Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 395/2014-T
Data da decisão: 2015-03-02  IRS  
Valor do pedido: € 3.082.666,39
Tema: IRS – venda de participações sociais; cláusula geral antiabuso
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CAAD – Arbitragem Tributária

Processo n.º 395/2014-T

Tema: IRS. Venda de participações sociais. Cláusula Geral Antiabuso.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Jorge Lopes de Sousa (árbitro presidente), Ana Maria Rodrigues e José Coutinho Pires, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:

            I. RELATÓRIO

1. No dia 26 de maio de 2014, a A... – SGPS, S. A. (doravante A...), NIF …, com sede na Praça … Lisboa (doravante, Requerente), apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), com o n.º 2014…, relativa ao ano de 2010, e das liquidações de juros compensatórios n.º 2014…; 2014… e 2014…, todas de 24 de janeiro de 2014, num valor total de 3.082.666,39€, referentes a 2.705.300,00 de imposto (IRS) e 377.366,39 a juros, por vício de violação de lei, sendo Requerida a AT – Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, Requerida ou AT). Os Requerentes juntaram 21 (vinte e um) documentos e não arrolaram testemunhas.  

No essencial e em breve síntese, a Requerente alegou o seguinte:

A Requerente foi alvo de uma ação inspetiva externa, levada a efeito pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Lisboa, a qual teve por objetivo, segundo o plasmado no respetivo Relatório de Inspeção Tributária, «aferir o cumprimento das obrigações tributárias referente a retenções na fonte de IRS, nos termos da alínea b) do art. 13.º e da alínea b) do n.º 1 do art. 14.º, ambos do RCPIT, e incide sobre o ano de 2010. O motivo desta ação de inspeção é “proceder à análise de negócios jurídicos para verificar se foram essencialmente ou principalmente dirigidos por meios artificiosos e com abuso das formas jurídicas, à redução de impostos que seriam devidos sem a utilização desses meios, que constituem fundamento para proceder à aplicação da norma geral antiabuso prevista no n.º 2 do art. 38.º da Lei Geral Tributária, relativamente à compra pela A..., SGPS, S.A. (ora requerente) da totalidade das ações da B..., S.A., NIPC ..., aos seus sócios, em 14/12/2009».

No decurso daquela ação inspetiva, para o ano de 2010, a AT entendeu aplicar a cláusula geral antiabuso prevista no art. 38., n.º 2, da LGT, com vista a desconsiderar a compra da totalidade do capital social realizada pela requerente aos sócios da sociedade comercial B... – …, S. A., a 14 de dezembro de 2009. Entende, por isso, que foram apurados negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos por meios artificiosos e com abuso das formas jurídicas à redução de impostos que seriam devidos sem a utilização desses meios, e que constituem fundamento para proceder à aplicação da norma legal antiabuso.

Entende a AT que a operação realizada teve como único objetivo permitir transferir para a esfera pessoal dos sócios da B... e da A..., C..., D..., E..., F..., G... e H..., os rendimentos gerados pela empresa B... de que eram acionistas sem que por isso, ficassem sujeitos à devida tributação em sede de IRS”. Em face do entendimento da AT o pagamento do preço de aquisição de tais ações deve assumir a natureza de dividendos e que, como tal, a Requerente aquando daquele pagamento incumpriu o dever de retenção na fonte de IRS sobre lucros colocados à disposição, havendo lugar à sua responsabilização enquanto substituto tributário, por força do disposto no artigo 103.º do Código do IRS (CIRS).

A Requerente assenta o seu pedido de constituição de tribunal arbitral, com base nos seguintes fundamentos:

«A) A compra realizada pela Requerente a 14 de dezembro de 2009, da totalidade do capital social da sociedade comercial anónima B...– …, S.A., foi determinada por critérios de natureza gestionária e de natureza económica e financeira e não para a obtenção de vantagens fiscais para os seus sócios;

B) Não foram utilizados meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, dirigidos à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos ou à obtenção de vantagens fiscais indevidas;

C) Não estão preenchidos os pressupostos que possibilitem a aplicação da norma geral antiabuso prevista no n.º 2 do art. 38.º da LGT;

D) A AT incorre em vício de fundamentação na apreciação da existência ou não desses pressupostos;

E) A aplicação dessa norma configura, assim, uma ilegalidade;

F) Mesmo que a compra e posterior fusão da B..., S.A.. fosse motivada por razões exclusivamente fiscais – o que não é o caso e só por mero exercício de raciocínio equaciona – a ativação da cláusula geral antiabuso prevista no n.º 2 do art. 38.º da LTG continuaria a enfermar de ilegalidade, face às opções legislativas vigentes ao tempo a que se reportam os factos, e dos quais não resulta a obrigação da A..., SGPS, S.A. de retenção na fonte aquando do pagamento do preço de aquisição de tais ações, pelo que a Requerente entende que com a realização daquele pagamento não incumpriu o dever de retenção na fonte de IRS sobre lucros colocados à disposição, não havendo lugar à responsabilização da Requerente enquanto substituto tributário, por força do disposto no artigo 103.º do CIRS;

G) Em consequência, estão feridas de ilegalidade as liquidações efetuadas com fundamento na aplicação da cláusula geral antiabuso prevista no n.º 2 do art. 38.º da LGT;

H) As liquidações também estão feridas de ilegalidade com base na não oponibilidade à Requerente da desconsideração de efeitos fiscais resultantes da aplicação da cláusula geral antiabuso aos atos em questão;

I) A AT não imputa à requerente qualquer atuação subsumível à previsão normativa do artigo 38.º, n. º 2, da LGT, fundamentando a liquidação de IRS agora impugnada apenas na alegada responsabilidade por não retenção na fonte de imposto aquando do pagamento de parte do preço devido pela aquisição das ações da B..., S.A., considerando a AT que essa retenção deveria ter ocorrido em face da ineficácia fiscal da aquisição de ações e consideração do preço pago como distribuição de dividendos.

J) Se prevalecesse a interpretação da norma do art. 38.º-2 da LGT pretendida pela AT, sempre a mesma enfermaria de inconstitucionalidade, por violação, designadamente, dos princípios constitucionais, que valem quer para os cidadãos, quer para as pessoas coletivas, da segurança jurídica e da proporcionalidade, bem como o direito à propriedade privada, garantido pelo Protocolo Adicional à CEDH. 

K) Afirma a Requerente que “Admitir que um terceiro possa ser responsabilidade por falta de retenção na fonte em situações em que essa obrigação não existe face aos atos jurídicos concretos em que o terceiro teve intervenção, (…), equivaleria a impor ao substituto tributário um desproporcionado e inadmissível ónus de fiscalização daquele abuso”.

L) Entende a Requerente que a AT apurou a posterior a existência de uma conduta abusiva, competiria exigir do substituto o imposto abusivamente evitado pelo contribuinte com o argumento de que foi incumprido um dever de retenção na fonte, corresponderia a transferir integralmente para a esfera do substituto, dois grandes deveres. O primeiro, relacionado com o dever de fiscalização tributária de condutas fiscalmente abusiva, mas também o próprio encargo do imposto, que é em última ratio, obrigação do contribuinte, já que a conduta abusiva verificada a posteriori, colocaria o substituto numa situação em que não disporá já das quantias sobre as quais a retenção haveria de ocorrer, suportando assim diretamente na sua esfera o imposto como consequência da aplicação do artigo 103.º do CIRS.

Entende ainda a Requerente que deve ser declarada a ilegalidade e a consequente anulação da liquidação de IRS, com base em outros fundamentos, que não apenas na falta de preenchimento concreto dos pressupostos de aplicação da cláusula geral antiabuso constantes do artigo 38.º, n.º 2, da LGT. São eles:

a)     Preterição do dever de inquirir da AT no âmbito do procedimento de inspeção tributária que determinou o ato tributário, agora em crise;

b)     Por falta de autorização de aplicação da cláusula geral antiabuso ou subsidiariamente, em violação do disposto no art. 63.º do CPPT:

b.1.) Por preterição do direito de participação da Requerente na referida decisão de autorização, e;

b.2.) Por incompetência da Subdiretora-geral …. para proceder à autorização de aplicação da CGAA;

c)     Por falta de sancionamento superior das conclusões do Relatório de Inspeção Tributária, em violação do artigo 62.º, 6, do RCPIT;

d)     Por incompetência da Chefe de Divisão, …, para a correção de IRS que determinou o ato tributário;

 

Mais alegam os Requerentes que a interpretação que a AT faz da norma constante do artigo 38.º da LGT é inconstitucional, por violação dos princípios da certeza e seguranças jurídicas e da proporcionalidade e, bem assim, por violação do direito à propriedade privada garantido pelo Protocolo Adicional à CEDH.

Propõe a Requerente a desconsideração para efeitos fiscais das operações que descrevemos, com a consequente tributação em sede de IRS, dos valores recebidos pelos acionistas a título de pagamento das ações como dividendos e não de pagamento da aquisição de todas as partes sociais da B..., S.A. aos seus sócios por parte da A..., SGPS, S.A..

Assim foram propostas a anulação das correções que implicaram uma liquidação no montante global de € 3.082.666,39, respeitante ao ano de 2010, no montante global de imposto de € 2.705.300,00, ao qual acrescem € 377.366,39 de juros compensatórios contados relativamente ao período decorrido entre 29/05/2010 e 24/01/2014, à taxa de 4%.

Entende a Requerida, a AT, no seu Relatório de Inspeção Tributária que a operação em causa trata (…) “de uma venda de ações de uma empresa a outra, que logo de seguida é objeto de fusão por incorporação na adquirente, sendo que, quer a venda quer a fusão não alteram a detenção do capital da sociedade adquirente/incorporante, a A... – SGPS, S.A.”.

A AT, no seu Relatório de Inspeção Tributária, considera que os alienantes das ações da B..., S. A. auferiram rendimentos pagos pela Requerente, que, caso não tivessem sido praticados atos tidos como artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas teriam correspondido a pagamentos de dividendos procedentes da B..., S. A. Com a autorização para a aplicação da norma antiabuso a que se refere o n.º 7 do artigo 63.º do CPPT, resulta a desconsideração para efeitos fiscais da venda e pagamento das ações da B... – …, S.A. e consequente tributação como pagamento de dividendos, os quais se encontram sujeitos a retenção na fonte de IRS, conforme dispõe o artigo 71.º, alínea c) do CIRS.

Foi apurado IRS não retido e não entregue nos cofres do Estado de €2.705.300,00 para o ano de 2010.

Entende a AT que relativamente aos valores recebidos pelos acionistas, as correções foram efetuadas na sociedade A... - SGPS, S.A. atendendo ao disposto no n.º 2, alínea a), do art. 101.º, conjugado com os n.ºs 3 e 4 do art. 103.º, ambos do CIRS, por falta de entrega do IRS que devia ter sido retido e não foi entregue nos cofres do Estado.

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT em 27 de maio de 2014.

            3. Os Requerentes não procederam à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do art. 6.º e da alínea b) do n.º 1 do art. 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo o Conselheiro Jorge Lino Alves de Sousa (árbitro presidente), a Prof.ª Doutora Ana Maria Rodrigues e o Dr. José Coutinho Pires (árbitros vogais), que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

4. Em 14 de julho de 2014, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do art. 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos arts. 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

5. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do art. 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral coletivo foi constituído em 29 de julho de 2014.

6. No dia 3 de outubro de 2014, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua Resposta na qual impugna, especificadamente, os argumentos aduzidos pela Requerente e conclui pela improcedência da presente ação, com a sua consequente absolvição do pedido. A Requerida juntou quatro documentos, não tendo arrolado qualquer testemunha. Na mesma ocasião, a Requerida juntou aos autos o respetivo processo administrativo (doravante, abreviadamente designado PA).

No essencial e também de forma breve, importa respigar os argumentos mais relevantes em que a Requerida alicerçou a sua contestação:

1. Em 14 de dezembro de 2009 todos os acionista da B..., procederam à venda da totalidade das ações desta sociedade à A... – SGPS, S.A.. Foi celebrado um único contrato de compra e venda das ações, com todos os acionistas da B... e a sociedade adquirente, a A....

2. Não existiu nenhum motivo de natureza económica ou financeira que possa justificar a alienação da totalidade das ações da B... por parte dos seus acionistas à sociedade A..., SGPS e a subsequente fusão por incorporação da B... na A..., SGPS, S.A detidas pelos sócios desta última sociedade. Esta operação tinha apenas como único objetivo transferir para a esfera pessoal dos sócios da B..., S.A., os rendimentos gerados por essa entidade, sem que por isso os seus sócios ficassem sujeitos à devida tributação em sede de IRS.

3. A operação de aquisição das participações sociais e, posterior fusão, revelam que estes sucessivos atos e negócios jurídicos, a B..., S.A. e os seus acionistas concretizaram a saída de 13.000.000,00 da esfera jurídica da sociedade B... para os seus acionistas totalmente excluído de tributação em IRS, e que assume materialmente a natureza de distribuição de dividendos da B... aos seus acionistas.

4. A dupla operação, de alienação das partes sociais e a fusão por incorporação, apenas permitiu aos sócios da Requerente, C..., D..., E..., F..., G... e H... efetuar a alienação das suas participações pelo valor de € 13.000.000,00, com o benefício da exclusão da tributação da mais-valia obtida por força do disposto no artigo 10.º, n.º 2, alínea a), do CIRS, na redação vigente à data da prática dos factos; com esta operação, os sócios da Requerente obtiveram, pois, uma poupança fiscal, consubstanciada na não tributação da mais-valia resultante da alienação das partes sociais, dissimulando uma operação de distribuição de dividendos da B... aos seus acionistas. Mas sobre esse rendimento, porque lhe foi dada a aparência de pagamento de dívida derivada da compra das ações, aqueles sócios vieram a receber a totalidade do valor da alienação das suas ações na B..., não vindo a recair a devida tributação em IRS.

5. Se os sócios da Requerente tivessem optado pela forma que seria habitual e normal de distribuição de dividendos, teria obtido um rendimento tributável de € €13.000.000,00, sujeita a IRS à taxa de tributação autónoma de 20%, nos termos do disposto no artigo 10.º, n.º 1, alínea b) e artigo 72.º, n.º 4, ambos do CIRS; resultando, assim, imposto a pagar no valor de € 2.705.300,00.

6. Assim, a compra e venda das ações foi declarada pela sociedade adquirente a A... – SGPS, S.A. na declaração modelo 4, a que se refere o n.º 1 do artigo 138.º do CIRC, e pelos acionistas alienantes na declaração modelo 3 do IRS. Dada a qualificação que foi atribuída aos pagamentos efetuados, não foi efetuada qualquer retenção na fonte de IRS.

7. Desta forma, entende a Requerida que os requisitos previstos no artigo 38.º, n.º 2, da LGT encontram-se integralmente preenchidos no caso em apreço.

8. Ademais, a decisão de aplicação da cláusula geral antiabuso cumpre, integralmente, o disposto no artigo 63.º do CPPT, apontando-se matéria e concretos pontos de facto no sentido de demonstrar a existência de atos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos.

9. Por outro lado, os direitos constitucionais face aos princípios da certeza e segurança jurídicas e da proporcionalidade e, bem assim, o direito à propriedade privada garantido pelo Protocolo Adicional à CEDH, não são direitos absolutos e não podem, em momento algum, ser exercidos de forma abusiva, a fim de subverter o espírito das normas de tributação e de concessão dos benefícios fiscais, e, dessa maneira, atingir um resultado contrário ao Direito.

10. Assim, não estando, nem podendo estar em causa os princípios da certeza e seguranças jurídicas e proporcionalidade, e não estando em causa o direito à propriedade privada, o que se limita é a possibilidade de a vontade do contribuinte ser relevante no que respeita ao grau da sua oneração fiscal, pelo que a interpretação da norma constante do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, realizada pela AT, é conforme com a Constituição.

Conclui a Requerida no sentido de os atos de liquidação impugnados não padecerem de qualquer ilegalidade.

A 6 de maio de 2013, a Requerente foi notificada, no âmbito da ação de inspeção externa, para exercer, em 30 dias, de audição prévia em relação ao projeto de aplicação da cláusula geral antiabuso, nos termos do qual a AT considerou que a Requerente, ao adquirir a B..., S. A. em Dezembro de 2009 se envolveu em “negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos por meios artificiosos e com abuso das formas jurídicas, à redução de impostos que seriam devidos sem a utilização desses meios”. (artigo 12 da PI e documento 12).

1. A Requerente entende que o projeto de fusão entre a B..., S.A. e a A..., SGPS, S.A. tem por finalidade “reduzir a dispersão das estruturas societárias existentes, com custos logísticos redundantes. Acrescem outros condicionalismos de ordem endogénica que aconselham e motivam a operação projetada, nomeadamente o esvaziamento da atividade da sociedade incorporada. Neste sentido importa superar a referida sobreposição de estruturas societárias, dando origem à geração de sinergias e de economias de escala. A projetada fusão permitirá concentrar recursos técnicos e financeiros para criar uma estrutura coesa e competitiva. No que se refere aos custos estruturais e de funcionamento a concentração permitirá, com razoável segurança, a otimização e racionalização dos custos”.

2. Por inexistirem matérias suscetíveis de discussão na reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, o Tribunal Arbitral, por despacho proferido pelo seu Presidente, em 3 de outubro de 2014, dispensou a realização dessa mesma reunião. O Tribunal considerou que o processo continha já todos os elementos de facto para a solução de Direito.

            3. O Tribunal Arbitral dispensou a apresentação de quaisquer alegações pelas partes.

4. Todavia, a A..., SGPS, S.A. entendeu pronunciar-se através de alegações escritas sobre alguns pontos concretos invocados pela AT, nomeadamente, quanto à falta de autorização da aplicação da cláusula geral antiabuso no âmbito do processo de inspeção na origem da liquidação impugnada; quanto à preterição do direito de participação da Requerente na decisão de autorização da aplicação da cláusula geral antiabuso; e ainda, quanto ao vício de incompetência da decisão de autorização de aplicação da cláusula geral antiabuso, pelo facto de entender que a AT apesar de não ter formalmente aduzido exceções a apreciar e decidir antes da decisão final, invocou factos e argumentos apresentados como impeditivos, modificativos ou extintivos da pretensão jurídica expressa pela Requerente no seu requerimento inicial.

            5. Apesar de terem sido produzidas alegações escritas, as partes mantiveram as posições assumidas nas peças escritas (PI e contestação).

6. Por despacho do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, proferido em 4 de fevereiro de 2015, foi determinada a substituição do árbitro presidente deste Tribunal Arbitral coletivo, Senhor Conselheiro Jorge Lino Alves de Sousa, pelo Senhor Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, em virtude de aquele se encontrar impossibilitado, temporariamente, por motivos de saúde, para o cabal exercício das respetivas funções.

***

            II. SANEAMENTO

            O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente.

O processo não enferma de nulidades.

            As partes gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, encontram-se devidamente representadas e são legítimas.

***

III. FUNDAMENTAÇÃO

III.1. FACTOS PROVADOS

Relativamente à matéria de facto, importa, antes de mais, salientar que o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art. 123.º, n.º 2, do CPPT e art. 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT). Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito.

Nesta parametria, tendo em consideração, nomeadamente, as posições assumidas pelas partes, a prova documental produzida e o PA junto aos autos, consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

1. A Requerente foi constituída em 27 de agosto de 2008, tendo por objeto a gestão de participações sociais noutras sociedades como forma indireta do exercício de atividades económicas (artigo 3.º e documento n.º 2 da PI).

2. No âmbito do exercício dessa atividade a Requerente detinha várias participações:

a) Em 10/12/2008, adquiriu quota no valor nominal de € 7.500,00, correspondente a 30% do capital social da sociedade comercial por quotas, I... – …, Lda.. Essa participação continua a ser detida pela sociedade até à data da PI (cfr. artigos 4.º e 5.º da PI, documento 3);

b) No exercício da sua atividade social, em 14/12/2009, a Requerente adquiriu, 100% do capital social da B..., S.A. com o valor nominal de € 50.000,00 (cfr. artigo 6.º da PI, documentos 4 e 5);

 3. Esta última sociedade, “B... – …, Lda. foi constituída como sociedade comercial por quotas em 12/06/2000, com NIPC ..., tendo por objeto social o “realização de trabalhos de consultadoria para entidades públicas ou privadas, bem como a gestão de projetos de investimento, bem como a aquisição e/ou subscrição de ações ou quotas de capital em sociedades constituídas ou a constituir com objeto social igual ou diferente, bem como o exercício de cargos sociais nas mesmas”, com o capital social de € 15.000,00, correspondente à soma de 2 quotas [artigo 7 da PI, cfr. doc. n.º 5 e 17 da PI], com uma quota de € 7.500 cada, C… e F…. Eram sócios e gerentes desta sociedade.

4. A B... foi transformada em sociedade anónima, em 3 de junho de 2009, com a seguinte repartição capital:

NIF

Sócios

N.º ações detidas

Valor nominal

(em €)

Capital Social (%)

C…

24.800

24.800

49,60

F…

24.800

24.800

49,60

D…

100

100

0,20

E…

100

100

0,20

G...

100

100

0,20

H…

100

100

0,20

 

Total

50.000

50.000

100,0

5. Até 2008, o principal cliente da B... é a J... – …, S.A., a quem a B... prestava serviços de consultadoria relacionada com a área vidreira (artigo 7 e documentos 5 e 17 junto da PI).

6. A J... era detida pela B... com 29,59% do capital, e por C… e F..., com 70,4% do capital (artigo 7 e documentos 5 e 17 junto da PI).

7. A B... vendeu 295.913 ações da J... à sociedade espanhola K…, S.A., passando a integrar o respetivo grupo empresarial. A partir dessa alienação os serviços prestados pela B... à J... passaram a ser prestados pelo grupo em que se integrou.

8. A B... foi transformada em sociedade anónima, em março de 2008, e procedeu ao indispensável aumento de capital social de € 15.000,00 para € 50.0000,00, que foi maioritariamente efetuado por incorporação de reservas, no valor de € 34.600,00, reforçando, em partes iguais, as quotas já detidas pelos sócios gerentes, C... e F…. Os restantes € 400,00 para perfazer os € 50.000,00 foram através de entradas em dinheiro, sendo cada um dos novos sócios realizou a dita entrada pelo valor de € 100,00. Todos os quatro novos sócios pertencem ao agregado familiar dos já dois sócios gerentes.

9. A B... não tinha qualquer atividade operacional desde 2008.

10. Em 14 de dezembro de 2009 todos os acionista da B..., procederam à venda da totalidade das ações desta sociedade à A... – SGPS, S.A.. Foi celebrado um único contrato de compra e venda das ações, com todos os acionistas da B... e a sociedade adquirente, a A....

11. A estrutura acionista da B..., S.A. era à data da alienação das ações pelos seus sócios a seguinte:

NIF

Sócios

N.º ações detidas

Valor nominal

(em €)

Capital Social (%)

Direitos de voto (%)

C…

24.800

24.800

49,60

49,60

F…

24.800

24.800

49,60

49,60

D…

100

100

0,20

0,20

E…

100

100

0,20

0,20

G...

100

100

0,20

0,20

H…

100

100

0,20

0,20

 

Total

50.000

50.000

100,0

100,0

 

12. A aquisição da totalidade do capital da B..., S.A. aos seus sócios pela A..., foi realizado a um preço fixado por ação de € 260,00/ação.

 

NIF

Sócios

N.º ações detidas

Valor nominal

(em €)

Preço de Venda (€)

Valor de Venda (€)

C…

24.800

24.800

260,00

6.448.000,00

F…

24.800

24.800

260,00

6.448.000,00

D…

100

100

260,00

26.000,00

E…

100

100

260,00

26.000,00

G...

100

100

260,00

26.000,00

H…

100

100

260,00

26.000,00

 

Total

50.000

50.000

 

13.000.000,00

13. A estrutura acionista e a administração da B... e da A... é semelhante, à data da operação de alienação, com o mesmo TOC e a mesma SROC.

14. O valor de aquisição das 50.000 ações da B..., S.A., representativas do respetivo capital social atingiu o valor de € 13.000.000,00, cujo pagamento foi contratualmente faseado em duas tranches, de € 5.980.000,00 e € 7.020.000,00, a satisfazer até 31 de março e 30 de Junho de 2010, respetivamente.

15. Para o efeito, a A… obteve junto do Banco ..., S.A, um empréstimo bancário de € 4.000.000,00, que foi utilizado para pagamento parcial da primeira tranche aos sócios da B..., em 31 de março de 2010. (artigo 18.º e documento 10). O pagamento remanescente dessa tranche foi pago a 13 de maio com recurso a um novo financiamento junto da mesma entidade bancária.

16. A 9 e 20 de julho de 2010 teve lugar o pagamento da segunda tranche do preço devido pela aquisição da B..., S.A, no valor total de € 7.020.000,00, tendo a Requerente utilizado para o efeito os meios financeiros líquidos integrados no seu património por efeitos da integração do ativo da B... na A..., em resultado da fusão por incorporação desta última sociedade na A..., SGPS, S. A.

17. Em 6 de julho de 2010 foi concretizada a incorporação da B..., S.A. na requerente, por fusão por incorporação, com a transferência global do património para a A..., SGPS, S.A.

18. A A..., SGPS, S.A., pós fusão, continua a desenvolver a sua atividade, tendo adquirido, 25/03/2008, 100% do capital social da sociedade comercial por quotas, a L... – …, Lda., pessoa coletiva n.º …, que mantem até à data em análise.

19. A 6 de maio de 2013, através do Ofício n.º ..., de 03.05.2013, da Direcção de Finanças de Lisboa, a Requerente foi notificada, no âmbito da ação inspetiva externa aberta a coberto da Ordem de Serviço n.º OI2012…, para exercício, em 30 dias, de audição prévia relativamente ao “Projeto de aplicação da Cláusula geral antiabuso”.

20. A 5 de junho de 2013 a requerente exerceu por escrito o seu direito de audição, rejeitando o entendimento manifestado pela AT.

21. A 2 de dezembro de 2013, através do ofício n.º …, de 29.11.2013, a Requerente foi notificada para exercício do direito de audição relativamente ao projeto de relatório de inspeção (artigo 38.º e documento 15 da PI).

22. A 20 de janeiro de 2014, através do ofício n.º …, de 15.01.2014, da Direção de Finanças de …, a Requerente foi notificada do Relatório de Inspeção Tributária, nos termos do qual foi convertido em definitivo o projeto anteriormente notificado (artigo 42.º e documento 17 da PI).

23. A ação inspetiva teve início em 21/03/2013 (data da assinatura da Ordem de Serviço por C..., na qualidade de procurador da A...), concluindo-se os atos de inspeção em 27/11/2013 (com a assinatura do mesmo) [cfr. fls. 3 do Relatório de Inspeção Tributária e p. 18 a 22 do anexo 3 junto ao Relatório de Inspeção].    

24. O procedimento de inspeção OI2010… teve por objetivo proceder à análise de negócios jurídicos para verificar se foram essencial ou principalmente dirigidos por meios artificiosos e com abuso das formas jurídicas, à redução de impostos que seriam devidos sem a utilização desses meios, que constituem fundamento para proceder à aplicação da norma legal antiabuso prevista no n.º 2 do art. 38.º da LGT, com proposta para aplicação do procedimento de norma antiabuso, a que se refere o artigo 63.º do CPPT. Pretendia o referido procedimento de inspeção aferir o cumprimento das obrigações tributárias em sede de IRS, relativamente à operação de aquisição da B..., S.A., em dezembro de 2009, e em especial, o dever da Requerente de retenção de IRS, resultante da disponibilização de recursos aos sócios da B..., S.A., não a título de alienação de partes sociais, mas de dividendos, o que conduziu à aplicação da norma geral antiabuso prevista no n.º 2 do art. 38.º da LGT. [cfr. fls. 4 do Relatório de Inspeção Tributária].

25. Os accionistas das sociedades envolvidas foram notificados através do ofício número ... de 03/05/2013 da Direção de Finanças de …, conforme registo dos CTT n.º RC …PT, do seguinte [cfr. fls. 30 do Relatório de Inspeção Tributária): «Nos termos e para os efeitos do disposto nos n.ºs 4 e 5 do art. 63.º do Código de Procedimento e Processo Tributário, de que dispõe de um prazo de 30 dias para, querendo, se pronunciar, por escrito ou oralmente, sobre o teor do Projeto de Aplicação da Cláusula Geral Antiabuso, previsto no n.º 2 do art. 38.º da Lei Geral Tributária, (…)». Da mesma forma, foram notificados todos os acionistas intervenientes na operação de venda das ações da B... à A..., ocorrida em 14.12.2009, através dos ofícios 3135 e 31638, datados de 03/05/2013, da Direção de Finanças de ….

26. A Requerente exerceu aquele direito de audição, por escrito, conforme resposta entregue no na Direção de Finanças de …, em 06/06/2013, a qual corresponde à entrada número 54054 de 06/06/2013 da Direção de Finanças de … [cfr. fls. 30 do Relatório de Inspeção Tributária]. Os acionistas exerceram também os respetivos direitos de audição através das entradas n.ºs … a …, todas de 06/06/2013.

27. Analisada a fundamentação do direito de audição, entendeu a AT que não foram apresentados factos novos, todavia, procederam à apreciação das alegações apresentadas pela A... –SGPS, S.A. e acionistas que venderam as suas ações da B..., S.A..

28. Da referida ação inspetiva resultaram correções, em sede de IRS não retido e não entregue nos cofres do Estado pela Requerente, relativas ao período de tributação de 2010, consubstanciadas no quadro seguinte [cfr. fls. 22 do Relatório de Inspeção Tributária]. Assim, a desconsideração da compra e venda das ações na A... – SGPS, S.A., implica a obrigação de retenção constante do quadro seguinte:

 

Acionistas

Data

Data limite de pagamento

Valor pago

(€)

Taxa do art. 71, n.º 1, al. c) do CIRC

IRS não retido/não liquidado (€)

C…

31.03.2010

 

2.000.000,00

 

 

F…

31.03.2010

 

2.000.000,00

 

 

Na A... – SGPS, S.A.  – Período

04.2010

20.04.2010

4.000.000,00

20,0%

800.000,00

C…

13.05.2010

 

966.080,00

 

 

F…

13.05.2010

 

966.080,00

 

 

D…

13.05.2010

 

11.960,00

 

 

E…

13.05.2010

 

11.960,00

 

 

G...

13.05.2010

 

11.960,00

 

 

H…

13.05.2010

 

11.960,00

 

 

Na A... – SGPS, S.A.  – Período

05.2010

20.05.2010

1.980.000,00

20,0%

396.000,00

C…

09.07.2010

 

3.481.920,00

 

 

F…

09.07.2010

 

3.481.920,00

 

 

D…

09.07.2010

 

14.040,00

 

 

E…

09.07.2010

 

14.040,00

 

 

G...

09.07.2010

 

14.040,00

 

 

H…

09.07.2010

 

14.040,00

 

 

Na A... – SGPS, S.A.  – Período

07.2010

20.08.2010

7.020.000,00

20,0%

1.509.300,00

Total

 

 

13.000.000,00

 

2.705.300,00

 

a) Acréscimo de rendimentos da categoria E – Distribuição de dividendos, relativos a IRS não retido e não entregue nos cofres do Estado, apurado por aplicação da cláusula geral antiabuso prevista nos artigos 38.º da LGT e 63.º do CPPT, no montante de € 2.705.300,00;

29. Os valores da operação em análise foram declarados pela Requerente na declaração 4, e pelos acionistas pela declaração de rendimentos Modelo 3 – IRS do ano de 2010.

Relativamente aos valores recebidos pelos diferentes acionistas, as correções foram efetuadas na sociedade A… – SGPS, S.A., atendendo ao disposto do n.º 2, alínea a) e n.º 3 do art. 101.º, conjugado com os n.ºs 3 e 4 do art. 103.º, ambos do CIRS, discriminando-se no quadro seguinte os valores por acionista, relativos a IRS não retido e não entregue nos cofres do Estado. Assim, o apuramento da vantagem fiscal/imposto em falta por acionista é o seguinte (p. 30 do Relatório de Inspeção):

Acionistas

Valor pago

(€)

C… e D…

1.347.239,40

F… e G...

1.347.239,40

E…

5.410,60

H…

5.410,60

Total

2.705.300,00

 

30. Em 24 de janeiro de 2014, a AT emitiu as liquidações impugnadas, tendo como data limite de pagamento voluntário o dia 24.03.2014 (cfr. documento n.º 1 junto com a PI).

31. A Requerente pagou em 24-03-2014 a quantia de € 3.082.666,39, corresponde às liquidações de IRS e juros compensatórios cuja declaração de ilegalidade é pedida (documento n.º 19 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido).

32. Em 26 de maio de 2014, os Requerentes apresentaram o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo (cfr. sistema informático de gestão processual do CAAD).

*

III.1.2. FACTOS NÃO PROVADOS

            Não resultaram provados os seguintes factos:

            1. A quebra de relações comerciais da B... com o seu principal cliente até 2008, foi vista pela Requerente como uma oportunidade de negócio, afigurando-se possível dinamizar a atividade da B..., S.A. junto de antigos e novos clientes, desse modo rendibilizando o Know-how acumulado pela empresa.

            2. A decisão da Requerente de adquirir a B..., S.A. integrou-se assim na legítima prossecução do seu objeto social.

            3. A perspetiva da dinamização da B..., para além dos motivos económicos válidos subjacentes à decisão de aquisição em referência não se compatibiliza com os esforços dos administradores da B..., S.A, para procurarem ativamente novas oportunidades de negócios e encetarem diversos contactos comerciais, de forma consistente e duradoura. 

            4. Os fundamentos invocados para a fixação do preço de venda das ações da B... por €260,00.

5. A fusão da sociedade “B...” na sociedade anónima, A..., SGPS, S.A. visou dotá-la de instrumentos mais eficazes para a realização de investimentos e correlativos financiamentos, ao nível dos ativos imobilizados e em necessidades em fundo de maneio, potenciando o seu desenvolvimento e sustentabilidade.

6. A decisão de fundir a “B...” na sociedade A..., SGPS foi determinada por critérios de natureza gestionária e de natureza económica e financeira.

7. Os acionistas da B... vendem a totalidade do seu capital social por um valor próximo dos resultados transitados.

*

III.1.3. MOTIVAÇÃO QUANTO À MATÉRIA DE FACTO

No tocante à matéria de facto provada, a convicção do Tribunal fundou-se nas afirmações feitas nos articulados, nos pontos indicados, em que não foi posta em causa a respetiva aderência à realidade e nos documentos juntos aos autos, referenciados em relação a cada um dos pontos, cuja correspondência à realidade não foi questionada.

Relativamente à factualidade não provada, esta foi assim considerada em resultado da ausência de quaisquer elementos probatórios suscetíveis de, inequivocamente, a comprovarem.

*

III.2. DE DIREITO

Como resulta da matéria de facto fixada, foi realizada uma inspeção tributária, no seguimento da Ordem de Serviço n.º OI2012…, tendo em vista controlo dos negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos por meios artificiosos e com abuso das formas jurídicas, à redução de impostos que seriam devidos sem a utilização desses meios, que constituem fundamento para proceder à aplicação da norma legal antiabuso prevista no n.º 2 do artigo 38,º da LGT. Os elementos declarados pela Requerente na declaração Modelo 4 e pelos acionistas pela declaração de rendimentos Modelo 3 – IRS do ano de 2010.

Desta ação inspetiva foram propostas correções aos valores de retenção na fonte declarados pelos Requerentes, respeitantes ao ano de 2010, no montante global de € 3.082.666,39, a que corresponde um montante de imposto no valor de € 2.705.300,00, conforme nota de liquidação de IRS n.º 2014…, ao qual acrescem juros compensatórios, no montante de 377.366,39.

Esse valor global de correções resultantes da ação inspetiva resultou de correções por aplicação da cláusula geral antiabuso prevista nos artigos 38.º da LGT e 63.º do CPPT, e que o requerente impugnou, no valor de € 2.705.300,00 e respetivos juros compensatórios no valor de € 377.366,39.

O valor de € 3.082.666,39 adveio de a Requerente ter incumprido o dever de retenção na fonte de IRS sobre lucros colocados à disposição dos acionistas da B..., S.A., havendo, por isso, lugar à responsabilização enquanto substituto tributário, por força do disposto no artigo 103.º do CIRS. Resultou desse negócio simulado um imposto a pagar no montante total de € 2.705.300,00, à qual acrescem os respetivos juros compensatórios, cf. referido acima.

De harmonia com o disposto no artigo 124.º do CPPT, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, do RJAT, não sendo imputados à declaração de IRS vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade, nem indicada uma relação de subsidiariedade, a ordem de apreciação dos vícios deve ser a que segundo o prudente critério do julgador, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos.

No caso em apreço, os vícios imputados pela Requerente aos actos impugnados que fornecem mais estável e eficaz tutela dos seus interesses são os referidos nos pontos iv) e v) da parte final do pedido de pronúncia arbitral, atinentes a não verificação dos requisitos objectivos e subjectivos de aplicação da cláusula geral antiabuso.

Dentre estes, sendo colocada uma questão de inconstitucionalidade relativamente à imposição da obrigação de retenção na fonte por via da aplicação da cláusula geral antiabuso e sendo este vício susceptível de se verificar apenas em relação à Requerente (e não aos outros intervenientes os factos dos autos), é preferível que se comece pela sua apreciação. Este vício, a verificar-se, afastará definitivamente a possibilidade de impor à Requerente qualquer tributação a nível de IRS na qualidade de substituta tributária, única possível relativamente a uma pessoa colectiva, independentemente da verificação ou não dos pressupostos da aplicação da cláusula geral antiabuso, nos termos em que foi feita a sua aplicação à situação em apreço ou em quaisquer outros.

Depois, passar-se-á, na medida do que for necessário à apreciação dos outros vícios, seguindo-se o referido no ponto iv) (não preenchimento dos pressupostos da cláusula geral antiabuso) e, depois, os vícios formais e procedimentais referidos nos pontos i), ii) e iii).

 

III.2.1. Questão da violação dos pressupostos da aplicação da cláusula geral antiabuso (CGAA) em relação à Requerente.

A Requerente defende que não se encontram reunidos os pressupostos, de facto e de direito, de que depende a aplicação da CGAA, violando a Autoridade Tributária e Aduaneira, por errada interpretação e aplicação, o artigo 38.º, n.º 2, da LGT, e os artigos 71º, nºs 1, alínea c) do CIRS.

O artigo 38.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária estabelece uma cláusula geral antiabuso, nos termos da qual «são ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas».

No caso em apreço, a Administração Tributária decidiu a aplicação da cláusula geral antiabuso considerando que os negócios jurídicos de venda de ações de uma empresa a outra, que logo de seguida é objeto de fusão por incorporação na adquirente, sendo que, quer a venda quer a fusão não alteram a detenção do capital da sociedade adquirente/incorporante, a A..., SGPS. A realização dos sucessivos atos e negócios jurídicos culminaram na transformação de dividendos em pagamento de ações com a obtenção de significativas vantagens na esfera jurídica dos acionistas envolvidos, pelo que atendendo ao disposto no n.º 2 do artigo 38.º da LGT, levou a AT a propor a desconsideração dos fluxos financeiros efetuados a título de pagamento de ações, para distribuição de dividendos os quais se encontram sujeitos a retenção na fonte com a taxa prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 71.º do CIRS.

III.2.2. Elementos da cláusula geral antiabuso

Sob a epígrafe «Ineficácia de actos e negócios jurídicos», dispõe o artigo 38.º, n.º 2 da LGT em relação à denominada cláusula geral antiabuso (CGAA) no direito tributário.

A letra plasmada pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, passou a ser a seguinte:

«São ineficazes no âmbito tributário os atos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efetuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas».

Esta norma é complementada pelo artigo 63.º do CPPT, que contém um conjunto disposições que concretizam os parâmetros conformadores do procedimento de aplicação das disposições antiabuso.

A doutrina e a jurisprudência têm vindo a densificar a letra da norma apontando cinco elementos nela patentes. Correspondendo um dos elementos à estatuição da norma, os restantes quatro afiguram-se requisitos cumulativos que permitem aferir – como se de um teste se tratasse – quanto à verificação de uma atividade caracterizável como um planeamento fiscal abusivo.

Estes elementos, em torno dos quais ambas as partes aliás constroem a sua argumentação, consistem:

No elemento meio, que diz respeito à via livremente escolhida – ato ou negócio jurídico, isolado ou parte de uma estrutura de atos ou negócios jurídicos sequenciais, lógicos e planeados, organizados de modo unitário – pelo contribuinte para obter o desejado ganho ou vantagem fiscal;

No que respeita ao elemento resultado, que tem a ver com a obtenção de uma vantagem fiscal, em virtude da escolha daquele meio, quando comparada com a carga tributária que resultaria da prática dos atos ou negócios jurídicos «normais» e de efeito económico equivalente;

No que respeita ao elemento intelectual, que exige que a escolha daquele meio seja «essencial ou principalmente dirigid[a] [...] à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos» (artigo 38.º, n.º 2 da LGT), ou seja, que exige não a mera verificação de uma vantagem fiscal, mas antes que se afira, objetivamente, se o contribuinte «pretende um ato, um negócio ou uma dada estrutura, apenas ou essencialmente, pelas prevalecentes vantagens fiscais que lhe proporcionam»;

No que respeita ao elemento normativo, que «tem por sua função primordial distinguir os casos de elisão fiscal dos casos de poupança fiscal legítima, em consideração dos princípios de Direito Fiscal, sendo que só nos casos em que se demonstre uma intenção legal contrária ou não legitimadora do resultado obtido se pode falar naquela»;

E, por fim, no elemento sancionatório, que, pressupondo a verificação cumulativa dos restantes elementos, conduz à sanção de ineficácia, no exclusivo âmbito tributário, dos atos ou negócios jurídicos tidos por abusivos, «efetuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas» (parte final do artigo 38.º, n.º 2, da LGT).

Em síntese, podendo ou não dar-se por preenchido, qualquer e todos, os requisitos (elementos intelectual, meio, resultado, normativo e sancionatório) de aplicação da cláusula geral antiabuso, entendemos que através da aplicação da cláusula geral antiabuso a Administração Tributária só pode atacar os sócios da B..., exigindo-lhe a obrigação tributária principal que eles abusivamente possam ter evitado, invocando para o efeito a ineficácia dos atos e negócios por eles realizados e que materializaram esse abuso. Todavia, entendemos que não pode a aplicação da cláusula geral antiabuso alterar os efeitos e a qualificação jurídica de tais atos perante terceiros, como é o caso da Requerente, pois a aplicação da cláusula geral antiabuso àqueles atos e negócios admite a sua manutenção na esfera jurídica dos seus titulares, sendo a sua ineficácia restrita aos seus efeitos fiscais. Assim, a requerente não realizou qualquer pagamento de dividendos, mas procedeu apenas ao pagamento do preço das ações por si adquiridas aos sócios da B..., que são simultaneamente sócios da Requerente. Este facto não se altera mesmo com a hipotética aplicação da cláusula geral antiabuso.

No ponto seguinte aprecia-se a questão da inoponibilidade ao substituto tributário da desconsideração de efeitos fiscais resultante da aplicação da cláusula geral antiabuso, razão que entendemos como válida para uma boa decisão da causa.

III.2.3. Apreciação da questão da inoponibilidade ao substituto tributário da desconsideração de efeitos fiscais resultante da aplicação da cláusula geral antiabuso

As questões de inconstitucionalidade do artigo 38.º, n.º 2, da LGT e da sua incompatibilidade com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e Protocolo Adicional, dependem da interpretação que se faça desta norma, no que concerne à sua aplicabilidade a substitutos tributários.

No caso em apreço, a Requerente defende que a própria letra do artigo 38.º, n.º 2, da LGT impõe que se elimine a vantagem fiscal obtida, o que só ocorrerá naturalmente se os efeitos da respetiva aplicação se repercutirem diretamente na esfera do contribuinte que abusivamente se eximiu da obrigação tributária. Defende ainda a Requerente, que não estão preenchidos os pressupostos materiais de aplicação da cláusula geral antiabuso, e, bem assim, por inaptidão da referida norma para determinar o nascimento de obrigações tributárias acessórias de terceiros, mormente de retenção na fonte, em face da ineficácia dos atos ou negócios jurídicos reputados de abusivos que constitui a respetiva estatuição.

Na interpretação das normas legais, na falta de outros elementos que induzam à eleição do sentido menos imediato do texto, o intérprete deve optar em princípio por aquele sentido que melhor e mais imediatamente corresponde ao significado natural das expressões verbais utilizadas, e designadamente ao seu significado técnico-jurídico, no suposto (nem sempre exato), de que o legislador soube exprimir com correção o seu pensamento[1].

O artigo 38.º, n.º 2, da LGT foi introduzido pela Lei n.º 100/99, de 26 de Julho, reproduzindo a norma que constava do artigo 32.º-A do Código de Processo Tributário de 1991, aditado pela Lei n.º 87-B/98, de 31 de Dezembro, com a seguinte redação:

2. São ineficazes os actos ou negócios jurídicos quando se demonstre que foram realizados com o único ou principal objectivo de redução ou eliminação dos impostos que seriam devidos em virtude de actos ou negócios jurídicos de resultado económico equivalente, caso em que a tributação recai sobre estes últimos.

A Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, deu a este artigo 38.º, n.º 2, a seguinte redação:

2. São ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas.

Realçou-se a negrito, nesta última redação, a referência a um aditamento de texto em relação à versão inicial que tem particular relevo para interpretação da norma, no ponto que aqui está em causa de saber se, na sequência de planeamento fiscal abusivo, uma sociedade que tem o papel de substituto na relação jurídica tributária de IRS pode ser responsável pelo pagamento das quantias que se entenda serem devidas, por ter sido omitido a retenção na fonte do imposto.

Na verdade, a parte final do artigo 38.º, n.º 2, da LGT (redação da Lei n.º pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro), ao estabelecer as consequências da aplicação da cláusula geral antiabuso «efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas» aponta decisivamente no sentido de a aplicação ter de ser efetuada em moldes que permitam afastar a produção das vantagens fiscais.

Com efeito, embora a primeira parte deste artigo 38.º, n.º 2, contenha uma aparente distinção entre os objectivos visados pelo contribuinte entre «redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico e «obtenção de vantagens fiscais», é manifesto que o que está causa na redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos é sempre a obtenção de vantagens fiscais, tendo a referência expressa e genérica às vantagens fiscais apenas o objectivo de estender o alcance da norma a quaisquer vantagens fiscais, para além das especificamente indicadas, que são claramente os casos mais frequentes de concretização das vantagens fiscais, que são a redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos.

Isto é, com a redacção dada pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, a cláusula geral antiabuso passou a poder aplicar-se a todas as situações de obtenção vantagens fiscais e não apenas às situações de redução ou eliminação dos impostos, já previstas na redacção inicial, e à de diferimento temporal, que também foi expressamente aditada na nova redacção.

A esta luz, a referência feita na parte final do artigo 38.º, n.º 2, à não produção das «vantagens fiscais referidas» reporta-se a todas as referidas, quer as mais comuns que são especificamente referidas (redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos) quer as genericamente referidas, através da alusão às «vantagens fiscais que não seriam alcançadas».

Aliás, nem outra interpretação seria constitucionalmente admissível, já que, tratando-se, em todos os casos de obtenção de vantagens fiscais abusivas, seria arbitrária e violadora do princípio constitucional da igualdade (artigo 13.º da CRP) uma hipotética distinção de tratamento entre as situações expressamente referidas e as genericamente referidas.

Não era idêntica, neste aspeto, a redação inicial desta norma, em que se estatuía que, como consequência da aplicação da cláusula geral antiabuso, a tributação recairia sobre os atos ou negócios jurídicos de resultado económico equivalente, sem qualquer alusão à eliminação das vantagens fiscais, mas a referência expressa que se faz na nova redação à não produção dessas vantagens como efeito da aplicação da cláusula geral antiabuso veio tornar indispensável que as consequências da sua aplicação atinjam quem as obteve.

Por outro lado, sendo esta eliminação das vantagens fiscais o objetivo expresso da cláusula geral antiabuso, o destinatário da aplicação desta cláusula, aquele em cujo património se irão produzir os efeitos da aplicação, não pode deixar de ser quem usufruiu dessas vantagens fiscais.

No caso em apreço, as vantagens fiscais referidas pela Autoridade Tributária e Aduaneira consistem nos «valores já pagos aos acionistas pela sociedade A... SGPS, S.A. cujos valores e datas de pagamento constam dos quadros 14 do Relatório de Inspeção Tributária, os quais se propõe sejam qualificados com a verdadeira natureza de distribuição de dividendos, uma vez que proporcionaram a disponibilidade do dinheiro aos sócios sem sofrer qualquer tributação em sede de IRS» (página 22 do Relatório da Inspeção Tributária).

Constata-se assim, que a existirem vantagens fiscais indevidas na situação em apreço, designadamente por parte das quantias recebidas pelos acionistas da Requerente a título de pagamento desses participações sociais, quando essas quantias deviam ser tributada a título de dividendos, como defende a Autoridade Tributária e Aduaneira, é manifesto que, como o se refere no Relatório da Inspeção Tributária, quem as obteve foram os acionistas, que obtiveram aumentos patrimoniais sem qualquer pagamento de imposto e não a Requerente, que foi mero veículo para que esses aumentos se concretizassem.

Sendo os accionistas os beneficiários das vantagens referidas, a aplicação da cláusula geral antiabuso nos termos em que foi efectuada não permite afastar essas vantagens, pois, impondo à Requerente o pagamento das quantias equivalentes a essas vantagens, é apenas a ela que é imposto estes ónus, permanecendo os accionistas na titularidade intacta das quantias recebidas.

É certo que se pode aventar que, mais cedo ou mais tarde, o prejuízo patrimonial com a tributação que é imposta à sociedade se repercutirá sobre os accionistas, mas é também evidente que isso pode não suceder em relação aos accionistas que beneficiaram das vantagens indevidas, pois podem deixar de ser accionistas antes de o prejuízo imposto à sociedade ter uma efectiva repercussão no valor das suas acções. Apesar de, no caso em apreço, se estar perante uma sociedade com uma estrutura accionista que tem mantido considerável estabilidade, não deixaram de existir alterações, relatadas na matéria de facto fixada, e não há qualquer certeza de que isso não se possa vir a repetir.

No entanto, a interpretação da parte final do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, como norma jurídica tributária de que resulta a imposição de tributação, não pode deixar de ter em conta a característica da generalidade, indispensável nas normas de tributação por força do disposto no artigo 5.º, n.º 2, da LGT, que é corolário do princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos. Por isso, a interpretação correcta do artigo 38.º, n.º 2, terá de valer generalizadamente, em relação a qualquer tipo de sociedades anónimas, inclusivamente as cotadas em bolsa em que a estrutura accionista se altera constantemente, relativamente às quais é evidente que a imposição da tributação à sociedade por com a sua intermediação os accionistas terem criado para si próprios vantagens fiscais indevidas não ter qualquer efeito sobre quem usufruiu dessas vantagens e deixou, depois, de ser accionista.

Ora, a esta luz, é evidente que o alcance daquele artigo 38.º, n.º 2, ao estabelecer como efeito necessário da aplicação da cláusula geral antiabuso a não produção das vantagens fiscais, pressupõe o entendimento legislativo de que a «tributação de acordo com as normas aplicáveis» incida sobre quem obteve as vantagens e não sobre quem meramente teve intervenção nos atos de que elas resultam sem beneficiar daquelas, pois só assim, é possível garantir o efeito pretendido de não se produzirem as vantagens fiscais referidas.

Na verdade, conclui-se da parte final do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, na redação da Lei n.º 30-G/2000, que a cláusula geral antiabuso não tem em vista meramente atribuir à Administração Tributária compensação por atos que lhe tenham provocado perda de receita fiscal, antes visa, concomitantemente, eliminar as vantagens fiscais ilegítimas que alguém obteve, o que revela que lhe estão subjacentes preocupações de igualdade e justiça tributária, que só podem satisfazer-se com a imposição da tributação omitida a quem obteve essas vantagens.   

De resto é esta a única interpretação que se compatibiliza com o princípio da tributação segundo a capacidade contributiva (artigo 104.º, n.º 2, da CRP) e o princípio da tributação com respeito pela justiça material (artigo 5.º, n.º 2, da LGT).

Com efeito, estes princípios impõem que seja tributado em impostos sobre o rendimento quem obteve os rendimentos e não quem os não obteve e o valor da justiça material é claramente quando, em uma situação em que existam vantagens fiscais indevidas, vá ser exigida a quantia correspondente a quem não beneficiou dessas vantagens, deixando intocados os que indevidamente delas beneficiaram. Assim prova-se que o fluxo financeiro realizado entre a A..., SGPS, S.A. e os acionistas da B..., não gerou vantagens fiscais na esfera jurídica da A.... A obtenção de significativas vantagens na esfera jurídica dos acionistas envolvidos deu-se aquando do negócio jurídico – operação de venda das ações dos sócios da B... à A..., S.A., e não aquando da realização do fluxo monetário correspondente ao pagamento da contrapartida dessa operação económica (a venda das participações), ainda que só neste momento fosse exigível a retenção na fonte com a taxa prevista na alínea c) do n.º 1 do art. 71.º do CIRS

Tendo em mente estes princípios, é seguro que a redação do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, introduzida pela Lei n.º 30-G/2000, exige que a aplicação da cláusula geral antiabuso tenha como efeito a não produção das vantagens fiscais indevidas, pelo que está pressuposto nesta norma que, pelo menos nos casos em que as vantagens fiscais já se tenham produzido, o destinatário da aplicação seja quem delas usufrui.

            Por isso, no caso em apreço, não tendo a Requerente usufruído qualquer vantagem fiscal, está afastada a possibilidade de ser responsabilizada pelo pagamento das quantias correspondentes às vantagens fiscais indevidas que a Autoridade Tributária e Aduaneira invoca.

            Na verdade, não existe qualquer disposição legal que assegure à Requerente a possibilidade de reaver a quantia liquidada exigindo o seu pagamento a quem beneficiou das vantagens fiscais, pois a responsabilidade dos acionistas, no caso de retenção na fonte que não tem a natureza de pagamento por conta, é meramente subsidiária, por força do disposto no n.º 3 do artigo 103.º do CIRS, e não existe qualquer disposição legal que assegure direito de regresso do responsável originário em relação ao subsidiário.

Por outro lado, nem mesmo é de aventar a possibilidade de, com fundamento na lei civil, a Requerente reaver o que pagou na medida do enriquecimento dos acionistas, com fundamento em enriquecimento sem causa, pois a aplicação da cláusula geral antiabuso apenas permite considerar ineficazes os negócios ou atos «no âmbito do direito tributário», como resulta do texto do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, pelo que os negócios celebrados mantêm a sua plena eficácia para efeitos cíveis e, em termos do direito civil, a receção integral das quantias recebidas pelos acionistas tem causa jurídica, pois é a contrapartida da transmissão das ações destes para a Requerente, no âmbito da compra e venda.

A isto acresce, na linha do que defende a Requerente, que a norma do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, se interpretada como admitindo a oponibilidade dos efeitos da aplicação da cláusula geral antiabuso ao substituto tributário, designadamente a imposição dos efeitos do incumprimento de um dever de retenção na fonte que não existia à face do negócio efetivamente celebrado, associada à inviabilidade de reaver as quantias não retidas, é materialmente inconstitucional, à face dos princípios da proporcionalidade e do direito a propriedade (artigos 18.º, n.º 2, e 62.º, n.º 1, da CRP).

Com efeito, estando a existência de um dever de retenção na fonte dependente da natureza jurídica dos pagamentos efetuados e só sendo possível considerar ineficaz para efeitos fiscais o negócio celebrado depois de uma autorização casuística do dirigente máximo do serviço ou pelo funcionário em quem ele tiver delegado essa competência (artigo 63.º, n.º 7, do CPPT), o potencial substituto tributário ficaria juridicamente impossibilitado de impedir uma diminuição patrimonial provocada por dívidas fiscais de outrem, pois, no momento em que efetuou os pagamentos, não tinha fundamento legal para efetuar retenção na fonte e esse dever só surgiria, com efeito retroativo, na sequência da aplicação da cláusula geral antiabuso que permitisse considerar fiscalmente ineficaz o negócio celebrado, sem possibilidade de reaver o que teria de pagar.

Na tributação de rendimentos mediante retenção na fonte do imposto com natureza liberatória, importar distinguir entre a obrigação tributária acessória que impende sobre um substituto tributário, de reter uma parte da quantia de que é devedor perante o contribuinte aquando do cumprimento de pagamento, para o entregar à Administração Tributária e não ao seu credor original, o titular do rendimento. Todavia, se o contribuinte recebe a totalidade do rendimento, a obrigação tributária principal, terá que ser sua, pois ele é última análise que tem que suportar o encargo do imposto, que só pode e deve impender sobre ele, enquanto último beneficiário do rendimento. Aliás, a obrigação acessória nasce, no caso em análise, posteriormente, ao momento em que o substituto tributário tinha a obrigação de reter o imposto, por aplicação da cláusula geral antiabuso, e desconsideração da operação anteriormente realizada, promovida a posteriori pela AT, em resultado da aplicação do artigo n.º 38.º, n.º 2, da LGT.

Assim a Requerente não pode ser reconduzida à condição de obrigada tributária in casu, inquinando de ilegalidade a liquidação impugnada, já que a aplicação da cláusula geral antiabuso não pode operar para fazer nascer obrigações fiscais acessórias, ou seja, para impor a terceiros obrigações de reter e entregar imposto.

A Requerente no caso concreto não pode ser considerada sujeito passivo do imposto, apesar de assumir a qualidade da entidade pagadora do preço, contrapartida da operação de compra e venda de participações sociais. Se é de desconsiderar a operação de transmissão de participações sociais esta tem que ser realizada na esfera jurídica dos sócios. A desconsideração subsequente da operação depois do dever legal de retenção não pode conduzir a uma obrigação retroativa na esfera jurídico-tributária da A..., tendo essa obrigação que nascer na esfera jurídica dos sócios que se apropriaram, devida ou indevidamente, do rendimento gerado com a dita operação considerada simulada pela AT, ainda que a Requerente entenda que não há qualquer simulação. Não há razoabilidade no pedido apresentado pela AT relativo à desconsideração dos fluxos financeiros efetuados a título de pagamento de ações, para se atender a essa desconsideração esta tinha que ser efetuadas na esfera jurídica dos sócios, provando que a operação realizada não é uma operação de venda de participações, mas uma distribuição de dividendos. Nesse caso a responsabilidade financeira de pagamento cabia à B..., e se verdadeiramente, ocorresse a fusão A... e B..., também poderia ser a A... a pagar essa responsabilidade financeira se o momento de colocação à disposição dos dividendos ocorre-se apenas após a fusão e só nesse caso podia ser imputado à responsabilidade da retenção de IRS à nova entidade jurídica A..., SGPS, resultantes da fusão A...-B....

Mesmo que verificados o preenchimento dos pressupostos de aplicação do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, entende-se que esse preceito não tem aptidão para junto de terceiros despoletar o nascimento de obrigações fiscais acessórias, nomeadamente a obrigação de retenção na fonte, existente apenas depois da reconfiguração jurídico-fiscal operada no contexto da aplicação da cláusula geral antiabuso, sob pena de inconstitucionalidade da norma em face dos princípios da certeza e segurança jurídicas, ínsitos no Estado de Direito democrático consagrado no artigo 2.º da CRP.

            Nestes termos, tem de se concluir pela ilegalidade dos atos impugnados por violação do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, por vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de direito, que justifica a sua anulação, nos termos do artigo 135.º do Código do Procedimento Administrativo, aplicável por força do disposto no artigo 2.º alínea c), da LGT.

 

III.2.4. Vícios cujo conhecimento fica prejudicado

 

Sendo de anular as liquidações impugnadas por vício de violação de lei, que impede a renovação dos actos em relação à Requerente fica prejudicada, por ser inútil (artigo 130.º do CPC) a apreciação dos restantes vícios que lhe são imputados.

 

III.2.5. Liquidações de juros compensatórios

Sendo ilegais das liquidações de IRS, são também ilegais, pelas mesmas razões, as liquidações de juros compensatórios que as tiverem como pressupostos e se integram na dívida de imposto (artigo 35.º, n.º 8, da LGT).

III.2.6. Pedido de juros indemnizatórios

 

            A Requerente pede ainda que seja determinado o pagamento de juros indemnizatórios, relativamente à quantia paga indevidamente.

O art. 43.º, n.ºs 1 e 2, da LGT estabelece que «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido».

No caso em apreço, foi a Autoridade Tributária e Aduaneira que efectuou a correcção à matéria tributável da Requerente, por sua iniciativa, pelo que o erro que a afecta é imputável aos serviços para os efeitos do n.º 1 do artigo 43.º da LGT.

            Procede, assim, a pretensão de juros indemnizatórios formulada pela Requerente, sendo devidos juros indemnizatórios contados desde 24-03-2014 até integral pagamento da quantia de € 3.082.666,39, de IRS e juros compensatórios, nos termos daquela norma e do artigo 61.º do CPPT.

 

 

***

            IV. DECISÃO

            Nos termos expostos, este Tribunal Arbitral coletivo decide:

a)     Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;

b)     Anular, com fundamento na violação do artigo 38.º, n.º 2, da LGT:

– a liquidação adicional de IRS n.º 2014 …, de 24-01-2014, relativa ao ano de 2010, no valor de € 2.705.300,00 (dois milhões setecentos e cinco mil e trezentos euros);

– a liquidação de juros compensatórios n.º 2014 …; 2014 … e 2014 …; todas de 24-01-2014, no valor total de € 377.366,39 (trezentos e setenta e sete euros, trezentos e sessenta e seis euros, trinta e nove cêntimos);

c)     Considerar prejudicado o conhecimento dos vícios que não foram apreciados;

d)     Julgar procedente o pedido de juros indemnizatórios e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagá-los à Requerente, à taxa legal supletiva das dívidas cíveis, nos termos dos artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.ºs 1 e 5, da LGT, 61.º, do CPPT, 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril (ou diploma ou diplomas que lhe sucederem), calculados com base na quantia de 3.082.666,39, desde a data do pagamento (24-03-2014), até à do processamento da nota de crédito, em que forem incluídos.

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V - VALOR DO PROCESSO

Em conformidade com o disposto nos arts. 306.º, n.º 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 3.082.666,39 (três milhões, oitenta e dois mil seiscentos e sessenta e seis euros e trinta e nove cêntimos).

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VI - CUSTAS

Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 39.474,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

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Lisboa, 2 de março de 2015.

Os árbitros,

 

(Jorge Lopes de Sousa)

 

 

(Ana Maria Rodrigues)

 

 

(José Coutinho Pires)



[1] BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, página 182.