Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 220/2014-T
Data da decisão: 2014-09-15  IUC  
Valor do pedido: € 5.173,18
Tema: Incidência subjetiva, leasing, presunções legais
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Decisão arbitral

 

Requerentes: A… Portugal, S.A.

Requerida: AT - Autoridade Tributária e Aduaneira

 

I - RELATÓRIO

A… Portugal, S.A., pessoa colectiva n.º …, com sede na …,  doravante designada por Requerente, requereu, em 06-03-2014, ao abrigo do disposto na al. a) do n.º 1 do art.º 2º e no art.º 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprova o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), um pedido de pronúncia arbitral, em que é Requerida a AT - Autoridade Tributária e Aduaneira, na qualidade de sucessora da Direcção-Geral dos Impostos, com vista a:

  • Anulação dos actos de liquidação do Imposto Único de Circulação identificados no Anexo A à petição inicial;
  • Condenação da AT – Autoridade Tributária e Aduaneira ao reembolso do montante do imposto relativo a tais liquidações, no valor de 5 173,18 euros;
  • Condenação da AT – Autoridade Tributária e Aduaneira ao pagamento à Requerente de juros indemnizatórios sobre aquele montante.

A Requerente alega, no essencial, o seguinte:

  • As viaturas sobre as quais incidiu o IUC liquidado não eram, à data dos factos tributários que deram origem às liquidações impugnadas, propriedade da Requerente;
  • Não eram tais viaturas propriedade da Requerente por terem sido por ela alienadas, em cumprimento de contratos de aluguer de longa duração;
  • Não sendo proprietária das viaturas à data dos factos tributários, a Requerente não pode ficar sujeita ao imposto nas datas respectivas;
  • A ausência de registo não afecta a aquisição da qualidade de proprietário, uma vez que o registo não é condição de validade do contrato de compara e venda nem condição de produção do efeito translativo da mesma;
  • Não sendo a AT – Administração Tributária e Aduaneira considerada terceiro para efeitos de registo, não pode a mesma escudar-se na regra contida no art.º 5º n.º 1 do Código do Registo Predial (CRPred.), segundo o qual os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo”.

 

Na sua resposta ao pedido de pronúncia apresentado pela Requerente, a Requerida AT -Autoridade Tributária e Aduaneira pugna pela improcedência do pedido, alegando, em síntese, o seguinte:

  • O legislador tributário ao estabelecer no artigo 3.º, n.º 1 quem são os sujeitos passivos do IUC estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (ou, nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos [veículos] se encontrem registados;
  • O normativo fiscal está repleto de previsões análogas à consagrada na parte final do n.º 1 do artigo 3.º, em que o legislador fiscal, dentro da sua liberdade de conformação legislativa, expressa e intencionalmente, consagra o que deve considerar-se legalmente, para efeitos de incidência, de rendimento, de isenção, de determinação e de periodização do lucro tributável, de residência, de localização, entre muitos outros;
  • A título exemplificativo, a Requerida aponta os artigos 2.º do Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (CIMT), 2.º, 3.º e 4.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS) e 4.º, 17.º, 18.º e 20.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (CIRC), em que se utiliza a expressão “considera-se” para se qualificar uma situação para efeitos fiscais, sem que tal expressão possa ser vista como uma presunção;
  • Nestes termos, é imperativo concluir que, no caso dos presentes autos de pronúncia arbitral, o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais [como proprietários ou, nas situações previstas no n.º 2, os titulares aí enunciados] as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal;
  • O referido entendimento corresponde ao adoptado na jurisprudência dos nossos tribunais, tendo sido sufragado pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, no Processo n.º …/13.0BEPNF;
  • O referido entendimento é o único que, atendendo ao elemento sistemático da interpretação, é compatível com a unidade do regime do IUC;
  • A interpretação que a Requerente faz do art.º 3º é violadora do princípio da confiança e da segurança jurídica, do princípio da eficiência do sistema tributário e do princípio da proporcionalidade.
  • A Requerente não consegue fazer prova de que os factos que resultam da presunção registal não são verdadeiros, porque os documentos apresentados como prova não têm força probatória suficiente para ilidir a presunção registal.

No dia 15 de Julho de 2014 realizou-se, nas instalações do Centro de Arbitragem Administrativa, a reunião prevista no artigo 18º do RJAT.

Nesta reunião, as partes optaram por apresentar alegações orais. Nestas alegações, para além de se esclarecerem algumas questões relativas ao conteúdo dos documentos apresentados pela Requerente como prova, as partes reiteraram a argumentação já expendida na petição inicial e na resposta. Não foram suscitadas novas questões de que cumpra conhecer.

 

II – SANEAMENTO

Este Tribunal Arbitral singular foi regularmente constituído em 02-05-2014, tendo sido o árbitro designado pelo Conselho Deontológico do CAAD, cumpridas as despectivas formalidades legais e regulamentares (artigos 11º, n-º 1, als. a) e b) do RJAT e 6º e 7º do Código Deontológico do CAAD), e é competente em razão da matéria, em conformidade com o artigo 2.º do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se regularmente representadas.

A cumulação de pedidos é legal, por se verificarem os pressupostos do artigo 3º, n. 1 do RJAT.

Não foram identificadas nulidades no processo.

Não existem excepções nem questões prévias de que cumpra conhecer, pelo que nada obsta ao conhecimento do mérito da causa.

 

III – QUESTÕES A DECIDIR

São as seguintes as questões a decidir pelo Tribunal:

  • A interpretação do artigo 3º, n.º 1 do Código do Imposto Único de Circulação Automóvel (CIUC) como consagrando ou não uma presunção respeitante à qualificação, como proprietário de um veículo, da entidade em nome da qual a propriedade do mesmo se encontra registada;
  • A concluir-se pela qualificação dessa norma como uma presunção, a sua efectiva ilisão no caso dos autos;

 

IV – FUNDAMENTAÇÃO

  1. FACTOS PROVADOS CONSIDERADOS RELEVANTES

1º: A Requerente foi notificada para proceder ao pagamento de 99 liquidações de IUC respeitantes aos anos de 2010, 2011 e 2012, e referentes a 42 veículos, cujo registo de propriedade constava em seu nome;

3º: A Requerente emitiu facturas relativas à venda dos 42 veículos a que dizem respeitos as liquidações de IUC impugnadas;

Não há factos não provados com relevo para a decisão da causa.

 

  1. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
  1. Quanto à interpretação do artigo 3º, n.º 1 do CIUC, no sentido de determinar se o mesmo estabelece ou não uma presunção de propriedade do veículo

Sobre esta questão e nos exactos termos em que é aqui colocada se pronunciou o Tribunal arbitral, que integrámos como vogal, constituído no processo n.º 63/2014-T[1]. Por considerarmos aplicar-se no caso vertente tudo o que se diz na referida pronúncia a respeito desta questão, reproduzimos aqui o seu teor, aderindo à doutrina aí defendida:

“Dispõe o artigo 3º do CIUC:

 

Artigo 3.º

Incidência subjectiva

1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.

Os sujeitos passivos do IUC são, em primeiro lugar, os proprietários dos veículos, podendo ser ainda equiparados a proprietários os “locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.”

A propriedade de veículos automóveis está sujeita a registo obrigatório (artigo 5º n.ºs 1 e 2 do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro).

A obrigação de proceder ao registo recai sobre o comprador – sujeito activo do facto sujeito a registo, que é, no caso, a propriedade do veículo (artigo 8º-B, n.º 1 do Código do Registo Predial, aplicável ao Registo Automóvel por força do artigo 29º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro e conjugado com a al. a) do n.º 1 do art.º 5º do DL N.º 54/75)

Mas o Regulamento do Registo Automóvel[2] contém um regime especial para entidades que se dediquem à actividade comercial de venda de veículos automóveis, em vigor desde 2008. Segundo esse regime, que se encontra estabelecido no art.º 25º, n.º 1, alíneas c) e d), o registo pode ser promovido pelo vendedor, mediante um requerimento subscrito apenas por si próprio.

Desde 2001, a obrigação de declarar a venda por parte do vendedor “à autoridade competente para a matrícula” encontra-se também expressamente estabelecida no Código da Estrada (hoje no seu artigo 118º, n.º 4).

O registo deve ser efectuado no prazo de 30 dias a contar da data da aquisição do veículo (artigo 42º do Regulamento do Registo Automóvel (Decreto-Lei n.º 55/75, de 12 de Fevereiro).

O actual IUC está desenhado para funcionar em integração com o registo automóvel, o que se infere do próprio art.º 3º do CIUC. A alternativa a esta articulação seria a obrigação de comunicar à AT – Autoridade Tributária e Aduaneira todas as transmissões de veículos, à semelhança do que acontece com o Código do IMT, solução altamente burocrática que o legislador rejeitou.

Numa situação de total conformidade com a lei, verificando-se a alienação da propriedade do veículo automóvel, esta alteração da propriedade será registada em tempo devido.

A AT-Administração Tributária e Aduaneira poderá, assim, em qualquer momento, saber que veículos estão matriculados em território português e quais os respectivos proprietários para efeitos de liquidação do imposto.

Existe, pois, uma articulação estreita entre o Registo Automóvel e o Imposto Único de Circulação, de modo que, não podendo a Administração Tributária valer-se dos dados constantes do Registo Automóvel, isso repercutir-se-á numa inevitável perda de eficiência, para não dizer paralisação, na administração do imposto.

Por essa razão, o n.º 1 do art.º 3º do CIUC, depois de estabelecer que “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos” acrescenta que se consideram como tais “as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”.

No caso dos autos, em que a Requerente alega ter transmitido a propriedade de todos os veículos a que respeitam as liquidações impugnadas, anteriormente às datas a que dizem respeito as liquidações, a mesma Requerente conservava-se, à data das liquidações, como titular do registo de propriedade dos veículos alegadamente vendidos.

Mas uma vez que tais transmissões não foram comunicadas ao Registo Automóvel, a Administração Tributária adoptou o único procedimento que podia adoptar: aplicou o art.º 3º, nº 1 do CIUC, considerando a Requerente como proprietária dos veículos, por ser ela a entidade em nome da qual os veículos se encontravam registados. Note-se que, ainda que o art. 3º do CIUC não contivesse a expressão “considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”, a Administração Fiscal sempre beneficiaria dessa presunção de propriedade pois esta resulta do próprio Registo Automóvel.

Com efeito, o art.º 7º do Código do Registo Predial (CRPred), aplicável ao registo de automóveis, por força do art.º 29º do Código do Registo Automóvel, estipula que “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.”

A Requerente reconhece que, no período a que se referem as liquidações, era a titular do registo de propriedade dos veículos, mas alega que não era já a efectiva proprietária dos mesmos por, entretanto, os ter alienado.

A questão que se coloca nesta situação é a do valor da segunda parte do preceito, ao determinar que “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”.

Ao dizer que “se consideram como proprietários dos veículos as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados”, a lei está a estabelecer uma presunção legal?

 Ou, pelo contrário, a lei está a dizer que as pessoas em nome das quais os veículos se encontram registados são “proprietários” para efeitos fiscais, i.e, são sujeitos passivos?

A Requerente sustenta que a lei contém uma presunção legal, baseando-se para tal no exemplo de várias disposições legais vigentes no ordenamento jurídico que, empregando o verbo “considerar”, contêm indubitavelmente presunções.

A tese da Requerente socorre-se igualmente do valor meramente declarativo do registo automóvel.

Se a tese da Requerente estiver correta, então, de acordo com o disposto no artigo 73º da Lei Geral Tributária, e porque se trata de uma norma de incidência, a presunção é necessariamente ilidível, o que significa que admite prova em contrário. O que no caso significa que a Impugnante poderá provar que não era proprietária dos veículos no período a que as liquidações dizem respeito e, logo, não era sujeito passivo do imposto liquidado.

Em sentido contrário, a Requerida sustenta que na norma em causa não se estabelece presunção alguma, e que o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais (“como proprietários ou, nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas”) as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal. 

A Requerida apoia-se, tal como a Requerente, no exemplo de várias normas legais tributárias, que, utilizando o verbo “considerar”, não contêm presunções, mas qualificações não presuntivas. Seriam exemplos os artigos 2º do Código do Imposto sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (CIMT), 2º, 3º e 4º, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, e 4º, 17º, 18º e 20º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (CIRC).

Pelos exemplos fornecidos por ambas as partes, resulta evidente, desde logo, que é possível encontrar no ordenamento jurídico tantos exemplos de preceitos que utilizam o verbo “considerar” no sentido de “presumir” como exemplos de preceitos legais que utilizam o verbo “considerar” para estabelecer qualificações jurídicas não presuntivas, pelo que estes argumentos não são concludentes.

A existir uma presunção no artigo 3º, n.º 1 do CIUC, ela consiste na presunção sobre a qualidade de proprietário: “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”.

Por outro lado, se se entender que a norma não estabelece uma presunção legal, então haverá que considerar que a lei qualifica não presuntivamente como proprietários dos veículos, as pessoas em nome das quais os veículos estão registados.

Teremos, nesse caso, uma ficção legal, desligada do conceito do direito civil, e que consiste num expediente jurídico que considera uma situação ou um facto como distinto da realidade para lhe atribuir determinadas consequências jurídicas

O art. 11º, n.º 2 da Lei Geral Tributária constitui o ponto de partida quanto a esta questão, dizendo que “sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer directamente da lei”.

Há pois que averiguar se resulta inequivocamente do disposto no art.º 3º do CIUC que o legislador pretendeu aí estabelecer um conceito de “proprietário de veículo” próprio do direito fiscal, que englobe pessoas que não sejam titulares de tal direito segundo as regras do direito civil.

Ora, será que a “liberdade de conformação legislativa” de que goza o legislador, que a Requerida refere no parágrafo 17º da sua Resposta, pode ir tão longe, ao ponto de determinar taxativamente quem é proprietário de um veículo, ainda que para efeitos meramente fiscais, dissociando radicalmente essa qualificação fiscal da qualificação do direito civil?

E, na sequência da questão anterior, outra pergunta se impõe: por que razão o legislador não teria então estipulado simplesmente - pois obteria exactamente o mesmo efeito útil mas eliminando toda e qualquer margem de insegurança ou incerteza jurídicas - que “são sujeitos passivos do imposto as pessoas em nome das quais os veículos se encontram registados, seja como proprietários, seja como locatários financeiros, como adquirentes com reserva de propriedade, ou como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”? Questão tanto mais pertinente, e hipótese tanto mais atractiva, quanto o legislador conhecia a experiência, negativa, e que volta repetir-se, do anterior Imposto de Circulação?

A resposta parece evidente: porque, nesta última hipótese, que o legislador não seguiu, a incidência subjectiva do imposto poderia ficar totalmente desligada de qualquer substância económica e ficaria dependente exclusivamente de uma aparência jurídica.

Ora, se o legislador tivesse, como pretende a Requerida, estabelecido na lei uma qualificação não presuntiva sobre quem é proprietário dos veículos (uma ficção legal), estaria com isso a estabelecer, através de uma diferente formulação, uma regra em tudo idêntica à regra hipotética referida. Estaria a fazer assentar a incidência subjectiva do imposto numa ficção legal,  em total desconexão com uma qualquer substância económica como base da incidência subjectiva.

É certo que a eficiência da tributação determina a necessidade de o IUC assentar no registo automóvel e, por conseguinte, exige que a administração fiscal possa confiar no mesmo registo automóvel.

Mas o princípio da eficiência da tributação não pode sobrepor-se em absoluto ao princípio da capacidade contributiva, ao ponto de o eliminar como critério de incidência subjectiva. E também é certo que o legislador fiscal teria ao seu dispor outros meios de responsabilizar o vendedor do veículo, faltoso quanto ao seu dever de comunicar a venda do mesmo, pelo pagamento do imposto, sem ser como contribuinte directo (configurando, v.g., um caso de responsabilidade tributária por dívida de terceiro).

E, se assim é, forçoso será também concluir que o artigo 3º, n.º 1 só pode estabelecer uma presunção de propriedade do veículo, mesmo com todas as consequências negativas que essa conclusão acarretará, decerto, em termos de eficiência da administração do imposto”.

Não tem portanto, razão a Requerida no que diz respeito à interpretação do art.º 3º do CIUC, no sentido de que aí não se consagra uma presunção sobre quem é proprietário do veículo.

Nesse preceito apenas pode conter-se uma presunção legal, por força do princípio da capacidade contributiva, o qual impõe que os impostos – que, nos termos do art.º 4º da LGT, incidem sobre a capacidade contributiva revelada através do rendimento, da despesa e do património – recaiam sobre as pessoas que efectivamente são titulares do rendimento ou do património ou realizam a despesa.

Como todas as presunções em matéria de incidência tributária, tal presunção é ilidível, por força do art.º 73º da LGT. 

  1. Quanto à ilisão da presunção de titularidade do direito de propriedade que recai sobre a Requerente

A fim de ilidir a presunção do art.º 3º do IUC, a Requerente tem de provar “o contrário”, i.e, que não era proprietária dos veículos à data dos factos tributários. Também no que diz respeito à questão da ilisão da presunção do art.º 3º do CIUC

Vejamos então:

A Requerente propõe-se provar, segundo resulta da petição inicial, que transmitiu a propriedade dos veículos, através de contratos de compra e venda, anteriormente aos períodos a que as liquidações dizem respeito.

Para provar que ocorreram tais transmissões de propriedade através de contratos de compra e venda, a Requerente apresenta facturas relativas à venda dos veículos.

Sendo a factura um documento unilateral e interno, com o qual se pretende negar a veracidade de factos provados através de uma prova legal - a presunção decorrente do registo - levanta-se aqui uma questão de direito probatório material, que cumpre analisar.

Esta questão foi igualmente resolvida na decisão arbitral acima citada, cuja doutrina subscrevemos inteiramente e que passamos a transcrever:

“O Código Civil (CC) trata as presunções a propósito das “provas”. As presunções constituem, portanto, meio de prova.

São definidas no art.º 349º do CC como as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.

O CC distingue entre presunções legais, às quais se refere o art.º 350º, e presunções judiciais, tratadas por sua vez no art.º 351º.

A presunção judicial (comum ou de homem) consiste no raciocínio, originado por uma regra de experiência, através do qual, com base num facto conhecido, o julgador deduz um facto desconhecido.

As duas espécies de presunções mencionadas têm força probatória distinta. E por terem força probatória distinta, a sua ilisão obedece também a regras diferentes, sendo a ilisão da presunção legal mais exigente.

Com efeito, estipula o art.º 342º, n.º 1 do CC que “àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”. É a regra geral sobre o ónus da prova.

O art.º 346º do CC, sob a epígrafe “contraprova”, determina que “à prova que for produzida pela parte sobre quem recai o ónus probatório pode a parte contrária opor contraprova a respeito dos mesmos factos, destinada a torná-los duvidosos; se o conseguir, é a questão decidida contra a parte onerada com a prova.”

Ou seja, recaindo sobre uma das partes ónus probatório, à parte contrária basta opor “contraprova”, sendo esta uma prova destinada a tornar duvidosos os factos alegados pela primeira. E basta a formação desta dúvida, para que a questão seja decida contra a parte onerada com a prova. Como afirma Anselmo de Castro, A., “Direito Processual Civil Declaratório”, III, Almedina, Coimbra, 1982, p. 163, a consequência do ónus probatório é que a parte sobre quem o mesmo recai deve suportar as desvantagens da incerteza que permaneça sobre os factos que tenta provar.

Ora, de acordo com o art.º 350 do CC, a parte a favor da qual exista uma presunção legal, a qual constitui prova plena, não tem de provar o facto a que ela conduz. Não tem, portanto, quanto a esse facto, qualquer ónus probatório.

Nesta situação, a ilisão da presunção obedecerá já não à regra do art. 346º, mas à regra do art.º 347º do CC: “a prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto”.

O que significa que não basta à parte contrária opor “contraprova” – a qual se destina a lançar dúvida sobre os factos – que torne os factos presumidos duvidosos. Ela tem de mostrar que não é verdadeiro o facto presumido, de forma que não reste qualquer incerteza de que os factos resultantes da presunção não são verdadeiros.

Voltando à contraposição entre presunção judicial e presunção legal, enquanto a primeira é uma prova simples, não definitiva, baseada nos dados da experiência e cuja apreciação se deixa à prudência do julgador, as presunções legais são provas legais ou vinculadas, que não dependem da livre apreciação do tribunal. Pelo contrário, a sua força probatória, legalmente tabelada, proporciona ao juiz uma verdade formal (cf. Domingos de Andrade, M, “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra, 1976, p. 280).

Assim, no caso dos autos, o que a Requerente tem de provar, a fim de ilidir a presunção que decorre, quer do artigo 3º, n.º 1 do CIUC quer do próprio Registo Automóvel, é que ela, Requerente, não era proprietária dos veículos em causa no período a que dizem respeito as liquidações impugnadas.

O que a impugnante se propõe provar, segundo resulta dos autos, é que transmitiu a propriedade dos veículos, através de contratos de compra e venda, anteriormente aos períodos a que as liquidações dizem respeito.

Para provar que ocorreram tais transmissões de propriedade através de contratos de compra e venda, a Impugnante apresenta:

 - Facturas relativas à venda dos veículos em causa;

(…)

Torna-se, assim, necessário analisar que valor deve ser reconhecido a estes elementos para provar a transmissão da propriedade dos veículos por parte da Requerente, contra a presunção resultante do registo.

Para isso deverá começar por se aflorar a questão da força probatória do registo automóvel.

O registo automóvel é um registo público, que tem a finalidade de “dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respectivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico” (art.º 1º do Cód. do Registo Automóvel (CRA)). Na noção de segurança do comércio jurídico cabe, evidentemente, o exercício de direitos por parte de terceiros com base nos factos registados.

Como se afirma no acórdão do TRL de 24-3-2011 (processo n.º 195/09.8TBPTS.L1-2), “o registo predial prossegue, a um tempo, fins de natureza privada e fins de natureza caracteristicamente pública. Prossegue fins de natureza privada, dado que garante a segurança no domínio dos direitos privados, especificamente no plano dos direitos com eficácia real – segurança do comércio jurídico (…), globalmente considerado – facilita o tráfico e o intercâmbio de bens, e assegura o cumprimento da função social dos direitos reais; prossegue finalidades de interesse público, enquanto instrumento da certeza do direito, da tutela de terceiros e da segurança do comércio jurídico, e de garante da actualização do registo face ao facto publicitado”.

Ora, o que a Requerente pretende nestes autos não é meramente ilidir uma presunção fiscal. É ilidir a presunção de veracidade dos factos que se encontram registados publicamente, e que se encontram registados para finalidades de interesse público, presunção esta da qual qualquer pessoa deve poder valer-se, sob pena de inutilidade do registo.

Em condições de cumprimento da lei, a ilisão da presunção de veracidade do registo é muito simples. Quando ocorre a compra e venda de um veículo, é preenchido um documento destinado ao registo automóvel – preenchimento que não constitui formalidade essencial do negócio – e que contém uma declaração de ambas as partes quanto à celebração do contrato (conforme o artigo 25º, n.º 1, alíneas a) e b) do DL n.º 55/75).

Este documento é um instrumento particular bilateral, porque assinado por ambas as partes do contrato. E precisamente porque a compra e venda de uma coisa móvel é um negócio não formal, aos serviços do Registo Automóvel basta este instrumento particular como prova para se proceder à alteração do registo. O vendedor pode então promover o registo em nome do adquirente, munido de uma simples cópia dessa declaração.

Mas já referimos também que, se o vendedor é uma entidade que se dedica ao comércio de veículos automóveis, este pode promover o registo, em nome do adquirente, através de um simples requerimento, conforme previsto no art.º 25, n.º 1, alíneas c) e d) do Regulamento do Registo Automóvel.

O que a Requerente apresenta como prova, porém – facturas não assinadas pelo comprador e cópias de extractos contabilísticos de conta de cliente – são unicamente documentos particulares, de carácter comercial, e unilaterais, i.e., para emissão dos quais não se verificou qualquer intervenção do comprador. O que significa que o comprador pode negar que a factura corresponda a qualquer negócio efectivamente celebrado, invalidando com isso qualquer valor probatório da factura e não lhe sendo exigido, sequer, produzir qualquer contraprova nesse sentido (TRL, Acórdão de 4-2-2010, Proc. n.º 224338/08.7YIPRT.L1-8).

A estes documentos particulares, por serem unilaterais, não pode reconhecer-se senão um valor probatório muito limitado.

Mesmo no âmbito das relações entre comerciantes quanto a factos do seu comércio – campo que é, como se sabe, aquele em que os documentos comerciais e a escrita comercial têm maior valor probatório – a facturação comercial e a escrita comercial não fazem prova plena, podendo até mesmo o comerciante proprietário dos livros produzir prova em contrário dos seus próprios lançamentos (STJ, Acórdão de 18-10-2007, Proc. n.º 06B3818).

Se um comerciante A – continuando a colocar-nos no âmbito das relações comerciais – pretendendo fazer prova de que vendeu a B, apesenta facturas por si emitidas, B, que sustenta a inexistência do negócio jurídico, apenas precisa de negar a materialidade dos factos vertidos nessas facturas, para que reverta sobre o vendedor o ónus de provar por outros meios a existência do contrato (TRL, Acórdão de 4-2-2010, Proc. n.º 224338/08.7YIPRT.L1-8, no qual se afirma: “Os documentos juntos limitam-se à existência das declarações nele contidas, ou seja, que foram emitidas facturas referentes a mercadoria fornecida à ré/apelada com a correspondente nota de entrega (alegação da apelante); dos documentos não resulta que a apelada tenha encomendado à apelante a mercadoria constante das facturas juntas (…)”)

Se é assim no plano das relações entre comerciantes quanto a factos do seu comércio, que valor pode ser atribuído a este tipo de documentos no âmbito de relações com terceiros não comerciantes?

Sobre esta matéria, também se têm pronunciado os tribunais superiores. Assim, num acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26-11-2009 (TRL, Acórdão de 26-11-2009, Proc. n.º 29158/03.5YXLSB.L1-2), afirma-se que “a força probatória do documento particular se limita às declarações do respectivo subscritor”.

 E num outro acórdão do mesmo Tribunal, com maior acuidade para a questão decidenda, pois que se refere exactamente ao valor da factura comercial como prova da existência de um contrato com determinada pessoa, diz-se que “a exigência de um pagamento por factura não basta para se provar que o contrato a que respeita o pagamento foi celebrado com a entidade facturada” (TRL, Acórdão de 5-6 -2008, Proc. 1586/2008-8).

Tudo o que foi dito para a factura vale, por sua vez, para os extractos contabilísticos. Um extracto contabilístico é, também ele, um documento particular (não autêntico) e unilateral, cuja emissão não supõe a intervenção da contraparte no alegado contrato.

Resumindo, a Requerente apresenta, apenas, documentos particulares e unilaterais, aos quais a jurisprudência tem reconhecido um muito reduzido valor para provar a existência de um contrato sinalagmático.

Em face do exposto, é forçoso concluir que Requerente não logrou provar a transmissão da propriedade dos veículos sobre cuja propriedade recaíram as liquidações de IUC impugnadas”.

Prossegue a decisão citada:

“Mas entende este Tribunal que, neste caso, como já ficou dito acima, o que a Requerente teria de provar, a fim de ilidir a presunção que decorre, quer do artigo 3º, n.º 1 do CIUC quer do próprio Registo Automóvel, é que ela, Requerente, não era proprietária dos veículos em causa no período a que dizem respeito as liquidações impugnadas, pois é este o facto que resulta da presunção registal.

Para isso não bastaria provar que, um dia, há vários anos, havia celebrado um contrato de compra e venda de um veículo, pois ainda que esse contrato tivesse sido celebrado, a propriedade de algum veículo poderia ter retornado à titularidade da Requerente. Ou seja, provar que A, no ano 2001, alienou o bem X, não implica deixar provado que A, no ano 2011, não é proprietário do bem X.

Assim, a Requerente teria de provar que não era proprietária dos veículos à data a que dizem respeito as liquidações, o que implicaria, no caso concreto, provar quem era o actual proprietário.

Não se diga que se trata, neste caso, de uma diabolica probatio. Esta prova seria fácil de fazer, bastando à Requerente actualizar o registo, para o que tem a legitimidade como vendedor – e não só a legitimidade como a obrigação, desde 2001, à luz do Código da Estrada – promovendo o registo dos veículos em nome do comprador, através de um simples requerimento, nos termos do artigo 25º, n.º 1, alíneas c) e d) do Regulamento do Registo Automóvel (preceitos que estabelecem um regime especial de promoção do registo para entidades que comercializam veículos automóveis).

Diabolica probatio seria, neste caso, em nosso entender e discordando neste ponto de anteriores pronúncias arbitrais, a exigida à Administração Fiscal, se esta, para se valer da presunção que decorre quer do art.º 7º do Código do Registo Predial, quer do art.º 3º, n.º 1 do CIUC, tivesse de apresentar contraprova que pusesse em causa a verdade material das facturas apresentadas, quando a administração não tem qualquer meio para o fazer.

A tese da Requerente, no que diz respeito à parte probatória, pretendendo contrariar a prova legal plena constituída pelo registo mediante a apresentação de documentos particulares unilaterais, que têm valor probatório diminuto no âmbito do direito probatório material, implicaria tornar impossível à administração fiscal administrar o Imposto Único de Circulação.

E o certo é que, da valência em contencioso tributário dos princípios do inquisitório ou da investigação e da livre apreciação das provas, e ainda do princípio da aquisição processual, decorre que, inexistindo embora um ónus da prova formal, a cargo, especial ou exclusivamente, de algum dos participantes processuais, releva sobremodo neste campo um ónus da prova substancial, objectivo, ou material, no sentido de que a decisão tem de desfavorecer naturalmente quem não consiga ver materialmente provados os factos em que assenta a sua posição (cf. a este respeito Vieira de Andrade, J. C., “Direito Administrativo e Fiscal, Lições ao 3.º ano do Curso de 1995/96”, Coimbra, 1996, p. 186; e Saldanha Sanches, J. L., “O Ónus da Prova no Processo Fiscal”, Cadernos de Ciência Técnica e Fiscal n.º 151, pp. 122 e ss.).

Resumindo, a prova apresentada pela Requerente é constituída, exclusivamente, por documentos particulares, unilaterais e internos, com um valor insuficiente para, à luz do direito probatório material, negar a validade de factos – a propriedade de veículos – sobre os quais existe uma prova legal – uma presunção legal – que isenta a Requerida de qualquer ónus probatório, e que não é contrariável através de mera contraprova, que lance dúvida sobre os factos provados pela presunção”.

Atenta a argumentação expendida, e que aqui se acolhe inteiramente, impõe-se concluir que a Requerente não logra ilidir a presunção que sobre ela impende sobre a titularidade da propriedade dos veículos objecto das liquidações, resultante do facto de a propriedade se encontrar registada em seu nome.

Não procede, portanto, a alegada ilegalidade das liquidações impugnadas por erro nos pressupostos de direito.

 

V. DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, este Tribunal decide julgar totalmente improcedente o presente pedido arbitral.

 

Valor da utilidade económica do processo: Fixa-se o valor da utilidade económica do processo em 5 173,18 euros.

Custas: Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em 612.00 euros, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.

Registe-se e notifique-se esta decisão arbitral às partes.

Lisboa, Centro de Arbitragem Administrativa, 15 de Setembro de 2014

 

 

O Árbitro

 

 

(Nina Aguiar)



[1] Decisão ainda não publicada.

[2] Decreto n.º 55/75, de 12 de Fevereiro.