, tendo, assim, idoneidade e força bastante para ilidir a presunção que suportou as liquidações efetuadas.

Estas operações de transmissão de propriedade são oponíveis à Autoridade Tributária e Aduaneira, porquanto, embora os factos sujeitos a registo só produzam efeitos em relação a terceiros quando registados, face ao disposto no art. 5º, nº 1 do Código do Registo Predial [aplicável por remissão do Código do Registo Automóvel], a Autoridade Tributária não é terceiro para efeitos de registo, uma vez que não se encontra na situação prevista no nº 2 do referido art. 5º do Código do Registo Predial, aplicável por força do Código do Registo Automóvel, ou seja: não adquiriu de um autor comum direitos incompatíveis entre si.

 

Voltando às questões decidendas e em síntese conclusiva podem ser então dadas as seguintes respostas:

A -  [Se a AT pode prevalecer-se da ausência de atualização do registo do direito de propriedade para considerar como sujeito passivo do IUC as pessoas em nome das quais os veículos se encontram registados junto da Conservatória do Registo Automóvel?]

A Autoridade Tributária e Aduaneira só pode prevalecer-se da realidade registral do automóvel se não for comprovada a desatualização da situação jurídica, designadamente quanto à propriedade do veículo.

B -  [Qual o valor jurídico do registo automóvel na economia do CIUC, nomeadamente para efeitos da incidência subjetiva deste imposto?].

O registo automóvel, na economia do CIUC, representa mera presunção ilidível dos sujeitos passivos do imposto.

C -  [Se, subjacente a todas as questões atrás enunciadas, a norma de incidência subjetiva constante do artigo 3º nº 1 do CIUC, estabelece ou não uma presunção?]

Resposta prejudicada pelas conclusões anteriores

 

Nestas circunstâncias, as mencionadas e ora impugnadas liquidações devem ser anuladas e, consequentemente restituído à Requerente, pela Autoridade Tributária e Aduaneira, as respetivas importâncias assim indevidamente cobradas e retratadas nos mencionados e documentados atos de liquidação, conforme pedido.

 

III – DECISÃO

De harmonia com o exposto, decide este Tribunal Arbitral, julgar, totalmente procedentes os pedidos de anulação das liquidações de IUC e, em consequência, anula esses atos tributários e condena a Autoridade Tributária e Aduaneira na restituição à requerente dos respetivos valores pagos conforme pedido.

 Valor do processo

De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 6.048,00.

Custas

Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 612,00 (seiscentos e doze euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

Lisboa, 6 de julho de 2014

O Árbitro,

 

(José Poças Falcão)

 



[1] Acrónimo de Regime Jurídico da Arbitragem Tributária.

[2] Cfr as atuais regras da faturação (DL’s nºs 197 e 198/2012, de 24 agosto)

[3] Adiante, se desenvolverá melhor a fundamentação desta temática.

[4] Acrónimo de Código do Imposto Único de Circulação.

[5] Embora tal temática já tenha sido anteriormente abordada ao de leve na fundamentação da matéria de facto.

[6]  Em que foi também árbitro o signatário.

[7] A génese da relação jurídica de imposto pressupõe a verificação cumulativa dos três pressupostos necessários ao seu surgimento, a saber: o elemento real, o elemento pessoal e o elemento temporal. (Neste sentido veja-se, entre muitos outros autores, Freitas Pereira, M. H., Fiscalidade, 3ª Edição, Almedina, Coimbra, 2009).

 

[8] Sob a epígrafe “princípio da equivalência” estabelece o artigo 1º do CIUC: “O imposto único de circulação obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária”.

Sobre a noção do princípio da equivalência diz-nos SÉRGIO VASQUES: “Em obediência ao princípio da equivalência, o imposto deve ser conformado em atenção ao benefício que o contribuinte retira da actividade pública, ou em atenção ao custo que imputa à comunidade pela sua própria actividade”(Cfr. Os Impostos Especiais de Consumo, Almedina, 2000, p. 110).

E, mais à frente, explica este Professor, relativamente aos automóveis: “um imposto sobre os automóveis assente numa regra de equivalência será igual apenas se aqueles que provoquem o mesmo desgaste viário e o mesmo custo ambiental paguem o mesmo imposto; e aqueles que provoquem desgaste e custo ambiental diverso, paguem imposto diverso também.