Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 404/2014-T
Data da decisão: 2014-12-10  Selo  
Valor do pedido: € 23.799,98
Tema: IS – verba 28 TGIS
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DECISÃO ARBITRAL

 

CAAD: Arbitragem Tributária

Processo n.º 404/2014-T

 

 

I.              Relatório

 

1.             A... –, S.A., sociedade com sede na Rua …, Lisboa, pessoa coletiva número …, requereu ao Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), em 28 de maio de 2014, a constituição de tribunal arbitral em matéria tributária, nos termos do disposto no artigo 10.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem Tributária “RJAT”), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), com vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação dos atos de liquidação de Imposto do Selo (IS) a que correspondem os documentos n.º ..., n.º ... e n.º ..., no valor global de €23.799,98 (vinte e três mil, setecentos e noventa e nove euros e noventa e oito cêntimos).

 

2.             A Requerente optou por não designar árbitro.

 

3.             O pedido de constituição de tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 30 de maio de 2014 e automaticamente notificado à AT na mesma data.

 

4.             A Signatária foi designada pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD como árbitro de tribunal arbitral singular, nos termos do disposto no artigo 6.º do RJAT.

 

5.             A Signatária comunicou ao Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD a aceitação do encargo, no prazo legal, nos termos do disposto no artigo 4.º do Código Deontológico do CAAD.

 

6.             As Partes foram notificadas da designação da Signatária, em 18 de julho de 2014, nos termos do artigo 11.º n.º1 alíneas a) e b) do RJAT, não se tendo oposto à mesma.

 

7.             O tribunal arbitral singular ficou, assim, regularmente constituído em 4 de agosto de 2014, de acordo com o disposto na alínea c) do n.º1 do artigo 11.º do RJAT.

 

8.             A AT foi notificada, por despacho arbitral de 8 de agosto de 2014, para apresentar resposta no prazo de 30 dias (prazo esse que, nos termos do artigo 17.º A do RJAT, se suspendeu durante as férias judiciais).

 

9.             A AT apresentou a sua resposta em 30 de setembro de 2014, tendo, igualmente, requerido a dispensa da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT.

 

10.         Por despacho arbitral de 9 de outubro de 2014, foi determinada a notificação da Requerente para se pronunciar sobre a dispensa daquela reunião, tendo a Requerente indicado, em 23 de outubro de 2014, não se opor a tal dispensa.

 

11.         Em 29 de outubro de 2014, a Requerente apresentou requerimento superveniente solicitando a alteração da instância, para ampliação da causa de pedir, para apreciação de novos fundamentos, com base no recebimento, após o pedido de constituição do tribunal arbitral, de decisão de indeferimento expresso de reclamação graciosa.

 

12.         Este Requerimento foi junto ao processo e notificado à Requerida, que sobre o mesmo não se pronunciou.

 

13.         O Tribunal Arbitral é materialmente competente, nos termos do artigo 2.º n.º1 alínea a) do RJAT.

 

14.         As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

15.         É admissível a cumulação de pedidos, por se encontrarem verificados os pressupostos estabelecidos no artigo 3º, n.º 1 do RJAT.

 

16.         O processo não enferma de vícios que o invalidem.

         

II.           Do pedido da Requerente

 

17.         A Requerente apresentou pedido de pronúncia arbitral vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação dos atos de liquidação de Imposto do Selo a que correspondem os documentos n.º ..., n.º ... e n.º ..., no valor global de €23.799,98 (vinte e três mil, setecentos e noventa e nove euros e noventa e oito cêntimos).

 

Para o efeito, e em síntese, apresenta as seguintes alegações:

 

18.         A Requerente é proprietária do prédio urbano inscrito na matriz urbana da freguesia de ..., concelho de Lisboa, sob o artigo U-..., classificado como terreno para construção, não existindo no mesmo qualquer edificação ou construção.

 

19.         Os documentos ... e ... identificam como ano de imposto o ano de 2012, o que deverá ser um lapso dos serviços quanto ao último documento, o qual se deverá reportar a 2013.

 

20.         O documento ... trata-se de uma liquidação de juros compensatórios de 2013, pelo que, sendo os juros compensatórios respeitantes e acessórios do imposto propriamente dito, apenas poderá reportar-se, então, à liquidação correspondente de 2013.

 

21.         Apresentou reclamação graciosa, em 5.11.2013, das liquidações constantes dos documentos ... e ..., não tendo a Requerida emitido qualquer ato de decisão sobre as mesmas até ao pedido de constituição do tribunal arbitral, tendo, assim, sido formado ato de indeferimento tácito.

 

22.         As liquidações identificadas são ilegais, na medida em que a verba 28.2 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS) não lhe é aplicável, por não se tratar de um sujeito passivo residente em país, território ou região sujeito a regime fiscal claramente mais favorável, por um lado, e que a verba 28.1 da TGIS não abrange terrenos para construção, pois estes não têm afetação habitacional.

 

23.         Nos termos do artigo 6.º n.ºs 1 e 2 do Código do Imposto do Selo (CIS), o conceito de prédio é o definido no Código do Imposto Municipal sobre os Imóveis (CIMI) e do disposto no artigo 6.º do CIMI resulta claro que um prédio como aquele em questão não poderá ser cumulativamente habitacional e para construção.

 

24.         E que mesmo que não fosse possível o recurso às disposições do CIMI, haveria sempre que recorrer às regras gerais de interpretação constantes da Lei Geral Tributária (LGT), as quais, por sua vez, remetem para o artigo 9.º do Código Civil.

 

25.         A intenção do legislador foi tributar especificamente casas de valor igual ou superior a 1 milhão de euros;

 

26.         E que, não existindo na lei qualquer referência expressa a terreno para construção, o intérprete deve cingir-se à definição do CIMI.

 

27.         Face ao exposto, a Administração Tributária não pode concluir que o prédio da Requerente se encontra afeto a habitação porquanto é apenas destinado a construção.

 

28.         A Administração Tributária não pode sujeitar a IS os prédios urbanos que constituam terrenos para construção e aos quais tenha sido atribuída afetação habitacional no âmbito das respetivas avaliações.

 

29.         A afetação habitacional pressupõe uma abordagem funcional para a determinação ou afetação do terreno, o que é impossível para o terreno em questão, por inexistência de infra-estruturas ou de condições de habitabilidade.

 

30.         A Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, que alterou a redação da verba n.º 28.1 da TGIS não legitima uma interpretação extensiva da sua anterior redação, que permita incluir nesta o que agora o legislador expressamente pretendeu.

 

31.         Quanto ao documento n.º ..., trata-se de um ato de liquidação de juros compensatórios, e que, não sendo devida a quantia de imposto liquidado, também não poderá subsistir a liquidação de juros, atenta a sua natureza acessória.

 

32.         Não existiu qualquer comportamento culposo da Requerente para que haja legitimidade para cobrança de juros compensatórios.

 

33.         A Requerida omite no ato tributário qualquer fundamentação ou prova de culpa da Requerente, pelo que padece do vício de forma por falta de fundamentação e deverá ser, consequentemente, anulado.

 

34.         Foi instaurado processo de execução fiscal, no qual a Requerida apresentou garantia bancária, a qual é indevida.

 

35.         Como tal, a Requerida deverá ser condenada a pagar uma indemnização pelo valor correspondente aos encargos suportados com a garantia, ainda não apurados.

 

III.    Da Resposta da Requerida

 

36.         É entendimento da AT que o prédio sobre o qual recaem as liquidações impugnadas tem natureza jurídica de prédio com afetação habitacional, pelo que os atos de liquidação objeto do presente pedido de pronúncia arbitral devem ser mantidos, por consubstanciarem correta interpretação da Verba 28 da TGIS, aditada pela Lei n.º 55-A/2012, de 29 de outubro.

 

37.         Na ausência de qualquer definição sobre os conceitos de prédio urbano, terreno para construção e afetação habitacional, em sede de IS, há que recorrer ao CIMI, na procura de uma definição que permita aferir da eventual sujeição a IS, de acordo com o previsto no artigo 67.º, n.º 2 do CIS na redação dada pela Lei n.º 55-A/2012, de 29 de outubro.

 

38.         Nos termos da referida disposição legal, às matérias não reguladas no Código, respeitantes à verba n.º 28 da TGIS aplica-se subsidiariamente o disposto no CIMI.

 

39.         Dispõe o n.º 1 do artigo 2.º do CIMI que “prédio é toda a fração de território, abrangendo águas, plantações, edifícios e construções de qualquer natureza nela incorporados ou assentes, com carácter de permanência, desde que faça parte do património de uma pessoa singular ou coletiva e, em circunstâncias normais tenha valor económico, bem como as águas, plantações, edifícios ou construções, nas circunstâncias anteriores, dotados de autonomia económica em relação ao terreno onde se encontrem implantados, embora situados numa fração de território que constitua parte integrante de um património diverso ou não tenha natureza patrimonial”.

 

40.         Por sua vez, o artigo 6.º, n.º 1 do CIMI dispõe acerca das espécies de prédios urbanos existentes, integrando neste conceito os terrenos para construção, isto é os “terrenos situados dentro ou fora de um aglomerado urbano, para os quais tenha sido concedida licença ou autorização, admitida comunicação prévia ou emitida informação prévia favorável de operação de loteamento ou de construção, e ainda aqueles que assim tenham sido no título aquisitivo, excetuando-se os terrenos em que as entidades competentes vedem qualquer daquelas operações…”

 

41.         A noção de afetação do prédio urbano encontra assento na parte relativa à avaliação dos imóveis, porquanto a avaliação do imóvel (finalidade) incorpora valor ao imóvel, constituindo um facto de distinção determinante (coeficiente) para efeitos de avaliação.

 

42.         Conforme resulta da expressão “…valor das edificações autorizadas”, constante do artigo 45.º, n.º 2 do CIMI, o legislador optou por determinar a aplicação da metodologia de avaliação dos prédios em geral, à avaliação dos terrenos para construção, sendo-lhes por conseguinte aplicável o coeficiente de afetação previsto no artigo 41.º do CIMI.

 

43.         Assim, para efeitos de determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção, é clara a aplicação do coeficiente de afetação em sede de avaliação, pelo que a sua consideração para efeitos de aplicação da verba 28 da TGIS não pode ser ignorada, porquanto:

 

a.              Na aplicação da lei aos casos concretos importa determinar o exato sentido e alcance da norma, de modo a que se revele a regra nela contida, condição indispensável para que possa ser aplicada, de acordo com o disposto no artigo 9.º do Código Civil, ex vi artigo 11.º da Lei Geral Tributária;

 

b.             O artigo 67.º n.º 2 do CIS manda aplicar subsidiariamente o disposto no CIMI;

 

c.              A afetação do imóvel (aptidão ou finalidade) é um coeficiente que concorre para a avaliação do imóvel, na determinação do valor patrimonial tributário, aplicável aos terrenos para construção;

 

d.             A própria verba 28 TGIS remete para a expressão “prédios com afetação habitacional”, apelando a uma classificação que se sobrepõe às espécies previstas no n.º 1 do artigo 6.º do CIMI.

 

44.         A AT entende que o conceito de “prédios com afetação habitacional”, para efeitos do disposto na verba 28 da TGIS, compreende quer os prédios edificados quer os terrenos para construção, desde logo atendendo ao elemento literal da norma.

 

45.         O legislador não refere “prédios destinados a habitação”, tendo optado pela noção “afetação habitacional” - expressão diferente e mais ampla, cujo sentido há-de ser encontrado na necessidade de integrar outras realidades para além das identificadas no artigo 6.º, n.º1 alínea a) do CIMI.

 

46.         A mera constituição de um direito de potencial construção faz aumentar imediatamente o valor do imóvel em causa, daí a regra constante do artigo 45.º do CIMI que manda separar as duas partes do terreno.

 

47.         No que diz respeito ao regime jurídico da urbanização e edificação, é de salientar que o mesmo tem como pressuposto as edificações já construídas.

 

48.         Não se podendo ignorar que o alvará de licença para a realização de operações urbanísticas deverá conter, entre outros elementos, o número de lotes e a indicação da área de localização, finalidade, área de implantação, área de construção, número de pisos de número de fogos de cada um dos lotes, com especificação dos fogos destinados a habitações a custos controlados, quando previstos, nos termos da alínea a) do artigo 77.º do RJUE;

 

49.         E ainda que o artigo 77.º do RJUE contém especificações obrigatórias, desde logo para os alvarás de operação de loteamento ou obras de urbanização, e para as obras de construção.

 

50.         Também os Planos Diretores Municipais estabelecem a estratégia de desenvolvimento municipal, a política municipal de ordenamento do território e de urbanismo e as demais políticas urbanas. Integra e articula as orientações estabelecidas pelos instrumentos de gestão territorial de âmbito nacional e regional e estabelece o modelo de organização espacial do território municipal.

 

51.         Nestes termos, muito antes da efetiva edificação do prédio, é possível apurar e determinar a afetação do terreno para construção.

 

52.         A Requerida propugna ainda pela constitucionalidade da norma em apreço, referindo, entre outros, tratar-se de uma norma geral e abstrata, aplicável de forma indistinta a todos os casos em que se verifiquem os pressupostos de facto e de direito, e que procura buscar um máximo de eficácia quanto ao objetivo a atingir, com o mínimo de lesão para outros interesses considerados relevantes.

 

IV.    Do Requerimento Superveniente da Requerente

 

53.         A Requerente apresentou novo requerimento, no qual indicou ter recebido o ato de indeferimento expresso de reclamação graciosa das liquidações em apreço.

 

54.         Requerendo a apresentação de novos argumentos em resposta ao alegado pela Autoridade Tributária naquele ato.

 

55.         A Requerente reitera a sua argumentação inicial e cita jurisprudência diversa que contraria a resposta da Autoridade Tributária constante do ato de indeferimento da reclamação graciosa.

 

V.           Questões a decidir

 

56.         Considerando os factos e a matéria de direito constantes do pedido de pronúncia arbitral apresentado pela Requerente, a resposta da Requerida, e o requerimento superveniente apresentado pela Requerente, a questão fundamental a decidir por este Tribunal Arbitral é a de saber se terrenos para construção devem ser considerados, para efeitos de incidência de IS, quanto à verba 28.1 da TGIS, na redação da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de outubro, como prédios com afetação habitacional.

 

VI.        Matéria de Facto

 

57.         Com relevância para a apreciação do pedido, são os seguintes os factos que se dão por provados, com base nos documentos juntos ao processo, e não contestados pela Requerida:

 

a.              A Requerente é proprietária do prédio urbano sito na …, concelho de Lisboa, inscrito na matriz sob o artigo … da referida freguesia (anterior … da freguesia de ...).

 

b.             O prédio urbano em questão encontra-se descrito na matriz como terreno para construção.

 

c.              O prédio tem o valor patrimonial tributário de €1.298.180,00 (um milhão, duzentos e noventa e oito mil, cento e oitenta euros).

 

d.             Nos dados de avaliação constantes da caderneta predial, o prédio tem como “tipo de coeficiente de localização” habitação.

 

e.              Inexiste qualquer construção no prédio identificado.

 

f.               A Requerente foi notificada dos seguintes documentos de cobrança:

 

i.               Documento n.º ..., de 17.7.2013, (i) que no campo referente ao ano da liquidação do imposto refere “Lei 55A/2012”, (ii) no valor de €6.490,90, (iii) para pagamento até dezembro de 2013. (iv) O documento menciona ainda “Artigo 6.º/1/f/i”;

 

ii.             Documento n.º ..., de 17.7.2103, (i) referente ao ano de 2012, (ii) verba 28.1 da TGIS, (iii) no valor de €12.981,80, (iv) para pagamento até dezembro de 2013; e

 

iii.           Documento n.º ..., de 17.3.2104, (i) referente ao ano de 2013, (ii) verba 28.1 da TGIS, (iii) 1.ª prestação, (iv) no valor de €4.327,28, (v) para pagamento até abril de 2014.

 

g.             A Requerente apresentou reclamação graciosa do Documento identificado em i. da alínea anterior, em 5.11.2013;

 

h.             A Requerente apresentou reclamação graciosa do Documento identificado em ii. da alínea f. supra, em 5.11.2013;

 

i.               Decorreram 4 meses desde a apresentação das reclamações graciosas, sem pronúncia da Requerida;

 

j.               No decurso do presente processo, a Requerente foi notificada do indeferimento expresso da reclamação graciosa apresentada com referência ao Documento indicado em i. da alínea f. supra.

 

58.         Não existem, com relevância para o processo, outros factos que não se considerem provados.

 

59.         A convicção sobre os factos dados como provados fundou-se na prova documental indicada, junta pela Requerente, cuja autenticidade e correspondência à realidade não foram questionadas pela Requerida.

 

VII.     Matéria de Direito

 

A.           Nota prévia

 

60.         A Requerente indica que o Documento n.º ..., de 17.03.2014, consubstancia uma nota de liquidação de juros compensatórios.

 

61.         Todavia, do documento em questão decorre claramente que se trata da 1.ª prestação de IS respeitante à verba 28.1 da TGIS, referente ao ano de 2013.

 

62.         Trata-se de uma errónea qualificação do objeto da liquidação (a qual não poderia consubstanciar uma liquidação de juros, por em local algum se referir tal facto, ser indicado o motivo justificador da mesma ou o respetivo cálculo).

 

63.         Verifica-se também que não existiu apresentação de reclamação graciosa deste ato em apreço.

 

64.         No entanto, o mesmo data de 17.3.2014, pelo que, à data de apresentação do pedido de pronúncia arbitral, a Requerente se encontrava em prazo para proceder à apresentação de impugnação do ato, nos termos do disposto no artigo 10.º n.º1 alínea a) do RJAT.

 

65.         No entanto, a Requerente cumulou os pedidos de anulação das 3 liquidações identificadas, tendo, embora, qualificado erroneamente o documento em questão, no entendimento deste Tribunal.

 

66.         A Requerida não contestou tal facto.

 

67.         Por se encontrarem preenchidos os critérios para a cumulação de pedidos constantes do artigo 3.º do RJAT e por se encontrar verificado o cumprimento do prazo para impugnação do ato em questão, este Tribunal Arbitral apreciará da legalidade dos 3 documentos impugnados.

 

B.            Apreciação

 

68.         A questão em apreço foi já objeto de apreciação diversas vezes, pelo Supremo Tribunal Administrativo (STA) (vejam-se, a título de exemplo, os recentes Acórdãos de 24/9 e 9/7 de 2014) e pela jurisprudência arbitral (designadamente no âmbito dos processos 42/2013-T, de 18/10/2013; 48/2013-T, de 09/10/2013; 49/2013-T, de 18/09/2013; 53/2013-T, de 02/10/2013; 75/2013-T, de 01/11/2013; 144/2013-T, de 12/12/2013; 158/2013-T, de 10/02/2014; 308/2013-T, de 28/04/2014; 310/2013, de 22/04/2014 e 202/2014-T, de 16/10/2014).

 

69.         A jurisprudência citada decidiu, em todos os casos, contra o entendimento da Requerida, decisões que, se indica desde já, este Tribunal Arbitral acompanha, conforme se detalhará.

 

70.         Para a apreciação da questão em causa importa, antes de mais, analisar o artigo 4º da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de outubro, que aditou à TGIS, anexa ao CIS, a verba nº 28, com a seguinte redação:

 

“28 — Propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), seja igual ou superior a € 1 000 000 — sobre o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI:

 

28.1 — Por prédio com afetação habitacional — 1 %;

 

28.2 — Por prédio, quando os sujeitos passivos que não sejam pessoas singulares sejam residentes em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável, constante da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças — 7,5 %.”

 

71.         O texto legislativo em apreço introduziu um conceito não utilizado em qualquer outra disposição tributária – o de prédio com afetação habitacional – nem definiu o mesmo.

 

72.         Para compreender o seu conteúdo, deverão assim ser compulsados os conceitos de prédio constantes do CIMI (artigos 2.º a 6.º) – ao abrigo do disposto no artigo 67.º, n.º 2 do CIS, segundo o qual, às matérias não reguladas no CIS respeitantes à verba n.º 28 da TGIS, se aplica subsidiariamente o disposto no CIMI.

 

73.         E tal interpretação deverá ser sempre realizada nos termos do disposto nos artigos 11.º da Lei Geral Tributária (LGT) e 9.º do Código Civil, para o qual aquele remete.

 

74.         O artigo 11.º da LGT estabelece que:

 

1.             Na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e os princípios gerais de interpretação e aplicação das leis.

2.             Sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer diretamente da lei.

3.             Persistindo a dúvida sobre o sentido das normas de incidência a aplicar, deve atender-se à substância económica dos factos tributários.

4.             As lacunas resultantes de normas tributárias abrangidas na reserva de lei da Assembleia da República não são suscetíveis de integração analógica.

 

75.         Por sua vez, o artigo 9.º do Código Civil indica que:

 

1.             A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

2.       Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

3.       Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

 

76.         Da análise dos conceitos constantes dos indicados artigos do CIMI (2.º a 6.º), verifica-se não existir correspondência de qualquer um com aquele estabelecido na verba 28.1 da TGIS (prédio com afetação habitacional).

 

77.         De facto, o CIMI diferencia claramente os prédios habitacionais dos terrenos para construção. Os primeiros são classificados em função da respetiva licença autárquica ou, na sua falta, do seu uso normal, os segundos são definidos em função da sua potencialidade legal.

 

78.         O licenciamento ou o uso normal de um prédio cujo destino seja a habitação referem-se, naturalmente, a prédios edificados que reúnam as características exigíveis para tal licenciamento ou uso.

 

79.         Já o terreno para construção – independentemente da potencialidade de construção, ou do momento em que essa potencialidade é aferida, ao contrário do que refere a Requerida – não terá qualquer aptidão para ser licenciado para habitação, ou para se definir este fim como o seu destino normal.

 

80.         Ora, se a norma tributária em apreço não define, por si, o conceito de afetação habitacional, não é possível extrair, ao abrigo dos normativos supra citados, e sem mais, que no seu escopo caiba uma qualquer potencialidade futura de um edifício que venha a ser construído num terreno para construção – cabe apenas a efetiva edificação habitacional.

 

81.         E ao contrário do que alega a Requerida, não se pode interpretar a norma no sentido de afirmar que a opção do legislador com a expressão “afetação habitacional” tenha sido a de se sobrepor às espécies contidas no artigo 6.º do CIMI.

 

82.         As regras sob as quais o intérprete deve prosseguir a atividade de interpretação de normas legais, tal como supra detalhadas, não conferem qualquer apoio legal a tal interpretação.

 

83.         Se tal fosse a opção do legislador, este haveria, certamente indicado expressamente a mesma.

 

84.         Ora, presumindo-se que o legislador soube exprimir o seu pensamento de forma adequada, encontramos, pelo contrário, uma remissão expressa para os conceitos constantes do CIMI (o que a própria Requerida reconhece), e não para outras realidades nos mesmos não contidas.

 

85.         Adicionalmente, também não concorda este Tribunal Arbitral com o entendimento da Requerida, segundo o qual o significado de afetação habitacional se deva extrair do disposto no artigo 45.º do CIMI.

 

86.         O artigo 45.º do CIMI reporta-se às regras aplicáveis na determinação do valor patrimonial dos terrenos para construção, estabelecendo que este é o que resulta do valor da área de implantação do edifício a construir adicionado do terreno adjacente à implantação. Na fixação do valor daquela área, considera-se uma percentagem, variável entre 15% e 45%, do valor das edificações autorizadas ou previstas.

 

87.         Refere a Requerida que nessa fixação de valor são utilizados os coeficientes aplicáveis na determinação do valor patrimonial tributário, designadamente o coeficiente de afetação “habitação”, e que tal deverá ser, também, um elemento determinante para efeitos da aplicação da verba 28.1 da TGIS em apreço.

 

88.         Por cabalmente esclarecedor deste ponto, cite-se o disposto no Acórdão do STA de 9 de julho de 2014, com o qual se concorda na íntegra:

 

“O facto de se poder considerar que na determinação do valor patrimonial tributário dos prédios urbanos classificados como terrenos para construção se deve levar em conta a afetação que terá a edificação para ele autorizada ou prevista para determinação do respetivo valor da área de implantação (cfr. os n.ºs 1 e 2 do artigo 45.º do CIMI) não determina que os terrenos para construção possam ser classificados como “prédios com afetação habitacional”, porquanto a afetação habitacional surge sempre no Código do IMI referida a “edifícios” ou “construções”, existentes, autorizados ou previstos, porquanto apenas estes podem ser habitados, o que não sucede no caso dos terrenos para construção, que não têm, em si mesmos, condições para tal, não sendo suscetíveis de serem utilizados para habitação senão se e quando neles for edificada a construção para eles autorizada e prevista (mas nesse caso não serão já “terrenos para construção” mas outra espécie de prédios urbanos – “habitacionais”, “comerciais, industriais ou para serviços” ou “outros” – artigo 6.º do CIMI).

 

Estranho seria, aliás, que a determinação do âmbito da norma de incidência tributária da verba n.º 28 da Tabela Geral do Imposto do Selo se encontrasse, ao fim e ao cabo, nas normas de determinação do valor patrimonial tributário do Código do IMI, e que a imprecisão terminológica do legislador na redação daquela regra fosse, afinal, elucidada e finalmente esclarecida por via de uma remissão, indireta e equívoca, para o coeficiente de afetação estabelecido pelo legislador em relação a prédios edificados (artigo 41.º do Código do IMI).”

 

89.         Refira-se ainda que a Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, veio alterar a redação da norma em questão, passando a verba 28.1 da TGIS a dispor: “por prédio habitacional ou por terreno para construção cuja edificação, autorizada ou prevista, seja para habitação”.

 

90.         É entendimento deste Tribunal Arbitral que a nova norma apenas dispõe para o futuro (a partir de 1 de janeiro de 2014), e que não se poderia – se fosse o caso - retirar da mesma qualquer caráter interpretativo da redação até então vigente e ora em apreço.

 

91.         Se houvesse uma pretensão de conferir natureza interpretativa à norma, tal teria sido expressamente indicado pelo legislador.

 

92.         A prática jurisprudencial tem sido unânime, constante e pacífica quanto ao entendimento a conferir à norma em questão, pelo que, na verdade, nem existia norma que necessitasse de interpretação autêntica.

 

93.         Assim, o legislador, com a alteração introduzida em 2013, veio apenas claramente incluir uma nova realidade a sujeitar à verba 28.1 da TGIS, para além dos prédios manifestamente habitacionais (os terrenos para construção, não constantes da redação anterior).

 

94.         Por fim, e no sentido de reforçar o entendimento que vem sendo delineado, procura-se ainda a reconstrução do pensamento legislativo que presidiu à aprovação da redação da verba 28.1 da TGIS em 2012:

 

95.         Por um lado, da exposição de motivos constante da Proposta de Lei n.º 96/XII – 2.ª, de 21/09/2012 (a qual originou a já citada Lei n.º 55-A/2012), não decorre qualquer elemento que permita esclarecer o conceito de prédio com afetação habitacional.

 

96.         Por outro lado, e como constante do Diário da Assembleia da República, I Série, n.º 9/XII, 2.ª sessão legislativa, de 11 de outubro de 2012, o Senhor Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais apresentou esta inovação legislativa nos seguintes termos:

 

“Esta proposta tem três pilares essenciais: a criação de uma tributação especial sobre prédios urbanos de valor superior a 1 milhão de euros; o agravamento da tributação sobre os rendimentos do capital e sobre as mais-valias mobiliárias; e o reforço das regras de combate à fraude e à evasão fiscais.

 

Em primeiro lugar, o Governo propõe a criação de uma taxa especial para tributar prédios urbanos habitacionais de mais elevado valor. É a primeira vez que em Portugal é criada uma tributação especial sobre propriedades de elevado valor destinadas à habitação. Esta taxa será de 0,5% a 0,8%, em 2012, e de 1%, em 2013, e incidirá sobre as casas de valor igual ou superior a 1 milhão de euros.” (sublinhado nosso)

 

97.         Do exposto decorre que não é possível, e por força dos normativos legais citados, inferir que na expressão “prédios com afetação habitacional” possam ser subsumidos os terrenos para construção. Pelo contrário.

 

98.         A Requerida apresenta ainda argumentação no sentido de demonstrar que a norma em apreço não é violadora de qualquer preceito constitucional. No entanto, considerando que tal avaliação não foi objeto do pedido de pronúncia arbitral apresentado pela Requerente, não será, consequentemente, apreciado pelo Tribunal Arbitral, por extravasar o pedido.

 

99.         Concluindo-se que terrenos para construção não estão sujeitos à verba 28.1 da TGIS, as liquidações objeto do presente não poderão manter-se.

 

100.     Perante a conclusão supra, torna-se desnecessária a determinação do ano a que se reporta o documento ....

 

101.     Sem prejuízo, sempre se refira que, a ser de 2012, seria ilegal, por, por um lado, determinar a aplicação do mesmo imposto, ao mesmo sujeito passivo, pelo mesmo facto e, por outro, por não cumprir as disposições transitórias constantes da Lei n.º Lei n.º 55-A/2012 de 29 de outubro.

 

102.     No caso de se reportar a 2013, verificar-se-ia a mesma conclusão em face do documento ....

 

C.      Indemnização por garantia indevida

 

103.     A Requerente peticiona indemnização pelos encargos suportados com a prestação de garantia bancária com vista à suspensão de processo de execução fiscal.

 

104.     De acordo com o artigo 53.º n.º 1 da LGT, o devedor que, para suspender execução, ofereça garantia bancária, será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a 3 anos, em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objeto a dívida garantida.

 

105.     São, no entanto, indemnizados os prejuízos em questão sem dependência daquele prazo de 3 anos, no caso de ter existido erro imputável aos serviços na liquidação do tributo (artigo 53.º n.º2 da LGT).

 

106.     Nos termos do n.º 3 do mesmo artigo, o montante da indemnização está sujeita a um limite máximo equivalente ao resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios definida no artigo 43.º n.º4 da LGT.

 

107.     De acordo com o artigo 171.º do CPPT, o processo de impugnação judicial em que se decide sobre a legalidade do ato é o meio processual adequado para formular o pedido de indemnização por garantia indevida.

 

108.     Ora, sendo no processo arbitral discutida a legalidade da dívida, é também o processo arbitral o meio adequado para a apreciação deste pedido.

 

109.     No caso em apreço, o erro subjacente às liquidações identificadas é imputável, exclusivamente, à Autoridade Tributária, pelo que à Requerente assiste o direito de peticionar tal indemnização.

 

110.     No entanto, o Tribunal não dispõe de elementos que permitam fixar o seu exato valor, o qual deve ser calculado com base nos custos efetivamente suportados, desde a data da constituição da garantia até ao dia em que for libertada (sempre com respeito pelo limite máximo supra indicado).

 

VIII.  Decisão

 

Nestes termos, e com base nos fundamentos expostos, o Tribunal Arbitral decide:

 

A.           Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, com a consequente anulação dos atos de liquidação de Imposto do Selo a que correspondem os documentos n.º ..., n.º ... e n.º ..., no valor global de €23.799,98 (vinte e três mil, setecentos e noventa e nove euros e noventa e oito cêntimos);

 

B.            Condenar a Requerida no pagamento de indemnização por prestação de garantia indevida, no valor que vier a ser liquidado em execução da presente decisão (artigo 609.º do Código de Processo Civil).

 

Valor do processo: €23.799,98 (vinte e três mil, setecentos e noventa e nove euros e noventa e oito cêntimos).

 

Custas: Ao abrigo do disposto no artigo 22.º n.º 4 do RJAT, e nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor das custas em €1.224,00 (mil duzentos e vinte e quatro euros), a cargo da Requerida.

 

Lisboa, 10 de dezembro de 2014

 

O árbitro

 

Ana Pedrosa Augusto