Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 249/2014-T
Data da decisão: 2014-12-09  IVA  
Valor do pedido: € 111.600,73
Tema: IVA – Dedução de IVA suportado na aquisição de bens e serviços de utilização mista / Autoliquidação 2008 / Revisão oficiosa - Indeferimento
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DECISÃO ARBITRAL

 

 

Os árbitros Juiz Dr. José Poças Falcão (árbitro-presidente), Dra. Marta Gaudêncio e Dr. António Nunes dos Reis, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 19-5-2014, acordam no seguinte:

 

Relatório

 

Município A, pessoa coletiva n.º …, com sede …, tendo sido notificado, no passado dia 9 de Dezembro de 2013 da decisão de indeferimento do recurso hierárquico que apresentou contra a decisão de indeferimento de revisão oficiosa também por si apresentada com referência à autoliquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado ("IVA"), vem, nos termos do n.º1 do artigo 2.º, do n.º 1 do artigo 3.º e do artigo 10.º do Decreto-lei n.º10/2011, de 20 de Janeiro, denominado de Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), requerer a constituição de Tribunal Arbitral com vista à declaração da ilegalidade do acto de autoliquidação de IVA referente ao exercício de 2008 com a sua consequente anulação e demais consequências legais, designadamente a declaração de ilegalidade e anulação do acto de indeferimento de recurso hierárquico que incidiu sobre o acto de indeferimento de revisão oficiosa apresentada pelo Requerente e a condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira ("AT") ao reembolso de IVA na quantia de 111.600,73 e correspondentes juros indemnizatórios.

 

Alega, no essencial, a requerente:

 

a) Apresentou um Pedido de Revisão Oficiosa referente à entrega de prestação tributária em excesso, derivada da não dedução de IVA suportado na aquisição de bens e serviços de utilização mista, no ano 2008, que veio a ser indeferido na totalidade — cfr. Documentos 1 e 21.

b) Não se conformando com o indeferimento que recaiu sobre o Pedido de Revisão Oficiosa, o Requerente submeteu Recurso Hierárquico, nos termos do artigo 80.° da Lei Geral Tributária ("LGT") — cfr. Documento 3.

c) Em 9 de Dezembro de 2013, foi o Requerente notificado, através do Oficio n.° …, de 6 de Dezembro de 2013 (Documento 4), do indeferimento do recurso hierárquico apresentado com referência ao ano de 2008.

d) O documento 1 é o pedido de revisão oficiosa com referência a 2008 e o documento 2 é o Oficio n.° …, de 18 de Julho de 2013, que procede ao indeferimento da revisão oficiosa.

 e) Tendo a decisão do Recurso Hierárquico sido notificada ao Requerente no dia 9 de Dezembro de 2013, o prazo de 90 dias para requerer a constituição de tribunal arbitral termina em 9 de Março de 2014.

f) A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões: a) a declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta.

g) No presente caso, o Requerente submeteu, ao longo do período de 2008, declarações periódicas de IVA, nas quais não procedeu a qualquer dedução do montante de IVA respeitante a bens de utilização mista (i.e. bens que são indistintamente utilizados para a realização de operações que conferem e de operações que não conferem o direito à dedução do IVA).

h) Posteriormente, em 2012, e após uma revisão aos procedimentos do IVA adotados, com o apoio de uma entidade externa especializada, verificou o Requerente que, em face da não dedução do IVA a respeito dos bens de utilização mista, havia entregado imposto em excesso ao Estado e, para o ano de 2008 - uma vez que relativamente a esse o prazo de quatro anos para o exercício do direito à dedução ainda não havia caducado - solicitou a restituição do IVA, no montante de € 111.600,73, através do mecanismo de revisão oficiosa, preceituado no artigo 78º, da Lei Geral Tributária ("LGT").

i) O pedido de revisão oficiosa apresentado pelo Requerente veio a ser totalmente indeferido, através do Ofício n.º…, de 18 de Julho de 2013.

j) Por não concordar com a argumentação apresentada pela AT em sede de decisão da revisão oficiosa, submeteu o Requerente, dentro do prazo legal, recurso hierárquico, para o referido ano, que, todavia, teve decisão idêntica à da revisão oficiosa, sendo totalmente indeferido, através do Ofício n.º …, de 6 de Dezembro de 2013.

k) Ora, os atos que dão origem à submissão dos pedidos de revisão oficiosa e dos recursos hierárquicos são atos de autoliquidação adotados pelo Requerente (através da apresentação de declarações periódicas do IVA) que, conforme se demonstrará de seguida, foram incorretamente preenchidas por não ter sido incluído o montante de imposto a deduzir com referência aos bens e serviços adquiridos para a realização de operações que conferem e para a realização de operações que não conferem o direito à dedução do imposto.

l) Pretende o Requerente que seja declarada a ilegalidade dos atos de autoliquidação por si adotados bem como os subsequentes atos tributários de 2.2 e 3.2 grau (v.g. indeferimento da revisão oficiosa e do recurso hierárquico) e, nesse sentido, proceder à dedução do IVA no montante total de € 111.600,73.

m) A interpretação literal que era feita pela AT do n.º 1 do artigo 23º do CIVA não permitia a dedução do IVA suportado em bens exclusivamente afetos a operações tributáveis e permitia deduzir imposto sobre bens inteiramente afetos a operações que não conferem direito à dedução, gerando distorções quanto à dedutibilidade do imposto.

n) O Ofício-Circulado …, de 9 de Julho de 1987 a respeito da dedução do IVA nas autarquias determina o tipo de operações que, regra geral, são realizadas pelos Municípios e estabelece algumas regras quanto ao cálculo da percentagem de dedução.

o) Desde logo, no ponto 2 deste documento, esclarece-se que "esta regra geral, normalmente conhecida como «método de percentagem de dedução» poderá ser afastada, por aplicação, nos termos dos n.º2 - 2 e 3 do mesmo artigo 23.º do chamado «método da afetação real» que consistirá na possibilidade de deduzir a totalidade do imposto suportado na aquisição de bens destinados a atividades que deem lugar à dedução, mas impedindo, ao mesmo tempo, a dedução do imposto suportado em operações que não conferem esse direito".

p) Acrescenta também "qualquer que seja o método a aplicar (método da afetação real ou da percentagem de dedução) convém esclarecer quais as operações que conferem o direito à dedução por oposição às que não conferem esse direito".

q) De acordo com o Ofício, o sujeito passivo tem obrigatoriamente que optar por um dos métodos de dedução do IVA com referência aos seus inputs — método do pro rata ou método da afetação real — devendo ainda comunicar essa escolha à AT na declaração de início de atividades. [Vide a este respeito o Oficio n.º …, dos Serviços do IVA, de 1 de julho de 1986].

r) Após muitas críticas ao entendimento firmado pela AT e os primeiros contactos da Comissão Europeia visando uma ação por incumprimento ao Estado Português nesta matéria, a AT criou um grupo de trabalho para se pronunciar sobre o assunto em análise, que culminou com um relatório sobre "A dedução do IVA pelos sujeitos passivos que exercem atividades que conferem direito à dedução e atividades que não conferem esse direito", que chegou recentemente ao conhecimento do Requerente.

s) O relatório em apreço concluiu pela desconformidade da legislação face à Sexta Diretiva (e agora face à “Diretiva IVA”) e interpretação incorreta neste domínio, reconhecendo, assim, que a posição assumida durante mais de 20 anos era inválida.

t) Este relatório, ainda que não respeite apenas à metodologia de dedução aplicável às autarquias locais, veio esclarecer diversas dúvidas sentidas em relação à correta aplicação do regime preceituado no artigo 23.º do Código do IVA, muitas das quais aqui já abordadas.

u) No que concerne aos métodos de dedução do artigo 23.º, CIVA, esclarece-se que “...1 independentemente da aplicação dos métodos previstos nos n.º 2 e 4 do artigo 23.º CIVA, a aplicação de tais métodos respeita ao apuramento da dedução do IVA relativo aos bens e serviços de utilização mista, ou seja, dos utilizados em mais do que um daqueles tipos de atividades ou operações".

v) Foi, pois, em face de todo o exposto, que, depois de uma revisão interna de procedimentos, contratada a uma entidade externa especializada — que, em virtude do prazo de caducidade, apenas pôde retroagir quatro anos — o Requerente solicitou o IVA pago em excesso, com referência ao ano de 2008. Este pedido foi formulado através da submissão de pedido de revisão oficiosa, apresentado em 2012, quando terminou a revisão de procedimentos e após o levantamento exaustivo efetuados nesse âmbito.

x) De facto, como anteriormente referido, o Requerente sempre pautou a sua atitude pelo cumprimento das orientações da AT, não tendo deduzido o IVA cujo apuramento, esta, por ofício-circulado, lhe vedava.

z) Só quando se tomou flagrantemente patente que a posição da AT era insustentável e ilegal é que foi dado início a um processo de revisão no sentido de ajustar a recuperação do IVA ao valor que efetivamente assiste ao Município A pelo quadro legal vigente.

aa) No ofício nº …, a AT fundou a sua decisão essencialmente em duas razões, a saber: i) na especialidade do Código do IVA face à LGT, no sentido de não aceitar o pedido de dedução do IVA, não anteriormente exercido, para o ano de 2008, através de revisão oficiosa e ii) no entendimento de que a dedução, por parte do Requerente, do IVA que incidia sobre bens de utilização mista ao longo do período de 2008 está limitada a um prazo de dois anos, nos termos do n.º 6 do artigo 78º do Código do IVA.

bb) Conforme supra referido, a AT funda, em parte, a sua decisão de indeferimento dos Recursos Hierárquicos no entendimento de que o Código do IVA tem carácter de especialidade face às normas da LGT, não devendo estas sobrepor-se àquele.

cc) Na sua argumentação, nos ofícios acima referidos, dispõe, desde logo, a AT que "[.. .] no caso em apreço, está em causa avaliar se a pretensão do Recorrente é possível face aos requisitos de natureza temporal previstos no CIVA para o exercício do direito á dedução".

 dd) Considera a AT que "embora os regimes da revisão oficiosa e do direito à dedução constem simultaneamente referidos no artigo 98.º do CIVA, tal não significa que lhes seja aplicável a mesma regulamentação, sendo inequívoco que cada um destes regimes conta com a sua própria regulamentação: o da revisão dos atos tributários no artigo 78.º LGT e o do direito à dedução do IVA, particularmente, nos artigos 19.º a 26.º e 78.º, do CIVA".

ee) Assim, "deve concluir-se que, existindo independência jurídica entre os dois regimes, a revisão de uma autoliquidação de IVA não pode ser efetuada em prejuízo das normas que definem os pressupostos para o exercício do direito à dedução, incluindo a já vasta jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) ".

ff) Depois de mais uma série de argumentos e considerandos, conclui a AT que "[ ...1 não tendo o Recorrente respeitado os prazos para o exercício do direito à dedução disposto no artigo 22.º, em conjugação com as regras do artigo 23.º do CIVA, e constatando-se que os documentos de suporte relativos ao imposto que agora pretende deduzir, estão e foram, atempadamente, registados na contabilidade, só poderia ver reconhecido o direito à dedução do IVA através da utilização do mecanismo legal previsto no n.º 6 do artigo 78.º do CIVA" e "(…)deste modo, tendo em consideração que a lei estabelece um prazo especial de dois anos, não há lugar à aplicação do prazo geral de quatro anos previsto no n.º 2 do artigo 98.º do CIVA, estando assim ultrapassado o prazo legal para o exercício do direito à dedução pretendido pelo Recorrente".

gg) Por último, refere a AT que "ainda que a correta interpretação do anterior artigo 23.º do CIVA pudesse não ser muito fácil de efetuar face às regras da Sexta Diretiva e da Diretiva IVA (entrada em vigor em 1 de Janeiro de 2007), tal não se justificará a partir do momento da sua reformulação, operada com a redação conferida pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro, cuja entrada em vigor, em 1 de Janeiro de 2008, abrangeu já o ano em apreço".

hh) "Por conseguinte, não se vislumbra como poderia um contribuinte diligente, como será o caso do Recorrente, persistir num erro de enquadramento durante um período de tempo que praticamente completou três anos"

ii) Em conclusão, a posição da AT é a de que o Requerente apenas teria um prazo de dois anos para deduzir o IVA, uma vez que, tratando-se de IVA suportado em faturas já registadas na contabilidade, seria aplicável o n.º 6 do artigo 78.º do CIVA — limitado aos erros materiais ou de cálculo — de acordo com o qual o imposto apenas poderá ser regularizado a favor do sujeito passivo no prazo de dois anos, no entanto, é a própria AT que, no articulado anterior, refere que o contribuinte persiste num erro de enquadramento...

jj) Nos artigos 96º e segs, da sua petição inicial, desenvolve a requerente, na sua douta perspetiva, o enquadramento jurídico da situação para a final concluir com o seguinte pedido:

- Ser declarada a ilegalidade parcial do acto de autoliquidação de Imposto
sobre
o Valor Acrescentado referente ao exercício de 2008 consubstanciado nas 12 declarações periódicas submetidas pelo Requerente com a sua consequente anulação parcial, com todas as consequências legais, designadamente:

(i) Ser declarada a ilegalidade e anulado o acto de indeferimento do pedido de
revisão oficiosa e do subsequente recurso hierárquico;

(ii) Ser a AT condenada a reembolsar o Requerente no valor de € 111.600,73 em
imposto indevidamente pago e a pagar os correspondentes juros indemnizatórios;

(iii) Ser a AT condenada a ressarcir o Requerente das despesas resultantes da lide,
com honorários de mandatários judiciais a liquidar em execução de julgados.

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 14-3-2014.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo o Juiz José Poças Falcão, o Dr. António Nunes dos Reis e a Dra. Marta Gaudência, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

Em 2-5-2014 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, o Tribunal Arbitral ficou o Tribunal constituído em 19-5-2014.

A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, suscitando as exceções de incompetência do Tribunal Arbitral para apreciar o pedido de regularização de IVA e o pedido de anulação do acto de autoliquidação.

Considera a AT no essencial quanto ao pedido de incompetência material deste Tribunal:

a) O pedido de pronúncia arbitral sub judice tem por objeto imediato as decisões de indeferimento, de 02.12.2013, do recurso hierárquico apresentado pelo ora Requerente contra o indeferimento do pedido de revisão oficiosas que havia formulado, relativamente ao ano de 2008, nos seguintes termos: …”no sentido de ser confirmada a dedução de IVA no montante total de €111 600,73”.

b) Assim, concede-se, apenas por cautela e dever de patrocínio, que os presentes autos têm por objeto mediato “a autoliquidação de IVA efetuada em excesso nas declarações periódicas deste imposto, relativamente aos períodos de Janeiro a Dezembro de 2008…”.

c) Ora, atento o disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 4.º, n.º 1, ambos do RJAT, e nos artigos 1.º e 2.º, alínea a), ambos da Portaria n.º 112-A/2011, de 22.03, verifica-se a exceção de incompetência material do presente Tribunal Arbitral para apreciar e decidir o pedido supra [cf. artigos 493.º, nºs 1 e 2 e 494.º, alínea a) do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT].

d) Os tribunais arbitrais encontram-se constitucionalmente reconhecidos como verdadeiros tribunais (artigo 209.º, n.º 2 da CRP).

e) Ao nível do direito ordinário, a arbitragem voluntária, em geral, encontrava a sua base legal na Lei n.º 31/86, de 29 de Agosto (Lei da Arbitragem Voluntária – LAV), revogada pela Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro, atualmente em vigor, que prevê que «o Estado e outras pessoas coletivas de direito público podem celebrar convenções de arbitragem, se para tanto forem autorizados por lei especial ou se elas tiverem por objeto litígios respeitantes a relações de direito privado.» (artigo 1.º, n.º 5,).

f) A Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril (Orçamento de Estado para 2010), contemplou no seu artigo 124.º uma autorização legislativa, relativa à arbitragem em matéria tributária, enquanto forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária, prevendo-se que deverá constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo consagradas no CPPT.

g) No uso de tal autorização legislativa, foi aprovado o Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que disciplina a arbitragem tributária (RJAT).

h) Nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT determina-se que competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação da declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta.

i) Por força da remissão do n.º 1 do artigo 4.º do RJAT, a vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais constituídos nos termos desse diploma fica na dependência do disposto na Portaria n.º 112-A/2011, designadamente quanto ao tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos.

j) Dispõe-se no artigo 2.º, alínea a) da Portaria 112-A/2011 que a vinculação da AT à jurisdição referida tem por objeto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhe esteja cometida, referidas no n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, «com exceção das pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário» (sublinhado nosso).

k) Da factualidade supra, resulta que na situação sub judice, sempre se impunha a precedência obrigatória de reclamação graciosa nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 131.º do CPPT.

l) Sem prejuízo de, como se concluiu na decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa sub judice, ser ainda, abstratamente, possível suscitar a ilegalidade dos atos de autoliquidação nos termos dos nºs1 e 2 do artigo 78.º da LGT.

m) Com efeito, a jurisprudência tem provido o entendimento, que não se questiona, de que, atenta a natureza administrativa do procedimento revisão oficiosa, é passível a sua equiparação ao disposto no artigo 131.º, n.º 1 do CPPT para efeito de subsequente impugnação da respectiva decisão de indeferimento.

n) Todavia, tal equiparação está legalmente vedada em sede arbitral, estando excluída da competência material dos tribunais arbitrais a apreciação de pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º do CPPT, mas tão só de revisão oficiosa nos termos do artigo 78.º da LGT.

o) Com efeito, o artigo 2.º alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011 exclui, literalmente, do âmbito da vinculação da AT à jurisdição arbitral, «(…) as pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação (…) que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do CPPT.»,

p) Aí não se referindo a revisão oficiosa prevista no artigo 78.º da LGT.

q) Ou seja, da redação conferida ao citado preceito legal constata-se que o legislador optou por restringir o conhecimento na jurisdição arbitral às pretensões que, sendo relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, tenham sido precedidas, obrigatoriamente, da reclamação graciosa prevista no artigo 131.º do CPPT.

r) Aliás, se assim não fosse, bastaria que o legislador houvesse reduzido a exclusão prevista no artigo 2.º alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011 à expressão «que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa», nada mais distinguindo.

s) O que não sucedeu, existindo a referência expressa de prévio recurso à via administrativa nos termos, in casu, do artigo 131.º do CPPT, ou seja, mediante apresentação de reclamação graciosa necessária, independentemente dos seus fundamentos.

t) Mas se, hipoteticamente, sem justificação, se pretenda incluir na autorização concedida o procedimento administrativo de revisão oficiosa, tal formulação afigura-se manifestamente ilegal por duas ordens de razão.

u) Em primeiro lugar, decorre tal interpretação do elemento literal ínsito na norma legal em questão, conforme supra se aludiu.

v) No que à interpretação concerne, estabelece-se no artigo 11.º, n.º 1 da LGT que na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis.

x) Assim, determina-se no artigo 9.º do Código Civil, que:

«1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

2. Não pode porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.»

z) À luz das regras da hermenêutica jurídica, não se alcança outra solução interpretativa para a situação sub judice de que a AT apenas se vinculou, nos termos da Portaria n.º 112-A/2011, à jurisdição dos tribunais arbitrais se o pedido de declaração de ilegalidade de ato de autoliquidação tiver sido precedido de recurso à via administrativa de reclamação graciosa.

aa) E quando se refere ao recurso à via administrativa de reclamação graciosa, quer-se apenas referir ao meios previstos nos artigos 131.º a 133.º do CPPT, atentos ao elemento literal e, por conseguinte, inelutável, do artigo 2.º, alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011.

bb) Pelo que, daqui resulta que a letra da lei não pode ser afastada, sendo a principal referência e ponto de partida do intérprete.

cc) Atenta a natureza voluntária e convencional da arbitragem (aqui entendida no seu sentido lato, uma vez que a competência material dos tribunais arbitrais  resulta de regulamentação de natureza pública efetuada no RJAT), nos termos supra explanados, o intérprete não pode ampliar o objeto fixado pelo legislador no que concerne à vinculação da AT à jurisdição arbitral [Cfr. acórdão arbitral proferido no processo n.º 51/2012-T, em 2012-11-09: «Pode o pedido de revisão ser alternativo à reclamação, pode ser complementar, pode até no procedimento de revisão ter-se apreciado a pretensão do contribuinte, mas considerando a natureza voluntária da arbitragem, a interpretação adotada não poderá, em caso algum, traduzir-se numa restrição da esfera de liberdade da AT, enquanto parte, de estabelecer os limites da sua vinculação. Só não seria assim se a sua posição implicasse a frustração total do objetivo pretendido com a instituição da arbitragem tributária, o que não é o caso.

Note-se, sob este ângulo, que o Tribunal não se pronuncia sobre a construção doutrinária em que assenta a equiparação do procedimento de revisão oficiosa, por iniciativa do contribuinte, ao procedimento de reclamação graciosa, para efeitos de impugnação judicial. Simplesmente, entende que do princípio da consagração do procedimento arbitral enquanto meio de resolução de litígios fiscais alternativo ao processo de impugnação judicial, não decorre automaticamente a extensão da vinculação da AT a todas as situações em que, doutrinaria e/ou jurisprudencialmente for considerada admissível essa impugnação.» ].

dd) Conclui-se no Ac Arbitral proferido no processo nº 51/2012-T, do CAAD:

«Em suma, o âmbito da vinculação da AT circunscreve-se aos termos em que se encontra expressa na Portaria n.º 112-A/2011, que, no caso sub juditio, é o regime previsto no artigo 132º CPPT, que exige reclamação graciosa prévia, ainda que, para efeitos da impugnabilidade do ato, a doutrina prevalente e determinada corrente dos tribunais judiciais tributários possa admitir em alternativa a revisão oficiosa prévia. Com efeito, a equiparação dos tribunais arbitrais tributários àqueles está limitada pela natureza voluntária da adesão da AT à jurisdição arbitral» (sublinhado nosso)

ee) Deste modo, tal como se refere no citado acórdão arbitral, se é certo que o contribuinte que não tenha apresentado tempestiva reclamação graciosa não esteja, ipso facto, impedido de pedir a revisão do ato de retenção ao abrigo do artigo 78.º da LGT, dentro do condicionalismo aí previsto, e impugnar judicialmente a decisão que indefira o pedido de revisão (cf. artigo 95.º, n.º 2, alínea d), da LGT)...

ff) … também não parece questionável afirmar que a AT apenas se vinculou, nos termos da Portaria n.º 112- A/2011, à jurisdição dos tribunais arbitrais se o pedido de declaração de ilegalidade de ato de autoliquidação tiver sido precedido de recurso à via administrativa de reclamação graciosa.

gg) Pelo que, tendo o contribuinte seguido o caminho da revisão oficiosa (sibi imputat), da respectiva decisão de indeferimento, apenas pode seguir judicialmente através de impugnação judicial.

hh) Neste sentido, como bem conclui JORGE LOPES DE SOUSA, In Código de Procedimento e Processo Tributário – II Volume, Áreas Editora – 6ª Ed./2011, pág. 65 e 409 e 410, respetivamente:

«O art. 2.º do DL n.º 10/2011 limita a atividade dos tribunais arbitrais à apreciação das pretensões arroladas no seu art. 2.º […] No entanto, aquele diploma faz depender a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça (art. 4.º, n.º 1), pelo que aquela atividade está condicionada pelos termos em que a vinculação se concretizar.

[…]

Para além da possibilidade de impugnação perante os tribunais de decisões de reclamação graciosas, a partir da implementação da arbitragem em matéria tributária, operada pelo DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro e pela Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março (a DGCI e a DGAIEC vincularam-se apenas a partir de 1-7-2011), os sujeitos passivos podem pedir a constituição de tribunais arbitrais, para obterem a declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, como resulta do art. 2.º, alínea a), daquele Decreto-Lei.

De harmonia com o disposto no art. 2.º, alínea a), da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, relativamente a atos de autoliquidação, a Administração Tributária apenas se vinculou à jurisdição dos tribunais arbitrais se o pedido de declaração de ilegalidade tiver sido precedido de recurso à via administrativa, isto é, de reclamação graciosa.

Por isso, se o sujeito passivo pretender apresentar um pedido de declaração de ilegalidade perante um tribunal arbitral, a reclamação graciosa será sempre necessária, independentemente dos seus fundamentos.» (negrito nosso)

ii) Acresce referir que a Portaria n.º 112-A/2011 foi aprovada e publicada já após extensa e profusa jurisprudência que reafirmava que, atenta a natureza administrativa do procedimento revisão oficiosa, é passível a sua equiparação ao disposto no artigo 131.º, n.º 1 do CPPT para efeito de subsequente impugnação da respectiva decisão de indeferimento.

jj) Ora, se o legislador não previu, no artigo 2.º daquela Portaria, o procedimento de revisão oficiosa como equiparável ao recurso à via administrativa, maxime à reclamação graciosa, para efeitos de aceder ao pedido de pronúncia arbitral, foi, certamente, porque não o pretendeu fazer.

kk) Não se pretende para o efeito restringir a interpretação ao seu elemento literal, antes sim, estende-la, como manda a lei, aos restantes elementos interpretativos, in casu, «…reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.» (cfr n.º 1 do artigo 9.º do Código Civil).

ll) Conclui-se que por força do estatuído no artigo 2.º, alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011, os litígios que tenham por objeto a declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, como sucede na situação sub judice, estão excluídos da competência material dos tribunais arbitrais, se não forem precedidos de reclamação graciosa nos termos do artigo 131.º do CPPT,

 

No dia 25-7-2014, realizou-se a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, em que foi decidido que a resposta às exceções e as alegações seriam apresentadas por escrito.

 

Não houve resposta às exceções nem foram apresentadas alegações finais.

 

Por despacho de 19-11-2014 foi prorrogado por dois meses o prazo previsto no artigo 21º, do RJAT, para a prolação e notificação da decisão arbitral final.

 

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

 

Matéria de facto

 

Factos provados:

a) A requerente apresentou um Pedido de Revisão Oficiosa referente à entrega de prestação tributária em excesso, derivada da não dedução de IVA suportado na aquisição de bens e serviços de utilização mista, no ano 2008, que veio a ser indeferido na totalidade, por despacho concordante aposto em Informação dos Serviços Tributários que concluíram que

 — cfr. Documentos[1] 1 e 2[2]1.

b) Não se conformando com o indeferimento que recaiu sobre o Pedido de Revisão Oficiosa, o Requerente submeteu Recurso Hierárquico, nos termos do artigo 80.° da Lei Geral Tributária ("LGT") — cfr. Documento 3.

c) Em 9 de Dezembro de 2013, foi o Requerente notificado, através do Oficio n.° 002503, de 6 de Dezembro de 2013 (Documento 4), do indeferimento do recurso hierárquico apresentado com referência ao ano de 2008, fundamentado, em síntese nos seguintes termos:

 

 

d) O Requerente submeteu, ao longo do período de 2008, declarações periódicas de IVA, nas quais não procedeu a qualquer dedução do montante de IVA respeitante a bens de utilização mista (i.e. bens que são indistintamente utilizados para a realização de operações que conferem e de operações que não conferem o direito à dedução do IVA).

e) Em 2012, e após uma revisão aos procedimentos do IVA adotados, com o apoio de uma entidade externa especializada, entendeu o Requerente que, em face da não dedução do IVA a respeito dos bens de utilização mista, havia entregue imposto em excesso ao Estado e, relativamente ao ano de 2008, solicitou a restituição do IVA, no montante de € 111.600,73, através do mecanismo de revisão oficiosa, preceituado no artigo 78º, da Lei Geral Tributária ("LGT").

i) O pedido de revisão oficiosa apresentado pelo Requerente veio a ser totalmente indeferido, através do Ofício n.º …, de 18 de Julho de 2013.

j) Por não concordar com a argumentação apresentada pela AT em sede de decisão da revisão oficiosa, submeteu o Requerente recurso hierárquico, para o referido ano, que, todavia, teve decisão idêntica à da revisão oficiosa, sendo totalmente indeferido nos termos referidos supra, em c).

 

Factos não provados

 

Não há factos potencialmente relevantes para a decisão que não tenham sido dados como provados.

 

Fundamentação da decisão da matéria de facto

 

Os factos provados constam dos documentos mencionados e juntos pelo requerente e do processo administrativo apresentado pela AT com a Resposta e são, para além disso, alegados pela Requerente sem impugnação pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

A (in)competência material do Tribunal Arbitral

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira, além de outras exceções, suscita as questões da incompetência deste Tribunal Arbitral para apreciar o pedido de regularização de IVA e para conhecimento do pedido de anulação do acto de autoliquidação, na sequência de pedido de revisão oficiosa.

Uma vez que as questões de incompetência são logicamente de conhecimento prioritário, como está reconhecido no artigo 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, começar-se-á pela apreciação das questões de incompetência colocadas.

 

Pede a requerente que seja declarada a ilegalidade e anulado o acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e do subsequente recurso hierárquico e a consequente declaração da ilegalidade do acto de autoliquidação de IVA referente ao exercício de 2008 com a sua consequente anulação e demais consequências legais.

 

 Vejamos a questão.

 

A competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é, em primeiro lugar, limitada às matérias indicadas no artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT).

Refere-se nesta norma que a competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:

a) A declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;

b) A declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais; (redação da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro)

Para além da apreciação direta da legalidade de atos deste tipo, incluem-se ainda nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD competências para apreciar atos de segundo ou terceiro grau que tenham por objeto a apreciação da legalidade de atos daqueles tipos, designadamente de atos que decidam reclamações graciosas e recursos hierárquicos, como se depreende das referências expressas que se fazem no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT ao n.º 2 do artigo 102.º do CPPT (que se reporta à impugnação judicial de decisões de reclamações graciosas) e à «decisão do recurso hierárquico».

Assim, é manifesto que não se insere no âmbito destas competências apreciar a legalidade ou ilegalidade de decisões de indeferimento de pedidos de regularização de IVA.

 

Questão da incompetência deste Tribunal Arbitral para apreciar de declaração de ilegalidade de acto de autoliquidação de IVA

 

A Requerente pede também que se declare a ilegalidade de atos de autoliquidação de IVA, pedido este que se enquadra na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, atrás reproduzida.

No entanto, ao abrigo do artigo 4.º, n.º 1, do RJAT, o Governo restringiu a vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, estabelecendo que «a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos».

Em face desta segunda limitação da competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, a resolução da questão da competência depende essencialmente dos termos desta vinculação, pois, mesmo que se esteja perante uma situação enquadrável naquele art. 2.º do RJAT, se ela não estiver abrangida pela vinculação estará afastada a possibilidade de o litígio ser jurisdicionalmente decidido por este Tribunal Arbitral.

A vinculação veio a concretizar-se com a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, que no seu artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, estabelece que se excetuam da vinculação «pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário».

A referência expressa ao precedente «recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser interpretada como reportando-se aos casos em que tal recurso é obrigatório, através da reclamação graciosa, que é o meio administrativo indicado naqueles arts. 131.º a 133.º do CPPT, para que cujos termos se remete. Na verdade, desde logo, não se compreenderia que, não sendo necessária a impugnação administrativa prévia «quando o seu fundamento for exclusivamente matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efetuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária» (art. 131.º, n.º 3, do CPPT, aplicável aos casos de retenção na fonte, por força do disposto no n.º 6 do art. 132.º do mesmo Código), se fosse afastar a jurisdição arbitral por essa impugnação administrativa, que se entende ser desnecessária, não ter sido efetuada.

No caso em apreço, não se provou que a autoliquidação tivesse «sido efetuada de acordo com orientação genéricas da administração tributária», nem foi apresentada reclamação graciosa nos termos do artigo 131.º do CPPT.

No entanto, foi apresentado pedido de revisão oficiosa em que a Requerente fez referência a atos de liquidação de IVA incorretamente praticados, segundo alega, como suporte do pedido de regularização que formulou.

Assim, importa, antes de mais, esclarecer se a declaração de ilegalidade de atos de indeferimento de pedidos de revisão do acto tributário, previstos no art. 78.º da LGT, se inclui nas competências atribuídas aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD pelo art. 2.º do RJAT.

Na verdade, neste art. 2.º não se faz qualquer referência expressa a estes atos, ao contrário do que sucede com a autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, que refere os «pedidos de revisão de atos tributários» e «os atos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de atos de liquidação».

 No entanto, a fórmula «declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta», utilizada na alínea a) do n.º 1 do art. 2.º do RJAT não restringe, numa mera interpretação declarativa, o âmbito da jurisdição arbitral aos casos em que é impugnado diretamente um acto de um daqueles tipos. Com efeito, a ilegalidade de atos de liquidação pode ser declarada jurisdicionalmente como corolário da ilegalidade de um acto de segundo grau (reclamação graciosa) ou de terceiro grau (recurso hierárquico), que confirme um acto de liquidação, incorporando a sua ilegalidade.

A inclusão nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD dos casos em que a declaração de ilegalidade dos atos aí indicados é efetuada através da declaração de ilegalidade de atos de segundo grau ou de terceiro grau, que são o objeto imediato da pretensão impugnatória, resulta com segurança da referência que naquela norma é feita aos atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta, que expressamente se referem como incluídos entre as competências dos tribunais arbitrais. Com efeito, relativamente a estes atos é imposta, como regra, a reclamação graciosa necessária, nos arts. 131.º a 133.º do CPPT, pelo que, nestes casos, o objeto imediato do processo impugnatório é, em regra, o acto de segundo grau que aprecia a legalidade do acto de liquidação, acto aquele que, se o confirma, tem de ser anulado para se obter a declaração de ilegalidade do acto de liquidação. A referência que na alínea a) do n.º 1 do art. 10.º do RJAT se faz ao n.º 2 do art. 102.º do CPPT, em que se prevê a impugnação de atos de indeferimento de reclamações graciosas, desfaz quaisquer dúvidas de que se abrangem nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD os casos em que a declaração de ilegalidade dos atos referidos na alínea a) daquele art. 2.º do RJAT tem de ser obtida na sequência da declaração da ilegalidade de atos de segundo grau.

Aliás, foi precisamente neste sentido que o Governo, na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, interpretou estas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, ao afastar do âmbito dessas competências as «pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», o que tem como alcance restringir a sua vinculação os casos em que esse recurso à via administrativa foi utilizado.

Obtida a conclusão de que a fórmula utilizada na alínea a) do n.º 1 do art. 2.º do RJAT não exclui os casos em que a declaração de ilegalidade resulta da ilegalidade de um acto de segundo grau, ela abrangerá também os casos em que o acto de segundo grau é o de indeferimento de pedido de revisão do acto tributário, pois não se vê qualquer razão para restringir, tanto mais que, nos casos em que o pedido de revisão é efetuados no prazo da reclamação graciosa, ele deve ser equiparado a uma reclamação graciosa.

A referência expressa ao artigo 131.º do CPPT que se faz no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 não pode ter o alcance decisivo de afastar a possibilidade de apreciação de pedidos de ilegalidade de atos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa de atos de autoliquidação.

Na verdade, a interpretação exclusivamente baseada no teor literal que defende a Autoridade Tributária e Aduaneira no presente processo não pode ser aceite, pois na interpretação das normas fiscais são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis (artigo 11.º, n.º 1, da LGT) e o artigo 9.º n.º 1, proíbe expressamente as interpretações exclusivamente baseadas no teor literal das normas ao estatuir que «a interpretação não deve cingir-se à letra da lei», devendo, antes, «reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada».

Quanto a correspondência entre a interpretação e a letra da lei, basta «um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso» (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil) o que só impedirá que se adotem interpretações que não possam em absoluto compaginar-se com a letra da lei, mesmo reconhecendo nela imperfeição na expressão da intenção legislativa.

Por isso, a letra da lei não é obstáculo a que se faça interpretação declarativa, que explicite o alcance do teor literal, nem mesmo interpretação extensiva, quando se possa concluir que o legislador disse menos do que o que, em coerência, pretenderia dizer, isto é, quando disse imperfeitamente o que pretendia dizer. Na interpretação extensiva «é a própria valoração da norma (o seu “espírito”) que leva a descobrir a necessidade de estender o texto desta à hipótese que ela não abrange», «a força expansiva da própria valoração legal é capaz de levar o dispositivo da norma a cobrir hipóteses do mesmo tipo não cobertas pelo texto[3]».

A interpretação extensiva, assim, é imposta pela coerência valorativa e axiológica do sistema jurídico, erigida pelo artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil em critério interpretativo primordial pela via da imposição da observância do princípio da unidade do sistema jurídico.

É manifesto que o alcance da exigência de reclamação graciosa prévia, necessária para abrir a via contenciosa de impugnação de atos de autoliquidação, prevista no n.º 1 do artigo 131.º do CPPT, tem como única justificação o facto de relativamente a esse tipo de atos não existir uma tomada de posição da Administração Tributária sobre a legalidade da situação jurídica criada com o acto, posição essa que até poderá vir a ser favorável ao contribuinte, evitando a necessidade de recurso à via contenciosa.

Na verdade, além de não se vislumbrar qualquer outra justificação para a essa exigência, o facto de estar prevista idêntica reclamação graciosa necessária para impugnação contenciosa de atos de retenção na fonte e de pagamento por conta (nos artigos 132.º, n.º 3, e 133.º, n.º 2, do CPPT), que têm de comum com os atos de autoliquidação a circunstância de também não existir uma tomada de posição da Administração Tributária sobre a legalidade dos atos, confirma que é essa a razão de ser daquela reclamação graciosa necessária.

Uma outra confirmação inequívoca de que é essa a razão de ser da exigência de reclamação graciosa necessária encontra-se no n.º 3, do artigo 131.º do CPPT, ao estabelecer que «sem prejuízo do disposto nos números anteriores, quando o seu fundamento for exclusivamente matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efetuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária, o prazo para a impugnação não depende de reclamação prévia, devendo a impugnação ser apresentada no prazo do n.º 1 do artigo 102.º». Na verdade, em situações deste tipo, houve uma pronúncia prévia genérica da Administração Tributária sobre a legalidade da situação jurídica criada com o acto de autoliquidação e é esse facto que explica que deixe de exigir-se a reclamação graciosa necessária.

Ora, nos casos em que é formulado um pedido de revisão oficiosa de acto de liquidação é proporcionada à Administração Tributária, com este pedido, uma oportunidade de se pronunciar sobre o mérito da pretensão do sujeito passivo antes de este recorrer à via jurisdicional, pelo que, em coerência com as soluções adotadas nos n.ºs 1 e 3 do artigo 131.º do CPPT, não pode ser exigível que, cumulativamente com a possibilidade de apreciação administrativa no âmbito desse procedimento de revisão oficiosa, se exija uma nova apreciação administrativa através de reclamação graciosa[4].

Por outro lado, é inequívoco que o legislador não pretendeu impedir aos contribuintes a formulação de pedidos de revisão oficiosa nos casos de atos de autoliquidação, pois estes são expressamente referidos no n.º 2 do artigo 78.º da LGT.

Neste contexto, permitindo a lei expressamente que os contribuintes optem pela reclamação graciosa ou pela revisão oficiosa de atos de autoliquidação e sendo o pedido de revisão oficiosa formulado no prazo da reclamação graciosa perfeitamente equiparável a uma reclamação graciosa, como se referiu, não pode haver qualquer razão que possa explicar que não possa aceder à via arbitral um contribuinte que tenha optado pela revisão do acto tributário em vez da reclamação graciosa.

Por isso, é de concluir que os membros do Governo que emitiram a Portaria n.º 112-A/2011, ao fazerem referência ao artigo 131.º do CPPT relativamente a pedidos de declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, disseram imperfeitamente o que pretendiam, pois, pretendendo impor a apreciação administrativa prévia à impugnação contenciosa de atos de autoliquidação, acabaram por incluir referência ao artigo 131.º que não esgota as possibilidades de apreciação administrativa desses atos.

Aliás, é de notar que esta interpretação não se cingindo ao teor literal até se justifica especialmente no caso da alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, por serem evidentes as suas imperfeições: uma, é associar a fórmula abrangente «recurso à via administrativa» (que referencia, além da reclamação graciosa, o recurso hierárquico e a revisão do acto tributário) à expressão  «nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», que tem potencial alcance restritivo à reclamação graciosa; outra é utilizar a fórmula «precedidos» de recurso à via administrativa, reportando-se às «pretensões relativas às declarações de ilegalidade de atos», que, obviamente, se coadunariam muito melhor com a feminina palavra «precedidas».

Por isso, para além da proibição geral de interpretações limitadas à letra da lei que consta do artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil, no específico caso da alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 há uma especial razão para não se justificar grande entusiasmo por uma interpretação literal, que é o facto de a redação daquela norma ser manifestamente defeituosa.

Para além disso, assegurando a revisão do acto tributário a possibilidade de apreciação da pretensão do contribuinte antes do acesso à via contenciosa que se pretende alcançar com a impugnação administrativa necessária, a solução mais acertada, porque é a mais coerente com o desígnio legislativo de «reforçar a tutela eficaz e efetiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos contribuintes» manifestado no n.º 2 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, é a admissibilidade da via arbitral para apreciar a legalidade de atos de liquidação previamente apreciada em procedimento de revisão.

E, por ser a solução mais acertada, tem de se presumir ter sido normativamente adotada (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil).

Por outro lado, contendo aquela alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 uma fórmula imperfeita, mas que contém uma expressão abrangente «recurso à via administrativa», que potencialmente referencia também a revisão do acto tributário, encontra-se no texto o mínimo de correspondência verbal, embora imperfeitamente expresso, exigido por aquele n.º 3 do artigo 9.º para a viabilidade da adoção da interpretação que consagre a solução mais acertada.

É de concluir, assim, que o artigo 2.º alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011, devidamente interpretado com base nos critérios de interpretação da lei previstos no artigo 9.º do Código Civil e aplicáveis às normas tributárias substantivas a adjetivas, por força do disposto no artigo 11.º, n.º 1, da LGT, viabiliza a apresentação de pedidos de pronúncia arbitral relativamente a atos de autoliquidação que tenham sido precedidos de pedido de revisão oficiosa/recurso hierárquico.

 

 Questão da incompetência por no pedido de revisão oficiosa não ter sido apreciada a legalidade de atos de liquidação

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira questiona a competência material deste Tribunal Arbitral também por no acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa não ter sido apreciada a legalidade de atos de liquidação e, por isso, não se estar perante acto que seja susceptível de ser impugnado através de impugnação judicial, cujo âmbito não pode ser excedido pelo processo arbitral.

            No art. 2.º do RJAT, em que se define a «Competência dos tribunais arbitrais», não se inclui expressamente a apreciação de pretensões de declaração de ilegalidade de atos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa de atos tributários, pois, na redação introduzida pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, apenas se indica a competência dos tribunais arbitrais para «a declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta» e «a declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais».

            Porém, o facto de a alínea a) do n.º 1 do art. 10.º do RJAT fazer referência aos n.ºs 1 e 2 do art. 102.º do CPPT, em que se indicam os vários tipos de atos que dão origem ao prazo de impugnação judicial, inclusivamente a reclamação graciosa, deixa perceber que serão abrangidos no âmbito da jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD todos os tipos de atos passíveis de serem impugnados através processo de impugnação judicial, abrangidos por aqueles n.ºs 1 e 2, desde que tenham por objeto um acto de um dos tipos indicados naquele art. 2.º do RJAT.

Aliás, esta interpretação no sentido da identidade dos campos de aplicação do processo de impugnação judicial e do processo arbitral é a que está em sintonia com a referida autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, concedida pelo art. 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, em que se revela a intenção de o processo arbitral tributário constitua «um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária» (n.º 2).

Mas, este mesmo argumento que se extrai da autorização legislativa conduz à conclusão de que estará afastada a possibilidade de utilização do processo arbitral quando, no processo judicial tributário, não for utilizável a impugnação judicial ou a ação para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo.

Na verdade, sendo este o sentido da referida lei de autorização legislativa e inserindo-se na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República legislar sobre o «sistema fiscal», inclusivamente as «garantias dos contribuintes» [arts. 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP], e sobre a «organização e competência dos tribunais» [art. 165.º, n.º 1, alínea p), da CRP], não pode o referido art. 2.º do RJAT, sob pena de inconstitucionalidade, por falta de cobertura na lei de autorização legislativa que limita o poder do Governo (art. 112.º, n.º 2, da CRP), ser interpretado como atribuindo aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD competência para a apreciação da legalidade de outros tipos de atos, para cuja impugnação não são adequados o processo de impugnação judicial e a ação para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo.

Assim, para resolver a questão da competência deste Tribunal Arbitral torna-se necessário apurar se a legalidade do acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa podia ou não ser apreciada, num tribunal tributário, através de processo de impugnação judicial ou ação para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo.

O acto de indeferimento de um pedido de revisão oficiosa do acto tributário constitui um acto administrativo, à face da definição fornecida pelo art. 120.º do CPA [subsidiariamente aplicável em matéria tributária, por força do disposto no art. 2.º, alínea d), da LGT, 2.º, alínea d), do CPPT, e 29.º, n.º 1, alínea d), do RJAT], pois constitui uma decisão de um órgão da Administração que ao abrigo de normas de direito público visou produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta.

Por outro lado, é também inquestionável que se trata de um acto em matéria tributária, pois é feita nele a aplicação de normas de direito tributário.

Assim, aquele acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa constitui um «acto administrativo em matéria tributária».

Das alíneas d) e p) do n.º 1 e do n.º 2 do art. 97.º do CPPT infere-se a regra de a impugnação de atos administrativos em matéria tributária ser feita, no processo judicial tributário, através de impugnação judicial ou ação administrativa especial (que sucedeu ao recurso contencioso, nos termos do art. 191.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos) conforme esses atos comportem ou não comportem a apreciação da legalidade de atos administrativos de liquidação.

Eventualmente, como exceção a esta regra poderão considerar-se os casos de impugnação de atos de indeferimento de reclamações graciosas, pelo facto de haver uma norma especial, que é o n.º 2 do art. 102.º do CPPT, de que se pode depreender que a impugnação judicial é sempre utilizável. Outras exceções àquela regra poderão encontrar-se em normas especiais, posteriores ao CPPT, que expressamente prevejam o processo de impugnação judicial como meio para impugnar determinado tipo de atos[5].

Mas, nos casos em que não há normas especiais, é de aplicar aquele critério de repartição dos campos de aplicação do processo de impugnação judicial e da ação administrativa especial.

À face deste critério de repartição dos campos de aplicação do processo de impugnação judicial e da ação administrativa especial, os atos proferidos em procedimentos de revisão oficiosa ou em sede de recurso hierárquico, de atos de autoliquidação, apenas poderão ser impugnados através de processo de impugnação judicial quando comportem a apreciação da legalidade destes atos de autoliquidação. Se o acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa de acto de autoliquidação não comporta a apreciação da legalidade deste será aplicável a ação administrativa especial para o impugnar. Trata-se de um critério de distinção dos campos de aplicação dos referidos meios processuais de duvidosa justificação, mas o certo é que é o que resulta do teor das alíneas d) e p) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT e tem vindo a ser uniformemente adotado pelo Supremo Tribunal Administrativo[6].

Esta constatação de que há sempre um meio impugnatório processual adequado para impugnar contenciosamente o acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa/recurso hierárquico de acto de autoliquidação, conduz, desde logo, à conclusão de que não se está perante uma situação em que no processo judicial tributário pudesse ser utilizada a ação para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo, pois a sua aplicação no contencioso tributário tem natureza residual, uma vez que essas ações «apenas podem ser propostas sempre que esse meio processual for o mais adequado para assegurar uma tutela plena, eficaz e efetiva do direito ou interesse legalmente protegido» (art. 145.º, n.º 3, do CPPT).

Uma outra conclusão que permite a referida delimitação dos campos de aplicação do processo de impugnação judicial e da ação administrativa especial é a de que, restringindo-se a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD ao campo de aplicação do processo de impugnação judicial, apenas se inserem nesta competência os pedidos de declaração de ilegalidade de atos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa de atos autoliquidação que comportem a apreciação da legalidade destes atos (grifado nosso).

A preocupação legislativa em afastar das competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD a apreciação da legalidade de atos administrativos que não comportem a apreciação da legalidade de atos de liquidação, para além de resultar, desde logo, da diretriz genérica de criação de um meio alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo, resulta com clareza da alínea a) do n.º 4 do art. 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, em que se indicam entre os objetos possíveis do processo arbitral tributário «os atos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de atos de liquidação», pois esta especificação apenas se pode justificar por uma intenção legislativa no sentido de excluir dos objetos possíveis do processo arbitral a apreciação da legalidade dos atos que não comportem a apreciação da legalidade de atos de liquidação.

            Por isso, a solução da questão da competência deste Tribunal Arbitral conexionada com o conteúdo do acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, depende da análise deste acto.

            No caso em apreço, o motivo invocado para o indeferimento da revisão oficiosa foi a intempestividade da pretendida regularização, o que, obviamente, não implica apreciação da legalidade ou não de qualquer acto de liquidação ou de autoliquidação.

            Porém, à face do critério de repartição dos campos do processo de impugnação judicial e da ação administrativa especial delineado pelas alíneas d) e p) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT, não é necessário que a apreciação da legalidade de um acto de liquidação seja o fundamento da decisão procedimental ou que no pedido formulado se peça a apreciação da legalidade de um acto de liquidação, bastando que esse acto a comporte, o que, neste contexto, significa que no acto impugnado se inclua um juízo sobre a legalidade de um acto de liquidação, mesmo que não seja a sua legalidade ou ilegalidade o fundamento da decisão.

            Ora, no caso em apreço, não se pode entender que a decisão do pedido de revisão oficiosa inclua a apreciação da legalidade de qualquer acto de liquidação ou autoliquidação.

            Neste contexto fáctico, a interpretação a fazer da decisão de indeferimento dos pedidos de revisão oficiosa do recurso hierárquico, é a de que nesses atos (de indeferimento da reclamação e não provimento do recurso) apenas se abordou abstratamente a questão da tributação das atividades referidas na alínea da matéria de facto fixada, mas não se tomou qualquer posição sobre a sua aplicação às operações alegadamente referidas [não dedução de IVA suportado na aquisição de bens e serviços de utilização mista, no ano 2008 – cfr. alíneas a) e d), dos factos provados] nem sobre os montantes que se poderiam considerar terem sido indevidamente liquidados.

            Por outro lado, se é certo que a Autoridade Tributária e Aduaneira poderia ter diligenciado, em sintonia com o preceituado no artigo 48.º do CPPT, no sentido de a requerente apresentar as faturas ou documentos necessários para apuramento da legalidade do pedido de regularização, também o é que tal seria inútil à face da posição assumida no sentido da intempestividade do pedido de regularização.

            Por isso, tem de se concluir que a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa não comporta a apreciação da legalidade de qualquer concreto acto de liquidação de IVA.

            Sendo assim, pelo que atrás se disse sobre a limitação das competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD à apreciação da legalidade de atos de decisão de pedidos de revisão oficiosa ou recurso hierárquico que comportem a apreciação da legalidade de atos de liquidação, tem de se concluir pela incompetência deste Tribunal Arbitral para apreciar a legalidade do acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa.

Conclui-se, assim, que procede a exceção da incompetência material deste Tribunal Arbitral para apreciar a legalidade do acto de indeferimento da revisão oficiosa.

 

Questão da tempestividade para impugnação direta dos atos de liquidação de IVA

 

No pedido de pronúncia arbitral a Requerente indica que tem em vista a «declaração de ilegalidade do acto de liquidação praticado em sede de IVA» e, na alínea a) dos pedidos que formulou, pede que seja declarado «ilegal o acto de autoliquidação».

A Autoridade Tributária e Aduaneira defende que o pedido de pronúncia arbitral é intempestivo na parte em que se reporta ao pedido de declaração de ilegalidade de atos de liquidação, objeto mediato do pedido de revisão oficiosa, pois a autoliquidação pretensamente ilegal terá ocorrido em 2008, muito antes do prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, do RJAT.

Na verdade, o artigo 10.º, n.º 1, do RJAT estabelece que «o pedido de constituição de tribunal arbitral é apresentado» «no prazo de 90 dias, contado a partir dos factos previstos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, quanto aos atos susceptíveis de impugnação autónoma e, bem assim, da notificação da decisão ou do termo do prazo legal de decisão do recurso hierárquico» e «no prazo de 30 dias, contado a partir da notificação dos atos previstos nas alíneas b) e c) do artigo 2.º, nos restantes casos».

No caso em apreço, não havendo notificação de atos de autoliquidação, o início do prazo de 90 dias tem lugar com o conhecimento do acto, nos termos do artigo 102.º, n.º 1, alínea f), do CPPT, conjugado com a alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT.

Por isso, tendo a autoliquidação ocorrido em 2008, é manifesto que é intempestivo o pedido de pronúncia arbitral para impugnar diretamente os atos de autoliquidação.

 

 

De harmonia com o exposto procedem as exceções da incompetência material e da intempestividade suscitadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira, pelo que se verificam obstáculos à apreciação de ambos os pedidos formulados pela Requerente.

Consequentemente, impõe-se absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira da instância, ficando prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no processo.

 

Decisão

 

Nestes termos, acordam neste Tribunal Arbitral em:

– julgar procedentes as exceções da incompetência material deste Tribunal Arbitral para apreciar o pedido de regularização de IVA e da legalidade do acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e a exceção da intempestividade quanto ao pedido de declaração de ilegalidade de autoliquidação;

– absolver da instância a Autoridade Tributária e Aduaneira em relação a ambos os pedidos.

 

    

 

Valor do processo

De harmonia com o disposto no art. 315.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 111.600,73.

 

Custas

Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 3.060,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.

 

Lisboa, 9 de dezembro de 2014

 

O Tribunal Arbitral Coletivo

 

José Poças Falcão

(árbitro presidente)

 

 

 

 

Marta Gaudêncio

(árbitro vogal)

 

 

 

 

António Nunes dos Reis

(árbitro vogal)

 

 



[1] A alusão a “documentos” sem outra menção refere-se a documentos juntos pela requerente com o pedido de pronúncia arbitral.

[2] O doc 1 é o pedido é o pedido de revisão oficiosa com referência a 2008 e o doc 2 é o ofício nº …, de 18 de julho de 2013 que notifica o despacho de indeferimento do pedido de revisão oficiosa.

[3] BAPTISTA MACHADO, Lições de Direito Internacional Privado, 4.ª edição, página 100.

 

[4] Essencialmente neste sentido, podem ver-se os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 12-7-2006, proferido no processo n.º 402/06, e de 14-11-2007, processo n.º 565/07.

 

[5] Exemplo de uma situação deste tipo é a do art. 22.º, n.º 13, do CIVA, em que se prevê a utilização do processo de impugnação judicial para impugnar atos de indeferimento de pedidos de reembolso.

[6] No sentido de o meio processual adequado para conhecer da legalidade de acto de decisão de procedimento de revisão oficiosa de acto de liquidação ser a ação administrativa especial (que sucedeu ao recurso contencioso, nos termos do art. 191.º do CPTA) se nessa decisão não foi apreciada a legalidade do acto de liquidação, podem ver-se os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 20-5-2003, processo n.º 638/03; de 8-10-2003, processo n.º 870/03; de 15-10-2003, processo n.º 1021/03; de 24-3-2004, processo n.º 1588/03, de 6-11-2008, processo n.º 357/08.

Adotando o entendimento de que o processo de impugnação judicial é o meio processual adequado para impugnar atos de indeferimento de reclamações graciosas que tenham apreciado a legalidade de atos de liquidação, podem ver-se os acórdãos do STA de 15-1-2003, processo n.º 1460/02; de 19-2-2003, processo n.º 1461/02; e de 29-2-2012, processo n.º 441/11.