Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 241/2014-T
Data da decisão: 2014-10-06  IUC  
Valor do pedido: € 1.989,26
Tema: IUC – Incidência subjectiva
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DECISÃO ARBITRAL

 

 

I – RELATÓRIO

A. – PARTES

 

    A, S.A., a seguir designada por Requerente, pessoa colectiva nº …, com sede na …. …, veio requerer em 7 de Março de 2014 a constituição do tribunal arbitral singular em matéria tributária, ao abrigo do prescrito no art. 2º, nº 1, alínea a) do Decreto – Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico de Arbitragem Tributária -RJAT) e nos arts. 1º, alínea a) e 2º da Portaria nº 112 – A/2011, de 22 de Março, com a finalidade de ser dirimido o litígio que a opõe à Autoridade Tributária e Aduaneira, que doravante será designada por Requerida.

 

B. – CONSTITUIÇÃO DO TRIBUNAL

 

1. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD em 10/03/2014 e automaticamente notificado à Requerente e à Autoridade Tributária e Aduaneira em 12/03/2014, tendo o Presidente do respectivo Conselho Deontológico designado o signatário como árbitro do Tribunal Arbitral Singular, ao abrigo do disposto no art. 6º, nº 1, do RJAT, encargo este que foi aceite, nos termos legalmente estabelecidos.

 

2. Em 28/04/2014, as Partes foram notificadas dessa designação, nos termos das disposições combinadas do art. 11º, nº 1, alínea b) do RJAT, nos artigos 6º e 7º do Código Deontológico, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro.

 

3. Nestas circunstâncias, o Tribunal foi constituído em 14/05/2014, nos termos do preceituado na alínea c), do nº 1, do art. 11º do Decreto – Lei nº 10/2011, o que foi notificado às Partes nessa data.

 

                                            

C. – PRETENSÃO

 

    A Requerente pretende que o Tribunal Arbitral declare a ilegalidade e a consequente anulação dos actos de liquidação oficiosa de Imposto Único de Circulação, cuja apreciação conjunta requer, relativo aos anos fiscais de 2009 a 2012 e às viaturas identificadas nos autos, no valor de 1.989,26 euros, nos termos descritos no Pedido de Pronúncia Arbitral.

 

D. – TRAMITAÇÃO DO PROCESSO

 

    Após a comunicação da data da constituição do Tribunal Arbitral, em 14/05/2014, seguiram-se os posteriores termos processuais na forma seguinte:

 

   - Em 15/05/2014 – Foi notificada a Requerida para, nos termos dos nºs 1 e 2 do art. 17º do RJAT, apresentar resposta no prazo de 30 dias e, querendo, solicitar produção de prova adicional e remeter ao Tribunal Arbitral cópia do processo administrativo, por via electrónica.

 

   - Em 16/06/2014 – A Requerida apresentou Resposta ao Pedido de Pronúncia Arbitral, remeteu despacho de designação dos juristas representantes da Requerida e inseriu na “Plataforma” online do CAAD o processo administrativo, tendo sido, de tudo, notificada a Requerente.

 

   - Em 24/06/2014 – O Tribunal designou o dia 14/07/2014 para a reunião prevista no art. 18º do RJAT, o que foi notificado às Partes.

 

   - Em 14/07/2014 – Realizou-se a reunião prevista no art. 18º do RJAT, de que resultou, o seguinte:

 

   - A Requerente solicitou um prazo de 24 horas para rectificar o valor do pedido constante do requerimento de apresentação a Tribunal Arbitral, harmonizando-o com o que consta do Pedido de Pronúncia, o que efectuou, sem que a contraparte se pronunciasse em idêntico prazo.

 

   - As Partes, ouvidas para o efeito, declararam não invocar qualquer excepção susceptível de ser apreciada e decidida antes do conhecimento do pedido.

 

   - As Partes declaram prescindir da produção adicional de prova e das alegações orais.

 

   - Para alegações escritas, sucessivas, foi fixado o prazo de dez dias a ser contado a partir de 1 de Setembro de 2014.

 

   - Marcação da data da prolação da decisão para 06/10/2014.

 

   - Em 10/09/2014 – A Requerente apresentou as suas alegações escritas.

 

   - Em 19/09/2014 – A Requerida apresentou as suas alegações escritas.

 

   - Em 23/09/2014 – A Requerida apresentou um requerimento para serem juntas ao processo duas decisões arbitrais.

 

   - Em 26/09/2014 – O Tribunal Arbitral indeferiu este requerimento por estar encerrada a discussão da causa.

 

   - Em 06/10/2014 – Prolação da decisão.

 

E. – PRETENSÃO DA REQUERENTE E SEUS FUNDAMENTOS

 

    A fundamentar o Pedido de Pronúncia Arbitral, a Requerente, alegou, em síntese, o seguinte:

     - A Requerente é uma Instituição Financeira de Crédito que se dedica, entre outros, à celebração de contratos de concessão de crédito para efeitos de aquisição de viaturas, nomeadamente mediante a celebração de contratos de mútuo.

 

     - E que, no âmbito da referida actividade comercial, a Requerente celebrou os contratos de mútuo com os contribuintes cujos números de identificação constam da Tabela Anexa que junta como Anexo I, ao Pedido de Pronúncia Arbitral.

 

     - Para aquisição dos veículos com as matrículas igualmente aí discriminadas, tudo conforme cópias dos contratos de mútuo celebrados e das Facturas de Venda emitidas em nome dos mutuários que junta como Anexos II e III ao Pedido de Pronúncia Arbitral.

 

     - Refere que, nestas situações, a propriedade das viaturas pertence exclusivamente aos mutuários, sendo a Requerente apenas detentora de uma eventual garantia sobre os mesmos: hipoteca ou reserva de propriedade, não podendo ser de outra forma, atenta a natureza dos contratos em apreço.

 

     - Cita o disposto no artigo 3º, nº. 1 do CIUC, sob a epígrafe de Incidência Subjectiva: “São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome dos quais os mesmos se encontram registados”.

 

     - Alegando que os contratos de financiamento para aquisição a crédito (mútuo) celebrados entre a ora Requerente e os mutuários, tinham por objecto veículos automóveis que eram adquiridos por estes últimos pela celebração de um contrato de compra e venda com o fornecedor, conforme Facturas de Venda que junta como Anexo III ao Pedido de Pronúncia Arbitral.

 

     - Alega ainda, que o contrato de compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço (cfr. artigo 874º do Código Civil).

 

     - Assim, os contratos de compra e venda são contratos com eficácia real (quod effectum), no sentido em que a transferência da propriedade ou da posse se verifica em consequência do próprio contrato de compra e venda (artigo 879º e 408º do Código Civil).

 

     - Pelo que os verdadeiros proprietários dos veículos automóveis em causa eram, e sempre foram, os mutuários.

 

     - Daí que, na sua opinião, a junção dos contratos de mútuo celebrados, bem como das Facturas de Venda, são suficiente para prova e posse dos mesmos pelos adquirentes.

 

     - Pois, a Requerente limita-se tão-só a conceder um crédito de determinado montante para aquisição de um veiculo automóvel, não ficando, por forma alguma, ligada ao bem financiado a não ser enquanto credora do montante concedido ao mutuário e beneficiária da respectiva hipoteca ou reserva de propriedade.

 

      - Durante o mês de Agosto de 2013, a Requerente foi notificada para exercer o seu direito de Audição Prévia, antes da liquidação do imposto relativo aos anos fiscais supra referidos e em relação aos veículos descritos na Tabela junta como Anexo I, ao Pedido de Pronúncia Arbitral nos termos da alínea a) do nº. 1 do artigo 60º da Lei Geral Tributária.

 

     - Tendo em 11 de Outubro de 2013, procedido ao exercício do seu direito de Audição Prévia, conforme Anexo IV que junta ao Pedido de Pronúncia Arbitral, por intermédio do qual expôs à Administração Tributária, as razões de facto e direito pelas quais não concordava com a liquidação do IUC nos anos fiscais em causa.

 

     - Em resposta ao exercício do direito de Audição Prévia apresentada, a Autoridade Tributária Aduaneira indeferiu, na grande maioria dos casos, o pedido formulado, determinando o prosseguimento do processo de liquidação oficiosa, com base nos seguintes fundamentos, conforme Anexo V que junta ao Pedido de Pronúncia Arbitral:

- o facto gerador do IUC é constituído pela propriedade do veiculo, tal como atestada pela matricula ou registo em território nacional – cfr. artigo 6º, nº. 1;

- são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados – cfr. artigo 3º, nº. 1;

- são equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade bem como outros titulares de direito de opção de compra por força do contrato de locação – cfr. artigo 3º, nº. 2;

- o imposto considera-se exigível no primeiro dia do período de tributação – cfr. artigo 6º, nº. 3;

- segundo os elementos disponíveis naquele serviço de finanças, os veículos em causa encontram-se registados em nome da A, S.A.

 

     - Mais alega que, ainda se, por mera hipótese se admita que no registo automóvel conste o nome da Requerente como proprietária dos veículos em causa, tal facto dever-se-á a um erro de registo, uma vez que apenas deveria constar averbado a favor da Requerente uma eventual reserva de propriedade.

 

     - Acrescendo a isto que o artigo 3º do CIUC contém uma presunção legal de incidência subjectiva do imposto, ainda que de forma implícita.

 

     - E que, na lei fiscal existem diversas presunções legais, referindo, entre outros exemplos, a definição da incidência subjectiva do ICI, ICA e do IMV, impostos que o actual IUC veio substituir, nos quais o legislador estabeleceu que “o imposto é devido pelos proprietários dos veículos, presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas em nome de quem os mesmos se encontrem matriculados ou registados”.

 

     - E o disposto no artigo 3º, nº. 1 do Regulamento dos Impostos de Circulação e Camionagem, aprovado pelo Decreto-Lei nº. 116/94, de 3 de Maio, que estabelece que são sujeitos passivos do tributo “os proprietários dos veículos presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas singulares ou colectivas em nome das quais os mesmos se encontrem registados”.

 

     - Razão pela qual, entende que, ainda que o legislador tenha optado, no artigo 3º do CIUC, por uma formulação diversa das supras referidas, a mesma não deixa de ter, ainda que implicitamente, uma presunção legal, por dois motivos:

 

     - Em primeiro lugar, porque a norma em causa molda-se ao conceito de presunção legal constante do artigo 349º do Código Civil, sendo irrelevante se a presunção é explicíta ou implícita.

 

     - Em segundo lugar, porque a liberdade de conformação do legislador é limitada aos princípios fundamentais consagrados na Constituição da República Portuguesa, neste caso, ao princípio da igualdade.

 

     - Concluindo que a presunção em causa pode ser ilidida, mediante prova em contrário (nos termos do artigo 73º da Lei Geral Tributária), ou seja, com prova que fundamente que a Requerente não teve qualquer intervenção no contrato que originou a transferência de propriedade dos veículos entre os vendedores e os compradores.

 

     - Acrescendo ainda que a interpretação da referida norma legal deve, no entendimento da Requerente, subordinar-se, designadamente, ao princípio do inquisitório com vista à descoberta da verdade material.

 

     - Constituindo tais princípios regras fundamentais impostas à Administração Pública pelo artigo 266º da Constituição da República Portuguesa e que a Lei Geral Tributária acolheu, nomeadamente, nos seus artigos 55º e 58º.

 

     - Pelo que, atentos aos referidos princípios, considera a Requerente legítimo que a Autoridade Tributária comece por comunicar à pessoa que consta do registo automóvel o respectivo projecto de decisão e sua fundamentação para o exercício do direito de audição, tal como o fez.

 

     - Todavia, se o titular do direito de audição, no exercício desse direito, vier indicar e provar quem é o proprietário, nada justifica, no entendimento da Requerente, que seja responsabilizada pelo pagamento do imposto.

 

     - A Requerente, alega ainda que no exercício do seu direito de audição prévia, ilidiu a presunção de propriedade constante do artigo 3º do CIUC,

 

     - Tendo, por um lado, fornecido à Autoridade Tributária Aduaneira as facturas de venda emergentes dos contratos de compra e venda celebrados entre os mutuários e os fornecedores e, por outro lado, fornecido os elementos de identificação fiscal dos mesmos.

 

     - A Requerente conclui que nunca foi (nem pode ser considerada), comprovadamente, proprietária dos veículos automóveis melhor discriminados na tabela anexa, nem mantinha com eles qualquer relação jurídica que pudesse potenciar a exigibilidade do imposto em causa.

 

     - Refere que, não se encontrando preenchidos os pressupostos que fundamentam a relação jurídico-tributária, in casu a imputação à Requerente da responsabilidade dos IUC’s referentes aos anos e veículos automóveis discriminados na tabela anexa, jamais a Autoridade Tributária Aduaneira poderá vir exigir-lhe tal imposto por manifesta falta de responsabilidade subjectiva pelo seu pagamento (artigos 3º e 19º do CIUC).

 

     - Pelo que se verifica uma errónea qualificação da incidência subjectiva do imposto em causa, relativos aos anos fiscais supra identificados, nos termos conjugados dos artigos 3º e 19º do CIUC com a alínea a) do artigo 99º do CPPT.

 

     - Relativamente à cumulação de pedidos, a Requerente foi notificada de diversos actos de liquidação oficiosa do Imposto Único de Circulação, relativos aos anos fiscais de 2009 a 2012, efectuadas nos termos da alínea c) do nº. 1 do artigo 2º, conjugado com os artigos 3º, 4º, 6º e 11º, todos do Código de Imposto Único de Circulação, sendo que cada acto de liquidação corresponde ao seu respectivo veículo.

 

     - Sucede que, não obstante o elevado número de actos de liquidação oficiosa em causa, todos eles se referem à liquidação do mesmo tributo (Imposto Único de Circulação, relativos aos anos fiscais de 2009 a 2012), sendo que os fundamentos de facto e de direito que a Requerente apresentará, e que consubstanciam a ilegalidade dos referidos actos, são os mesmos.

 

     - Acresce ainda que o Tribunal competente para decisão de ilegalidade dos actos ora notificados é, em relação a todos eles, o mesmo, in casu, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, nos termos conjugados da alínea b) do artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais com o artigo 3º e Mapa Anexo do Decreto-Lei nº. 325/2003, de 29 de Dezembro.

 

     - De referir ainda que, atento ao princípio da economia processual, a apreciação conjunta da legalidade dos actos de liquidação oficiosa em causa evitaria, por um lado, a morosidade inerente à análise, em separado, da legalidade de cada um dos actos de liquidação ora impugnados e,

 

     - Por outro, o acréscimo de custos correspondentes à apresentação do pedido de constituição do Tribunal Arbitral para declaração de ilegalidade, em separado, para cada um dos actos de liquidação ora notificados. 

 

     - Conclui afirmando que se encontram preenchidos os pressupostos legais que permitem a cumulação de pedidos, nos termos conjugados dos artigos 104º do CPPT com o artigo 3º, nº. 1 do Regulamento Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, requerendo a V.Exa. que admita a apreciação conjunta da legalidade dos actos de liquidação oficiosa juntos como Documentos nº. 1 a 15 ao Pedido de Pronúncia Arbitral.

 

 

F. – RESPOSTA DA REQUERIDA E SEUS FUNDAMENTOS

 

    A Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou tempestivamente a sua Resposta, na qual, em síntese, alegou o seguinte:

 

    - Não infirma os actos tributários de liquidação de IUC identificados no Pedido de Pronúncia Arbitral relativos aos anos de 2009 a 2011, tendo por objecto os veículos com os números de matrícula identificados no Anexo I junto ao Pedido de Pronúncia Arbitral.

 

    - Impugna a alegada ilegitimidade da Requerente como sujeito passivo do IUC, nas situações em apreço, porquanto, no seu entender:

 

    - A Requerente faz uma leitura enviesada da letra da lei, dado que o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que os sujeitos passivos do IUC são os proprietários, ou os que se encontram nas situações indicadas no nº 2 do art. 3º do CIUC, considerando-os como tal as pessoas em cujo nome se encontram os veículos registados, razão pela qual não foi utilizada neste dispositivo legal a expressão “presumem-se”, mas sim “considerando-se”.

 

    - O normativo fiscal está repleto de previsões análogas à consagrada na parte final do nº 1 do artigo 3º, em que o legislador fiscal, dentro da sua liberdade de conformação legislativa, expressa e intencionalmente, consagra o que deve considerar-se legalmente, para efeitos de incidência, de rendimento, de isenção, de determinação e de periodização do lucro tributável, para efeitos de residência, de localização, entre muitos outros, como, por exemplo, nos artigos 2º do Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (CIMT), 2º, 3º e 4º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS) e 4º, 17º, 18º e 20º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (CIRC).

 

    - Conclui, afirmando que a interpretação feita pela Requerente de que o legislador consagrou no art. 3º, nº 1 uma presunção é uma interpretação contra legem.

 

    - Alega, ainda, a Requerida que aquela interpretação não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime que impõe a obrigatoriedade do registo automóvel, de modo a evitar que a Autoridade Tributária caia em absoluta incerteza relativamente ao sujeito passivo do IUC, colocando até em risco o decurso do prazo de caducidade, razão pela qual o legislador quis intencional e expressamente que fossem considerados como proprietários, locatários, adquirentes com reserva de propriedade ou titulares do direito de opção de compra no aluguer de longa duração, para os mencionados efeitos tributários, as pessoas em nome das quais os veículos se encontram registados.

 

    - Alega, também, a Requerida que a mencionada interpretação da Requerente ignora o elemento teleológico da interpretação da lei: a ratio do regime consagrado não só no dispositivo legal em apreço, mas também em todo o CIUC.

 

    - Considera a Requerida que o CIUC procedeu a uma reforma do regime de tributação dos veículos em Portugal, alterando de forma substancial o regime de tributação automóvel, passando os sujeitos passivos do imposto a ser os proprietários constantes do registo de propriedade, independentemente da circulação dos veículos na via pública. Isto é, o Imposto Único de Circulação passou a ser devido pelas pessoas que figuram no registo como proprietárias dos veículos.

 

    - Resulta tal conclusão do teor dos debates parlamentares em torno da aprovação do Decreto-Lei nº 20/2008, de 31 de Janeiro, da Recomendação nº 6-B/2012 do Provedor de Justiça e do espírito do CIUC que, tendo sido motivado, no essencial, por uma preocupação ambiental a sua “ratio” é a de tributar os utilizadores dos veículos, os quais, por força da respectiva utilização provocam um custo ambiental.

 

    - Alega, ainda, que a interpretação veiculada pela Requerente se mostra contrária à Constituição.

    - Pois, o sempre propalado princípio da capacidade contributiva não é o único nem o principal princípio fundamental que enforma o sistema fiscal.

 

    - Ao lado deste princípio encontramos outros com a mesma dignidade constitucional, como sejam o princípio da confiança e segurança jurídica, o princípio da eficiência do sistema tributário e o princípio da proporcionalidade.

 

    - Impondo-se por isso que na tarefa interpretativa do artigo 3.º do CIUC o princípio da capacidade contributiva seja articulado, ou se se preferir temperado, com aqueloutros princípios.

 

      - A interpretação proposta pela Requerente, uma interpretação que no fundo desvaloriza a realidade registal em detrimento de uma “realidade informal” e insusceptível de um controlo mínimo por parte da Requerida, é ofensiva do basilar princípio da confiança e segurança jurídica que deve enformar qualquer relação jurídica, aqui se incluindo a relação tributária.

 

    - Paralelamente, a interpretação dada pela Requerente é ofensiva do princípio da eficiência do sistema tributário, na medida em que se traduz num entorpecimento e encarecimento das competências atribuídas à Requerida, com óbvio prejuízo para os interesses do Estado Português, de que quer a Requerente quer a Requerida fazem parte.

 

 - A posição defendida pela Requerente é um entendimento que está nas antípodas daquele princípio e da própria reforma da tributação automóvel na medida em que, ao pretender desconsiderar a realidade registal, uma realidade que constitui a pedra angular na qual assenta todo o edifício do IUC, gera para a Requerida, e em última instância para o Estado Português, custos administrativos adicionais, entorpecimento do desempenho dos seus serviços, ausência de controlo do tributo e inutilidade dos sistemas de informação registal.

 

    - Finalmente, a argumentação veiculada pela Requerente representa uma violação do princípio da proporcionalidade, na medida em que o desconsidera totalmente no confronto com o princípio da capacidade contributiva, quando na realidade a Requerente dispõe dos mecanismos legais necessários e adequados à salvaguarda daquela sua capacidade (v.g., o registo automóvel), sem que, contudo, os tenha exercitado em devido tempo.

 

    - Acresce que a Requerente teria que fazer prova idónea dos factos constitutivos do direito que alega em juízo arbitral, o que, segundo a Requerida, não ocorre, por a prova apresentada pela Requerente não ser por si só, bastante para efectuar prova concludente da transmissão dos veículos em causa.

 

    - Isto porque, apresenta cópias das facturas/recibos de vendas, as quais, na óptica da Requerida não constituem documento idóneo para comprovar a venda dos veículos em causa, uma vez que a mesma não é mais do que um documento unilateralmente emitido pela Requerente.

 

    - Segundo a Requerida, as facturas não são aptas a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático como é a compra e venda, pois aquele documento não revela por si só uma imprescindível e inequívoca declaração de vontade (i.e., a aceitação) por parte do pretenso adquirente.

 

    - Não faltando casos de emissão de facturas referentes a transmissão de bens e/ou de prestações de serviços que nunca chegaram a concretizar-se.

 

    - Segundo a Requerida, uma factura unilateralmente emitida pela Requerente não pode substituir o Requerimento de Registo Automóvel, que é um documento aprovado por modelo oficial. 

 

    - Assim sendo, a Requerida conclui que os actos tributários em crise não enfermam do alegado erro sobre os pressupostos de facto, na medida em que à luz do disposto no artigo 3º, nºs 1 e 2 do CIUC e do artigo 6º do mesmo código, era a Requerente, na qualidade de proprietária, o sujeito passivo do IUC.

 

     - Relativamente a juros indemnizatórios, à luz dos artigos 43º da LGT e 61º do CPPT, o direito a juros indemnizatórios depende da verificação dos seguintes pressupostos: Estar pago o imposto, ter a respectiva liquidação sido anulada, total ou parcialmente, em processo gracioso ou judicial, determinação, em processo gracioso ou judicial, que a anulação se funda em erro imputável aos serviços, o que não ocorreria no caso, uma vez que os actos tributários em crise são válidos e legais, porque conformes ao regime legal em vigor à data dos factos tributários, razão pela qual não ocorreu qualquer erro imputável aos serviços.

 

    - Quanto à responsabilidade pelo pagamento das custas arbitrais, se o IUC foi liquidado de acordo com a informação registal oportunamente transmitida pelo Instituto dos Registos e Notariado, e não de acordo com informação gerada pela própria Requerida, e se a Requerente não procedeu com o zelo que lhe era exigível, efectuando, oportunamente, a actualização no Registo Automóvel, a Requerida não é responsável por esse pagamento, porquanto, limitou-se a dar cumprimento às obrigações legais a que está adstrito.

 

G. – QUESTÕES A DECIDIR

 

     Face às posições assumidas pelas Partes conforme os argumentos apresentados, são as seguintes questões que cabe apreciar e decidir:

 

     1. Interpretação do nº 1 do art. 3º CIUC, de forma a ser determinado se a norma de incidência subjectiva nela inscrita, consagra, ou não, uma presunção legal de incidência tributária, susceptível de ilição, isto é, admite, ou não, que o contribuinte, em nome do qual se encontre o veículo registado na Conservatória do Registo Automóvel, possa demonstrar, através de meios de prova em Direito permitidos, que não é, no período a que o imposto respeita, o seu proprietário, ou quem dele dispõe, afastando, assim, a presunção de sujeito subjectivo do imposto que sobre ele recai.

 

     2. Responsabilidade pelo pagamento das custas arbitrais.

 

 

H. – PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS

 

     1. O Tribunal Arbitral está regularmente constituído e é material competente, de acordo com o disposto na alínea a), do nº 1, do art. 2º do RJAT (Decreto – Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro).

 

     2. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se regularmente representadas, nos termos dos arts. 4º e 10º, nº 2 do RJAT e art. 1º da Portaria nº 112/2011, de 22 de Março.

 

     3. Considerada a identidade do facto tributado, do tribunal competente para a decisão e dos fundamentos de facto e de direito invocados, o Tribunal admite a cumulação de pedidos de declaração de ilegalidade dos actos tributários que são objecto deste processo, uma vez que estão cumpridos os requisitos estabelecidos no art. 3º, nº 1 do RJAT.

 

     4. O processo não enferma de vícios que afectem a sua validade.

 

I – MATÉRIA DE FACTO

I. 1 – FACTOS PROVADOS

 

     Com relevância para a apreciação das questões suscitadas, o Tribunal dá como provado os seguintes factos:

 

     1 – A Requerente é uma instituição financeira de crédito que se dedica, entre outros, à celebração de contratos de concessão de crédito para efeitos de aquisição de viaturas automóveis, mediante a celebração de contratos de mútuo.

 

     2 – No âmbito da referida actividade comercial, a Requerente celebrou os contratos de mútuo com os contribuintes cujos números de identificação constam da Tabela Anexa, que juntou como Anexo I ao Pedido de Pronúncia Arbitral.

 

     3 – Para aquisição dos veículos com as matrículas igualmente aí discriminadas, tudo conforme cópias dos contratos de mútuo celebrados e das Facturas de Venda emitidas em nome dos mutuários, que juntou como Anexos II e III ao Pedido de Pronúncia Arbitral.

 

     4 – Estes contratos de mútuo, que foram celebrados entre a Requerente e os mutuários, tiveram por objecto veículos automóveis, que eram adquiridos por estes últimos, através da celebração de contratos de compra e venda com os fornecedores dos veículos.

 

     5 – Durante o mês de Agosto de 2013, a Requerente foi notificada para exercer o direito de audição prévia, antes da liquidação do imposto único de circulação relativo aos anos fiscais de 2009 a 2012, referente aos veículos automóveis sub judice, o que fez em 11 de Outubro de 2013.

 

     6 – Em resposta ao exercício do direito de audição prévia, a Requerida indeferiu o pedido da Requerente para que a Requerida se abstivesse de proceder à liquidação oficiosa do referido imposto único de circulação e determinou o prosseguimento do processo de liquidação oficiosa.

 

     7 – No registo automóvel constava o nome da Requerente como proprietária dos veículos em causa. 

 

     8 – Aquando do exercício do direito de audição prévia, a Requerente forneceu à Requerida as facturas referentes aos contratos de compra e venda celebrados entre os mutuários e os fornecedores e, também, os elementos fiscais relativos aos mesmos.

 

     9 – Em 7 de Março de 2014, a Requerente apresentou o Pedido de Pronúncia Arbitral que deu origem aos presentes autos.

 

 I. 2 – FUNDAMENTAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS

 

     Os factos dados como provados estão baseados nos documentos indicados relativamente a cada um deles, e nos elementos factuais carreados para o processo pelas Partes, na medida em que a sua adesão à realidade não foi questionada.

 

     Relativamente às facturas relativas aos contratos de compra e venda das viaturas, que foram celebrados entre os mutuários e os vendedores, o Tribunal decidiu que as mesmas constituem meio de prova com força bastante para titular a transmissão da propriedade das mesmas, por gozarem da presunção de veracidade estabelecida no art. 75º, nº 1 da LGT e com base nos restantes fundamentos que constam da Decisão

 

 

I. 3 – FACTOS NÃO PROVADOS

    

Não existem factos não provados com relevância para a decisão

 

 

J. – MATÉRIA DE DIREITO

 

     Fixada a matéria de facto, procede-se, de seguida, à sua subsunção jurídica e à determinação do Direito a aplicar, tendo em conta as questões a decidir que foram enunciadas.

 

     Quanto à questão a decidir, a Requerente alega que não era proprietária dos veículos que identifica à data em que ocorreram os factos tributários que originaram as liquidações de IUC, e, consequentemente, não era sujeito passivo do imposto que lhe foi liquidado.

 

     A Requerida Autoridade Tributária assume uma posição oposta relativamente a esta questão da incidência subjectiva do IUC, defendendo que, nos termos do art. 3º, nº 1 do CIUC, é sujeito passivo do IUC a pessoa em nome da qual o veículo se encontre registado na Conservatória do Registo Automóvel, facto este que ocorria com a Requerente, no período em causa.

 

     O art. 3º, nº 1 do CIUC dispõe relativamente a esta matéria controvertida, o seguinte:

     “Art. 3º - Incidência subjectiva

               1. São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares e colectivas, de direito público ou privado, em nome dos quais os mesmos se encontrem registados

------------------------------------------------------------------------------------------”

     Das posições assumidas pelas Partes no presente processo, resulta claro que no fundo esta primeira questão se resume a saber se a norma de incidência subjectiva acima transcrita, constante do nº 1 do art. 3º do CIUC, estabelece uma presunção legal, susceptível de ilisão, como pretende a Requerente ou, expressa e intencionalmente, considera as pessoas em nome de quem os veículos estão registados como proprietários para efeito de incidência subjectiva do IUC, como entende a Requerida.

 

     As orientações arrogadas pela Requerente e pela Requerida quanto a esta matéria e a sua fundamentação estão expostas em síntese, ou com parcial transcrição, em E. e F. do Relatório desta Decisão.

 

     Cumpre, então, decidir:

 

     Um ponto preliminar para se apreciar a questão do valor jurídico do registo automóvel.

 

     O nº 1 do art. 1º do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro, que disciplina o registo de veículos automóveis, dispõe que o registo de veículos “tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos… tendo em vista a segurança do comércio jurídico”.

 

     Por seu lado, estabelece o art. 7º do Código do Registo Predial, aplicável ao registo automóvel por força do disposto no art. 29º do referido Decreto-Lei nº 54/75, que “O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito nos precisos termos em que o registo define”.

 

     Verifica-se, assim, que o registo definitivo é tão-só uma presunção da existência do direito, que admite prova em contrário, constituindo, portanto, presunção ilidível, conforme, aliás, tem sido reconhecido na jurisprudência.

 

     Dado que não existe neste Código qualquer disposição que exija o registo como condição de validade dos contratos, conclui-se que, para se adquirir a qualidade de proprietário de um veículo, basta figurar como comprador num contrato de compra e venda.

 

     Relativamente ao teor da norma em apreço – art. 3º, nº 1 do CIUC -, há que dizer que, conforme reconhecido unanimemente e se encontra consagrado no art. 11º da LGT, as leis fiscais devem ser interpretadas de acordo com os princípios gerais de interpretação, avultando, assim, para o efeito, o preceito fundamental de interpretação que é o art. 9º do Código Civil, o qual fornece as regras e os elementos para a interpretação das normas.

      Significa isto que se devem utilizar os instrumentos tradicionais de hermenêutica jurídica, com vista a ser determinado o pensamento legislativo, de acordo com o disposto no art. 9º do Código Civil.

 

      Nesta conformidade, comecemos a interpretação do art. 3º, nº 1 do CIUC, pelo elemento literal, aquele em que se visa detectar o pensamento legislativo que se encontra objectivado na norma, para se verificar se a mesma contempla uma presunção, ou se determina, em definitivo, que o sujeito passivo do imposto é o proprietário que figura no registo.

 

      A questão que se coloca é saber se a expressão “considerando-se” utilizada pelo legislador no CIUC, em vez da expressão “presumindo-se”, que era a que constava nos diplomas que antecederam o CIUC, terá retirado a natureza de presunção ao dispositivo legal em apreço.

 

      A nosso ver, a resposta tem necessariamente de ser negativa, uma vez que, da análise do nosso ordenamento jurídico, se retira de forma clara que as duas expressões têm sido utilizadas pelo legislador com sentido equivalente, seja ao nível de presunções ilidíveis, seja no quadro das presunções inilidíveis, pelo que nada habilita a extrair a conclusão pretendida pela Autoridade Tributária por uma mera razão semântica.

 

      Na verdade, assim acontece em variadas normas legais que consagram presunções utilizando o verbo considerar, de que se indicam, meramente a título de exemplo, as seguintes:

      No âmbito do direito civil - o nº 3 do art. 243º do Código Civil, quando estabelece que “considera-se sempre de má-fé o terceiro que adquiriu o direito posteriormente ao registo da acção de simulação, quando a este haja lugar”;

       Também no âmbito do direito da propriedade industrial o mesmo se passa, quando o art. 59º, nº 1 do Código da Propriedade Industrial dispõe que “As invenções cuja patente tenha sido pedida durante o ano seguinte à data em que o inventor deixar a empresa, consideram-se feitas durante a execução do contrato de trabalho”; e

       Também, no âmbito do direito tributário, quando os nºs 3 e 4 do art. 89-A da LGT dispõem que incumbe ao contribuinte o ónus da prova que os rendimentos declarados correspondem à realidade e que, não sendo feita essa prova, presume-se (“considera-se” na letra da Lei) que os rendimentos são os que resultam da tabela que consta no nº 4 do referido artigo.

 

      Esta conclusão de haver total equivalência de significados entre as duas expressões, que o legislador utiliza indiferentemente, satisfaz a condição estabelecida no art. 9º, nº 2 do Código Civil, uma vez que se encontra assegurado o mínimo de correspondência verbal para efeitos da determinação do pensamento legislativo.

 

      Importa, de seguida, submeter a norma em apreço aos demais elementos de interpretação lógica, designadamente, o elemento histórico, o racional ou teleológico e o de ordem sistemática.

 

      Através da análise do elemento histórico, extrai-se a conclusão que, desde a entrada em vigor do Decreto-Lei 59/72, de 30 de Dezembro, o primeiro a regular esta matéria, até ao Decreto-Lei nº 116/94, de 3 de Maio, o último a anteceder o CIUC, foi consagrada a presunção dos sujeitos passivos do IUC serem as pessoas em nome das quais os veículos se encontravam matriculados à data da sua liquidação.

 

      Verifica-se, portanto, que a lei fiscal teve, desde sempre, o objectivo de tributar o verdadeiro e efectivo proprietário e utilizador do veículo, afigurando-se indiferente a utilização de uma ou outra expressão que, como vimos, têm na nossa ordem jurídica um sentido coincidente.

 

      O mesmo se diga quando nos socorremos dos elementos de interpretação de natureza racional ou teleológica.

 

      Com efeito, o actual e novo quadro da tributação automóvel consagra princípios que visam sujeitar os proprietários dos veículos a suportarem os prejuízos por danos viários e ambientais causados por estes, como se alcança do teor do art. 1º do CIUC.

 

      Ora a consideração destes princípios, designadamente, o princípio da equivalência, que merecem tutela constitucional e consagração no direito comunitário, e são também reconhecidos em outros ramos do ordenamento jurídico, determina que os aludidos custos sejam suportados pelos reais proprietários, os causadores dos referidos danos, o que afasta, de todo, uma interpretação que visasse impedir os presumíveis proprietários de fazer prova de que já não o são por a propriedade estar na esfera jurídica de outrem.

 

      Esta interpretação tem assento no disposto no nº 1, do art. 9º do Código Civil, que preceitua que a busca do pensamento legislativo deverá ter sobretudo em conta “a unidade do sistema jurídico e as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”.

 

      Assim, também, da interpretação efectuada à luz dos elementos de natureza racional e teleológica, atento aquilo que a racionalidade do sistema garante e os fins visados pelo novo CIUC, resulta claro que o nº 1 do art. 3º do CIUC consagra uma presunção legal ilidível.

 

      Em face do exposto, importa concluir que a ratio legis do imposto aponta no sentido de serem tributados os efectivos proprietários-utilizadores dos veículos pelo que a expressão “considerando-se” está usada no normativo em apreço num sentido semelhante a “presumindo-se”, razão pela qual dúvidas não há que está consagrada uma presunção legal.

 

      Ora, estabelece o art. 73º da LGT que “As presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário, pelo que são ilidíveis”.

 

      Assim sendo, consagrando o art. 3º, nº 1 do CIUC uma presunção juris tantum, portanto, ilidível, a pessoa que está inscrita no registo como proprietária do veículo e que, por essa razão foi considerada pela Autoridade Tributária como sujeito passivo do imposto, pode apresentar elementos de prova visando demonstrar que o titular da propriedade é outra pessoa, para quem a propriedade foi transferida.

 

      Analisados os elementos carreados para o processo pela Requerente, extrai-se a conclusão que esta não era proprietária dos veículos a que respeitam as liquidações em apreço.

 

       Na verdade, ficou provado que a Requerente celebrou contratos de mútuo para aquisição pelos mutuários a terceiros das viaturas em apreço.

 

      Assim sendo, a Requerente, por força dos referidos contratos, apenas é credora dos montantes que foram concedidos aos mutuários e beneficiária de hipoteca, ou reserva de propriedade sobre os veículos.

 

       No entanto, a Requerente figurava no registo automóvel como proprietária dos veículos, por erro, ao que alega, uma vez que o que deveria constar averbado a favor da Requerente seria uma eventual reserva de propriedade.

 

       Para demonstrar que não era proprietária dos veículos, a Requerente juntou ao processo cópia das facturas referentes às vendas das viaturas pelos chamados “fornecedores” aos compradores das mesmas, os quais figuram nos contratos que celebraram com a Requerente como mutuários.

 

      Relativamente à questão suscitada pela Requerida sobre a idoneidade probatória das facturas relativas às vendas das viaturas, posta em causa pela Requerida em termos genéricos, o Tribunal não tem dúvidas em aceitá-las como meio de prova da transmissão da propriedade do veículo, pelas razões seguintes:  

      

     Na situação dos autos, estamos perante um contrato de compra e venda de coisas móveis, o qual, por aplicação do disposto no art. 219º do CC, não está sujeito a nenhum formalismo especial.

 

      Embora se reconheça que a titulação destes contratos, por terem por objecto veículos automóveis, em que o registo é obrigatório, beneficia com a emissão de declaração de venda, que é necessária para a inscrição no registo, isso não impede que o contrato seja provado de outra forma, pois esta declaração não constitui o único e exclusivo meio de prova da venda.

 

      Para o caso, reveste especial importância o facto de, uma vez que os “fornecedores” têm natureza empresarial, as facturas, que foram juntas aos autos pela Requerente, estão subordinadas a rigorosas regras legais de ordem contabilística e fiscal, com implicações, também, na cobrança de outros tributos.

 

       Na verdade, a legislação tributária atribui-lhes uma relevância muito especial, que não pode deixar de lhe conferir credibilidade probatória, e que se encontra bem expressa no disposto nos seguintes normativos legais que, a título de exemplo, se citam: arts. 29º, nº 1, alínea b) e 19º, nº 2 do CIVA e arts. 23º, nº 6 e 123º, nº 2 do CIRC.

 

        Ora, desde que essas facturas tenham sido emitidas de acordo com a legislação comercial e fiscal, questão que a Requerida não suscita, e o que não põe em causa, as mesmas gozam da presunção de veracidade, que lhes é atribuída pelo art. 75º, nº 1 da LGT.

 

       Caberia à Requerida apresentar e demonstrar indícios concretos e fundamentados de que a operação titulada pela mencionada factura/recibo não correspondia à realidade, face ao disposto no nº 2 do art. 75º da LGT, o que não ocorreu.

 

      Nesta conformidade, atenta a relevância muito especial que a legislação tributária atribui à facturação na situação vertente e a que esta goza da presunção de veracidade, que lhe é concedida pelo disposto no art. 75º, nº 1 da LGT, concluímos que constitui meio de prova suficiente para ilidir a presunção que decorre do art. 3º, nº 1 do CIUC, uma vez que comprova que a Requerente não era proprietária do veículo ao tempo a que diz respeito a liquidação do IUC.

 

      Esta inexistência de propriedade é oponível à Requerida Autoridade Tributária, porquanto, embora os factos sujeitos a registo só produzam efeitos contra terceiros quando registados, face ao disposto no art. 5º, nº 1 do Código do Registo Predial, a Autoridade Tributária não é terceiro para efeitos de registo, uma vez que não se encontra na situação prevista no nº 2 do referido art. 5º do CRP, isto é, não adquiriu de um autor comum direitos incompatíveis entre si.

 

      Nestas circunstâncias, e demonstrado que ficou que a Requerente não era proprietária dos veículos em apreço, ilidindo, assim, a presunção constante do art. 3º, nº 1, do CIUC; o Tribunal Arbitral declara a ilegalidade e a consequente anulação dos actos de liquidação oficiosa de Imposto Único de Circulação, relativo aos anos fiscais de 2009 a 2012, e às viaturas, cujas matrículas estão identificadas nos autos, no valor de 1.989,26 euros.

 

     Quanto à responsabilidade pelas custas arbitrais, alega a Requerida que não é responsável pelo seu pagamento, por desconhecer a identificação fiscal dos proprietários, em consequência da Requerente não ter tido zelo quando efectuou o registo da propriedade dos veículos, razão pela qual procedeu às liquidações do imposto com os elementos de que dispunha.

 

      Não pode proceder, porém, este argumento, porquanto a lei é taxativa na imputação da responsabilidade pelo pagamento das custas à parte que for condenada, face ao disposto nos nºs 1 e 2, do art. 527 do Código do Processo Civil, aplicável por força do art. 29º, nº 1, alínea e) do RJAT.

 

      Assim sendo, a responsabilidade pelo pagamento das custas arbitrais é da Requerida.

 

L. – DECISÃO

 

     Atento o exposto, o presente Tribunal Arbitral decide:

 

     a) Julgar procedente, com fundamento em vício de violação de lei, o pedido de declaração de ilegalidade da liquidação de IUC, relativamente a todos os veículos cujas matrículas estão identificadas nos autos.

     b) Condenar a Requerida a pagar as custas do presente processo (art. 527º, nºs. 1 e 2 do Código do Processo Civil, ex vi art. 29º, nº 1, alínea e) do RJAT).

 

     Valor do processo: Em conformidade com o disposto nos artigos 306º, nº 2 do CPC (ex. 315º, nº 2) e 97º - A, nº 1 do CPPT e no artigo 3º, nº 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de 1.989,26 euros.

 

     Custas: De harmonia com o nº 4 do art. 22º do RJAT, fixa-se o montante das custas em 306,00 euros, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 6 de Outubro de 2014

 

O Árbitro

 

 

José Nunes Barata

 

 

(Redacção pela ortografia antiga)